sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Algumas elucubrações sobre o Distrito de São Sebastião da Vitória e sobre a necessidade de "falar do nosso quintal"


Por José Antônio de Ávila Sacramento *

Este escriba acredita que uma melhor compreensão das diversas estruturas setecentistas e oitocentistas dos nossos arraiais pode ser importante para o entendimento da formação social das atuais cidades. Considera que as referências rurais ainda estão muito presentes na formação das identidades culturais dos atuais sítios urbanos, principalmente no que se refere à relação dos nossos sub-burgos e a cidade de São João del-Rei, dentre tantas outras plagas destas "muitas Minas". O desenvolvimento satisfatório de uma cultura torna-se cada vez mais visível e consistente a partir do momento em que a população se reconhece através da sua história e, assim, passa a ter a auto-estima elevada e se interessa em percorrer sem ressalvas as várias facetas de suas ancestralidades. Aleksandr Púchkin disse o que Tolstói repetiu por muitas vezes: "quer ser universal, conheça primeiro o seu quintal".

Ao ousar começar a escrever alguma coisa sobre o distrito são-joanense de São Sebastião da Vitória, creio que vale iniciar a dita escrevinhação para o BLOG DE SÃO JOÃO DEL-REI registrando algo elementar a respeito da origem das devoções ao mártir São Sebastião e Nossa Senhora das Vitórias (ou Nossa Senhora da Vitória) que estão relacionadas com o povo do local:

Sebastião nasceu em Narbona, na França, no final do século III. Há quem o tenha como italiano, nascido na cidade de Petrória ou Milão. Alistou no serviço militar de Roma e tornou-se um dos oficiais prediletos do Imperador Diocleciano e comandante de sua guarda pessoal. Valendo-se de seu alto posto militar, Sebastião fazia visitas freqüentes aos cristãos que se encontravam presos para serem levados ao Coliseu, em que seriam devorados por leões ou mortos em lutas com os gladiadores. Essa fama de benfeitor dos cristãos se espalhou e fez com que Sebastião fosse denunciado ao Imperador por um soldado. Assim, o Imperador ainda tentou fazer com que Sebastião renunciasse ao cristianismo. Diante do Imperador, Sebastião não negou a sua fé e foi condenado à morte, sem direito a apelação. Então, foi alvejado com flechadas e depois o deixaram a sangrar para morrer. À noite, algumas mulheres foram ao lugar da execução para tirar o corpo e dar sepultura a Sebastião e notaram que ele ainda estava vivo. Então, elas o levaram e cuidaram de seus ferimentos. Restabelecido, Sebastião voltou a disseminar abertamente o cristianismo. Ele voltou a se apresentar a Diocleciano para lhe pedir que deixasse de perseguir os cristãos. Ignorando os pedidos de seu ex-oficial, o Imperador ordenou que Sebastião fosse espancado até a morte e que seu corpo fosse jogado nos esgotos de Roma, para que não fosse venerado como mártir pelos cristãos. Era o ano de 288 d.C. e uma mulher chamada Luciana, mais tarde Santa Luciana, retirou-o das cloacas romanas e sepultou-o nas catacumbas. Vem do primeiro martírio a São Sebastião a imagem imortalizada dele amarrado a um tronco, com o corpo perfurado por flechas e que passou a ser venerado como santo padroeiro contra a peste, a fome e a guerra. O dia consagrado a São Sebastião é o 20 de janeiro, pois se acredita que este foi o dia da morte dele.

Sabe-se que um mesmo episódio histórico deu origem ao título de Nossa Senhora das Vitórias e, também, ao de Nossa Senhora Auxiliadora e de Nossa Senhora do Rosário; são títulos quase que trigêmeos e se referem à vitória dos Cristãos sobre os Turcos Maometanos, em Lepanto: Nossa Senhora Auxiliadora (por causa do auxílio Dela aos Cristãos na referida batalha), Nossa Senhora do Rosário (por causa de uma das armas usada foi a do Santo Rosário) e das Vitórias (por causa da grande vitória final, no golfo de Lepanto, Grécia), assim eternizadas "Auxilium Christianorum". Além de Nossa Senhora das Vitórias, o povo cristão também homenageia a Mãe de Deus com o título de Nossa Senhora de Lepanto. O título de Nossa Senhora da Vitória foi dado a Maria pelo papa Pio V, depois da Batalha de Lepanto, ocorrida em sete de outubro de 1571, por estar firmemente persuadido de que essa vitória fora obtida por uma particular proteção da Virgem Maria. Há registro de que no mesmo instante da vitória obtida em Lepanto, estando reunidos o Papa Pio V e o seu tesoureiro em Roma, na sala do Consistório, de repente, ele se levantou e chegou até a janela, olhou para o céu e falou: "Ide com Deus. Agora não é hora de tratar dos negócios, mas sim de dar graças, pois nossa esquadra acaba de vencer". O registro desse acontecimento consta no processo de canonização de São Pio V. O dia consagrado a Nossa Senhora das Vitórias e a Nossa Senhora do Rosário é o sete de outubro; a celebração de 24 de maio é dedicada a Nossa Senhora Auxiliadora e remonta ao pontificado do Papa Pio VII e relembra a sua libertação do cativeiro, por Napoleão, em 1814, quando entrou triunfalmente em Roma, retomando o seu poder pastoral.

