quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

O BESOURO


Por Lêdo Ivo 
 
O recorte misterioso
 
Encontraram-se na esquina bulhenta e o céu de um azul lívido, entre as estruturas de vidro e concreto, era talvez a primeira antecipação do crepúsculo. Teseu do Carmo ia sozinho. Ia ou vinha, não sabia ao certo, pois tudo quanto o cercava (pessoas, coisas, rumores, as inumeráveis tintas do dia) se deixava palidamente revestir de um envoltório de indecisão. Assim se encontraram: na meia-luz universal. O outro segurava a mão de uma menina, e um pouco atrás estava a sua mulher. E foi precisamente ele que se aproximou de Teseu do Carmo e admitiu não estar sendo reconhecido. Não estava mesmo, mas a pausa desajeitada das contemplações mútuas durou um átimo, fagulhando no ar esbranquiçado da tarde madura. Ele disse que era: um amigo de infância, garantiu que há muitos anos vinha seguindo a carreira de seu antigo companheiro de grupo escolar. Teseu do Carmo! repetiu o nome. Findas a adolescência e as ilusões, sentara praça no Exército, era agora um sargento quarentão; e como o seu nome só circulava nos boletins militares, pensava que nome em jornal era sinônimo de glória. Teseu do Carmo! repetiu. E o nosso amigo sentiu que seu nome era como um besouro, e zoava na tarde amarela. Ia-se ver, não era ninguém... 
 
O sinal abriu, mas nenhum dos dois atravessou a rua. O sargento à paisana falava de algumas coisas sumidas, como um sol: dona Ermelinda, a professora que ambos haviam amado, as tardes em que gazeteavam as aulas e iam tomar banho de mar, a morte de um colega de olhos verdes chamado Vilela. Lembrava-se de tudo, o amigo, sabia de tudo, não deixara a infância deteriorar-se. E Teseu do Carmo se recordava de muita coisa, mas esquecera exatamente a existência do colega agora encontrado, o qual se misturava, na escada de sua memória, a outras figuras imóveis nos degraus, a outros rostos, a outros nomes, a outros banhos de mar. 
 
Teseu do Carmo perguntou pelo nome da menina, achou-o bonito, esqueceu-o logo. O sargento apresentou-lhe a mulher, que se mantinha silenciosa ao seu lado, e cujo ar abrigava algo de inconfundivelmente suburbano como um cheiro de jasmim. Outro sinal abriu. O amigo de infância pediu-lhe um livro seu, autografado. Teseu do Carmo prontificou-se a enviá-lo. De súbito, os seus dedos apertavam o cartão de visitas com o nome, o posto e o endereço do amigo. Para simplificar, garantiu-lhe que, logo no dia seguinte, deixaria o volume na caixa de uma livraria do centro da cidade. 
 
Deixou o livro lá, com o nome do sargento bem visível no pacote. Os dias, as semanas, os meses se passaram, novas tardes amarelas reverberaram nos vidros dos arranha-céus, e o amigo de infância não apareceu para levar o volume. 
 
E o pacote foi amarelecendo, como a infância, e terminou sumindo debaixo de outros embrulhos, cartas e encomendas. Às vezes, o livreiro advertia Teseu do Carmo: "Há um pacote seu aí embaixo. O homem não veio buscar". 
 
E fez bem. Não se deve perturbar a infância. 
 
Sim, na esquina rumorosa, Teseu do Carmo deveria ter dito não, tornando impossível o reconhecimento, repelindo as identificações fantasiosas. Pois a vida não é uma evolução, mas um buquê de metamorfoses. E o Teseu do Carmo repentinamente descoberto pelo sargento não correspondia à visão perdida, que o vento da antiga praia diluíra. Assim, tudo se resumiria a uma coincidência de nomes, espetacularmente facilitada se ele se chamasse, por exemplo, João da Silva. E à medida que os dias passavam, o seu pequeno drama de consciência se fechava em cicatriz. Pois o amigo sargento não viera buscar o livro, recusava distante o elo indesejável, decerto se desinteressara e se arrependera da súbita curiosidade explodida naquela esquina do sim que devera ter sido a esquina do não. 
 
O amigo da infância, criatura falto de nome e de rosto, recusava, dos desdobrados longes de sua humildade, o Teseu do Carmo de agora, autor de obras, escrivão do nada. O seu amigo verdadeiro, o dos mergulhos vespertinos nas águas macias da meninice, não morava no espaço nem nessas desconfortáveis casas de papel talvez impropriamente chamadas de livros. Fôra uma figura do tempo. Fôra e por que não dizê-lo, ante o céu ofuscante de qualquer tarde? o próprio tempo, besouro sumido. 
 
 
II. AGRADECIMENTO
 
Agradeço à minha amada Rute Pardini Braga a formatação e edição da foto do recorte utilizada neste artigo.
 
 

Colaborador: LÊDO IVO


Por Francisco José dos Santos Braga 
 

LÊDO IVO (✰ Maceió, 1924 - ✞ Sevilha, Espanha, 2012). Poeta, romancista, contista, cronista, jornalista e ensaísta. Em 1940, transfere-se para o Recife e, influenciado pelo ambiente intelectual da cidade, publica poemas e artigos na imprensa local. Três anos mais tarde, muda-se para o Rio de Janeiro, e estuda na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Passa a trabalhar na imprensa carioca como jornalista profissional, colaborando com textos literários e reportagens. Em 1944, publica seus primeiros poemas no livro As Imaginações.  À obra de estreia se seguiria intensa produção poética, com Ode e Elegia, de 1945, e Ode ao Crepúsculo, do ano seguinte, além de muitos outros, até Finisterra, de 1972. Seu primeiro romance, As Alianças, foi publicado em 1947. Os anos subsequentes vêem sua obra literária ganhar corpo com o lançamento de poesias, romances, contos, crônicas e ensaios. 

Nas suas crônicas, em geral aparece o protagonista Teseu do Carmo (este nome ecumênico, pagão e cristão), o alter ego de Lêdo Ivo, sósia que criou, para falar de si mesmo na terceira pessoa e até para criticar-se ao atingi-lo, às vezes, com sua ironia. Na pele de Teseu do Carmo, declara sua perplexidade em face da vida e dos acontecimentos. 

Em 1949, forma-se em direito, mas não exerce a profissão de advogado, preferindo a carreira jornalística e de literato. Foi com Ninho de cobras, de 1973, traduzido para várias línguas, que Lêdo Ivo conquistou notoriedade como romancista. É eleito em 1986 para ocupar a cadeira número 10 da Academia Brasileira de Letras - ABL e no seu ingresso foi saudado por Dom Marcos Barbosa em célebre Resposta ao seu Discurso de imortal. Em 2004 é lançada a primeira edição de suas obras completas, com seis décadas de poesia e prosa. 

Para os críticos e historiadores literários, Ivo filia-se à terceira geração do modernismo ou pós-moderna que vai de 1945 a 1980 (conhecida por Geração de 1945, à qual pertencem ainda João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles, com evidente preocupação com a linguagem e o retorno a sensos estéticos anteriores à fase experimental do movimento desencadeado pela Semana de 1922 e representada por autores preocupados em buscar uma nova expressão literária, por meio da experimentação e inovações estéticas, temáticas e linguísticas, do que resultaram mais intimistas sua poesia e sua prosa urbana e regionalista). 

Em 2006, doa seu arquivo pessoal, reunindo correspondências, manuscritos, recortes de jornais e fotografias, ao Instituto Moreira Salles - IMS, de São Paulo. Merece destaque a correspondência do autor, que reúne cartas que lhe foram enviadas pelas personalidades mais importantes de sua geração. Em 2007, o IMS publicou E agora adeus, seleção dessas cartas. 

Cronologicamente, com o título de Calima foi sua última obra de poemas editada inicialmente em solo espanhol pela Vaso Roto Ediciones que ganhou versão em português com o título de Mormaço pouco depois da morte do autor (Rio de Janeiro: Contracapa, 2013). A morte, a “indesejada das gentes”, conforme famosa expressão de Manuel Bandeira, entendida como dissolução inarredável da natureza humana, é a temática principal dos poemas de Mormaço, de Lêdo Ivo. A visão do sujeito poético é desalentadora e irredutível, desde as reminiscências poéticas que remetem à terra natal (Alagoas) até as passagens pela Europa e Estados Unidos, atravessando toda a trajetória pessoal de longos 70 anos de ininterrupta e intensa carreira literária. 

A publicação de um livro fora de seu país natal sugere uma enormidade de questionamentos, que vão desde a inexpressiva presença do poeta alagoano no cenário acadêmico até a posição do autor no cenário editorial e literário brasileiro, pautada por seu tom cáustico na crítica e nos comentários, às vezes reiterativo e mordaz em relação ao cânone modernista brasileiro e seus influxos, isto é, à literatura que se sente tributária da Semana de 1922.

Janela aberta

A multiplicidade, uma das seis propostas de Italo Calvino para o milênio, parece ter sido a grande marca da atividade literária de Lêdo Ivo, cujos “versos longos”, mais abundantes nos primeiros dez anos de escrita, continuariam ocorrentes, porém convivendo com formas curtas, medidas ou não, do sonetilho ao haicai, e até os aforismos espalhados em obras de enquadramento difícil (memorialismo? ensaísmo?), como O aluno relapso e Confissões de um poeta

É essa variedade formal que se vê em seu último volume de poesia, Mormaço, publicado originalmente na Espanha, aonde Lêdo Ivo ia com freqüência nos últimos anos, conhecendo ali uma recepção literária mais intensa e entusiasmada que no Brasil. Em solo espanhol o poeta partiu para o desconhecido, deixando inacabada a última viagem, o que talvez agradasse (ou agrade) à sua consciência, já que celebra a incompletude no primeiro poema de Mormaço:  

O dia inacabado 

Lêdo Ivo, by Robson Vilalba (Revista Ler e Cia.)
 
 
Como todos os homens, sou inacabado. 
Jamais termino de ser. 
Após a noite breve um longo amanhecer 
me detém no umbral do dia. 
Perco o que ganho no sonho e no desejo 
quando a mim mesmo me acrescento. 
Toda vez que me somo, subtraio-me, 
uma porção levada pelo vento. 
Incompleto no dia inacabado, 
livre de ser ainda como e quando, 
sigo a marcha das plantas e das estrelas. 
E o que me falta e sobra é o meu contentamento.


 
 
 
 
II. REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS


ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS: Discursos Acadêmicos, tomo VI (1981-1995), Rio de Janeiro, 2010, 951 p. 
 
BLOG ÚLTIMAS PALAVRAS: Mormaço: a última estação de Lêdo Ivo? 
 
LÊDO IVO. In: INSTITUTO MOREIRA SALLES. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2017. Disponível em: https://ims.com.br/2017/06/01/sobre-ledo-ivo/. Acesso em: 28/12/2021. 
 
___________ In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa2861/ledo-ivo. Acesso em: 28/12/2021. 
 
RASCUNHO: A morte solar de Lêdo Ivo  

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

ADEUS A FRANCISCO RODRIGUES DE OLIVEIRA (1932-2021)


Por Francisco José dos Santos Braga 
 
 
"O meu xará, historiador Francisco Oliveira, cognominado "Francisco Teoria", foi meu parceiro inconfundível desde o momento em que fui admitido como sócio correspondente da Academia Barbacenense de Letras em 2013, sob a presidência do Prof. Mário Celso Rios. Inesquecível foi ainda a participação dele nas várias edições de Encontros de Pesquisadores do Caminho Novo, proferindo palestras e divulgando estudos de elevada significação histórica. Impossível seria esquecer aqui de citar a sua coautoria do livro "Padre-Mestre Correia de Almeida" (2003), feito a quatro mãos e obra indispensável para constar de toda bibliografia respeitável sobre o Padre-Mestre. Numa grata oportunidade, tive a alegria de ter seu aplauso no Centro de Memória Belisário Pena, onde fiz uma palestra sobre a vida e obra de Lincoln de Souza. Ele teve o mérito de "garimpar" muitas informações sobre São João del-Rei na ACAHMPAS e, mais tarde quando se mudou para Belo Horizonte, no APM-Arquivo Público Mineiro, municiando-me dentro do melhor espírito de amigável cooperação por e-mail. Sempre teve o cuidado de atender-me com desprendimento, numa atitude típica de "homem de boa vontade". Fará falta a todos nós, seus amigos, confrades e familiares."

Reproduzo aqui a Nota de Pesar da ACAHMPAS, repassada gentilmente por Edna Resende:

 

NOTA DE PESAR DA ACAHMPAS


 

Nesta quarta-feira, dia 22 de dezembro de 2021, o Sr. Francisco Rodrigues de Oliveira nos deixou. Aos 89 anos. Sr. Francisco dedicou grande parte da sua vida ao estudo da história de Barbacena e região. Nascido em 1932, em Alfredo Vasconcelos, Sr. Francisco estudou Agronomia e foi professor de Matemática e apaixonado pela História. Do seu interesse pela área nasceram livros como “História da estrada de rodagem Barbacena-Ibertioga” (2002) e “Godofredo Rodrigues de Oliveira, seus ancestrais e sua vida” (2005). Sr. Francisco também participou da fundação da Associação Cultural do Arquivo Histórico Municipal Professor Altair Savassi (ACAHMPAS), em 2009. Ele foi presidente da ACAHMPAS entre 2009 e 2012. O Arquivo, a ACAHMPAS e toda a cidade de Barbacena perdem muito com a partida do Sr. Francisco. Que ele descanse em paz e que sua família e amigos encontrem conforto neste momento difícil. 

domingo, 19 de dezembro de 2021

Rute Pardini - ÁRIA DAS PALMEIRAS DA GRANDE ÓPERA O SERTÃO DE FERNAND JOUTEUX


Por Francisco José dos Santos Braga 
 
Convite para o Concerto da OSPM-Orquestra Sinfônica da Polícia Militar de Minas Gerais no Teatro Municipal de São João del-Rei em 03/12/2021, abrindo a "Semana da Cidade" que comemora seus 308 anos

 

Constou do referido Concerto Prelúdio e Ária das Palmeiras / (Ato I, Cena 1) da grande ópera O SERTÃO de Fernand Jouteux  / Participação especial: Duo Rute Pardini & Francisco Braga - soprano lírica Rute Pardini no papel de "Cília", interpretando Ária das Palmeiras, e pianista Francisco Braga ao piano, em substituição à harpa, instrumento para o qual o acompanhamento foi originalmente composto. 
Maestro: 1º Ten PM Marco Aurélio da Cruz Correa 
Mestre de Cerimônias: Sgto Samuel Eudóxio do 38º BPM sediado em São João del-Rei 
 
Com esse concerto em data cívica comemorativa, as instituições de cultura são-joanense acreditavam estar modestamente pagando um tributo a esse valoroso compositor francês, tendo aqui morado, ensinado e encantado em 1937 e onde fundou e dirigiu o Conservatório Sanjoanense de Música. 

Diante da excelente organização do evento, só me resta dizer: Parabéns a São João del-Rei e a suas autoridades pela inserção de parte da grande ópera O Sertão de Fernand Jouteux nesta data tão expressiva de nossa história!
 
Neste concerto, estava programada, como segundo número, a apresentação do Prelúdio e Ária das Palmeiras
 
No que se refere à Ária das Palmeiras sem interrupção e em sequência imediata ao Prelúdio, cabe dar algumas informações para ambientação à grande ópera O Sertão. Segundo o libreto original em francês, em tradução de Celso Brant, lê-se o seguinte:
 
ATO I 
 
O jardim da fazenda "Boa Viagem" 
A cena representa o Jardim da fazenda "Boa Viagem" de Dona Chiquinha, perto de Quixeramobim, no Estado do Ceará. Ao fundo, está o chalé, para cuja varanda vão dar as portas e as janelas dos apartamentos de Dona Chiquinha e de Cília, separados por toda a extensão do corredor. Palmeiras, bananeiras, laranjeiras, bambus, loureiros rosas, jasmins, orquídeas, trepadeiras. Cília está indolentemente reclinada numa rede presa a bambus. 
 
CENA I: ÁRIA DAS PALMEIRAS
 
CÍLIA (só)
 
(assentando-se na rede) 
Minh'alma está atacada de estranho sofrimento, 
Malgrado atrações que enfeitiçam meus olhos. 
 
(levanta-se) 
Terra formosa de céu azul, calmo ribeiro, fresca planície 
Jardim risonho, natureza amada 
Cumpre-me dizer hoje adeus! 
 
Palmeiras lindas e sombrosas, sois testemunhas da minha dor 
Vossas flexíveis folhas verdes se agitam menos que o meu coração. 
Ó céu! Dignai-vos ser-me propício, tende piedade de mim. 
Devo ou não fugir à malícia 
Que tece sua teia ao meu redor? 
 
Palmeiras lindas e sombrosas, sois testemunhas da minha dor 
Vossas flexíveis folhas verdes se agitam menos que o meu coração. 
 
Palmeiras lindas e sombrosas, ouvi minha voz dizer hoje ADEUS!!! 
 
O leitor do Blog de São João del-Rei pode ouvir a gravação para Prelúdio e Ária das Palmeiras de Fernand Jouteux na belíssima interpretação de Rute Pardini, clicando no link abaixo:  
 
Link: https://youtu.be/ddEnREiWArk  👈 

 
Rute Pardini canta "Ária das Palmeiras" da grande ópera O Sertão de Fernand Jouteux - Crédito pela foto: Antônio Élber




 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Crédito pela foto: Antônio Élber
 
 
Soprano Rute Pardini no papel de Cília - Crédito pela foto: Antônio Élber
 
Rute Pardini acompanhada pela OSPM - Crédito pela foto: Antônio Élber

 
Que tipo de premonições terríveis toma conta do espírito de Cília? Na conversa da Cena II, que vem em seguida à Ária das Palmeiras, ficamos sabendo, num diálogo entre Cília e Patrício, seu cunhado e irmão por parte de mãe (D. Chiquinha) de Antônio Conselheiro, que sua sogra a persegue e "sempre a considerou como uma vil estrangeira e jamais a perdoará por ser filha de seu intendente e ter entrado no seio do seu lar". Cília está inconsolável porque "daquele que adoro, querem-me, à força, apartar." Ou seja, D. Chiquinha não tolera o amor entre Cília e Antônio e está disposta a tudo para impedi-lo. 
 
 
 

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

O BAR DO CADETE DURO


Por AMARO Luiz ALVES *

Amaro Luiz Alves

Os bares e restaurantes de Barbacena no início da década de 1960 eram as opções disponíveis, nos sábados e domingos, para fugirmos um pouco do tempero do rancho da Escola Preparatória de Cadetes do Ar (EPCAR). 
Naquela época, a cidade contava com pequeno número de bares, restaurantes e lanchonetes, que ofereciam serviços para os variados níveis de renda da sociedade local. 
Na EPCAR estudavam alunos originários de famílias de todas as regiões do Brasil e, também, dos mais variados níveis de renda. Os menos abastados, obviamente, buscavam na cidade locais de alimentação compatíveis com as suas limitadas finanças. 
O "Bar do Cadete Duro" não tinha o glamour do Gino's, nem as iguarias do restaurante do Hotel Palace, nem os cardápios das boas lanchonetes da cidade. Era uma padaria simples, afastada do centro, na Rua Quinze de Novembro, no meio do percurso entre a EPCAR e a Praça dos Andradas. No jargão de caserna chamávamos esse local de “bar do cadete duro”. 
Seu "prato" mais solicitado, talvez por ser o único, era o pão com queijo minas ou mortadela, regado a guaraná ou café com leite, bem ajustado às finanças combalidas dos Alunos de origem mais humilde. 
Aos domingos, quando saíamos à cidade vestidos com o 5° uniforme completo, a liturgia da farda exigia que fôssemos discretos em nossos hábitos simples de menos afortunados. Por essa razão, esse bar mantinha um pequeno cômodo, chamado de "reservado", de modo que a simplória refeição ficasse ao resguardo dos olhares baldios dos passantes. 
Quando o dinheiro disponível estava muito mais escasso, havia outro recurso para não dormirmos com a “barriga roncando”. Era um pequeno bar, de meia porta, na descida da rua Artur Bernardes em direção à EPCAR, que servia um energético infalível: copo médio com leite quente adoçado com groselha. Era o “bar do cadete duríssimo”. 
Nesta jogada de rede no fundo do mar das lembranças, tento descrever e localizar o "bar do cadete duro" (em desafio de memória, auxiliado por testemunhas oculares da História) e, também, faço referência a outro, último recurso alimentar, quando retornávamos à EPCAR no fim da noite. Esse, que servia leite quente colorido com groselha, que passei a chamar de "bar do cadete duríssimo", localizado na Rua Artur Bernardes, à direita de quem desce no rumo da EPCAR, pertencia ao Mariano, portador de um clássico bigode à moda portuguesa. 
O "bar do cadete duro", que na realidade era uma padaria de propriedade da família Pardini, localizava-se na Rua Quinze de Novembro, onde hoje funciona uma loja de propriedade de comerciantes orientais, à direita de quem vai da EPCAR em direção à Praça dos Andradas (Praça dos Macacos). O recinto "reservado", onde se degustavam saborosos e baratos sanduiches, era um cômodo situado no mesmo nível da padaria. 
O Gino’s, pizzaria inaugurada em 1957, na galeria do Cine Apolo, funciona hoje na rua Primeiro de Maio, quase esquina com a Bias Fortes, em amplas instalações. 
O restaurante do Hotel Palace fechou junto com o hotel que, ainda hoje, exibe, saudosamente, as ruínas da fachada que viveu dias de pompa. Junto com o hotel e o restaurante, fecharam-se as cortinas do Cine Palace, palco de elegantes sessões dominicais. 
A Praça dos Andradas, apelidada de “Praça dos Macacos, em razão de ter árvores habitadas por macacos-prego, não abriga mais esses símios. Passaram-se seis décadas e muitos dos fregueses do pão com queijo e do pingado com groselha estão merecidamente aposentados, depois de galgarem altos postos nas Forças Armadas e Auxiliares, bem como nos altos escalões da vida civil nacional. 
Tenho certeza de que eles ficarão muito felizes por terem sido lembrados.
 
* Aluno-Veterano/EPCAR 60-24; hoje sanitarista aposentado, fotógrafo de Natureza.
 
 
(Texto escrito com o auxílio de muitas mãos, mentes e corações, em resposta a desafio de memória lançado na página Barbarascenas, do facebook, por Farah (Aluno-Veterano/EPCAR 61-337).  23/12/2020

domingo, 28 de novembro de 2021

CARLOS GOMES DO MUNDO, NHÔ TONICO DO BRASIL!


Por EDSON Carlo BRANDÃO Silva *
 
Acadêmico Edson Brandão proferindo palestra sobre a vida e obra de Carlos Gomes, em 20/11/2021, na Sala de Convenções do Hotel Master Plaza, onde se realizava a Assembleia Magna da ABROL-Academia Rotária de Letras-MG Leste, em Barbacena

No dia 9 de novembro de 1996, há exatos 25 anos, na capital dos Estados Unidos, o tenor espanhol Plácido Domingo fez sua estreia como diretor artístico da Ópera de Washington. 

Dias antes de seu debut consagrador, na condução de uma das mais prestigiadas casas musicais do mundo, Domingo havia interpretado trechos de "Carmen", de Georges Bizet, no emblemático Metropolitan, em Nova York. Mas seu coração e sua magnífica voz estavam reservados para um momento ainda maior... 

A obra que o grande tenor escolheu para marcar o início da empreitada como diretor artístico de um grandioso centro cultural poderia ser de qualquer um dos mestres europeus do gênero, mas para a surpresa geral a ópera "Il Guarany", do brasileiro Carlos Gomes, com o próprio tenor espanhol no papel do índio Peri e a direção do cineasta alemão Werner Herzog foi a escolhida. Sinal de que os planos de Plácido eram ambiciosos e um deles era, pela primeira vez no século passado, tirar do silêncio e do esquecimento a partitura original escrita por Gomes em 1870. 

Naquela temporada, a "Revista da Ópera de Washington", em texto, Mary Jane Phillips-Matz, diretora do Instituto Americano dos Estudos sobre Verdi, na Universidade de Nova York, chamava o compositor brasileiro de "gênio" e dizia que ele poderia ser considerado um legítimo herdeiro de Giuseppe Verdi, tido por muitos como o maior compositor de óperas de todos os tempos. 

Foi emblemático que em 1996, uma instituição cultural norte-americana e um grande intérprete europeu rendessem a um artista sul-americano uma justa homenagem no centenário de sua morte. Gênio, sucessor de Verdi, gravado por lendas como Caruso e Francesco Marconi, Antônio Carlos Gomes, fez e faz o mundo se render ante ao seu talento, mas tal como um triste registro destes tempos, segue relegado ao quase esquecimento, senão ao desconhecimento de boa parcela de seus compatriotas. 

Se de Antônio Carlos Gomes o mundo fala e o Brasil se cala, melhor então falar do Nhô Tonico, campineiro, filho do mulato Maneco Músico. O Tonico que saiu em lombo de burro do interior do estado de São Paulo, para tentar a vida na capital, a exemplo da maioria dos outros Tonicos brasileiros. 

O Tonico sonhador que, se dependesse de estado, escola e diploma estaria fadado ao fracasso ou ao destino singelo destinado aos despossuídos do poder econômico e do protagonismo social. 

Até hoje, quando os Tonicos pagadores de impostos que nada retornam para suas vidas operárias ligam o rádio e ouvem: “em Brasília são dezenove horas”, logo após, escutam os acordes de uma música que todos conhecem, mas quase ninguém sabe o nome... tampouco quem seria o autor. 

Muitos Tonicos e Tonicas das antigas já ouviram cantores populares como Agnaldo Timóteo ou Francisco Petrônio cantarem: “Tão longe, de mim distante, / onde irá, onde irá teu pensamento...” mas nem de longe sabem da história de amor do caipira campineiro e a jovem musa Ambrosina a quem a modinha foi dedicada... 

Ainda que não saibam nada sobre Tonico, ou o Maestro Carlos Gomes, quantos brasileiros e brasileiras não se encantariam com uma história de vida tão parecida como a da maioria dos mortais: nela cabendo os dramas da luta contra a pobreza, os descaminhos da vida, as linhas tênues que separam o triunfo da tragédia, as esperanças do desalento. A exaltação e o silêncio ! 

Por isso, esqueçamos Carlos Gomes, afinal, ele hoje pertence ao Scala de Milão, ao Metropolitan, de Nova York, ao Royal Opera House, de Londres, e coloquemos sentido na vida do Tonico de Campinas. Talvez ele, no seu trajeto humano, nos diga mais ao coração do que a triunfante mística de um grande gênio da música... 

Afinal, nós latinos temos predominante inclinação para o drama, a aventura, os crimes de sangue, preferimos plebeus a imperadores, louvamos a comoção pelos triunfos rocambolescos e os fracassos retumbantes. Gostamos de Escolas de Samba, de brilhos, lantejoulas e carros alegóricos. De enredos e alegorias, de novelas açucaradas, de apresentadores de auditório, de farsantes e ilusionistas, de amores desfeitos, do sofrimento agônico dos traídos e abandonados. Na verdade, sem saber, nós os brasileiros adoramos ÓPERA, mas pouco ou nada sabemos sobre Tonico, cuja sina é um libreto que a vida real escreveu... Tal qual um “dramma per musica”, a cortina se abre e soa a introdução de uma ópera em quatro atos: 
O ano é 1836. É mês de julho e faz frio em Campinas, no interior de São Paulo, nos cafundós do Brasil. No casarão da Rua da Matriz Nova, nasce o menino Antônio Carlos, filho legítimo de Manuel José Gomes com sua segunda mulher Fabiana Maria. 
 
Na família numerosa e ruidosa do menino tem de tudo: relojoeiros, agricultores, marceneiros, encadernadores, farmacêuticos, rabequistas, trombonistas, flautistas e até dois padres. Seus ancestrais, quatrocentões eram espanhóis, e assinavam Gomez. O bisavô, Dom Antônio Gomez, fora bandeirante e casara-se com a filha de um cacique. Provavelmente laçada na selva como é o clichê que explica a maioria das ligações carnais e parentais entre indígenas e colonizadores europeus dos sertões brasileiros. 
 
O pai do menino Tonico, Manuel, em seu registro de batismo, aparece como pardo, filho de Antônia Maria. Não consta o nome do avô paterno... A avó era agregada em um engenho na vila da Parnaíba. Em 1799, Manuel ainda criança, passa a aprender música com o padre José Pedroso de Morais Lara, mestre-de-capela daquela vila e proprietário de vastas extensões de terra. Além das primeiras letras, é com o Padre que Manuel aprende os rudimentos da música, arte que definiria o seu destino e o destino da maioria de seus filhos. Em especial do ainda inocente Toniquinho, que terá oito irmãos, sendo apenas um da mesma mãe. 
 
Quando se mudou para Campinas, em 1815, o tal Manuel virou “Maneco Músico”, apelido vindo do principal ofício. Se a música lhe não rendia tanto dinheiro, dava ao mulato talentoso algum destaque social, tanto que documentos da Câmara Municipal de Campinas registram seu nome entre outras 92 pessoas “gradas” signatárias de uma carta em apoio a Dom Pedro I e à Independência do Brasil. 
 
Maneco e Fabiana Maria, a segunda esposa, fazem certa fortuna e mais filhos. A família mantém uma casa comercial que no mesmo local abriga uma loja e oficina de instrumentos musicais e um cartório. A rotina da vida, os intensos compromissos do marido nas apresentações musicais e a prole crescente não permitem dizer se o casal era feliz ou não... 
 
 
 
Entre arvoredos e matagais do Jurumbeval, em Campinas, no dia 25 de julho de 1844, o corpo de Nhá Biana, cravejado de balas e punhaladas é encontrado mergulhado em sangue e mistério... A jovem mulher fora assassinada sem que ninguém apresentasse qualquer motivo aparente ou um suspeito digno de investigação. Maneco, o marido não estava em casa naquela noite... alegou que jogava cartas entre amigos. Tonico tinha apenas oito anos de idade e já exercia a humilde função de tocar “ferrinhos” (triângulo) na Orquestra e Banda Campineira junto com seu irmão Juca, então com 10 anos, mas já reconhecido como um exímio clarinetista. 
 
Tão pequeninos, os músicos órfãos de mãe, surpreenderam até o Imperador Pedro II em sua primeira visita a Campinas, quando a bandinha do Maneco se apresentou diante da família imperial. Esta não seria a única vez que Pedro II cruzaria a vida do Toniquinho... 
 
 
 
O mascate e joalheiro Henrique Levy ao aportar em terras campineiras e se aproximar da família Gomes, por afinidades musicais, logo percebeu que a jóia da família era o Tonico, já a esta altura, cansado de executar apenas música sacra em capelas e ofícios religiosos. Levy fala para o menino das grandes Casas de Ópera do mundo e os concertos que ocorrem na Corte. Chega a tentar levar o garoto para o Rio de Janeiro, mas é impedido pelo pai que não quer que seu elenco de músicos fique desfalcado. 
 
Mas é com o fiel irmão de sangue e artes, Juca Santana Gomes, que Tonico vai para São Paulo onde amadurece musicalmente. No entanto, a Corte é seu maior objetivo e valendo-se da distância, apesar do rígido controle do pai, foge em lombo de burro para Santos onde segue a bordo do vapor Piratininga navegando no sonho de se tornar um mestre da música. Ressoando o ambiente do Romantismo reinante, teria dito solenemente ao empreender a clandestina viagem: "Só voltarei coroado de glória ou voltarão apenas meus ossos!
 
Tonico chega ao Rio de Janeiro com os bolsos vazios e uma carta de recomendação que poderia ser um passaporte para o Paço de São Cristóvão e talvez o bondoso coração de D. Pedro II. 
 
Mas na rua da amargura, Tonico mora de favor na casa de uma família amiga e, enquanto não consegue as mercês do Imperador para ingressar no Conservatório Nacional, tenta reconstruir a amizade com o pai que se sentiu traído, depois da fuga para São Paulo sem falar com a família... 
 
Como todo dramalhão romântico, digno de uma ária cantada entre lágrimas e soluços, Tonico manda uma carta pedindo perdão ao pai que, comovido com a sinceridade do rapaz, não só o perdoa como passa a enviar uma ajuda financeira para o sustento do estudante nos tempos de Conservatório. 
 
Apresentado ao Imperador, por intermédio da Condessa do Barral, Tonico cai nas graças do monarca-mecenas e este o entrega a Francisco Manuel da Silva, diretor do Conservatório de Música da Corte. Ali, Joaquim Giannini, famoso musicista italiano, se encarrega de dar conhecimentos mais sólidos ao talentoso caipira paulista. No final do curso, como um batismo de fogo, uma peça do compositor iniciante é apresentada no Rio de Janeiro. 
 
Na data da estreia sonhada, como em mais um lance dramático, o jovem adoece com febre amarela. Incapaz de comparecer aos ensaios deixa a seu mestre o encargo da regência. 
 
Porém, na noite de sua inglória formatura, febril e tomado de vertigens, Tonico se arrasta do leito até o teatro, toma do professor a batuta e rege sua composição até desfalecer exausto diante de todos, mas triunfante. 
 
Depois dessa noite as cortinas nunca mais se fechariam para ele sem antes uma explosão de aplausos de bravos ecoar por toda parte! 
 
 
 
Poderia ter sido numa livraria do Rio de Janeiro, ou em divagações sobre seu país, ainda selvagem aos olhos do mundo exterior, mas foi na Piazza del Duomo, em Milão que Tonico ouviu gritar: 
- “Il Guarani! Il Guarani! Storia interessante dei selvaggi del Brasile!
 
Um menino pobre como ele fora tempos atrás, vendia na praça um livreto com a tradução italiana da obra de seu compatriota, José de Alencar, sobre o índio Guarani Peri e seu amor impossível por Cecília... Ali nascia o conceito da Ópera “O Guarani”, que seria a assinatura definitiva de Tonico na cena lírica internacional. 
 
A esta altura, depois de ser mandado à Europa às expensas do Império Brasileiro e logo conquistado o meio musical italiano com seu talento, o promissor artista brasileiro já se acostuma a ser o centro das atenções. Como um pop star contemporâneo era reconhecido nas ruas e seu visual era digno do que viria a ser a imagem de artistas como os Beatles e os hippies de Woodstock. Sua vasta cabeleira gerava suspiros femininos e reconhecimento imediato onde quer que fosse. 
 
Na Itália era chamado “cabeça de leão” ou o “selvagem”! 
 
Fazer ecoar sua música no Teatro Alla Scala de Milão exigiu mais do que qualidade musical. Com investimentos próprios e graças mais uma vez à mão aberta do Imperador e à eterna parceria do seu irmão Santana Gomes, a obra ressoou no templo da ópera, a princípio não lhe rendendo dinheiro, mas o prestígio que lhe conduziria às sendas do estrelato. 
 
Com “Salvador Rosa”, drama lírico em quatro atos e libreto de Antônio Ghislanzoni, baseado no romance de Massanielo de Mierecourt, o “selvagem” brasileiro amealha fortuna, supera o fracasso da ópera anterior, Fosca, e prova que veio para ficar na grande música de seu tempo. 
 
Festas, luxo e ostentação fazem Tonico erguer seu castelo de cartas napolitano em Lecco, nos Alpes. Na Itália também encontra o amor da pianista Adelina Conte Peri. Oito anos e cinco filhos depois, sendo dois perdidos em tenra idade, os ventos da vida e dos infortúnios começam a demolir seu castelo... A vida exorbitada em luxos esvazia-lhe os bolsos e o coração... A mansão alpina, a paixão por barcos, a morte de mais um filho, o vício no álcool e no ópio, a dissolução do casamento em tramas de ciúmes e suspeita de traições, culminam na tragédia de Maria Tudor, a sexta ópera, que mesmo baseada na grande obra de Victor Hugo, se torna um fracasso de público e crítica, refreando a ascendente carreira de Tonico na Itália. 
 
 
Incapaz de manter sua amada “Villa Brasilia”, sem a esposa e filhos, sem mais despertar tanto interesse das plateias italianas, Tonico retorna ao Brasil. Um Brasil diferente, sem a figura de seu amigo Imperador, um país agora republicano, militarizado e positivista. 
 
O vício do tabagismo consome a saúde e na ponta da piteira chamada “Virgínia” queima seus últimos anos de vitalidade. Um câncer na língua o impede até de falar. Ambicionando ser o diretor do Conservatório de Música, do agora Distrito Federal, vê suas esperanças diminuírem com a pouca atenção dispensada pelos novos governantes. 
 
Resta-lhe a oferta de Lauro Sodré, então governador do Pará, que a pretexto de organizar o Conservatório de Belém, garante ao velho Nhô Tonico um emprego digno. 
 
Pela derradeira vez, volta para a Itália, a fim de pôr em ordem suas coisas, despedir-se dos filhos e reunir elementos para uma obra grandiosa que, apesar de seu estado, sempre mais grave, ainda conseguiu realizar. Amigos sugerem uma temporada na estação termal de Salsomaggiore, mas ele segue para Lisboa, Portugal, onde a 8 de abril de 1895, sofre a primeira intervenção cirúrgica na língua, sem resultados. Embarca, no vapor Óbidos, para o Brasil. De passagem pela ilha do Funchal, reencontra seu amigo e antigo incentivador André Rebouças, um dos muitos exilados da monarquia extinta e símbolo de um tempo findo para ambos. 
 
Em Belém, tenta retomar a carreira, mas tomba pela doença agravada. Diante de seu estado, o governo de São Paulo autoriza uma pensão mensal de dois contos de réis enquanto viver. 
 
Por fim, despede-se da vida em 16 de setembro de 1896. 
 
Seus despojos voltam anos depois para a terra natal, Campinas onde é erguido um monumento funerário na Praça Antônio Pompeu. A pedra fundamental do mausoléu foi lançada em 1906, por outro brasileiro de fama internacional, Santos Dumont, dando-nos a dimensão da importância do artista na história brasileira e sua estatura mundial. 
 
Assim, o Nhô Tonico de Campinas, se tornou Antônio Carlos Gomes, cidadão do mundo e um dos artistas latinos mais respeitados no Ocidente. 
 
Mais do que sua verve artística, a coragem e disposição para a vida o fizeram grande, tanto que a Giuseppe Verdi é atribuído o maior e mais franco elogio para o brasileiro que encantou o mundo com sua música: 
Questo giovane comincia dove finisco io!
 
 

* Edson Brandão é historiador, membro da Academia Barbacenense de Letras, cadeira nº 32, Membro fundador da Academia Brasileira Rotária de Letras, MG-Leste, cadeira nº12, membro correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei. 

 

II. FONTES 

 

https://carlosgomes.campinas.sp.gov.br/historia/vida-de-carlos-gomes 

http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2016/09/120-anos-da-morte-de-carlos-gomes-sucesso-e-fracasso-na-opera-da-vida.html 

https://www.comciencia.br/maneco-musico-pai-e-mestre-de-carlos-gomes/ 

https://www.otempo.com.br/diversao/magazine/negro-artista-e-injusticado-1.1396446

Colaborador: EDSON Carlo BRANDÃO Silva


EDSON
Carlo BRANDÃO Silva nasceu em Barbacena (MG) no ano de 1967. É desenhista artístico, chargista, caricaturista, designer gráfico, pesquisador de história regional e gestor público. 
Cursou História na Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC, entre os anos 1998 e 2000 e Ciências Sociais pela Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG. 
A partir de 1985, começou a publicar seus trabalhos no jornal carioca O Pasquim.  
Venceu mais de dez edições do Concurso de Desenhos Pasquim/Malt 90 de humor gráfico. Participou e foi premiado em diversos salões de humor no Brasil e exterior: Salão de Humor de Volta Redonda (RJ), Piracicaba (SP), Salvador (BA), Teresina (PI), Gabrovo (Bulgária) e Ancona (Itália). 
Em 1986, foi contratado como chargista, ilustrador e redator do Jornal Cidade de Barbacena, um dos mais antigos jornais mineiros (circulou de 1898 a 1993). Atuou como programador visual de vários espetáculos do renomado grupo teatral Ponto de Partida. 
Fez os projetos do Museu da Loucura (incluindo a revitalização em 2016), Museu Municipal e Casa de Emeric Marcier, todos em Barbacena. 
Foi diretor executivo e posteriormente presidente da Fundação Municipal de Cultura de Barbacena, entre 1993 e 2001. 
Em 2002, foi Secretário Municipal de Comunicação de Barbacena; no mesmo ano foi condecorado com a Medalha Santos Dumont, Grau Prata, pelo Governo do Estado de Minas Gerais por sua relevante contribuição para a cultura de seu estado natal. 
Em 2019, foi agraciado com a ordem do Nascente do Poder Aéreo, Grau Membro Honorário, concedida pela Escola Preparatória de Cadetes do Ar, EPCAR, de Barbacena. Entre 2013 e 2015 foi respectivamente, vice-presidente adjunto, presidente e diretor de cultura e turismo da AGIR-Agência Municipal de Desenvolvimento de Barbacena e Região. 
Produziu a edição do livro Ernst Hasenclever e sua viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, em parceria com a historiadora Débora Bendocchi Alves, pela Fundação João Pinheiro. 
Em 2016, foi o curador da exposição "Marcier - 100", mostra comemorativa do centenário do pintor romeno, Emeric Marcier (1916-1990), no Palácio das Artes, Belo Horizonte, com produção da Fundação Clóvis Salgado e Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais. 
Em 2020, lançou o livro Cores de Barbacena, juntamente com Doorgal Borges de Andrada e Waldir Damasceno, pela Editora C/Arte. 
É membro da Academia Barbacenense de Letras, cadeira 32, membro correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei. Membro do Rotary Club Barbacena, desde 2012, é Companheiro Paul Harris do ano rotário 2015-2016.

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

AS AVENTURAS DE UM BRASILEIRO NASCIDO NA NORUEGA


Por Per Christian Braathen 
 
"O presente livro é de natureza completamente diferente. É uma espécie de autobiografia. Faz muitos anos que estou planejando escrever este livro. É que minha história de vida é verdadeiramente extraordinária. Ao invés de titulado como "as aventuras  de um brasileiro nascido na Noruega", poderia também se chamar: COMO VENCER NA VIDA FAZENDO FORÇA"

 
“No dia 9 de abril de 1940 os alemães invadiram a Noruega e a Dinamarca. A Dinamarca caiu em um único dia, com pouca resistência. Isto porque a Dinamarca é um país pequeno e plano, e impossível de defender diante de uma força militar esmagadoramente superior. 
A Noruega, por outro lado, é um país montanhoso, e lá os alemães tiveram muito mais trabalho, para finalmente subjugar o país. 
Levou vários meses. 
Meu pai, Sverre, era um dos soldados que participou da batalha da Noruega. 
Um detalhe importante e interessante: Meu pai era um soldado veterano, pois fora voluntário na Finlândia, na guerra daquele país contra a então União Soviética, assim como muitos outros noruegueses, dinamarqueses e suecos, que achavam uma grande covardia um país enorme, como a União Soviética, atacar um país pequeno como a Finlândia. 
E olha que deu empate nas duas tentativas da União Soviética tomar a Finlândia. 
De, Oslo, no extremo sul do país, as forças norueguesas foram recuando para o norte, resistindo como podiam, contra as forças alemãs. 
Um detalhe interessante, e que teve profundas implicações na vida do meu pai no Brasil, como veremos mais adiante: Meu pai tinha um treinamento de enfermeiro militar ou seja, era um tipo de paramédico. 
Perto da cidade do Bodø, meu pai foi ferido por estilhaços de granadas. 
 
Mapa da Noruega
 
Foi internado no hospital municipal da cidade, onde minha mãe trabalhava como secretária. Apesar de o hospital ter no teto uma cruz vermelha, indicando que o prédio era um hospital, os aviões alemães bombardearam o hospital. 
O hospital foi sendo destruído, entrando em rápido colapso. As pessoas médicos, enfermeiras, funcionários em geral, e pacientes, foram abandonando o hospital em chamas, aos trancos e barrancos, num clima de salve-se quem puder. 
Meu pai, saindo da enfermaria, encontrou minha mãe, Else, tentando escapar pela escada, a agarrou e carregou-a escadaria abaixo até a saída do prédio, sãos e salvos. 
Uma semana depois estavam casados. 
As coisas acontecem rapidamente na guerra. 
Em 11 de março de 1941, eu nasci. Fruto da guerra. Não tenho motivo, portanto, de ter raiva dos invasores do meu país de origem. Na verdade, talvez eu até deva agradecer a Hitler por eu existir. Após a capitulação da Noruega, a mesma passou a ser um dos países ocupados pelo III Reich. 
Um detalhe interessante: O rei da Noruega, rei Haakon VII, e sua família, conseguiram escapar para a Inglaterra, levando consigo o tesouro nacional (principalmente ouro), onde estabeleceram um governo norueguês provisório. Vários campos de treinamento militar foram criados na Inglaterra e na Escócia, para treinamento militar de noruegueses que conseguiram escapar da Noruega, formando companhias e batalhões de soldados e oficiais noruegueses, que lutaram ao lado das forças aliadas. Além disto, a grande frota comercial de navios noruegueses teve importante papel no transporte marítimo, em grandes comboios, entre os Estados Unidos e a Inglaterra, e entre a Rússia e a Inglaterra. Muitos navios noruegueses foram torpedeados por submarinos alemães com enorme perda de vidas. 
Meus pais me contavam histórias interessantes que vivemos nos primeiros anos da ocupação pelos alemães. Segundo me contaram, eu costumava fugir de casa para visitar os soldados alemães em suas casernas, perto do lugar onde vivíamos, e frequentemente trazia presentes na forma de alimentos, como pão, por exemplo, e meus pais, que bem que precisavam, jogavam no lixo, pois não queriam nenhum favor do inimigo, e falavam para não socializar com os inimigos. Eu tinha 2 a 3 anos de idade. 
Meu pai fazia parte das forças de resistências dos patriotas noruegueses, que infernizavam a vida das forças de ocupação, principalmente por ações de sabotagem. Muitos destes guerrilheiros foram presos e fuzilados. (Tem um filme norueguês que conta parte desta história Max Manus, disponível inclusive na Netflix.) 
Em 1944 meu pai estava na iminência de ser descoberto pela polícia política dos alemães a famigerada Gestapo e a família teve que fugir para a Suécia, que era neutra. Meus pais, eu e meu irmãozinho Jan, com um ano, ou pouco mais, de idade. 
Meus pais me contavam como fora a fuga. Ao nos aproximarmos da fronteira, os alemães quase nos alcançaram e eu me lembro (ou talvez me lembre apenas do que meus pais me contavam), do barulho de tiros e de nossa desesperada corrida para dentro da Suécia. 
Na Suécia nasceu meu irmão caçula, Ola. 
Em 1946 voltamos para a Noruega, e fomos morar na cidade de Trondheim, a terceira maior cidade da Noruega. O que, diga-se de passagem, não quer dizer muita coisa. Tinha na época por volta de 100.000 habitantes e mesmo hoje não é muito maior do que isto. 
Em Trondheim tive uma infância muito feliz. Eu e meus irmãos, Jan e Ela, brincávamos na rua com os nossos amigos todos os dias. 
Íamos passear na floresta vizinha, catando frutas silvestres, tais como o mirtilo, e nas praias, para nadar (verdade!!), no verão, e esquiar nos morros e patinar nos lagos congelados, no inverno. 
Eu com 9-10 anos de idade descia morros abaixo, de esqui, a altas velocidades. Dizem, de brincadeira, que os noruegueses nascem com esquis nas pernas. 
Outra coisa que a gente gostava muito de fazer no inverno: construir casas de gelo. Iglus. Minha mãe, Else, era uma exímia nadadora e me ensinou a nadar quando eu tinha algo como 6-7 anos de idade. Perto da cidade tinha duas praias muito boas e a água, por incrível que pareça, ficava bem quente no verão. Algo como 20 graus centígrados, ou até um pouco mais. 
É importante salientar que o clima na Noruega é bem mais ameno do que faz crer a sua posição geográfica. Isto é devido ao fato de que na costa da Noruega passa a corrente do golfo do México. 
No verão a gente gostava também de construir tendas de índios, e brincar de índios e mocinhos na floresta. 
Perto de uma das praias tinha um aeroporto construído pelos alemães. E bem perto de casa tinha um cemitério de aviões. Muitos, mas muitos, aviões, que tinham sido abatidos em combates aéreos durante a guerra. 
Destas carcaças, a gente retirava mangueiras, pedaços de alumínio, e outros materiais, para usarmos em nossas brincadeiras. 
Tudo isto está bem claro na minha já desgastada lembrança. 
Também lembro que desde cedo eu virei um devorador de livros, sem dúvida influenciado por meus pais, também ávidos leitores, embora tanto meu pai quanto minha mãe tivessem apenas o ensino médio. Mas a nossa casa tinha estantes cheias de livros. 
Com 9-10 anos de idade eu vivia na biblioteca municipal, lendo livros de adultos, tais como biografias dos exploradores árticos, e heróis noruegueses, Fridjof Nansen e Roald Amundsen (o primeiro a chegar ao polo sul em 1912). 
O hábito da leitura nunca me abandonou, havendo ocasiões em que me encontro lendo três livros ao mesmo tempo, um em português, outro em norueguês e outro em inglês. Entrei na escola primária aos sete anos. Idade normal na Noruega naquela época. Não existiam ainda pré-escolas. 
Estudei na "Trondheim Folkeskole" (escola pública de Trondheim). Lembro que, entre outras matérias, tínhamos aulas práticas de marcenaria. 
O povo norueguês é muito patriótico. A comemoração do dia nacional 17 de maio, dia da consolidação da constituição do país, é uma grande festa cívica, quando as crianças das escolas continuem importante componente dos desfiles nas ruas das cidades, todos portando bandeiras do país. 
Em Trondheim meu pai trabalhava numa oficina de carros, e completava a sua renda comprando e vendendo carros usados. A gente sempre tinha um carro diferente, entre uma venda e outra. (...) 
 
Além de trabalhar com compra e venda de automóveis, e numa oficina, meu pai era certificado como perito de tráfego, chamado sempre que acontecia um acidente de trânsito. (...) 
 
Outra lembrança marcante da minha infância na Noruega era o racionamento de alimentos que existia nos anos pós-guerra. Uma das consequências disto era que apenas na época das festas natalinas, devido a problemas de balança comercial, é que os noruegueses podiam comprar laranjas e bananas, importados, principalmente, da Espanha. 
A chegada destas iguarias era aguardada com muita ansiedade. 
Em 1953 meu pai resolveu emigrar para o Brasil. Nunca soube por que motivo. É difícil imaginar um, tendo em vista que apesar dos problemas criados pela guerra, e pela ocupação nazista, não havia grandes problemas sociais e econômicos na Noruega, mesmo tendo passado por uma ocupação desgastante. 
Só sei de uma coisa: Foi a maior besteira que meu pai fez na vida. Muito pouco deu certo para ele no Brasil, fato que afetou toda nossa família profunda e dramaticamente, como veremos adiante. 
Meu pai viajou antes do resto da família para acertar emprego e residência. Foi num navio norueguês. Minha mãe, eu e meus dois irmãos viajamos alguns meses depois. (...) 
 
Inicialmente fomos morar de favor na casa do patrão do meu pai, Didrik Sonstervold, um compatriota, no edifício Moema em Niterói. 
A família toda dois adultos e três crianças num só quarto. 
A firma onde meu pai trabalhava chamava-se Fornecedora a Navios Dick, W. Dyb, uma firma norueguesa, que fornecia tudo para navios. Alimentos, ferramentas e outros utensílios. 
A firma trabalhava quase que exclusivamente com navios noruegueses. Na época, a Noruega, apesar de ter apenas 3 milhões e pouco de habitantes (na época, hoje um pouco mais) tinha a terceira maior frota comercial do mundo e entrava no porto do Rio de Janeiro uma média de um navio norueguês por dia.”
(Capítulo 2: Da Noruega para o Brasil - Algumas lembranças

Fonte: BRAATHEN, Per Christian: As Aventuras de um Brasileiro nascido na Noruega, 2017, edição do autor, pp. 19-30

 

Colaborador: PER CHRISTIAN BRAATHEN

“Meu nome é Per Christian Braathen, e nasci na Noruega, no dia 11 de março de 1941. 
Minha família se mudou para o Brasil em 1953, quando eu tinha 12 anos de idade. 
Meu pai Sverre Olavus Braathen, minha mãe Else Braathen (née Else Wagaaness), eu e meus dois irmãos Jan Sverre (irmão do meio) e Ola, o caçula. 
Fomos morar em Niterói, na época capital do Estado do Rio de Janeiro, pois a cidade do Rio de Janeiro era ainda a capital da nação. 
Embora seja apenas um detalhe burocrático, me naturalizei brasileiro apenas em 1982. Apenas um detalhe, pois já me considerava brasileiro, fazia muito tempo. 
Muitos de meus amigos me dizem que sou mais brasileiro que muitos brasileiros natos. Tem certo sentido. Cada vez que ouço (e canto) o hino nacional me vêm lágrimas aos olhos, e os pelos se arrepiam nos meus braços. 
Amo o meu país: Brasil. 
Minha esposa Hermínia (Honey) briga comigo quando num jogo de futebol da Noruega contra o Brasil (raro, mas já aconteceu), eu torço pelo Brasil. Ela acha que, pelo fato de ter nascido na Noruega, eu tinha que torcer por meu país de origem. 
Não, digo eu, sou brasileiro. Torço pelo Brasil. 
Vou mais longe: Qualquer clube de futebol brasileiro jogando contra qualquer time estrangeiro, eu torço pelo clube brasileiro. Seja Flamengo, Corinthians, Cruzeiro, Atlético Mineiro. Qualquer um. 
Tenho muito amigos, cruzeirenses, por exemplo, que jamais torceriam pelo Atlético Mineiro, contra, por exemplo, o Barcelona, num campeonato mundial de clubes. 
Eu sempre falo: Aquele time que está lá em Tóquio representa o Brasil. Qualquer um. 
Tenho até colegas, e amigos, que torcem até contra a seleção brasileira. Para mim isto é inacreditável. É inaceitável. 
Mas, dito isto, eu aqui manifesto o meu protesto:
 
QUERO MEU PAÍS DE VOLTA!!! 
 
Infelizmente, hoje em dia, o nosso país está na mão de bandidos. Dos pequenos aos grandes. 
Balas perdidas morte de inocentes. 
Caixas eletrônicas explodidas com dinamite. 
Bandidos armados com armas de guerra. 
Cargas roubadas com violência e sequestros de motoristas. 
Carros fortes assaltados com armas pesadas de guerra e destruídos com dinamite. 
Pessoas assassinadas, como se a vida não valesse nada. Balas perdidas mortes de inocentes, frequentemente crianças. (...) 
 
Quando escrevo que eu quero meu país de volta, quero dizer com isto que já foi melhor do que hoje? Em termos de criminalidade, sim. Hoje o país é muito mais violento do que, digamos, nas décadas de 50, 60 e 70 do século passado. 
No início dos anos 60 eu morava, por um curto período de tempo, no escritório dos empresários portugueses Eduardo e Adriano, na Lapa, que tinham uma empresa de lavanderia para navios. Também dormia lá um funcionário deles, (esqueço o nome), que era o que tinha a chave. Para entrar, eu tocava a campainha e ele me deixava entrar. 
Mas, às vezes, ele ia para a farra e eu ficava na rua. Eu ia então dormir num banco de praça na Cinelândia. Nunca fui incomodado. 
Tinha bandidos no Rio de Janeiro naquela época? Sem dúvida, mas numa proporção muito menor. Traficantes com armas de guerra e mortes de inocentes por balas perdidas, guerra entre gangues e guerra entre traficantes e polícia, nunca se ouvira falar. 
Um dos motivos, obviamente, era que tinha muito menos comércio e uso de drogas pesadas, como cocaína e crack, que aumentou enormemente nas últimas décadas. 
A violência no Rio de Janeiro, e no país como um todo, cresceu exponencialmente, e hoje está intolerável e, claramente, o poder público não está fazendo uma de suas obrigações constitucionais, que é o de garantir segurança para a sua população. Além de saúde e educação de qualidade. (...)”
 
Quanto ao outro título possível para seu livro, "Como vencer na vida fazendo força", comentou: 
“Ao pensar sobre até onde consegui chegar, em condições muito adversas, às vezes tenho vontade de beliscar o meu braço, para ter certeza de que estou acordado. 
Para dar ao leitor uma ideia preliminar: 
Quando eu casei, aos 22 anos, com minha esposa Hermínia (Honey), minha fiel parceira e escudeira, com quem estou casado faz 55 anos (em 2017), e que sempre me apoiou em tudo, eu tinha uma escolaridade formal equivalente ao que seria, no sistema atual, a 6ª série do ensino fundamental. 
Isto porque, aos 15-16 anos de idade (já muito atrasado nos estudos devido à transferência da Noruega para o Brasil) tive que abandonar a escola e começar a trabalhar. 
Casado, perguntei a mim mesmo que futuro eu teria para oferecer a mim mesmo, minha esposa e filhos (que viriam rapidamente, num total de cinco), a resposta me fez engrenar numa sequência muito intensa de estudos, iniciando com exame supletivo do ensino médio, que completei em 1965, com 24 anos de idade. Logo a seguir, no final do mesmo ano, fiz vestibular para o curso de bacharelado e licenciatura em Química na Universidade do Estado da Guanabara (UEG), hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), entre os anos de 1966 e 1969. Quatro anos depois, mestrado (1973-1976) na Pontifícia Católica do Rio de Janeiro (PUC/TJ), e seis anos depois doutorado (1983-1987), na Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, história esta que será contada nos próximos capítulos. (...) 
 
Desde 1978 moramos em Viçosa (exceto entre 1983 e meados de 1987, quando moramos nos Estados Unidos, onde fiz meu doutorado). 
Por 25 anos fui professor do Departamento de Química da Universidade Federal de Viçosa-UFV, até me aposentar em 2003. 
Mas não parei de trabalhar. Atualmente sou Diretor Acadêmico da União de Ensino Superior de Viçosa UNIVIÇOSA, a maior faculdade particular da região, hoje com aproximadamente 5.000 alunos.
Costumo falar que tenho muito orgulho de ter trabalhado na Universidade Federal de Viçosa, do mesmo modo que tenho muito orgulho de trabalhar na UNIVIÇOSA. Ambas são instituições de excelência. 
Apesar da situação difícil em que se encontra nosso país (espero momentaneamente), afetando principalmente meus filhos, levamos uma vida muito boa aqui em Viçosa, cidade que costumo falar brincando (mas nem tanto) ser o lugar mais próximo do paraíso que existe.”
(Capítulo 1: Um Brasileiro nascido na Noruega

Fonte: BRAATHEN, Per Christian: As Aventuras de um Brasileiro nascido na Noruega, 2017, edição do autor, pp. 11-18

 

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

NA LUZ DO SER: INVESTIGAÇÕES DE ONTOANTROPOLOGIA, POR JOSÉ CIMINO


Por José Cimino 
 
A proposta deste livro é colocar o leitor em contato com uma visão de mundo e de homem assentada sobre fundamentos que a razão postula. Nele, o cosmos e o homem são pensados à luz do ser.

 

Abaixo é apresentada uma síntese das principais teses do livro supracitado através dos seguintes itens: 

1º) A questão do ser e do ente

Na obra, o ser é entendido como sendo o pensamento divino, infinito e infinitamente eficaz, objetivado. É o Absoluto fora de si mesmo. Por isso, um infinito. Não infinito actu, mas um infinito de possibilidades, que se irrompe e se manifesta de infinitos modos. Nessa visão, o ser é causa sui (causa do seu próprio agir). Um agir espontâneo e autocriativo. Ente é o ser revelado na face das coisas. O ser, tal qual é concebido nesta obra, fundamenta todos os problemas nela abordados. Num clima niilista que contamina todo o acontecer histórico da vida contemporânea, é preciso ousar uma ontologia forte, isto é, com fundamento no real. Esse fundamento é o ser. Não um ser abstrato, mas objetivo, que rege o mundo por dentro e que não é uma coisa: o PENSAMENTO DIVINO OBJETIVADO

2º) Concepção de Deus

Deus é concebido como Princípio in-principiado, ser de natureza infinitamente pensante. No pensar, objetiva o próprio pensado. Na obra, faz-se distinção entre ser e Ser. Ser, maiúscula, refere-se a Deus. À luz da ciência contemporânea, sobretudo, da física quântica, passam-se em revista crítica as cinco vias da prova da existência de Deus de Tomás de Aquino, de Leibniz e a prova moral de Kant. 

3º) Conceito de criação

Defende-se a tese de que o universo não pode ter tido um instante zero ou um começo físico e que a criação não pode ser ex nihilo (do nada). A tese desenvolvida a respeito da criação é coerente com a concepção de ser. Faz-se distinção entre começo físico e começo metafisico. Na obra, isso significa: O trânsito do pensamento criador divino para sua objetivação é imediato, simultâneo. Deus é o PRIUS. A objetivação do pensamento criador é o ANTES DE TUDO. Por ser imediato o trânsito do pensamento divino para a sua conseqüente objetivação, diz-se que o criado ou o universo teve um começo metafísico ou não físico. 

4º) Superação das dicotomias: vida-matéria e corpo-espírito

O autor defende o ponto de vista de que a vida não pode advir da não-vida e de que o pensamento não pode advir do não-pensamento. Algo pensantee que não é uma coisarege o mundo por dentro. Há, no cosmos, uma continuidade ôntica, sem saltos. Esse algo, que não é uma coisa, é o ser. O ser humano é entendido como um ser cósmico e uma uni-totalidade-corpo espírito. Por ser também espírito e, por isso, dotado de consciência, enquanto espírito está destinado a sempre existir, a saber: destinado a uma vida eviterna ou para sempre. 

5º) Espaço e tempo

O autor não entende o espaço como sendo um ente. Quanto ao tempo, contrapõe a eternidade à temporaneidade. Distingue o tempo humano, resultante da visão que se tem do devir cósmico e o tempo objetivo, que é o devir criativo do ser, em que não há um antes, por ser fruto da espontaneidade criativa do ser. Nesse particular, seguem-se as pegadas de Schelling. O devir cósmico é a autorrevelação do ser. A ideia daquilo que é o tempo brota do interior da concepção do ser. Na visão do autor, tempo e espaço não são coisas, não são entes. 

6°) Repensando as leis do ser

Coerentemente com a visão metafísica da obra, o autor passa em revista as leis do ser, dando-lhes formulação de acordo com a visão ontológica proposta. À luz do ser, tenta-se refundar a ontologia, restituindo-lhe o fundamento do ser, agora entendido como PENSAMENTO DIVINO OBJETIVADO

7º) Conhecimento sensitivo e intelectivo 

As reflexões em torno de tão complexo problema partem do conhecimento sensitivo. Apresenta-se este, não como simples espelhamento, mas como uma visão exclusivamente humana da realidade. Pergunta-se: em que consiste a verdade do conhecimento sensitivo

A obra anda à procura do radical fundamento do conhecimento. Se o homem, enquanto inteligência não estivesse transcendentemente aberto para o ser, e o ser, enquanto cognoscível, não estivesse aberto para a inteligência, o conhecimento seria impossível. Indaga-se: qual o fundamento dessa recíproca abertura? Por que o ser é cognoscível? Nesta obra, à luz da filosofia do ser, propõe-se não um retorno ao nõus poietikós e ao nõus pathetikós de Aristóteles ou ao intelecto agente e paciente de Tomás de Aquino, nem tão pouco se adota cegamente a postura kantiana das formas a priori. Neste trabalho, apresenta-se a teoria do salto transcendental, isto é, procura-se responder à radical questão: por que, ao se ver esta árvore, de pronto se faz o salto para árvore? Trata-se de problema central da gnosiologia, que só pode encontrar solução a partir do interior da questão do ser

8°) A questão da liberdade 

No capítulo que aborda a questão da liberdade, o autor alarga o horizonte de suas reflexões, demonstrando que no universo tudo depende de tudo ao mesmo tempo em que cada categoria de entes é independente (ou livre) em relação àquelas que lhe são superiores. Ora, se as categorias de entes ao mesmo tempo em que dependem, também independem, significa que em todas elas, obviamente em graus diferentes, há um espaço de agir livre. O autor mergulha no problema, mostrando em que isso consiste. Em que sentido, no cosmos, uma categoria de entes é autárquica (independente) sem nunca ser autárcica (autossuficiente). 

No plano humano, a liberdade é entendida como espontaneidade, no sentido de que o ato livre é causa de si mesmo. Assim como o conhecimento, a questão da liberdade está imbricado no problema do ser. O agir dessa espontaneidade resulta da relação dialética entre a superdeterminação da vontade humana para o BEM e sua relação de indeterminação perante os bens particulares, em sua vida concreta e histórica. A escolha entre isso ou aquilo resulta de um juízo de valor que o sujeito faz. Feita a escolha, ele se autodetermina. Liberdade é relação de indeterminação perante os bens particulares. 

9°) Ética e metafísica 

Por ser o homem consciente e livre, a ele pertence o ordenamento do próprio agir. É um ordenamento moral, porque livre. O ser humano é aquele que, onticamente, está vocacionado para a vida moral. Vocação moral significa: renúncia consciente a uma vida não ética. Vida não ética é a própria negação do ser, que é ordem que ordena. E não se trata de ordem abstrata, mas real e operante: ordo ordinans. No presente trabalho, a questão ética é abordada no horizonte da concepção do ser nele acolhida. 

O agir humano, nas suas relações interpessoais, é a face visível da sua moralidade interior. A dimensão moral e ética de alguém vige no seu interior, mas se torna patente aos olhos de todos através da ação. A ação moral e ética é a exterioridade da moral de foro íntimo e do espírito ético do ser humano.“O homem é aquele que tem um éthos” (Heidegger). Éthos é o como do agir humano. O como do agir é o espaço de sua liberdade. Esse éthos pode ser ou conforme a ordem que ordena ou disforme com ela, instalando, nas relações interpessoais, a desordem que desordena

10°) Dimensão escatológica do ser humano 

No último capítulo desta obra, desenvolvem-se reflexões sobre a morte, agora entendida como o instante em que se dá o sobrenascimento do homem para outra dimensão fora do espaço e do tempo. O verbo sobrenascer é importado de Guimarães Rosa (1908-1967). “O senhor sobrenasceu lá?” Inspirando-se em Guimarães Rosa, a forma verbal sobrenascer é assumida para designar a passagem de um modo de ser para outro, sobre aquilo que se era e se quis ser. No final de sua vida terrena, o homem sobrenasce sobre aquilo que ele foi e quis ser para outro modo de existência. Sobrenascer, portanto, opõe-se à ideia de que o ser humano possa se anular, como pessoa, no instante do seu passamento. Propõe-se, aí, uma teoria da ressurreição à luz da razão.

 
  

II. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

 

CIMINO, José: NA LUZ DO SER: Investigações de ontoantropologia, Ubá: Gráfica Multimpresso, 2021, 576 p.