quinta-feira, 1 de maio de 2025

DISCURSO DE POSSE DE ROGÉRIO MEDEIROS NA ACADEMIA BARBACENENSE DE LETRAS

Por Rogério Medeiros Garcia de Lima
Sócio correspondente - Cadeira nº 15
Patrono: Cândido Martins de Oliveira Júnior 
Discurso proferido em 29/04/2025 na Academia Barbacenense de Letras.
 
Senhoras e senhores, 
 
Minhas primeiras palavras são de agradecimento às confreiras e confrades da Academia Barbacenense de Letras, por me concederem a inigualável honra de ocupar a cadeira nº 15 de acadêmico correspondente. Agradeço especialmente à minha eterna professora de Língua Inglesa, Áurea Luiza Campos de Vasconcelos Grossi, responsável pela indicação do meu nome a esta Arcádia; e aos acadêmicos Rodrigo Tostes Geoffroy, presidente, Ângela Maria Rodrigues Laguardia, vice-presidente, e Ricardo Lúcio Salim Nogueira, pelo suporte dado na preparação da posse. 
 
Profª Áurea Grossi, vice-presidente Ângela Laguardia e Rogério Medeiros - Crédito pela foto: Rute Pardini Braga

 
No livro Redes sociais em prosa e verso, esbocei uma resumida autobiografia. ¹ Nasci em São João del-Rei, cidade histórica de Minas Gerais, na manhã de 8 de setembro de 1961. Sou filho do médico pediatra Euclides Garcia de Lima Filho e da professora de inglês Laís Medeiros Garcia de Lima. Ele também natural de São João del-Rei (nascido em 04.02.1932 e falecido em 10.10.2021). Ela natural de João Pessoa, Paraíba (nascida em 16.03.1933 e falecida em 17.10.2014). 
Vim à luz ao tempo da “Guerra Fria”, quando Estados Unidos e União Soviética lideravam, respectivamente, os blocos de países capitalistas e comunistas. Cresci na vigência do rigoroso regime instaurado no Brasil, em 31 de março de 1964. Perdurou até 1985, quando o Colégio Eleitoral elegeu o presidente civil Tancredo de Almeida Neves. 
O advogado Tancredo, meu conterrâneo de São João del-Rei, era uma singular figura humana e política. Adoeceu, morreu e não foi empossado no cargo presidencial. 
Apesar de vivermos então os chamados “anos de chumbo”, minha formação foi bastante sadia. Graças à cidade barroca onde nasci e me criei, num ambiente pleno de cultura, história e religiosidade. Aos meus pais e familiares, que me incutiram valores preciosos e o amor aos estudos. Aos religiosos, religiosas, professores e professoras do Colégio Nossa Senhora das Dores (Irmãs Vicentinas) e do Colégio São João (Salesiano), onde cursei o jardim de infância, primário e ginásio, na terra natal. E aos excelentes amigos e amigas de infância, com os quais convivo até hoje. 
É inegável: tenho saudade daqueles idos das décadas de 1960 e 1970. Aprovado em concurso, cursei o segundo grau na Escola Preparatória de Cadetes do Ar (EPCAR), da Força Aérea Brasileira, instalada nesta próspera e tradicional cidade de Barbacena. Entre os anos de 1976 e 1978, recebi inigualável formação intelectual, ética, cívica e militar. Todavia, não quis seguir a vibrante carreira de aviador. 
Aprovado no vestibular de Medicina para a Universidade Federal Fluminense, abandonei o curso no primeiro ano. Prestei novo vestibular em 1981 e ingressei na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 1983, transferi-me para a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, a “vetusta Casa de Afonso Pena”. O recém-eleito governador Tancredo Neves nomeara-me para integrar a sua assessoria jurídica, em Belo Horizonte. 
Sofri para desembaraçar expedientes variados, a mim atribuídos; porém, aprendi bastante e abracei o Direito Administrativo como disciplina predileta. 
Bacharelei-me em Direito no primeiro semestre de 1986. Ingressei na carreira do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, por concurso público, em novembro de 1986. Fui promotor de justiça nas Comarcas de Perdões, Raul Soares e Caratinga. 
Aprovado no concurso para ingresso na Magistratura de Minas Gerais em outubro de 1989, atuei como juiz de direito nas Comarcas de Bonfim, Visconde do Rio Branco, Montes Claros e Belo Horizonte. Fui promovido ao cargo de desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e nele empossado em 24 de janeiro de 2008. Presidi o Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais nos anos de 2019 e 2020. Sou o atual 3º vice-presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. 
Concluí doutorado em Direito Administrativo em 2001, na mesma Faculdade onde me formei. Defendi a tese “O Direito Administrativo e o Poder Judiciário”. 
 
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Na EPCAR, fui assíduo frequentador da sortida biblioteca. Lia muitos livros, revistas e jornais de excelência. Eram de elevado nível os livros didáticos adotados pela Escola Preparatória. 
Nem imaginava seguir a carreira do Direito e, menos ainda, tornar-me juiz. Contudo, impressionou-me a leitura de passagem sobre a Revolução Francesa no segundo volume da rica História da civilização ocidental, escrita pelo norte-americano Edward McNall Burns:
“O mais famoso e talvez o maior de todos os líderes extremistas foi Maximiliano Robespierre (1758-94). Pertencente a uma família que passava por ser de origem irlandesa, Robespierre estudou direito e não tardou a alcançar êxito modesto como advogado. Em 1782 foi nomeado juiz criminal, mas em breve resignou o cargo por não ter coragem de impor uma sentença de morte. De temperamento nervoso e tímido, nunca demonstrou grande capacidade prática, mas procurava compensar essa falha com uma devoção fanática aos princípios. (...)
“Embora seu papel tivesse sido insignificante ou nulo na instauração do regime de Terror, foi largamente responsável pela extensão desse regime. Chegou mesmo a justificar a crueldade como necessária e, portanto, como um expediente louvável para promover o progresso da Revolução. Nas últimas seis semanas de sua ditadura virtual rolaram no cadafalso de Paris nada menos que 1.285 cabeças. Mais cedo ou mais tarde, porém, tais métodos teriam de ser fatais a ele próprio. Em 28 de julho de 1794, Robespierre, juntamente com vinte e um de seus auxiliares imediatos, foram guilhotinados sem mais julgamento que o que ele costumava conceder a seus adversários”. ²

Seria um dos insondáveis desígnios do Criador, zeloso pela falível justiça dos homens? Impregnava Ele na alma de um futuro magistrado a aversão à arbitrariedade, crueldade, parcialidade, falta de bom senso e improbidade de um mau juiz? Felizmente, ao longo de mais de trinta e cinco anos de exercício na judicatura, sempre me pautei pela assertiva de Rui Barbosa, segundo quem a magistratura é “a mais eminente das profissões a que um homem se pode entregar neste mundo”. ³

O juiz tem de ser culto, operoso, prudente, justo, discreto e probo, porque – sentenciava o notável paraibano José Américo de Almeida – “o mau juiz é o pior dos homens”. 
 
