sexta-feira, 3 de maio de 2024

“A expansão portuguesa é indissociável da escravatura”, falta Portugal reconhecê-lo


Por António Rodrigues *
Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO, edição da quinta-feira, de 02/05/2024, na coluna Destaque Reparações históricas, pp. 2-4.
Organizações brasileiras manifestaram na ONU o repúdio pela “ausência absoluta de posicionamento” de Portugal em relação ao passado esclavagista e à falta “de reparação à população negra brasileira”

Passadas três décadas desde os primeiros debates em torno das reparações pelos crimes cometidos pelas potências coloniais nos territórios que colonizaram, há alguns passos concretos que foram dados, desde a devolução de França ao Benin de artefactos pilhados até ao acordo histórico assinado entre a Alemanha e a Namíbia por causa do genocídio dos povos hereros e namas (namaquas) na então colónia alemã do Sudoeste Africano. 

A primeira Conferência Pan-Africana sobre Reparações pela Escravatura, Colonização e Neocolonização Africana, realizada entre 27 e 29 de Abril de 1993, pedia à comunidade internacional, no seu documento final, a chamada “Declaração de Abuja”, que “reconheça que existe uma dívida moral única e sem precedentes para com os povos africanos que ainda não foi paga — a dívida de compensação aos africanos enquanto povo mais humilhado e explorado dos últimos quatro séculos da história moderna”. 

Desde então, existe uma investigação histórica importante, feita por muitos historiadores em Portugal e no estrangeiro, que tem ajudado “a definir melhor o passado e a ver como é que os países hoje se podem relacionar com esse mesmo passado”, afirma ao PÚBLICO o historiador Francisco Bethencourt, professor no King’s College de Londres. Em Portugal, essa reflexão tem sido parca nos seus frutos porque “nos últimos 50 anos não houve política de memória”. 

A inacção portuguesa em relação ao seu passado colonial e às reparações devidas aos povos colonizados e escravizados mereceu recentemente o repúdio de sete organizações da sociedade civil brasileira que participaram de 16 a 19 de Abril, em Genebra, na reunião do Fórum Permanente para Pessoas Afrodescendentes, criado pelas Nações Unidas em 2021 para contribuir para a inclusão social, económica e política dos afro-descendentes no mundo. 

“A expansão portuguesa é indissociável da escravatura. É fundamental que Portugal — Estado que beneficiou social, económica, política e culturalmente de um sistema colonial de poder e da exploração negra — se responsabilize e ofereça respostas efectivas voltadas à memória, verdade, justiça, reparação e não-repetição”, dizia o comunicado conjunto assinado pelo Instituto Marielle Franco, Odara Instituto da Mulher Negra, Redes da Maré, Fundo Agbara, Movimento Mulheres Negras Decidem, Observatório da Branquitude e o Centro de Estudos de Relações de Trabalho e Desigualdades. 

A “ausência absoluta de posicionamento” por parte de Portugal, a falta de “medidas concretas de reparação à população negra brasileira pelos danos profundos causados pela escravização e o tráfico transatlântico, graves crimes contra a humanidade” são faltas que precisam de ser remediadas, acrescentava o documento. 

Há até estudos quantitativos sobre esse tráfico transatlântico de seres humanos transformados em mercadoria. “Jaime Reis, Nuno Palma e Leonor Freire Costa publicaram, aqui há uns anos, um artigo importante de História Económica, em que demonstravam com imensa investigação — e é um artigo consensual, ninguém o discutiu — que, entre 1500 e 1800, Portugal beneficiou da exploração colonial ao nível de 20% do rendimento nacional”, explica Bethencourt. “De 1500 a 1860, dos 12,6 milhões de africanos arrancados das suas terras para alimentar o trabalho escravo nas Américas, 4,8 milhões foram levados pelos portugueses”, acrescenta o historiador. 