São Sebastião da Vitória é a denominação de um dos cinco distritos do Município de São João del-Rei. Segundo a tradição oral, o nome do distrito teve a sua origem na Guerra dos Emboabas, entre paulistas e portugueses, ocasião em que os últimos comemoraram a vitória, em 1709, fincando uma grande bandeira vitoriosa e outras menores a aproximadamente 6 km da atual sede distrital, localidade até hoje conhecida pelo nome de Povoado e/ou Alto das Bandeirinhas. Mesmo não havendo a fundamentação documental deste episódio, achei importante registrá-lo aqui como homenagem à memória oral daquele povo. Outra hipótese, a mais provável, é a de que São Sebastião tenha se incorporado ao nome do distrito por se Ele o santo protetor dos fazendeiros. Quanto ao nome Vitória, ele pode ser decorrente da antiga Fazenda da Vitória, da qual se acredita ter originado aquele arraial.

A devoção a São Sebastião e Nossa Senhora das Vitórias, certamente se efetivaram com maior força a partir da construção da primeira capela, denominada Nossa Senhora das Vitórias, inaugurada em 04 de outubro de 1884, pelo do Pe. José Bonifácio dos Santos, então vigário de São Miguel do Cajuru. Em 28 de abril de 1880 o Pe. José Bonifácio dos Santos solicitou a autorização ao então bispo de Mariana, D. Antônio Maria Correia de Sá Benevides, para edificação de uma capela que seria filial da Capela de São Miguel do Cajuru. O povo se uniu e, com muito trabalho e sacrifícios, foram organizados variados eventos em benefício da construção do templo. Foi também construído um cemitério, anexo à Capela. A Capela de Nossa Senhora das Vitórias foi elevada à categoria de Matriz de São Sebastião, através do Decreto Canônico de D. Helvécio Gomes de Oliveira (arcebispo de Mariana) em 25 de março de 1925; o cônego João Batista da Trindade, então vigário de Conceição da Barra de Minas, foi designado para dar assistência à paróquia recém-criada.

A atual matriz, mais ampla e confortável, teve sua construção iniciada em 19 de março de 1961, graças aos esforços do pe. Antônio Batista Lopes, com a ajuda do povo. Em 19 de janeiro de 1964 foi então inaugurada a obra. Neste dia, com pompa e circunstância, foi transportada a imagem do glorioso São Sebastião da igreja antiga para a nova. Embora este escriba não tenha a confirmação, ouvia dizer desde criança que na nova Matriz há (ou havia?) uma relíquia do mártir São Sebastião, um pedaço de osso, conseguido em Roma por D. Delfim Ribeiro Guedes, finado bispo da Diocese de São João del-Rei.

Uma antiga associação – Damas do Sagrado Coração de Jesus – foi criada em 07/08/1921 pelo Pe. Francisco Goulart, então vigário de São Miguel do Cajuru; essa Associação mais tarde transformou-se na Irmandade do Sagrado Coração de Jesus, mais conhecida como "Apostolado da Oração". A Associação das Filhas de Maria foi criada em 1953 e a Irmandade do S.S. Sacramento em 1965.

A primeira Semana Santa foi realizada externamente em 1964, com a aquisição das imagens do Senhor dos Passos, N. Sra. das Dores e Senhor Morto, providenciadas pelo pe. Antônio Batista Lopes. A festa do padroeiro daquele distrito acontece em vinte de janeiro, quando há novenário solene, missas e procissão do padroeiro; era e ainda deve ser característica dessa Festa a apresentação das Folias de São Sebastião, a promoção de leilões de gado e de prendas miúdas.

O primeiro vigário residencial do Distrito foi o dinâmico pe. Antônio Domingos Batista Lopes, empossado em 18 de abril de 1952. Foi a partir dessa data que o Distrito começou a conquistar alguns melhoramentos substanciais. O binômio "Pe. Lopes - São Sebastião da Vitória" ficará por todo o sempre gravado positivamente na memória dos locais, sobretudo daqueles que tiveram a oportunidade de conhecê-lo.

A primeira iluminação incandescente do local aconteceu em 1953/4, através da energia gerada por um motor a óleo, instalado nos fundos da Casa Paroquial, pelo Pe. Lopes. O abastecimento d’água, até então rudimentar, era mantido através de carneiro hidráulico e, depois, através de bomba movida a diesel, providenciados pelo Pe. Lopes; a distribuição de água foi solucionada de modo satisfatório pelo prefeito Octávio de Almeida Neves, em 1977. Pertencem ao Distrito os povoados/vilas do Tijuco, Bandeirinha, Januário, Caquende, Cruzeiro da Barra, Engenho de Serra e Valo Novo.

Desde 1909 o ensino foi mantido pelo Estado. A primeira professora foi a sra. Ernestina Pacheco de Barros, que regia a Escola Mista S. Sebastião. Em 1933, através de doação de terreno pelo sr. Olímpio Moreira, o prefeito José do Nascimento Teixeira inaugurou o prédio escolar que até hoje, em sua homenagem, leva o nome de Escola Estadual Nascimento Teixeira.

Padre Miguel Afonso de Andrade Leite (1912-1976), virtuoso nascido no distrito de São Miguel do Cajuru, como era de costume, atendia a diversas capelas rurais, assim como deu grande assistência religiosa ao povo de São Sebastião da Vitória. O referido padre já teve seu processo de canonização requerido e o assunto está em tramitação na Diocese de São João del-Rei. São Sebastião da Vitória, no ano de 1947, foi palco de um dos mais inusitados fatos ocorridos com o padre cajuruense. Numa festa política, José Ascendino desferiu violentas facadas nas costas de João Pereira da Silva, vulgo "João Pataca", vindo a perfurar-lhe os pulmões, ocasionando-lhe a morte. Quatro médicos que estavam participando da festa, apesar de o socorrerem imediatamente, só puderam atestar a morte imediata de "João Pataca". Pe. Miguel fora chamado para ver o defunto e não se conformava que ele tivesse morrido sem receber a comunhão e, principalmente, sem ter perdoado ao seu assassino. Assim, para espanto dos que lá estavam, o padre veementemente começou a ordenar que "João Pataca" perdoasse a José Ascendino. Ocorreu um assombro geral, inclusive dos ditos médicos, pois o defunto ergueu-se, recebeu a comunhão, disse um sonoro "sim" ao perdão que lhe fora solicitado pelo padre e voltou a dar o último suspiro apenas depois que por ele fora abençoado. Testemunhas idôneas deram seus depoimentos de que mediante a um silêncio sepulcral, os médicos se retiraram da casa declarando que diante do fato que presenciaram deviam "rasgar os seus diplomas", tudo isso enquanto o padre permanecia rezando em latim, certamente que terminando de proferir a extrema-unção ao "João Pataca". Também em Caquende, povoado localizado no distrito de São Sebastião da Vitória, aconteceu um outro fato miraculoso, com a interveniência do padre: após a celebração de um casamento o padre Miguel se dirigiu à casa dos noivos, parabenizou-os e manifestou-lhes o desejo de tomar um copo de vinho. Os recém-casados, gente bastante humilde, não tinham vinho disponível; assim, se sentiram desconfortáveis com a situação e pediram ao padre que esperasse um pouco, pois mandariam procurar nas vizinhanças uma garrafa de vinho para servi-lo. O padre, percebendo a situação, pediu para que ninguém deixasse a sala; virou-se para o filtro de água, orou e fez o sinal da cruz; pediu dois copos e começou a servir aos noivos e as demais pessoas, à vontade. Dizem que todos beberam do vinho, mas ninguém se embriagou. Ao final, o sacerdote também bebeu alguns goles, tornou a fazer o Sinal da Cruz na direção do filtro, e o recipiente voltou a ficar cheio de água. O fato, também atestado por testemunhas, deve ter sido assim como uma reedição do Evangelho de João e das Bodas de Caná!

São Sebastião da Vitória, que teve as suas terras palmilhadas pelo "santo" padre Miguel, tem também seus atrativos históricos e turísticos. A Represa de Camargos, belo lago artificial que alimenta uma usina hidroelétrica da CEMIG, banha as terras locais. Velhas fazendas ainda resistem ao tempo. Corta o distrito uma parte do trajeto original do Caminho Velho, fantásticas trilhas bandeirantes e coloniais ligando Paraty - Ouro Preto, caminhos que agora, graças ao trabalho formatado pelas mentes luzidias do geólogo Áttila de Carvalho Godoy e do professor Oyama de Alencar Ramalho, foram convertidas no produto turístico Estrada Real. Todo o trajeto entre São João del-Rei e a cidade de Carrancas, incluindo o que corta o distrito, foi sinalizado pelo Instituto Estrada Real com marcos onde constam dados sobre o posicionamento global (GPS), latitude, longitude e altitude, um número de telefone para ser utilizado em caso de emergência e breve texto relativo aos acontecimentos históricos e à geografia locais.

A principal atividade econômica local é a agropecuária, com algumas indústrias de laticínios implantadas através do sr. Miguel Afonso Leite. Há bom serviço de telefonia, que existia precariamente desde 1978; há, também, delegacia de polícia (desde 1976), posto de gasolina, restaurantes, serviço de correio, escolas, cartório, posto de saúde e outros estabelecimentos. O tradicional pão-de-queijo mineiro apresenta-se como um dos atrativos culinários de maior supimpitude do distrito.

Esta humilde tentativa de historiar os distritos são-joanenses, especialmente neste artigo o Distrito de S. Sebastião da Vitória, não tem outra intenção a não ser a de fazer vir à tona a nossa rica história rural, antiga aspiração do meu saudoso tio José de Alencar de Ávila Carvalho (1925-2000); de certa forma, é a continuação do cumprimento de uma promessa que lhe fiz quando já estava em seus derradeiros dias. Solicito, portanto, àqueles que se interessarem e tiverem dados disponíveis sobre a história do distrito, que cooperem com esta provocação, enriquecendo-a, corrigindo-a e/ou completando-a.

Ainda há por aqui, nesta Região dos Campos das Vertentes, nos arredores da antiga sede da Comarca do Rio das Mortes, espalhadas pelas beiradas destes Caminhos Reais, ricos relatos históricos. Essas histórias estão pedindo voz e vez. São registros que estão adormecidos e encontram-se depositados sob a poeira do tempo, às margens destas ricas trilhas bandeirantes dos distritos de São Miguel do Cajuru, São Sebastião da Vitória, Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, São Gonçalo do Amarante (ou "do Brumado"?) e Emboabas (por que não voltar a nominá-lo com o seu topônimo original de "São Francisco do Onça"?). São registros memoriais que esperam pela hora de serem bem levantados, discutidos e melhor analisados...

É preciso começar a conhecer e a cantar a nossa própria aldeia, falando mais do nosso quintal! Falemos, então, de modo estruturado, com propriedade, com gosto estético e com muita autenticidade, antevendo que esta nossa aldeia é nativamente bela e importante no âmbito de um variado universo e diante de todas as culturas. O que nos importa é a relevância e a qualidade do que descobriremos, é desvendar uma parcela ínfima do universo infindável que é a nossa aldeia. É preciso fazer isso sem temer a questão de ser rotulado como local ou regional, sem violentar o nosso modo de vida e sem depreciar as nossas melhores tradições diante de quaisquer outras, por mais respeitáveis e transcendentes que elas mereçam ou possam ser.

Então, cantemos a nossa aldeia com a alegria e a união dos galos que o poeta João Cabral de Melo Neto nos anunciou em "Tecendo a Manhã" - 1: "Um galo sozinho não tece uma manhã: / ele precisará sempre de outros galos. / De um que apanhe esse grito que ele / e o lance a outro; de um outro galo / que apanhe o grito de um galo antes / e o lance a outro; e de outros galos / que com muitos outros galos se cruzem / os fios de sol de seus gritos de galo, / para que a manhã, desde uma teia tênue, / se vá tecendo, entre todos os galos...".


Fotos:

1 - Matriz de São Sebastião da Vitória, quando da passagem dos integrantes da "Cavalgada Diamantina - Paraty" pela sede do Distrito / Estrada Real (foto cedida pelo Sr. Wilson Leite)

2 - Cruzeiro e campanário da igreja de Nossa Senhora da Vitória; o campanário, como era costume, foi construído em torre separada do corpo da capela (arquivo do autor)

3 - Pe. Miguel Afonso de Andrade Leite, um dos sacerdotes que prestaram boa assistência religiosa ao povo do Distrito de São Sebastião da Vitória (arquivo do autor)

4 - Igreja de Nossa Senhora da Vitória, a primeira do Distrito (arquivo do autor)



* José Antônio de Ávila Sacramento nasceu em São João del-Rei/MG (distrito de São Miguel do Cajuru). É sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, membro efetivo da Academia de Letras de São João del-Rei, conselheiro titular do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural. Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais (Belo Horizonte/MG). Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (João Pessoa/PB). Sócio Correspondente da Academia Bauruense de Letras (Bauru/SP). Sócio Correspondente da Academia Mageense de Letras (Magé/RJ). Mais...