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Falemos da estupenda história da querida Barbacena. 
A cidade surgiu, no século 18, do antigo Arraial da Igreja Nova da Borda do Campo:
“Em fins daquele século, os moradores do Arraial solicitaram sua transformação em vila, isto é, em sede de uma unidade político-administrativa. Por volta de 1785, um longo documento, assinado por figuras expressivas da sociedade local, foi encaminhado ao visconde de Barbacena, governador de Minas Gerais. O pleito foi atendido em 14 de agosto de 1791, quando foi criada a vila, em solenidade presidida pelo governador. Na oportunidade, procedeu-se ao Auto de Criação da Vila de Barbacena, o qual sugeria que, considerando impróprio o nome do Arraial da Igreja Nova e em gratidão ao visconde, se desse o nome de Barbacena à nova vila. Foi nomeado o bacharel Manoel de Sá Fortes Bustamante Nogueira, capitão-mor da vila”.
Com a decadência do ciclo do ouro, intensificou-se o comércio do Rio de Janeiro com o interior das Minas Gerais. Aumentou a influência de Barbacena, elevada à categoria de cidade em 9 de março de 1840. Estava fadada a ser palco de significativos episódios da história de Minas Gerais e do Brasil. A altaneira cidade notabilizou-se pela posição liberal e independente assumida em momentos cruciais, na colônia e no Império:
“O apoio de primeira hora de sua elite à causa republicana é exemplar. Na visão do historiador José Murilo de Carvalho, esse liberalismo explica-se pela posição da cidade na linha de comunicação entre a capital da província e o Rio de Janeiro. O contato com elites de outras cidades, especialmente Ouro Preto e Rio de Janeiro, teria resultado em menor rigidez no pensamento da elite local e em certo urbanismo em seus costumes, evidenciado pelo precoce desenvolvimento da imprensa ali registrado: há notícias de publicações jornalísticas na cidade desde 1836.
“Em solo barbacenense realizaram-se importantes articulações da Inconfidência Mineira. Consta que o alferes Tiradentes visitou a Fazenda da Borda do Campo por várias vezes. Seu irmão, padre Antônio da Silva Santos, era proprietário da Fazenda do Castelo, situada no município, onde residiu e faleceu, em 1805. Nessa época, outros inconfidentes moravam na região: os cunhados José Aires Gomes e padre José Lopes de Oliveira (avô da avó do biografado, D. Adelaide Andrade) e o padre Manoel Rodrigues da Costa. Joaquim Silvério dos Reis também residiu no município, onde tinha várias propriedades, e foi de lá que redigiu a denúncia da conspiração endereçada ao visconde de Barbacena, datada de 11 de abril de 1789.
Os moradores de Barbacena participaram ativamente do processo de independência nacional, apoiando o príncipe regente no delicado momento que se seguiu ao episódio do Fico‟. (...) A Câmara Municipal de Barbacena (...) decidiu promover manifesto público de apoio ao príncipe regente e à causa emancipacionista, datado de 11 de fevereiro de 1822. (...) Segundo consta, o Manifesto da Câmara Municipal de Barbacena contagiou toda a província e, depois dele, várias outras câmaras municipais enviaram a D. Pedro palavras de apoio, o que lhe permitiu fazer a célebre viagem a Minas Gerais com a Junta de Ouro Preto, que custou a aderir à causa do futuro imperador e à da independência. A posição de Barbacena valeu-lhe o título de nobre e mui leal Vila‟, em documento público redigido pelo ministro do Império, José Bonifácio de Andrada e Silva.
“Em meio à Revolução Liberal de 1842, Barbacena foi palco de importantes episódios. Chegou, inclusive, a ser sede do poder dos revoltosos. Foi lá que José Feliciano Pinto Coelho da Cunha, o futuro barão de Cocais, tomou posse no cargo de presidente interino da província, prestando juramento de sustentar a 'Constituição, o Trono ao Sr. D. Pedro II e dirigir o movimento enquanto não opusesse ele ao sistema jurado e não tivesse por fim senão uma manifestação contra a política do Gabinete de Março'”.
Proclamada a República, aproximaram-se os Andradas e os Bias Fortes – clãs tradicionais da cidade:
“Tal aliança constituiu poderoso eixo político em Barbacena até 1930. Com os desdobramentos da revolução daquele ano, deu-se o rompimento entre os Bias Fortes e os Andradas, e a vida política da cidade passou a girar em torno da disputa entre as duas famílias”.
Registre-se um fato relevante:
“Desde as primeiras eleições no Brasil, em 1821, até os dias atuais, a cidade nunca deixou de ter um representante na Câmara dos Deputados. Não deixou também de eleger representantes nas assembleias provinciais e nas posteriores assembleias legislativas republicanas”.
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Sou admirador do barbacenense Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, ex-governador de Minas Gerais. É o perfeito exemplar do antigo político mineiro. Dele se dizia possuir a habilidade “de tirar as meias sem descalçar os sapatos”.

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O colega e amigo desembargador Doorgal Andrada pertence à tradicional família descendente de José Bonifácio da Andrada e Silva, o Patriarca da Independência. É também entusiasta ex-aluno da EPCAR. No artigo Barbacena, “Atenas Mineira”, Doorgal exalta o berço mineiro dos Andradas:
“A cidade de Barbacena, que acolheu D. Pedro I, Tiradentes, Santos Dumont, D. Pedro II, o escritor francês Georges Bernanos, os três ex-governadores Crispim Jacques, Antônio Carlos e Bias Fortes, sempre teve também fama de ser uma cidade com grande destaque na educação, desde quando, em toda Minas Gerais, apenas Ouro Preto e Barbacena tinham um Ginásio Mineiro. Isso logo após a Proclamação da República. (...)
“No Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), nos últimos cinco anos, a EPCAR esteve entre as seis melhores escolas públicas do Brasil. São mais de 20 ou 30 mil escolas públicas no país. (...)
“A UNIPAC, fundada em Barbacena, foi reconhecida pelo MEC como a maior universidade privada em Minas Gerais. (...)
“Parabéns ao exemplar ensino forjado em Barbacena!”.