Por isso, quando o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa refere agora que “há acções que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isto”, está a afirmar algo que está bem documentado em termos de investigação histórica. 

Alberto Oliveira Pinto, historiador com dupla nacionalidade, portuguesa e angolana, autor entre outras obras, de uma História de Angola e de Angola e Retóricas Coloniais, considera “impossível” e “até uma coisa completamente absurda” estar hoje a fazer um cálculo do custo trágico da história. Para o luso-angolano, “em história não há pedidos de desculpas, nem há indemnizações do que quer que seja a longo prazo”. 

“Defendo há muitos anos que se deve ensinar a história de África, a história da escravatura nas escolas, e isso é que é importante, é o conhecimento. Estar a devolver património ou a pedir perdão ou a pagar dívidas, isso é uma coisa em que as pessoas no dia-a-dia não pensam, tem a ver apenas com certos interesses de ordem política”, acrescenta Oliveira Pinto. 

Epsy Campbell Barr, que foi a primeira mulher afrodescendente na vice-presidência da Costa Rica, e é a actual presidente do Fórum Permanente para Pessoas Afrodescendentes, concorda que é preciso ensinar a história — “de que adianta termos dez tomos sobre a História de África se eles não fazem parte dos textos obrigatórios [nas escolas]?” —, mas, em entrevista ao site da Geledés — Instituto da Mulher Negra, discorda no que diz respeito às reparações. 

Reparação é reconhecer o que a história nos negou. Não é algo novo, que a humanidade desconheça, porque já o fizeram em relação a outros grupos. A humanidade, quando reconhece que um grupo foi prejudicado, degradado ao extremo, toma decisões políticas, económicas, culturais que permitem devolver aos descendentes, às vítimas destes feitos históricos, os direitos que lhes foram negados”, explica Epsy Cambell Barr. 

Para a ex-vice-presidente costa-riquenha, “é mentira dizer que não se sabe como fazer a reparação, porque a mesma já foi feita para os judeus e para os japoneses”. Falta fazer isso agora em relação aos afro-descendentes. 

Debate por fazer em África 

As críticas das referidas organizações brasileiras em relação a Portugal advêm do facto de o debate no Brasil em relação a esta matéria ir bem avançado, até por ser o país com maior população negra fora de África, a quem o Estado deve a obrigação de repor séculos de injustiça. A cumplicidade brasileira nos crimes da escravatura era lembrada no sábado pelo historiador Luiz Filipe de Alencastro na BBC Brasil: “O país também deve assumir a responsabilidade, porque ele foi co-participante, ao lado de Portugal — e, depois da independência, sozinho —, da pilhagem dos povos africanos.” 

“Não é um debate muito intenso, mas está sempre presente em meios políticos e sobretudo universitários”, conta o angolano Jonuel Gonçalves, investigador da Universidade Federal Fluminense e do Iscte-Instituto Universitário de Lisboa. “As responsabilidades na escravatura e sua vigência por cerca de três séculos; o açúcar e o ouro exportados em larga maioria sem os correspondentes benefícios locais; e o pagamento pelo Brasil a Portugal de indemnizações para reconhecimento da independência” são temas essenciais de reflexão e crítica, diz Jonuel Gonçalves. 

Nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) esse debate é mais insípido e as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa terão apanhado de “surpresa” a maioria dos dirigentes, afirma o investigador. Emídio Fernando, jornalista luso-angolano, em entrevista ao podcast Na Terra dos Cacos do PÚBLICO, concorda: “Certamente que apanhou de surpresa porque os angolanos não estão minimamente preocupados com esta questão.” 

“Em Angola, não conheço nenhum movimento, nenhuma acção, nem artigos de opinião sequer e muito menos declarações de governantes” sobre aquilo que Marcelo Rebelo de Sousa referiu. Não se conhecem opiniões de que Portugal devia “pedir desculpa, ou ressarcir” os angolanos, garante o autor de O Último Adeus Português — História das Relações entre Portugal e Angola do Início da Guerra Colonial até à Independência. 

