Por BORIS SCHNAIDERMAN *
Leon Tolstói não precisa de apresentações. (...) Hoje apresentaremos mais uma obra do autor. E o nome do livro, como vocês já viram no título, é “A morte de Ivan Ilitch”.
Quando li essa obra, o primeiro pensador que me veio à mente foi o filósofo Heidegger. E por quê? Em sua obra “O Ser e o Tempo”, a morte é uma possibilidade, um desfecho que tem uma grande importância em seu pensamento. Tal construção, por ele definida como ontológica (que significa estudo do ser) e do conceito formulado pelo filósofo de Dasein, que significa: ser para morte.
Você, leitor, provavelmente perguntará: você não está indo longe demais? Vou tentar ser sucinto e claro. Essa visão de Heidegger situa o homem num comprometimento com a sua identidade como um processo em construção. Ao construir essa identidade, esse processo termina no momento de sua morte. Por isso, Heidegger vai dizer que o Dasein é ser-para-morte, porque ele é aquele ente que só chega a ser ele mesmo no momento em que ele não é mais.
A morte segundo Heidegger é, pois, um acontecimento humano, existencial e privilegiado, que se encontra profundamente entranhado no ser do homem como ser-no-mundo e ser-de-projeto. Em outras palavras, podemos dizer que o “conceito existencial da morte” refere-se ao sentido temporal da existência que se norteia por meio das noções de sentido e significado. É nessa perspectiva que Martin Heidegger afirma que a pendência que determina a existência pertence ao próprio fim. Nesse sentido, podemos concluir juntamente com o filósofo que o “fim do ser é a morte”.
Vamos ao livro?
“A morte de Ivan Ilitch” é fruto dos últimos anos de vida de Tolstói, que morreu aos 82 anos de idade na estação ferroviária de Astápovo. Imerso numa reclusão, voltado para a natureza e contemplação religiosa, atitude que seguia à revelia de familiares e amigos. Nesse período, nosso autor resolveu escrever a história do burocrata Ivan Ilitch Golovin, um sujeito que não soube viver e morrer, mas tentou encontrar respostas para a morte durante o longo processo de agonia que enfrentou.
A morte de Ivan Ilitch, o fim cronológico da história, ocorre no primeiro capítulo, sendo comentada pelos amigos, colegas de trabalho e carteado. A morte de Ivan na verdade era apenas um detalhe, seus falsos amigos e colegas de trabalho discutiam vagas, promoções em razão do falecimento de uma peça da engrenagem (Ilitch). E é com essa elegância que Tolstói percorre inicialmente esse mundo de homens e mulheres desprovidos de mínima consciência e movidos a interesses, apertos de mãos com objetivos estratégicos bem definidos, que tiram a poeira dos tapetes das repartições em que Ivan viveu e trabalhou. O restante do romance é dedicado não à morte de Ivan, mas à sua vida.
Ivan Ilitch acreditava ser um homem especial. Mesmo sabendo da inevitabilidade da morte, tinha um compromisso inadiável com a vida em razão de sua ascensão profissional e seu reconhecido status financeiro, um funcionário público do sistema judiciário da Rússia czarista. Vive uma vida totalmente despreocupada, que é “mais simples e mais comum e, portanto, mais terrível”. Sua ascensão social acontece de modo tranquilo.
Seu casamento com uma mulher muito exigente é o caminho para se dedicar ao trabalho até ser um magistrado. Seu trabalho é o refúgio que ele encontra para evitar sua família.
Quando Ivan estava pendurando as cortinas em sua casa nova, ele cai sem jeito e se fere. Embora ele não pensasse na dor que sentia, seu corpo começa a acusar. Um imenso desconforto aparece, seu comportamento para com a família começa a ficar mais irritável. Sua esposa insiste para que ele visite um médico. Os médicos não conseguem obter um diagnóstico satisfatório. E fico por aqui.
“A Morte de Ivan Ilitch” é uma reflexão poderosa sobre a morte. Muitas vezes quando ela se apresenta diante de nossos olhos, ela se torna algo inaceitável e injusto, como se a morte necessitasse de algum tipo de justificativa para ocorrer. Ivan Ilitch se esquecera da indiferença da morte frente à sua vontade, seus desejos e sonhos.
“A Vida, uma série de tormentos em crescendo, voa cada vez mais veloz para o fim, para o mais terrível dos sofrimentos. “Eu voo...” Estremecia, mexia-se, queria opor-se; mas já sabia que não se podia opor resistência, e novamente, com os olhos cansados de fitar, mas impossibilitados de não olhar aquilo que estava diante deles, fitava as costas do divã e esperava: esperava essa terrível queda, empurrão e aniquilamento. “Não se pode resistir – dizia-se para consigo. – Mas se pudesse ao menos compreender para que isto. E também é proibido. Seria possível explicar, se se dissesse que eu não vivi como se devia. “Mas é impossível admiti-lo” – dizia a si mesmo, lembrando toda a legitimidade, exatidão e decência da sua vida. “ É impossível admiti-lo – dizia, sorrindo com os lábios, como se alguém pudesse ver este sorriso e ser enganado por ele. – Não há explicação! O sofrimento, a morte... Para quê?” (pg. 70)
Pensar a morte é pensar a própria existência humana, essa nossa condição irremediável de estarmos lançados numa coisa chamada vida e que tem um fator limitador, que é a experiência da morte. A morte possibilita uma compreensão de novas formas de sentido e diferentes formas de pensar e agir.
