Por STEFAN ZWEIG (1881-1942)
Quando em 28 de junho de 1914 soube do assassinato do arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do Império austro-húngaro, e sua mulher, Stefan Zweig passava uma espécie de lua de mel rural com Friderike von Winternitz, sua primeira mulher, nos arredores de Viena. O otimismo europeísta não permitiu que interrompesse a rotina anual de visitar o mestre Verhaeren. Um mês depois, conseguia tomar um dos últimos trens que deixaram a Bélgica antes que os alemães a invadissem.
Nos primeiros dias do conflito vibrou com a vibração dos austríacos e alemães, mas logo começou a duvidar, dividido, inquieto — mergulhara na primeira crise existencial. Saiu dela amparado pela força de Friderike, pelas cartas de Romain Rolland e transformado num pacifista integral.
Para diminuir a ansiedade começou a escrever com mais frequência no folhetim do Neue Freie Press. Um mostruário de cinco artigos (praticamente um a cada ano de conflito) foi incluído no primeiro livro de ensaios, enfeixados com o título "Durante a Primeira Guerra Mundial" (estava certo de que logo haveria outra guerra).
Zweig apresenta o conjunto com breves linhas: “A publicação na íntegra [destes textos] comprova que mesmo em meio à guerra era possível tomar uma atitude independente contra a maior das catástrofes europeias, não obstante a rigorosa censura.”
“O mundo insone”, o primeiro dos textos, foi publicado no dia 18 de agosto de 1914, três semanas depois de iniciado o conflito. O instigante título — um clássico zweiguiano — tem sido utilizado com frequência nas coletâneas de ensaios publicados no pós-guerra. Alberto Dines
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Corrigindo: sua primeira passagem pelo Brasil foi em 1936 |
Há menos sono no mundo agora, as noites são mais longas e mais longos os dias. Em cada país da infinita Europa, em cada cidade, cada ruela, cada casa, cada aposento, a respiração tranquila do sono tornou-se curta e febril, e o tempo ardente abrasa as noites e confunde os sentidos, tal qual uma noite de verão abafada e sufocante. Quantas pessoas, aqui e ali, que normalmente deslizavam da noite para o dia no negro barco do sono, embandeirado de sonhos coloridos e palpitantes, escutam agora os relógios andando, andando e andando todo o terrível caminho entre o claro e o claro, sentindo por dentro as preocupações e os pensamentos a corroer-lhes o coração, até este ficar ferido e doente! Toda uma humanidade arde agora em febre, noite e dia, uma vigília terrível e poderosa cintila pelos sentidos agitados de milhões de pessoas, o destino penetra, invisível, por milhares de janelas e portas e espanta de cada leito o sono, espanta o esquecimento. Há menos sono no mundo agora, as noites são mais longas e mais longos os dias.
Ninguém mais está a sós com o seu destino, todos espreitam ao longe. À noite, hora em que se está sozinho e acordado na casa protegida e trancada, os pensamentos voam até os amigos e os que estão distantes. Quem sabe a essa mesma hora se cumpre alguma parte do nosso destino, uma invasão em uma aldeia da Galícia, um ataque em alto-mar, tudo o que acontece nesse mesmo segundo a milhares e milhares de milhas de distância está relacionado com nossas vidas. E a alma sabe disso, ela se expande e, em seu pressentimento, em seu anseio, quer captar algo disso, o ar queima de desejos e rezas que agora vão e voltam voando de um lado do mundo para o outro. Milhares de pensamentos se movimentam, inquietos, das cidades silentes até as fogueiras de campanha, do solitário sentinela de volta à pátria; entre os que estão próximos e os distantes flutuam fios invisíveis de amor e de preocupação, um tecido do sentimento, infinito, encobre agora o mundo, de noite e de dia. Quantas palavras são sussurradas, quantas orações ditas ao espaço impassível, quanto amor saudoso flutua através de cada hora da noite! A atmosfera estremece continuamente em ondas misteriosas cujos nomes a ciência desconhece e cujas oscilações nenhum sismógrafo é capaz de registrar: mas quem poderia dizer se esses desejos são impotentes, se esse incomensurável querer, que irrompe ardente a partir das camadas mais profundas da alma, também não percorre distâncias como a vibração dos sons e o estremecimento elétrico? Onde antes havia sono, repouso imaterial, agora há o afã imaginativo: a alma não cessa de ver, através da escuridão, os ausentes que lhe são caros, e na imaginação cada um deles vive múltiplos destinos. Milhares de pensamentos escavam o sono, cuja construção oscilante desmorona sempre, e por cima do homem solitário ergue-se vazia a escuridão povoada de imagens. Mais vigilantes à noite, as pessoas também se tornam mais vigilantes de dia: nas pessoas mais simples que encontramos está vivo nessas horas algo do poder do orador, do poeta, do profeta, é como se o que há de mais misterioso nos homens tivesse sido vertido para fora pela incomensurável pressão dos fatos, cada pessoa potencializada em sua vitalidade. Assim como lá no campo, nos simples camponeses, que a vida toda aravam sua lavoura quietos e pacíficos, nessa hora inquieta subitamente se inflama o heróico, assim se inflama em pessoas normalmente opacas e torpes a capacidade da visão; todos vivenciam dentro de si uma visão que transcende a esfera normal de sua existência, e quem antes só tinha olhos para o seu trabalho diário vê agora realidade e imagens animadas em cada notícia. As pessoas revolvem constantemente com preocupações e visões a gleba árida da noite, e quando enfim se rendem ao sono, têm sonhos estranhos. Porque o sangue circula mais quente em suas veias, e nesse calor florescem plantas tropicais de terror e preocupação, sonhos dos quais é uma bênção acordar e sentir que não passaram de pesadelos inúteis e que só aquele mais terrível sonho da humanidade é uma verdade aterradora: a guerra de todos contra todos.
