sexta-feira, 2 de maio de 2025

O RENASCIMENTO DO HEBRAICO


Por Luís Sérgio Krausz *
A língua tornou-se popular com a criação de Israel, há 50 anos
Transcrevemos, com a devida vênia da Gazeta Mercantil, o artigo abaixo publicado na edição de 30/04/1998, p. 7, quando se comemorava o cinquentenário da popularização do hebraico como língua de uso cotidiano.  
Início da Torah (5 livros de Moisés)

 
Hoje comemora-se o cinquentenário da fundação do Estado de Israel, ou seja, do renascimento, depois de quase dois mil anos, de uma nação judaica entre o deserto da Judeia e o Mediterrâneo. Uma das muitas características peculiares desse Estado é o fato de que nele fala-se um idioma  o hebraico  que, do ano 597 a.C. até o século XIX, era uma língua que ninguém falava, cultivada apenas por estudiosos. 
Em 597 a.C. o babilônio Nabucodonosor tomou Jerusalém e levou para a Mesopotâmia, como cativos, os contemporâneos do profeta Jeremias. Esta foi a última geração a falar a língua bíblica no cotidiano, antes de seu renascimento, pois quando os judeus retornaram às suas terras de origem, em 445 a.C., já conversavam entre si em aramaico, a língua comum do império assírio, bem diversa do idioma bíblico. O hebraico, assim, tornou-se um idioma reservado aos eruditos, desempenhando um papel análogo ao do latim na Europa de até há poucas décadas. 
Depois da captura da Judeia pelos romanos, em 70 d.C., os judeus se espalharam pelo arco mediterrâneo, e de lá por toda a Europa, abandonando o aramaico e adotando, em seu cotidiano, as línguas dos lugares onde se radicaram, no máximo acrescentando-lhes alguns vocábulos extraídos do repertório bíblico. Isto porque um conhecimento elementar de hebraico sempre foi a peça básica na educação primária judaica. Quase todos os judeus chegavam aos treze anos com um conhecimento da língua sagrada suficiente para a leitura de textos bíblicos simples. 
Mas mesmo para os estudiosos, que se aprofundavam no hebraico, o conhecimento era sempre dirigido à leitura, interpretação e tradução dos textos canônicos  jamais ao uso cotidiano. Aos poucos esta língua ganhou o estatuto de sagrada, a tal ponto que seu uso profano era imediatamente considerado pelos sacerdotes e eruditos como uma heresia. 
Foi o que cometeram, a partir do final do século XVIII, primeiro na Alemanha e depois no leste europeu, os maskilim, os seguidores da haskalá, ou iluminismo judaico, quando começaram a criar uma literatura profana usando o idioma sagrado e atraindo a ira do establishment religioso. A haskalá tinha como ideal a integração dos judeus ao mundo moderno e sua emancipação dos guetos e aldeias às quais haviam ficado confinados desde a Idade Média. Isto significava uma ruptura com o mundo tradicional e com seu bilinguismo  falava-se iídiche, língua derivada do alemão medieval, e estudava-se hebraico só como língua sagrada. 
O objetivo da haskalá não era a integração pura e simples nas sociedades modernas e uma assimilação total ao mainstream das sociedades europeias. Era, antes, uma renovação na cultura judaica e uma reintepretação das suas formas de vida. Como em muitos momentos de crise, a solução para este desafio foi encontrada num retorno às raízes, aplicando o idioma bíblico a todas as esferas da existência. Ao escolher o hebraico como forma de expressão cultural genuína era possível separar-se do mundo do gueto sem perder a identificação com o judaísmo. 
O uso profano do hebraico era, sobretudo, uma afirmação de caráter ideológico, no sentido de redefinir a condição judaica no mundo moderno. O sonho do hebraico vivo estava associado ao ideal de autonomia política judaica, afinado com o despertar geral dos povos europeus marginalizados que ocorreu a partir da Revolução Francesa. A consciência desta associação desempenhou um papel crucial no surgimento do sionismo político e, ao reclamar para a esfera secular uma língua devocional, esta geração literária pretendia antecipar-se ao que viria a se tornar realidade um século mais tarde, em Israel. 
O jornalismo foi, em grande parte, o responsável pela criação de pontes entre os dois lados do abismo que separava o idioma bíblico da Europa do século XIX, pois os primeiros textos profanos em hebraico, criados pelos seguidores da haskalá, surgiram na forma de matérias jornalísticas, publicadas em revistas de pequena circulação. O resultado era um bordado de frases extraídas da literatura bíblica com um uso mais ou menos criterioso de alusões, bem como a criação de numerosos neologismos, de significado nem sempre compreensível. 
A aspiração dos primeiros autores hebraicos esbarrava em problemas de difícil solução, como a inexistência de vocábulos para designar uma infinidade de objetos tão prosaicos quanto luvas e batatas. Tratar uma língua que não era falada como se ela fosse falada era outro dos grandes problemas: como recriar as palavras de alguém que, digamos, vivia em Viena e falava alemão? 