Morremos tentando nos proteger da vida. Criamos em nossas existências regras que acreditamos poder controlar. Tal controle não passa de uma ilusão para nos sentirmos seguros e tranquilos. Quando algo ocorre que mostre a falibilidade dos sistemas que criamos, rompendo nossas estruturas de sentido, surge a angústia.
A morte é um fim que não tem mais começo, é o término definitivo. Ao negarmos a morte, acreditamos que assim seremos mais felizes. Por isso nos defendemos dela, sem percebermos que da tragicidade da vida a morte é a sua grande coadjuvante. Esquecemos que viver é morrer todos os dias, que viver é intrinsecamente morrer. Com isso esquecemos de viver, seguindo a filosofia de Tolstói, os momentos de nossa existência de forma mais autêntica.
“E o que será se realmente toda a minha vida, a minha vida consciente tiver sido outra coisa?” (pg. 72)
* Nascido em 1917 em Uman, Ucrânia e falecido em São Paulo em 2016. Tradutor, escritor e ensaísta brasileiro. Autor do romance Guerra em Surdina (1964), seu único livro de ficção, que constrói a trajetória com sua participação dos combatentes da Força Expedicionária Brasileira na II Guerra Mundial. Laureado com o prêmio Jabuti em 1983 por seu ensaio "Dostoiévski: Prosa e poesia" (Ed. Perspectiva). No caso da novela "A Morte de Ivan Ilitch", foi tradutor do texto russo, autor do posfácio e das notas pela Editora 34. Recebeu o título de professor emérito da USP em 2001, e o Prêmio de Tradução da Academia Brasileira de Letras, em 2003. No ano de 2007, o governo da Rússia lhe concedeu a Medalha Pushkin, um reconhecimento por sua contribuição na divulgação da cultura russa.
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
ResponderExcluirPrezad@,
Há um hiato na produção literária de Tolstói desde o final da década de 1870 - data de sua conversão religiosa - até 1883, período em que o escritor critica as convenções familistas e as aparências sociais, a superficialidade e a hipocrisia da alta sociedade.
Com este brilhante texto, tão agudo quão profundo, Leon Tolstói retomou sua produção literária, após ter abandonado a arte e renegado toda sua obra pregressa para se dedicar à vida espiritual. Consta que em agosto de 1883, o escritor russo Ivan Turguêniev escreveu a Tolstói, duas semanas antes de falecer: “Faz muito tempo que não lhe escrevo porque tenho estado e estou, literalmente, em meu leito de morte. Na realidade, escrevo apenas para lhe dizer que me sinto muito feliz por ter sido seu contemporâneo, e também para expressar-lhe minha última e mais sincera súplica. Meu amigo, volte para a literatura.”
Embora não se possa dizer com certeza em que medida a carta de Turguêniev repercutiu em Tolstói, o certo é que a novela A Morte de Ivan Ilitch, publicada em 1886, foi a primeira obra literária, que ele escreveu após sua abstinência literária e que é geralmente classificada entre os melhores exemplos de novela e considerada por Otto Maria Carpeaux “uma das obras mais comoventes e mais pungentes da literatura universal, talvez a obra-prima de Tolstói”.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/05/resenha-de-morte-de-ivan-ilitch.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, atual Terceiro Vice-Presidente TJMG, escritor e membro do IHG-MG e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...
ResponderExcluirEsse livro é sensacional.
O defunto nem esfriou, e já discutem quem sucederá o morto no cargo burocrático...
Abs
Eu li A morte de Ivan Ilitch há muito tempo. Munido de todos os comentários do blog do caro amigo Braga, vou reler para rever essas emoções. Obrigado.
ResponderExcluirProf. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...
ResponderExcluirCaro professor Braga
Interessante resenha de Schnaiderman que serve também de estímulo à leitura dessa obra de Tolstói para quem, como eu, ainda não a leu.
Saudações.
Cupertino
João Carlos Ramos (poeta, escritor, membro e ex-presidente da Academia Divinopolitana de Letras e sócio correspondente da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Lavrense de Letras) disse...
ResponderExcluirParabéns, grande Braga! A ADL se sente honrada com um intelectual de tal envergadura em seus quadros.
Fabiano Fuscaldi (membro da Academia Divinopolitana de Letras) disse...
ResponderExcluirEssa narrativa é sensacional!
Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...
ResponderExcluirSaudações, professor Braga!
Muitíssimo grato.