Os mais pacíficos sonham agora com batalhas, colunas se precipitam e atravessam o sono, o sangue ruge, escuro, com o tronar dos canhões. Acordando num sobressalto, ouvimos ainda o estrondo dos carros que passam, o bater dos cascos. Escutamos atentamente, inclinado-nos da janela — e, de fato, ali embaixo passam as longas fileiras de carros e cavalos pelas ruas desertas. Alguns soldados levam um bando de cavalos no cabresto; pacientes, eles trotam com seus passos pesados e sonoros pelo calçamento ruidoso. Também eles, os animais que normalmente descansam à noite do trabalho, quietos em seus estábulos quentes, foram privados do sono habitual, as parelhas pacíficas foram separadas, as fraternais também. Nas estações [de trem] escutam-se as vacas mugindo mansas nos vagões; retiradas de seus pastos cálidos e macios de verão para o desconhecido, até elas, as apáticas, tiveram o sono perturbado. E os trens partem para a natureza adormecida, que também se sobressalta com a agitação das pessoas. Tropas da cavalaria galopam à noite cruzando campos que desde a eternidade descansavam no escuro, por sobre a negra superfície do mar faíscam em milhares de pontos os faróis, mais claros que a luz da lua e mais ofuscantes que o sol, até mesmo lá no fundo a treva das águas está perturbada pelos submarinos à caça de presas. Disparos soam e ressoam através das montanhas caladas, acordando os pássaros, tontos, em seus ninhos; em nenhum lugar o sono é seguro, e mesmo o éter, desde sempre intocado, é atravessado pela pressa assassina dos aeroplanos, os fatídicos cometas do nosso tempo. Nada, nada mais pode ter sossego e descanso nesses dias: a humanidade arrastou animais e natureza em sua batalha assassina. Há menos sono no mundo agora, as noites são mais longas e mais longos os dias.
Mas pensemos e repensemos, mais uma vez, a amplitude do tempo e que isso que acontece agora não tem precedente na história. Vale ficar insone, sempre vigilante. Nunca o mundo, desde que é mundo, esteve tão agitado em sua totalidade, nunca tão excitado em sua comunidade. Uma guerra, até agora, nunca passou de uma inflamação no imenso organismo da humanidade, um membro purulento e que era cauterizado para sarar enquanto todos os outros ficavam desimpedidos e livres em suas funções vitais. Sempre houve pessoas que não participavam, em algum lugar ainda havia aldeias às quais não chegavam notícias daquela agitação e que dividiam calmamente sua vida em dia e noite, em trabalho e repouso. Em algum lugar ainda havia o sono e o silêncio, gente que acordava cedo, risonha, e que dormia sem sonhar. Mas a humanidade, quanto mais conquistou a Terra, mais unida ficou: uma febre sacode agora todo o seu organismo, um terror sacode o cosmo inteiro. Não existe nenhuma oficina na Europa, nenhuma granja solitária, nenhum casario de bosque de onde não tenham arrancado um homem para participar dessa luta, e cada um desses homens, por sua vez, está unido a outros através de vínculos de sentimento. Até o mais humilde emana tanto calor que, quando desaparece, tudo se torna mais frio, mais solitário, mais vazio. Cada destino forma outros destinos a partir de si, pequenos círculos que se dilatam em ondas no mar das emoções e se ampliam; em enorme união e mútua determinação da experiência, ninguém se precipita no vazio ao morrer: cada um arrasta algo dos demais consigo. Cada um é acompanhado de olhares, e esse olhar e ansiar, multiplicado por milhões e entrelaçado com o destino de nações inteiras, cria a inquietação de um mundo inteiro. Toda a humanidade escuta, e através do milagre da técnica recebe simultaneamente a mesma resposta. Os navios transmitem mensagens uns aos outros através de incontáveis ondas, das torres de telégrafos de Nauen e Paris uma mensagem é transmitida em questão de minutos para as colônias da África Ocidental e para o lago Chade, os hindus da Índia leem as decisões em suas folhas de cânhamo e de tela à mesma hora que os chineses em seus papéis de seda — a excitação se propaga até as últimas terminações nervosas da humanidade e afugenta a letargia. Cada qual espia pela janela dos seus sentidos em busca de notícias, sugando tranquilidade das palavras dos corajosos e terror e dúvida das dos desesperados. Os profetas, verdadeiros e falsos, voltaram a ter ascendência sobre a massa que agora escuta e escuta, caminhando e repousando no delírio da febre, dia e noite, os longos dias e as noites infinitas desse tempo digno de ser vivido na vigília.
Pois esses tempos não aceitam que alguém deixe de participar, e estar distante dos campos de batalha não significa estar de fora. Cada um de nós tem sua existência revolvida, ninguém mais tem o direito de dormir em paz em meio à tremenda exaltação. Nessa transformação das nações e dos povos, nós também nos transformamos, não importa que aprovemos ou não; cada um está enredado nos acontecimentos, ninguém permanece frio na febre de um mundo. Não há como ficar indiferente às realidades transformadas, hoje ninguém mais está a salvo em uma rocha, olhando com um sorriso para as ondas agitadas. Cada qual, querendo ou não, é arrastado pela maré, sem saber para onde está sendo levado. Ninguém pode se isolar, pois com nosso sangue e nosso intelecto giramos na correnteza de uma nação, e cada aceleração nos impulsiona, cada parada em seus pulsos barra o ritmo de nossa própria vida. Quando a febre ceder, tudo terá um novo valor para nós, e justo o igual será diferente. As cidades alemãs: com que sentimento as veremos depois dessa luta! E Paris: como terá se tornado diferente, estranha ao nosso sentimento! Sei desde agora que não poderei ficar na mesma casa hospitaleira em Liège com o mesmo sentimento, com os mesmos amigos, depois que as granadas alemãs caíram sobre a cidadela; entre tanto amigos, de um lado e outro da fronteira, estarão as sombras dos mortos, absorvendo com respiração fria o calor da palavra. Todos teremos que nos reorientar, do ontem para o amanhã, atravessando esse impenetrável hoje, cuja violência apenas percebemos agora, horrorizados, e teremos que chegar a uma nova forma de vida em meio a essa febre que agora torna nossos dias tão abrasadores e nossas noites tão sufocantes. Depois de nós surge uma nova geração cujos sentimentos foram forjados nesse fogo. Eles serão diferentes — eles, que viram vitórias naqueles anos em que nós só vimos retrocesso, lamento e lassidão. Da confusão desses dias surgirá uma nova ordem, e nossa primeira preocupação terá que ser nos sujeitar a ela com força e solidariedade.
Uma nova ordem — pois essa febre insone, a inquietude, a esperança e a expectativa que consomem a tranquilidade dos nossos dias e das nossas noites não podem continuar. Por mais que toda a destruição agora pareça se estender de forma terrível sobre o mundo aniquilado, ela é diminuta em comparação com a energia muito mais impetuosa da vida, que depois de cada tensão sempre consegue um repouso para sair transformada, mais pujante e mais bela. Uma nova paz — oh!, quão distantes brilham ainda suas asas luminosas através da poeira e da fumaça de pólvora — haverá de reerguer a velha ordem da vida, o trabalho de dia e o repouso à noite. O silêncio voltará com o sono reparador aos mil lares que agora estão despertos na excitação e no medo, e estrelas tranquilas voltarão a olhar do alto para uma natureza que respira felicidade. O que agora ainda parece ser horror será então, em sublime transformação, grandeza. Sem lamento, quase com nostalgia, lembraremos essas noites intermináveis, durante as quais, em ampliação maravilhosa, percebíamos no sangue o destino em gestação e a cálida respiração do tempo sobre nossas pálpebras despertas. Só quem viveu a doença conhece a felicidade completa da cura, só o insone conhece a doçura do sono reconquistado. Os que regressaram e aqueles que ficaram em casa estarão mais contentes com sua vida do que os que se foram, saberão apreciar seu valor e sua beleza com mais seriedade e mais justiça, e quase ansiaríamos pela nova conformação se hoje — como nos dias antigos — o chão do templo da paz não estivesse regado com o sangue sacrificado, se esse novo e feliz sono do mundo não fosse comprado à custa da morte de milhões de seus filhos mais nobres.
Fonte: ZWEIG, Stefan: O mundo insone e outros ensaios, tradução de Kristina Michahelles; organização e textos adicionais de Alberto Dines, Rio de Janeiro: Zahar, 2013, pp. 197-203.