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Fato culturalmente relevante deve ser mencionado: o escritor e jornalista católico francês Georges Bernanos (1888-1948) permaneceu asilado no Brasil, após a ocupação da França pela Alemanha Nazista em 1940, no curso da Segunda Guerra Mundial. Viveu em Barbacena e aqui escreveu uma série de artigos jornalísticos a favor da Resistência Francesa.  
Do seu famoso romance Diário de um pároco, publicado na França em 1936, constam frases impressionantemente atuais: 
“Não há pior desordem neste mundo do que a hipocrisia dos poderosos”. 
“O único fundamento do poder é a ilusão dos miseráveis”. 
“O inferno é a ausência de amor”.

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O escritor e acadêmico mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967), celebrado autor de Grande sertão: veredas (1956), era um jovem médico no ano de 1933. Foi aprovado em concurso e designado para clinicar no 9º Batalhão da Polícia Militar de Barbacena. Já se enfastiara da profissão de esculápio. Dispunha de tempo para ler e estudar. Foi aprovado, então, no difícil certame para ingresso na carreira diplomática. Encerrou, assim, a breve estadia nas altitudes da Serra da Mantiqueira. ¹
Conforme reza a lenda, ao contemplar os crepúsculos da Europa, o diplomata Rosa não os considerava mais belos do que o pôr-do-sol em Barbacena. ¹¹
O autor de Sagarana é o patrono da cadeira nº 31 de acadêmico efetivo desta Arcádia. ¹²
É de sua autoria uma das mais belas reflexões lítero-filosóficas:
“O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. ¹³

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Abgar Renault era um notável intelectual e homem público nascido em Barbacena (1901). ¹Foi professor do Ginásio Mineiro de Belo Horizonte e da Universidade Federal de Minas Gerais. No Rio de Janeiro, lecionou no Colégio Pedro II e na Universidade do Distrito Federal. Elegeu-se deputado estadual em Minas. Exerceu, entre outros, os cargos de Diretor da Secretaria do Interior e Justiça de Minas Gerais; Secretário do Ministério da Educação e Saúde Pública; diretor do Departamento Nacional da Educação; Secretário da Educação do Estado de Minas Gerais; Ministro da Educação e Cultura; e ministro do Tribunal de Contas da União. Ocupou a cadeira nº 12 da Academia Brasileira de Letras. Faleceu em 1995, no Rio de Janeiro. Abgar era casado com Inês Caldeira Brant Renault, tia materna do meu saudoso amigo, jornalista e escritor Eduardo Almeida Reis. Eduardo declarou:
“Pedem-me que fale de Abgar Renault, poeta, professor, educador, homem público, ensaísta e tradutor. Não sendo crítico literário, peço licença para falar do tio Abgar, admirável figura humana, que conheci em casa ao longo de meio século.
“Do Abgar casado com minha tia, homem alegre, crítico, poliglota, inteligência esfuziante, cultura multifária, nota máxima no exame para a cátedra do Colégio Pedro II, quando traduziu Shakespeare em verso. Ministro da Educação que assumiu a pasta reunindo os oficiais de gabinete para avisar, a sério, que a utilização dos advérbios adrede e outrossim seria motivo de demissão sumária.
“Candidato a senador pelo Estado de Minas Gerais, expulsou de sua casa belo-horizontina, no quarteirão da Padaria Savassi, um sargento que o procurou propondo a venda de milhares de votos.
“Amigo inseparável de Gustavo e Carlos, que se assinavam Capanema e Drummond de Andrade, risonho, jovial, extrovertido, transformava-se numa fera na defesa dos dinheiros públicos. Vivendo sempre dos salários não muito brilhantes dos cargos que ocupou, visitava a Europa uma vez por ano como delegado brasileiro à reunião da Unesco, recebendo passagens e pequenas diárias. Nessas viagens não se esquecia de trazer um presentinho modesto para cada um dos seus parentes e amigos”. ¹

