Por AMADEU AMARAL *
Artigo originalmente publicado em O Estado de São Paulo, edição de 22/06/1918, p. 10. ¹
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Amadeu Amaral (✰ Capivari, 6/11/1875 ✞ São Paulo, 24/10/1929) |
Amigos e admiradores de Emílio de Menezes,
não podemos calar o nosso veemente protesto contra as palavras que foram proferidas pelo cidadão Joaquim Marra, em sessão da Câmara Municipal, a 15 do corrente, sobre o projeto que manda seja dado o nome daquele ilustre homem de letras a uma das ruas desta Capital.
O referido cidadão permitiu-se externar conceitos e apreciações em torno desse justo projeto, com uma tal afetação de desprezo pela pessoa e pela obra do notável poeta brasileiro, e com tais assomos de zombaria cruel e de inexplicável rancor, que todos nós, e conosco todas as pessoas educadas e normais, nos sentimos, naturalmente, presas de sincero espanto.
Tanto maior foi o nosso espanto, quanto o citado cidadão, para exibir o seu insultuoso desdém pelo morto, se estribou, declaradamente, na sua ignorância a respeito dos méritos de Emílio de Menezes. Só mesmo por ignorância se poderia negar ao nosso pranteado poeta o lugar de honra que ele conquistou entre os nomes mais brilhantes das últimas gerações literárias do país.
Mas, se o cidadão vereador ignorava o valor de Emílio de Menezes, — o que bem se concebe, apesar de toda a imprensa nacional ter ensinado, nestes dias, quem era e o que era e o que valia o nosso poeta, — como então se atreveu a negar-lhe direito à pequenina homenagem proposta? Desde quando a ignorância adquiriu foros de fundamento válido aos nossos juízes e aos nossos atos? Desde quando ela passou a ser invocada, legitimamente, como razão de julgamento, como motivo de ação, como base de decisões, e sobretudo como estímulo à profanação de defuntos?
Ignorando os merecimentos inegáveis e valiosíssimos de Emílio de Menezes, o sr. Marra não ignora, contudo, os defeitos e os deslizes atribuídos ao ilustre poeta. Nessa matéria, o vereador é sabido. A sua erudição, aí, parece que é completa. O edil conhece perfeitamente tudo quanto Emílio de Menezes "não" foi, tudo quanto ele "não" fez, tudo quanto ele "não" pretendeu. Tem arquivadas na memória todas as suas insuficiências.
"Sabe" que ele nunca se bateu pelos oprimidos e pelos pequeninos, — como o sr. Marra se tem, apostolicamente, batido, através de lutas e sacrifícios tenazes... por si mesmo. "Sabe" que ele não era um homem virtuoso. "Sabe" que ele não era uma alma grande... O sr. Marra sabe tudo quanto é calúnia e infâmia atirada sobre o nome do ilustre compatriota morto há oito dias.
Não temos a pretensão de elucidá-lo. À glória de Emílio de Menezes nada adianta que o sr. Marra modifique o seu juízo, como nada lhe adiantará que o seu nome fique ou não fique pregado a duas ou três esquinas de uma travessa. As injustiças que lhe forem feitas recairão inteiras, esmagadoramente, sobre aqueles que as praticarem. Há nomes que precisam de tabuletas para que se imortalizem — por alguns anos, assim como há celebridades que precisam de estátuas para que não morram segunda vez com pequeno intervalo. O nome de Emílio de Menezes, queiram ou não queiram, está inscrito na história da nossa literatura.
A imagem moral do homem, essa também há de perdurar enquanto viver algum dos numerosos amigos que ele soube conquistar, da mesma forma que soube vergastar toda a imbecilidade e a malvadez em versos imperecíveis.
Essas amizades, conquistou-as à força de qualidades poucos vulgares. Foi generoso e bom, simples e afetivo, e soube ser honesto, de tal maneira que, numa época em que é moda e recomendação refocilarem-se os homens na mais grosseira materialidade, tendo ele à sua disposição recursos inexauríveis para fazer dinheiro, preferiu desprezar altivamente a simpatia, o auxílio, as aclamações e a cumplicidade dos nulos e dos espertos, semeando despeitos e irritações que bem sabia quanto lhe custariam.
O nosso único fim é lavrar um protesto contra as injúrias atiradas sobre o cadáver ainda quente do pobre poeta, numa iníqua, extemporânea e mesquinha manifestação de amor ao emplacamento da cidade, convertido à última hora — só para o homem de letras que nunca desfrutou poder ou riqueza, — numa espécie de canonização lenta, trabalhosa e difícil, em que a Câmara se converta em Santo Ofício e o sr. Marra em advogado do diabo.
O nosso protesto aqui fica, e esperemos que fique por aqui.