O Jornal de Angola admite a falta de reflexão sobre o assunto: “É verdade que em quase 50 anos de independência das ex-colónias, de liberdade e democracia em Portugal, nunca de um e do outro lado foi levantado este debate que divide opiniões, reacende certos ânimos e levanta inúmeras interrogações, mas sobre o qual urge fazer alguma coisa em nome da verdade histórica, preservação da memória e justiça.” 

Elísio Macamo, sociólogo moçambicano, especialista em Estudos Africanos da Universidade de Basileia, lembra, no mesmo podcast, que, “à primeira vista”, a questão da “reparação parece bonita”, só que, quando se “começa a reflectir sobre as suas implicações”, levantam-se “dúvidas”. 

O sociólogo, que em 2022 escreveu um artigo no PÚBLICO sobre o assunto, depois de o então primeiro-ministro António Costa ter pedido perdão pelo massacre português em Wiriyamu, defendia que “não era a África ou à América que Portugal devia desculpas, mas sim a si próprio”. Portugal é um país que se “define por certos valores e o colonialismo violou esses valores”, portanto, “num primeiro momento, devia ter havido um processo de descolonização dentro de Portugal”. 

Fácil de dizer, mais difícil de concretizar, concorda Macamo. Tudo depende de um processo político. Mas esse “não é um problema apenas de Portugal, é um problema de toda a Europa, que foi colonial”. Porque “em nenhum país europeu houve realmente um processo interno de reflexão sobre até que ponto esses países teriam traído os seus próprios valores”.

Crítica a Portugal 

Não “fica bem” estar “cada vez mais isolado” no “discurso negacionista” 

Declara extinta a escravidão no Brasil

 

Há uma alteração “palpável” no discurso público, garante a professora Ana Cristina Pereira, também conhecida por Kitty Furtado, em relação ao debate sobre as reparações históricas da escravatura e da colonização em Portugal. Para a investigadora da Universidade do Minho, uma das organizadoras, com a historiadora de arte Inês Beleza Barreiros, do IV Encontro de Cultura Visual: Reparações, realizado o ano passado no Porto, a “mudança vai-se fazendo muito lentamente”, mas o importante é que “a discussão está instalada”. 

Agora, com as declarações do Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, a discussão sobre as reparações devidas pelo colonialismo e a escravatura que se mantinha em meios académicos e entre o activismo, espaços mais ou menos restritos, saltou para a praça pública, para o circuito mainstream. É uma consequência, segundo Kitty Furtado, doutorada em Estudos Culturais, da “pressão de grupos activistas” e da pressão internacional. 

“Portugal vai ficando cada vez mais isolado num discurso negacionista e as autoridades também não andam a dormir, percebem que isso não lhes fica bem”, acrescenta, em declarações ao PÚBLICO. Dessa forma se pode explicar o pedido de desculpas do então primeiro-ministro António Costa sobre o massacre de Wiriyamu, em 2022, e a ordem do seu ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, para a inventariação de peças de origem duvidosa que poderiam ser devolvidas por Portugal às suas ex-colónias. 

Do encontro do ano passado na Mala Voadora saiu um documento, a partir de uma denominada “Oficina de Reparações”, onde participaram, além das organizadoras, a cantora e compositora Aline Frazão, o investigador e activista Apolo de Carvalho, a investigadora e directora do Buala Marta Lança, a poetisa e investigadora Ellen Lima Wassu (Pirá), a poetisa e investigadora Gessica Correia Borges e a actriz e marionetista Sara Henriques. Tendo contado com contributos do activista Mamadou Ba. 