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Edmundo Dantês Passos é o fundador da cadeira de nº 15, a qual passo a ocupar nesta Arcádia. 
Era nascido em Cláudio/MG. Em 1942, formou-se em Farmácia. Trabalhou como viajante, gerente de laboratório, propagandista e vendedor. Era poeta, prosador, jornalista e tupinólogo. Adotou o pseudônimo de “Monte Cristo”. 
Pertenceu à Academia de Letras de São João del-Rei, ao Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei e à Academia Barbacenense de Letras. 
Publicou, dentre outros, os livros: Poesias (1940), Mosaicos de um viajante (prosa) e Catuíra dos Araxás¹
Segundo me relatou o escritor, acadêmico e professor Oyama de Alencar Ramalho – meu conterrâneo de São João del-Rei  Edmundo Dantês Passos viveu alguns anos na nossa cidade. Publicava crônicas no jornal local Diário do Comércio, assinando “Monte Cristo”. O seu livro Mosaicos de um viajante foi editado por “O Livreiro”, de São Paulo (1962). O prefácio é de Martins de Oliveira  o patrono da cadeira nº 15 e sobre quem falarei adiante. Coincidente elo a unir patrono e fundador. 
Edmundo Dantês publicou uma bela poesia inspirada nas famosas e torrenciais enchentes do Córrego do Lenheiro, que atravessa a minha adorada terra natal:
 
CÓRREGO DO LENHEIRO 
 
Corta São João del-Rei o murmurante 
Córrego do Lenheiro, bandeirante 
De outrora a penetrar em matarias, 
Antes de Borba Gato, Fernão Dias. 
 
A sonhar, convulsivo, palpitante, 
A correr, serpenteando nas orgias 
Das águas, ora vago, fuzilante, 
A refletir o céu em pradarias. 
 
Arrancando de seu seio impoluto 
Milhões, em toneladas de ouro bruto, 
A dor, depois, nas águas retrata: 
 
Morte... Emboabas... Bárbara Heliodora... 
Inconfidência... e o riacho ainda chora 
Pela cidade, num caudal de prata. ¹
 