S. Paulo, 17 de junho de 1918.
Amadeu Amaral
Dr. Luiz Pereira Barreto
Valente de Andrade
Roberto Moreira
Nestor Rangel Pestana
Mario Guastini
Adalgiso Pereira
Oswald de Andrade
Jairo de Góes
J. M. de Toledo Malta
Moacir de Toledo Piza
Dagoberto Bittencourt
Júlio de Mesquita Filho
Antônio Mendonça
Álvaro Ramos
Francisco Mesquita
Arnaldo Vieira de Carvalho Filho
João Alberto Salles Filho
A. Simões Pinto
Venceslau Arco e Flexa
Álvaro Freire
A. M. Oliveira César
A. Azevedo Ribeiro
João Silveira
Júlio Sales Júnior
Cásper Líbero
Aristeu Seixas
Vicente Ráo
Miguel Arco e Flexa
Oduvaldo Viana
Inácio da Costa Ferreira
Edmundo Amaral
Monteiro Lobato
Gelásio Pimenta
Lamartine F. Mendes
Lourenço Filho
Sud Menucci
Jacomino Define
Mário Pinto Serva
Guilherme de Almeida
Otávio de Lima Castro
Vicente Ancona
Jozino Viana
Raul de Freitas
José Maria Lisboa Júnior
Oscar R. Tollens
Rodrigo Soares Júnior
J. M. Machado (Zema)
Luís A. Fuzaro
Heitor Gonçalves
Nereu Rangel Pestana
João Castaldi
Ângelo de Sílvio
Sebastião Soares de Faria
Tito Lívio Brasil
Ernani Braga
* Foi um poeta, folclorista, filólogo e ensaísta brasileiro. Autodidata, surpreendeu a todos por sua extraordinária erudição, num tempo em que não havia, em São Paulo, os estudos acadêmicos e os cursos especializados que se especializariam pouco depois. Dedicou-se paralelamente à poesia, aos estudos folclóricos e, sobretudo, à dialectologia. No Brasil, foi o primeiro a estudar cientificamente um dialeto regional. “O Dialeto Caipira”, publicado em 1920, escrito à luz da linguística, estuda o linguajar do caipira paulista da área do vale do rio Paraíba, analisando suas formas e esmiuçando-lhe sistematicamente o vocabulário. Esta obra é considerada como sua melhor contribuição às Letras. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras, tornando-se segundo ocupante da Cadeira 15, eleito em 7 de agosto de 1919, na sucessão de Olavo Bilac e recebido pelo Acadêmico Carlos Magalhães de Azeredo em 14 de novembro 1919.
II. NOTA EXPLICATIVA
¹ Este texto foi reproduzido por Raimundo de Menezes no seu livro Emílio de Menezes: O último boêmio (1ª edição, 1946), tendo sido antecedido pelo seguinte trecho:
“Em 22 de junho, "O Estado de S. Paulo", na seção "A Pedidos", estampava veemente protesto, assinado por figuras de destaque na sociedade paulistana, contra o discurso desrespeitoso de Joaquim Marra.
Ecoava de maneira desfavorável, no seio de todas as camadas sociais, a oração infeliz do vereador, que, não se contendo em seu despeito íntimo, viera a público insurgir-se contra uma homenagem que São Paulo queria prestar ao nome do glorioso poeta.
Eis o expressivo protesto em seu inteiro teor:” [...]
E, após o protesto de Amadeu Amaral, apoiado por todos aqueles nomes declinados, Raimundo de Menezes, no seu citado livro, acresceu dois parágrafos de sua lavra:
“No mesmo dia, o vereador Joaquim Marra, valentemente escorraçado por este pugilo destemido de paulistas de escol, voltava à tribuna da Câmara para defender-se e justificar-se, em comprida lenga-lenga, da desastrada oração que pronunciara contra o poeta Emílio de Menezes.
No discurso de defesa entrou em longas explanações inúteis. Desfez-se em desculpas esfarrapadas e inócuas. Leiamos tal peça oratória digna de pitoresco exame:” [...]
Por fugir ao escopo do presente trabalho, deixamos de apresentar a réplica do dito vereador, recomendando aos interessados no discurso do vereador Joaquim Marra, que leiam as páginas 228-231 da 2ª edição do citado livro de Raimundo de Menezes, referenciado na Bibliografia.
III. AGRADECIMENTO
O gerente do blog manifesta seu agradecimento ao Acervo do Estadão, graças ao qual foi possível a transcrição da presente relíquia literária.
IV. BIBLIOGRAFIA
MENEZES, Raimundo de: Emílio de Menezes: O último boêmio, São Paulo: Edição Saraiva, 2ª edição refundida, 1949, Coleção Saraiva nº 13, 244 p.
WIKIPÉDIA: verbete “Amadeu Amaral”