Estes primeiros autores e seus leitores vinham, quase sem exceção, de uma educação ortodoxa, e conheciam a fundo todo o vocabulário e toda a literatura bíblica. Tinham aprendido a língua sagrada em suas aldeias de nascença e possuíam um sentido inato para perceber sua musicalidade e suas tonalidades semânticas, o que lhes permitiu desenvolvê-la por conta própria e começar a transpô-la para o mundo moderno. Do final do século XVIII, na Alemanha, e até o final do século XIX, na Rússia, centenas de pequenas publicações, de circulação restrita, dedicaram-se à árdua tarefa de cunhar um idioma ao mesmo tempo fiel às suas raízes e adequado ao mundo que se propunha descrever. 
As relações entre a vida e sua representação escrita são uma via de duas mãos. Personagens literários frequentemente derivam de figuras do mundo real, enquanto pessoas verdadeiras imitam modos de agir e de pensar, percepções estéticas, ideias, nuances do sentimento e, sobretudo, formas de expressão e ideologias contidas em textos. Se, na maioria das vezes, a precedência, neste jogo de reflexos múltiplos, é da vida real, no caso do hebraico moderno aconteceu uma inversão. Aos poucos as publicações hebraicas foram criando pequenos grupos isolados, que conversavam entre si no novo-velho idioma. 
O primeiro lar de idioma hebraico que se tem notícia foi o de Eliezer Ben Yehuda (1858-1922), escritor e lexicógrafo, considerado o pai do hebraico moderno. Nascido na Lituânia, emigrou para a cidade de Jaffa, na Palestina, sob domínio otomano, em 1881, e determinou que sua mulher e seu filho só falariam hebraico em casa, o que não tardou a tornar marginal sua estranha família. Professor, editor de um semanário, tradutor e escritor, ele foi o responsável pela criação de um grande número de termos na nova língua, e de uma estilo de escrever simples e popular, sem a retórica inflada das expressões arcaicas. Com precisão e concretude, traduziu muitas obras europeias para o novo idioma e iniciou um gigantesco dicionário hebraico, em 17 volumes, concluído por seu filho de 1959. Em 1919, Ben Yehuda conseguiu que o hebraico se tornasse, juntamente com o árabe e o inglês, uma das três línguas oficiais da Palestina, sob mandato britânico. 
O primeiro romance moderno em hebraico foi publicado em 1853, mas só por volta de 1880, com Mendele, o idioma se tornou um instrumento adequado ao repertório semântico de um escritor europeu da virada do século. S. Y. Abramowitz, mais conhecido pelo pseudônimo em iídiche, Mendele Mokher Sforim ("Mêndele", o vendedor de livros), foi um dos fundadores da moderna prosa romanesca em iídiche que, depois de expressar-se por mais de duas décadas no idioma do gueto, não só passou a escrever em hebraico como também traduziu para esta língua muitas de suas obras originalmente compostas em iídiche. 
Mendele atingiu uma maior desenvoltura, pois recorreu ao idioma cultivado por séculos a fio em textos eruditos referentes à interpretação legal e exegética dos textos canônicos, inovando ao usar de maneira consciente os recursos alusivos da prosódia bíblica. Assim, descobriu recursos linguísticos e criou procedimentos adotados por seus sucessores como Berdichevsky, Brenner e Gnessin, os pais-fundadores da moderna literatura hebraica, no início do século XX. 
O maior de todos os escritores hebraicos foi S. Y. Agnon (1888-1970), vencedor do Nobel de literatura em 1966. Sua prosa engloba todos os estratos cronológicos desta língua e destila o idioma dos eruditos da antiguidade tardia. Descreve, sobretudo, o mundo judaico tradicional da Galícia, no então Império Austro-Húngaro, onde nasceu. Agnon passou a maior parte de sua vida em Jerusalém e durante esse tempo, mesmo antes da criação do Estado de Israel, o hebraico moderno já se tornara uma língua cotidiana. Uma das características mais preciosas de seu estilo, que infelizmente se perde inteiramente mesmo na melhor das traduções, é a musicalidade e o emprego refinado de ecos e alusões a trechos bíblicos. 
Depois da criação de Israel, uma prosa hebraica vigorosa floresceu no país. Dentre os escritores mais importantes da geração que nasceu com o país estão Amós Oz, A. B. Yehoshua e Aharon Appelfeld enquanto que David Grossman e Yaakov Shabtai são grandes nomes da geração mais recente. Mas a produção literária do país é enorme, e estes são apenas alguns autores já traduzidos para o português. 
O hebraico hoje tem lugar assegurado tanto como língua falada quanto como literária, o seu uso não é mais restrito aos judeus. A escritora vanguardista israelense Orly Castel-Bloom causou espanto ao afirmar, num encontro internacional de escritores, que sonha com o dia em que a literatura hebraica finalmente se livrar de todo o peso de sua tradição judaica, passando a ser cultivada também pelos cerca de 20% de não-judeus que hoje vivem em Israel. Talvez este dia esteja menos longe do que parece: entrementes o palestino Anton Shammas já publicou Arabesques, o primeiro romance hebraico escrito por um árabe. 
 
* Professor, Doutor (2007) e Pós-doutor (2010) em Literatura Hebraica e Judaica na FFLCH-Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, com estágio de pesquisa na Universidade Livre de Berlim. Mestre em Letras Clássicas pela University of Pennsylvania, com tese escrita na Universidade de Zurique, sob orientação do Prof. Dr. Walter Burkert (1992). Aluno especial do Jewish Theological Seminary of America e da Columbia University nas áreas de Literatura Bíblica e Literatura Clássica.

5 comentários:

  1. Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
    Prezad@.
    Há 27 anos atrás, LUÍS SÉRGIO KRAUSZ publicou na mesma época em 1998, na Gazeta Mercantil de São Paulo, um artigo instigante sobre como o povo judeu conseguiu O RENASCIMENTO DO HEBRAICO, que, de língua morta usada apenas nas funções religiosas, refloresceu como língua viva pelo esforço de alguns eruditos e de todo o povo judeu. Tal esforço seria idêntico ao que os povos de língua românica fariam se tentassem falar o latim novamente, abandonando suas línguas atuais.
    A publicação de seu artigo coincidiu com o 1º cinquentenário da fundação do Estado de Israel, oficialmente comemorada no dia 14/05/1948. Hoje são passados 27 anos da publicação do artigo e a celebração é pelos 77 anos. Observe que as comemorações em Israel se iniciam um mês antes da data oficial, isto é, no dia 14/04/2025 e duram um mês.

    Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/05/o-renascimento-do-hebraico.html

    Cordial abraço,
    Francisco Braga
    Gerente do Blog de São João del-Rei

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  2. Heitor Garcia de Carvalho (pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008)) disse...
    Caro Francisco,
    As ‘nações modernas” se constituíram com a fórmula “un roi, une foi, une loi [une langue]”
    Não é mencionada a língua, mas é um aspecto importante e quase essencial.

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  3. Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...
    Caro professor Braga

    Extraordinária resenha histórica do Hebraico ! Eu, particularmente, desconhecia completamente esses fatos !
    Excelente publicação ! Grato,
    Cupertino

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  4. Raquel Naveira (membro da Academia Matogrossense de Letras e, como poetisa publicou, entre outras obras, Jardim Fechado, antologia poética em comemoração aos seus 30 anos dedicados à poesia) disse...
    Caro Francisco Braga,
    Há toda uma mundividência num idioma.
    E o hebraico me comove.
    Penso que Jesus falava o hebraico.
    Abraço grande,
    Raquel Naveira

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