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Guardei propositalmente para o final a apologia do patrono Martins de Oliveira
Sinto-me imensamente honrado ao ser apadrinhado por um notável cidadão, magistrado, jurista, professor, poeta, escritor e historiador. 
Assalta-me também indescritível emoção, porque convivi com Martins de Oliveira até o início da minha adolescência. Eis um sublime “encontro” póstumo, que o destino concedeu-me cinquenta anos após a morte do insigne patrono. 
Cândido Martins de Oliveira Júnior nasceu a 26 de junho de 1896, em Furtado de Campos (município de Rio Novo/MG). ¹Ainda menino, transferiu-se com a família para a cidade de Ubá/MG. Ali completou os estudos fundamentais. 
Formou-se em Farmácia na Faculdade de Ouro Preto/MG (1919). A seguir transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde cursou Direito. Foi aluno brilhante e obtinha as melhores notas ao longo do bacharelado. 
De volta a Minas Gerais, foi promotor de justiça nas comarcas de Rio Casca e Visconde do Rio Branco (onde eu seria juiz de direito em 1992). 
Ingressou na magistratura mineira em 1931. Foi juiz de direito nas comarcas de Patrocínio, Rio Pomba, Varginha e São João del-Rei. Narrava o saudoso desembargador Antonio Pedro Braga – natural de Visconde do Rio Branco e ex-presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
“De São João del-Rei, graças aos seus altos méritos de magistrado culto, dedicado e íntegro, veio (em 1953) direto para o Tribunal de Justiça, sem passar pelas Varas da comarca da Capital como sempre aconteceu. No Tribunal, onde se empossou em 16 do mesmo mês ocupou a vaga deixada pelo eminente Desembargador Lopes da Costa que, até então, fora o único Juiz a vir diretamente do interior para o ápice da carreira. (...)
“Cândido Martins esteve no Tribunal até 1956 quando se aposentou para, num nobre gesto seu, dar lugar a seu irmão João Martins, também grande juiz, uma vez que os dois não podiam pertencer, concomitantemente, àquela E. Corte. (...)
“Em 5 de fevereiro de 1975, faleceu repentinamente, sendo sepultado, no dia seguinte na cidade de São João del-Rei. O seu desaparecimento, como não podia deixar de ser, repercutiu intensamente nos meios sociais, intelectuais e jurídicos do Estado”.
Martins de Oliveira mudou-se para São João del-Rei em 1950. Fincou sólidas raízes familiares na Cidade dos Sinos: suas duas filhas, Marília e Mariza, casaram-se, respectivamente, com Tarcísio Ferreira Neves e Roberto Simões Coelho. 
Em Belo Horizonte, o desembargador lecionou nas Faculdades de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e da Pontifícia Universidade Católica. O meu amigo Carlos Olavo Pacheco de Medeiros, desembargador federal aposentado e ex-aluno de Martins de Oliveira na PUC-Minas, relatou-me que os discípulos tratavam o antigo mestre, íntima e carinhosamente, de “Candinho”. 
Martins de Oliveira presidiu, em sucessivos mandatos, a Academia Mineira de Letras. Vivaldi Moreira, seu sucessor na presidência da Arcádia Mineira, registrou:
“Martins de Oliveira se doou à Academia. Tudo fez por ela. Sua longa estrada de pertinaz servidor do espírito está pontilhada de êxitos insuperáveis na república das letras. Conhecia-lhe o segredo e o manejava com sutileza e garbo. Daí o prestígio de sua figura em todos os meios. Primoroso escritor e inspirado vate, enriqueceu a história literária de Minas pela beleza de suas composições e a precisão de seus ensinamentos. (...)
“A sabedoria no trato em Martins de Oliveira não se esgotava no tom amável, que é uma exigência da civilização. Sua urbanidade possuía raízes profundas na alma cristalina que foi. (...)
“Doador integral na pujança de sua inquieta chama interior, sem nenhuma figura, preciso afirmar que Martins de Oliveira buscou a perfeição, foi dela um denodado cavaleiro. Jurista, poeta, romancista, ensaísta, em sua extensa bibliografia o que se torna logo visível é o afã da perfeição. Aspirou, no início de sua caminhada terrena, combater o combate a que todos nós estamos convocados: o combate pela expressão. E foi um vencedor”. ¹
Abro espaço para um depoimento sentimental. Em razão de fortes vínculos de amizade, convivo há anos com a família do Dr. Cândido. Era menino e o idoso desembargador aposentado, quando vinha a São João del- Rei, conversava comigo como se fôssemos dois adultos. 
Fui colega, no curso ginasial, do seu neto Emanuel Martins Simões Coelho. Certa tarde, reuniu-se um grupo de alunos na casa do “Nel”. Ao estudarmos História do Brasil, Dr. Cândido, hospedado com a filha Mariza, pôs a meninada para ler a árida obra do historiador Pedro Calmon. 
Alguns anos depois, ingressei na Faculdade de Direito. Dona Dolores, já viúva, presenteou-me com uma espátula prateada, onde está gravado o nome do falecido esposo “Desembargador Martins de Oliveira”: 
Cândido gostava muito de você e ficaria feliz por vê-lo ingressar no curso de Direito
Premonição da boa senhora. Sob inspiração de tão notáveis figuras, ocupo hoje o cargo de Desembargador no mesmo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que Dr. Cândido tanto engrandeceu. 
Saudades de vovô Candinho e vovó Dolores! 
Da vasta obra de Martins de Oliveira, destaco os livros História da Literatura Mineira e A Retirada da Laguna
Selecionei do Leque de sândalo, livro de poesias, os inspirados versos sobre o herói da Inconfidência Mineira: 
 
Execução de Tiradentes 
 
Sobe sereno à forca. O povo humilde, enchendo, 
de canto a canto, ansioso, o Largo da Lampadosa, 
busca ver com temor todo o suplício horrendo 
do plebeu que sonhara a Pátria venturosa. 
 
O sol, a pino quase, as nuvens dissolvendo, 
domina a vasta esfera em chama de oiro e rosa. 
Tambores e clarins reboam, mal contendo 
o terrível pavor da turba desditosa. 
 
Começa a faina odienta, o doloroso rito. 
Calado, como um deus, ergue-se o mártir. Corre 
na massa humana o horror. Silêncio longo e aflito. 
 
E rápida, e brutal, a cena então transcorre: 
rangem as cordas, e ringe, e estala a trave. Um grito 
imenso o povo geme. E Tiradentes morre... ²

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Antes de encerrar, não poderia olvidar uma pérola da obra jurídica do patrono Martins de Oliveira:
“Outrora, quando na pessoa do rei ou chefe se confundiam todos os poderes, seria, ele, o Juiz que, armado de sua espada, impunha a lei. Por um processo antropomórfico, muito comum nos mistérios do paganismo, Têmis, a deusa da Justiça, aparecia armada. Confundiam-se nela, como na pessoa do soberano, todos os poderes. Hoje, a Justiça está desarmada. O sol, a pino quase, as nuvens dissolvendo, Tem apenas a autoridade de seu ministério através do Juiz. Apesar de tudo e contra tudo, ainda comanda o ministério da lei. Justa seria a paráfrase ao conceito do jurista cubano JOSÉ ANTOLIN DEL CUETO, lembrado por COSSIO: La ley reina y la jurisprudência gubierna. Não seria exagerada nem deixaria de refletir, pelo menos, a verdade do tempo e de todos os tempos: A Justiça reina e o Juiz governa”. ²¹
Aquele adolescente dos idos de 1977, que se impressionou com a metamorfose autoritária do cruel Robespierre, é hoje um antigo magistrado mineiro. 
Como foi o culto e honrado Cândido Martins de Oliveira Junior. 
Uma mente “robespierriana” poderia sofismar e impor a indesejável supremacia do Poder Judiciário. 
Ficaria, assim, invertida a parêmia do Dr. Cândido: o juiz reinaria e governaria a injustiça. 
Não é isso o que uma sociedade democrática deseja e espera... 
 
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Por fim, ser acadêmico literário não é apenas honraria. É missão. Serei dedicado colaborador das publicações desta respeitada Arcádia da Cidade das Rosas. Inspirado sempre na divisa latina da Academia Mineira de Letras: Scribendi nullus finis:
Significa 'o escrever nunca tem fim', isto é, escreve-se ininterruptamente, cada geração tem sua mensagem a transmitir através da escrita. Eis a tarefa primordial das Academias”. ²²
Boa noite e muito obrigado a todas e todos!
 
 
II. NOTAS EXPLICATIVAS
 
 
¹ GARCIA DE LIMA, Rogério Medeiros. Redes sociais em prosa e verso. Belo Horizonte: Del Rey, 2024, pp. 3-4. 
 
² BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental. Porto Alegre: Editora Globo, trad. Lourival Gomes Machado e outros, Tomo II, 3ª ed., 1975, p. 614. 
 
³ BARBOSA, Rui. Oração dos Moços. Rio de Janeiro: Organizações Simões, 1951. 
 
ALMEIDA, José Américo de. A bagaceira. Rio de Janeiro: José Olympio, 43ª ed., 2008. 
 
Referências sobre a história de Barbacena in PEREIRA, Lígia Maria Leite e FARIA, Maria Auxiliadora de. José Bonifácio, líder parlamentar da revolução de 1930 e embaixador do Brasil. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2020, pp. 25-29. 
 
MONTEIRO, Karla. Chega de pá, pá, pá, Revista Piauí, no 177, junho de 2021, disponível em https://piVaui.folha.uol.com.br/materia/chega-de-pa-pa-pa/, acesso em 25.06.2024. 
 
ANDRADA, Doorgal Gustavo Borges de. Barbacena, “Atenas Mineira”, 22.08.2024, Portal Barbacena Online, disponível em https://barbacenaonline.com.br/noticia/2024/08/22/barbacena-atenas-mineira/, acesso em 12.03.2025. 
 
Georges Bernanos e o Brasil, in A França no Brasil, disponível em https://bndigital.bn.gov.br/francebr/georges_bernanos_port.htm, acesso em 25.03.2025. 
 
MOREIRA, Vivaldi. O círculo dos eleitos. Belo Horizonte/MG: Imprensa Oficial, 1987, pp. 76-77. 
 
¹ Guimarães Rosa: resumo biográfico e bibliográfico, Portal Universidade Federal do Rio Grande do Sul, disponível em https://www.ufrgs.br/psicoeduc/chasqueweb/literatura/guimaraes-rosa2.htm, acesso em 15.04.2025. 
 
¹¹ Guimarães Rosa, o escritor que foi médico do Batalhão da Polícia em Barbacena, Portal 93 FM,27 junho de 2024, disponível em https://93fmbq.com.br/noticias/guimaraes-rosa-o-escritor-que-foi-medico-do-batalhao-da-policia-em-barbacena/, acesso em 25.03.2025. 
 
¹² Portal da Academia Barbacenense de Letras, disponível em https://academiadeletrasbarbacena.org.br/academicos/, acesso em 16.04.2025. 
 
¹³ GUIMARÃES ROSA, João. Grande sertão: veredas. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 226. 
 
¹Abgar Renault, Portal da Academia Barbacenense de Letras, disponível em https://www.academia.org.br/academicos/abgar-renault/biografia#, acesso em 17.04.2025. 
 
¹REIS, Eduardo Almeida. Abgar Renault, figura solar. Belo Horizonte/MG: Revista MagisCultura, Associação dos Magistrados Mineiros, nº 5, março de 2011, p. 24. 
 
¹SANTOS, Diva Ruas. Antologia da Poesia Mineira. Belo Horizonte: Ed. Cuatiara, 1992. 
 
¹SANTOS, Diva Ruas, op. cit
 
¹Referências biográficas in BRAGA, Antonio Pedro. Presença no Tribunal de Justiça – Perfis – Discursos. Belo Horizonte: 1986; GARCIA DE LIMA, Rogério Medeiros. Carvalho Mourão e Martins de Oliveira, os próceres, e outras personagens da Comarca de São João del-Rei. Belo Horizonte: Revista da Academia Mineira de Letras, vol. LXIX, 2014, págs. 93-115; e JOSÉ, Oiliam e MARTINS DE OLIVEIRA. Efemérides da Academia Mineira de Letras – 1909/1997. Belo Horizonte/MG: Imprensa Oficial, 1999. 
 
¹MOREIRA, Vivaldi. Glossário das Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1991, pp. 250-252; grifos no original. 
 
²MARTINS DE OLIVEIRA. Leque de sândalo. Rio de Janeiro: Tipografia São Benedito, 1930, p. 11
 
²¹ MARTINS DE OLIVEIRA. A justiça e o destinatário da norma jurídica. Rio de Janeiro: Gráfica Santa Terezinha, 1956, p. 96. 
 
²² JOSÉ, Oiliam e MARTINS DE OLIVEIRA. Efemérides da Academia Mineira de Letras 1907/1997, op. cit., p. 232.

4 comentários:

  1. Pedro Rogério Moreira (jornalista e sócio da Gracián Telecom, cronista e memorialista brasileiro) disse...
    Obrigado!

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  2. Fernando Caldeira Brant (desembargador do TJMG) disse...
    Bela página, como sempre Rogério. Parabéns, impossível de receber meu abraço!.

    FC Brant

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  3. Aylê-Salassié Filgueiras Quintão (jornalista, ex-correspondente em Londres, e professor, doutor em História Cultural, membro da Academia de Letras do Brasil, autor do livro "Lanternas Flutuantes") disse...
    Meus parabéns ao Dr. Rogério.
    Cumprimentos também pela nova investidura e, em particular, pela belíssima peça discursiva: informativa, clara, pedagógica e poética.
    Embora seja também um acadêmico por aqui, há muito tempo não lia texto tão agradável . Como professor universitário, achei primoroso, ele acrescentar no final de sua fala as fontes referenciais. Vou lê-lo novamente pois, como jornalista, encontrei nele algumas insinuações para belos artigos políticos.
    Encontrei também coincidências, como ter convivido com o Abgar Renault, no Tribunal de Contas da União (eu, repórter da Folha de São Paulo): sou do eixo Piraúba-Ubá-Rio Pomba, e conhecia algumas histórias da passagem por ali de Cândido Martins; estudei em um Colégio de Minas(Alto Jequitibá), e tive , como colegas, alguns estudantes de Barbacena e de São João del-Rei. .
    Enfim, muito obrigado pela sua atenção. Tenho lido seus artigos e críticas, que, dentro do perfil literário do brasileiro, tem uma originalidade própria.
    Muito obrigado, abraços e vida longa para vocês todos.

    Aylê-Salassié Filgueiras Quintão

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  4. Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...
    Caro professor Braga

    Muita informação, lições e emoção nesse notável discurso. Boa gestão ao novo ocupante da Academia.
    Grato,
    Cupertino.

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