O documento, denominado Declaração do Porto: Reparar o Irreparável, com 115 assinaturas, defendia a necessidade de “reconhecer a dívida histórica para com pessoas negras, ciganas/romae indígenas” e alertava para o facto de o 25 de Abril ter fechado as portas ao fascismo, mas ter deixado “várias janelas” que ficaram “escancaradas”, por onde “os saudosistas vão reavivando a sua memória colonial e (re)inscrevendo-a no espaço público”. 

“Que medo é que há desta discussão?”, pergunta-se Kitty Furtado. “A discussão tem de ser tida. E nós temos que aprender a lidar com este passado e com as consequências, no presente, deste passado. Porque, ao contrário do que se veicula, a história não fica no passado. Nós não somos outra coisa senão o resultado da nossa história. E as clivagens sociais, as diferenças, o racismo estrutural, está todo cá. E não acontece por acaso, é a consequência de uma história e do facto de lidarmos tão mal com ela.” 

Tanto para Kitty Furtado como para Francisco Bethencourt, professor do História no King’s College de Londres, que em 1991 organizou, com Diogo Ramada Curto, o livro A Memória da Nação (1991), a declaração de Marcelo Rebelo de Sousa “só peca por tardia”. Independentemente da forma como foi gerida pelo Presidente da República, que falou pela primeira vez da “obrigação” de Portugal “liderar” o processo de reparações aos países que colonizou durante um jantar com jornalistas estrangeiros, o que importa mesmo é ter falado publicamente sobre o assunto. 

Afirmação de Marcelo "só peca por tardia", diz Francisco Bethencourt
 

“Nunca há condições ideais para começar um debate desta natureza”, diz Bethencourt. Admitindo que tudo “podia ter sido feito de uma maneira mais pensada e, enfim, com alguma estratégia”, o mais importante agora é aproveitar. “É sempre a altura de pegar nas situações e tentar ver como é que se podem encontrar algumas soluções, os primeiros passos que se possam dar nesse sentido.” 

Aquilo que Portugal não pode continuar a fazer “é fugir” ao assunto, refere Bethencourt, “porque o país beneficiou da exploração colonial”. O Portugal “que temos hoje não nasceu do nada, foi resultado de toda uma história de que a exploração colonial fez parte”. 

E àqueles que dizem que isso é história, que devia ficar no passado, Kitty Furtado lembra que “a escravatura existiu em Portugal, em termos de práxis, até aos anos 1960. Sim, porque os contratados que iam trabalhar para as fazendas de café não eram outra coisa senão mão-de-obra escrava.” Não deixavam a sua terra, a sua família para ir trabalhar em condições infra-humanas de livre vontade. Eram escravos com outro nome. 

“Porque não se admite este passado e porque não se pede desculpas? É incompreensível”, acrescenta a investigadora da Universidade do Minho. Outros países “estão a lidar com o seu passado colonial, estão a devolver, estão a pedir desculpas – estão a reparar de alguma maneira e nós continuamos sem querer reparar nada, à custa dessa narrativa luso-tropicalista”. 

O primeiro passo a dar, como no caso dos indivíduos adictos, é reconhecer que “não há colonialismos bons”, como diz Kitty Furtado. Nenhum povo subjuga outro com flores. O segundo passo é parar de repetir que isso ficou lá atrás, enterrado no passado, porque, lembra, “os crimes contra a Humanidade são imprescritíveis”. “Isto não é uma ideia woke, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é de 1948. Não foram os identitaristas e culturalistas que a escreveram agora”, acrescenta. 

Como afirma Francisco Bethencourt, “o que Portugal tem a fazer é acabar com esta retórica passadista porque é uma vergonha para o país”. Porque se o país foi capaz de “absorver, de maneira digna, a quantidade enorme de pessoas que regressaram das colónias depois de 1975, uma das grandes realizações do país do ponto de vista social”, também tem de ser capaz de “absorver todos os aspectos do passado”. E entender de uma vez por todas que “não há nenhum país que tenha uma história impoluta”.

* Jornalista do jornal PÚBLICO, advogado e ex-membro do Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa