quinta-feira, 25 de abril de 2024

25 de Abril para continuar


Editorial do PÚBLICO por David Pontes
 
Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO, edição da quinta-feira, de 25/04/2024, na coluna Editorial, p. 4.

 

25 de ABRIL-50 ANOS-O caminho da liberdade

 

Capitão do Exército Português que liderou as forças revolucionárias durante a Revolução de 25 de Abril de 1974 ou Revolução dos Cravos, que marcou o final da ditadura em Portugal. Fotografado no Largo do Carmo (Lisboa).

Propaganda da Revolução dos Cravos


Este deveria ser um editorial muito fácil de escrever: 50 anos do 25 de Abril. Evocar aqueles rostos jovens dos capitães que não queriam ir à guerra e foram pelas cidades dizer que era precisa acabar “com o estado a que chegámos”. Soldados pela esperança, a descobrirem que havia um povo farto de esperar, cansado de calar. Juntos na rua terminaram com o silêncio, cantaram canções novas, descobriram como chamar sua a liberdade. 

Quantos povos poderão celebrar a data fundacional da sua democracia com uma revolução feita quase sem sangue, de cravo na ponta da arma, nenhuma vontade de vingança e com o fim de uma guerra que fez brotar múltiplos novos países? Como não nos emocionarmos com o momento em que metade de nós, as mulheres, pela primeira vez na centenária história do país, pôde sonhar em ter os mesmos direitos da outra metade? Abraçar quem estava proibido de voltar a casa, abraçar o mundo, poder ler, ver, sorrir, falar sem ter de olhar por cima do ombro. 

Tantas coisas num só dia há 50 anos, que podia ser só mesmo agradecer, com um obrigado imenso, a quem nos libertou e a todos os que antes deles sofreram por sonhar, pagaram por ousar, morreram a tentar mudar. Muito, muito obrigado e editorial acabado. 

Só que são mesmo 50 anos e isso é muito, mesmo para um país de tempo longo como o nosso, e por essa razão o agradecimento não pode acabar logo ali, nesse “dia inicial inteiro e limpo”. Porque em 25 de Abril de 1974 não tínhamos só 2162 funcionários de polícia política e 20 mil informadores, tínhamos também uma guerra longínqua a devorar a juventude. Porque nos envergonhávamos com uma taxa de mortalidade infantil das mais elevadas da Europa, com quase um quinto da população analfabeta e em que só 4,2% frequentavam o ensino superior. Vivíamos em casas em que menos de metade tinha água canalizada e só 60% ligação à rede de esgotos. Éramos pobres, sujos e mal-educados e continuávamos com rota traçada para continuar pobres, ainda focados em industrializar o país, quando pelo continente já se falava em desindustrializar. 

É certo que em muitos parâmetros ainda somos pobres, mas a abertura política e a abertura à Europa, que o 25 de Abril possibilitou, fizeram com que nos tornássemos um país tão bom para viver que até quem nasce em sítios bem mais ricos por aqui quer ficar. Sim, claro que é porque somos baratos, mas também porque nestes 50 anos conquistámos tanta coisa, na saúde, na educação, no apoio social, na cultura, nas infra-estruturas, que até nos damos ao luxo de achar que não é nada, que tudo está num caos e pouco se aproveita. Um engano imenso que um editorial pode facilmente rebater com os números que não enganam, mesmo que haja quem não os queira ler. Um editorial de conforto, por termos chegado até este lugar, a partir do qual ainda falta muito, mas de onde é possível ver o tanto que já se conseguiu. 

Mas este não está talhado para ser um editorial fácil. Porque como nunca nestes 50 anos de crescimento este corpo esteve tão ameaçado. Há um cancro a minar-lhe as entranhas, capaz de dizer com desfaçatez que “no tempo da outra senhora é que era bom”, cuspindo na razão e na cara de todos os que lutaram e trabalharam para chegar até aqui. Capaz de afirmar, sentado na vice-presidência da Assembleia da República, que “a liberdade não existe de facto, existem narrativas, continua a existir censura (...), continua a existir um Estado ocupado, não vivemos em liberdade e é isso que temos de reconquistar, essa liberdade autêntica que não nos chegou com o 25 de Abril”. 

“Reconquistar”? O que precisamos de reconquistar é algum sentido de decência e de vergonha que faça regressar a mentira ao buraco obscuro de onde nunca devia ter saído. Enquanto não o fizermos, a democracia a que nos conduziu o 25 de Abril está sob ameaça, não só pelas ideias que defendem os que a atacam, mas pelas ferramentas que usam para o fazer. Não é possível construir uma sociedade democrática e saudável sem verdade. É por isso que a equipa deste jornal continua a lutar diariamente com maior empenho, porque sentimos que nunca, como hoje, a mentira teve uma perna longa e nunca, como hoje, foi capaz de dividir para reinar no descontentamento. 

Este podia ser um editorial fácil, cheio de gratidão e de regozijo. Mas nos tempos que vivemos não basta, tem de ser também um editorial de luta. Hoje, quando desfilarmos pelas ruas que ainda continuam a ser de todos, gozando da liberdade autêntica que nos chegou com a Revolução dos Cravos, vamos ter de juntar ao obrigado uma jura de que não vamos deixar que nos interrompam o 25 de Abril. Ele veio para sempre e tem de continuar.

terça-feira, 23 de abril de 2024

O livro sobre Kubrick que o próprio proibiu foi finalmente editado


Por PÚBLICO
 
Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO, edição da segunda-feira, de 22/04/2024, na coluna Cultura, p. 29.
The Magic Eye: The Cinema of Stanley Kubrick, livro de Neil Hornick com uma “visão imparcial” sobre o trabalho do realizador, esteve mais de meio século na gaveta.

No dia 30 de Abril, a Sticking Place Books, editora nova-iorquina dedicada à publicação de livros sobre cinema, lança The Magic Eye: The Cinema of Stanley Kubrick, livro sobre a obra de um dos realizadores fundamentais do século XX, autor de filmes como 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), Laranja Mecânica (1971), The Shining ¹ (1980) ou Nascido Para Matar (1987). 

A obra, escrita por Neil Hornick, começou a ser pensada há mais de meio século, a propósito de uma encomenda feita ao autor pela editora The Tantivy Press. Mas viria a ser barrada por Kubrick, após ter lido uma versão inicial do manuscrito. 

A Tantivy Press assinara um acordo com o cineasta, prometendo que não publicaria nada sem os conteúdos da obra merecerem a sua aprovação. Segundo a explicação dada agora ao diário The Guardian por Hornick, que hoje tem 84 anos, Kubrick terá ficado desagradado, por exemplo, com o facto de o livro ter “um sumário das coisas boas” de cada um dos seus filmes “seguido de um sumário das coisas más”. Na visão do cineasta, estes apontamentos negativos sobrepunham-se sempre aos mais elogiosos, “devido à forma excessivamente enfática” como eram apresentados. 

Kubrick terá dito que as críticas “inaceitáveis” ao seu trabalho constituíam um terço do manuscrito, um texto com cerca de 70 mil palavras. Hornick foi duro para com Lolita (1962), adaptação do romance homónimo de Vladimir Nabokov, publicado sete anos antes. “No entanto, expressei grande admiração pela maioria dos seus outros filmes”, diz o autor ao The Guardian

Filippo Ulivieri, escritor italiano e especialista na obra de Kubrick, disse ser “bastante chocante ler a correspondência entre os advogados do realizador e a editora de Neil”. “Kubrick queria um livro que elogiasse os seus filmes e o livro de Neil não era assim. Os seus filmes até então haviam sido avaliados positivamente, mas alguns críticos, especialmente em Nova Iorque, tinham feito apreciações mais negativas. Então ele precisava de um livro que fosse completamente positivo. The Magic Eye, continua Ulivieri, “oferece uma visão muito precisa e imparcial dos filmes de Kubrick”. Público

 

NOTA EXPLICATIVA

 

¹  Embora em Portugal tenha sido mantido o título original em inglês, no Brasil saiu como O Iluminado.  

terça-feira, 16 de abril de 2024

OBRAS DE 30 ARTISTAS HÚNGAROS SOBREVIVENTES AO HOLOCAUSTO SÃO EXPOSTAS EM BUDAPESTE


Por EURONEWS
 
As recordações desconhecidas do Holocausto: a Hungria está inaugurando nesta data uma nova exposição de 30 artistas húngaros, que sobreviveram ao Holocausto, ilustraram as sevícias que passaram nos guetos, bem como nos campos de concentração e de trabalhos forçados. A maioria das obras foi realizada entre 1944 e 1947.
Desde 2000, o dia 16 de abril é o dia dedicado à memória das vítimas do Holocausto na Hungria. Há 80 anos, em 1944, membros da administração húngara e da polícia húngara, que colaboraram com os ocupantes nazis, começaram a criar neste dia os primeiros guetos e campos de concentração na região da Transcarpácia.

Uma supervisora (Aufseherin) alemã corta os cabelos de uma judia horrorizada

Mulheres judias provavelmente do campo de Birkenau em fins de 1943, quando Dr. Mengele era o médico-chefe do setor das mulheres. Cerca de 7.000 a 20.000 mulheres sofriam de tifo e ele propôs uma "solução radical" para parar a epidemia.

Enfileiradas, as mulheres judias são encaminhadas à câmara de gás por um oficial alemão

A Galeria Nacional Húngara de Budapeste está inaugurando nesta terça-feira (16/04/2024) uma exposição especial de memórias pessoais do Holocausto de artistas húngaros que sobreviveram ao referido genocídio. Nas paredes da galeria ficarão expostas as obras de uns 30 artistas na sua maioria desconhecidos até à data, que foram perseguidos pelos fascistas. 
 
Algumas obras foram feitas nos guetos, campos de trabalhos forçados e de concentração, enquanto outras foram realizadas depois que seus criadores retornaram vivos à casa: o desenho era para eles uma terapia. 
 
As obras são figurativas, quase como desenhos em quadrinhos, não são abstratas, mas sim reflexivas em seu enfoque da experiência do Holocausto, afirma Zsófia Farkas, curadora da exposição. Aqui também poderão ser vistas obras provenientes do estrangeiro, de Israel e da Alemanha. Depois da Segunda Guerra Mundial, muitos artistas deixaram a Hungria e o seu legado artístico ainda hoje se encontra em Israel e penso que é muito importante que possa ser visto aqui na Hungria, acrescentou.
 
As obras se tornaram memórias 
 
Com o passar do tempo, à medida que as memórias dos sobreviventes se desvanecem, estas obras tornam-se também recordações extraordinárias, sublinham os organizadores. 
 
As obras, majoritariamente realizadas entre 1944 e 1947, refutam a afirmação de que falar sobre o Holocausto era tabu depois da guerra. 
 
A exposição estará aberta até 21 de julho. 
 
 

II. AGRADECIMENTO
 
 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das imagens utilizadas neste texto.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

A VIDA TROPICAL DE JOSEF MENGELE, o “Anjo da Morte” de Auschwitz


Por António Araújo *
 
Transcrevemos com a devida vênia do suplemento de artes ÍPSILON do jornal PÚBLICO, edição da sexta-feira, de 12/04/2024, p. 12.
Baviera Tropical, da jornalista brasileira Betina Anton, conta a história do médico nazi mais procurado do mundo, que viveu quase duas décadas no Brasil sem ser capturado.

 
 “Posso afirmar categoricamente que este homem está bem morto”, disse o delegado Romeu Tuma, com gélida ironia, aos jornalistas que, naquela quinta-feira, 6 de Junho de 1985, o acompanharam ao Cemitério do Rosário, em Embu das Artes, a 25 quilómetros do centro de São Paulo. 
 
Ao seu lado, na vala aberta, um esqueleto desfeito em pedaços, que os coveiros iam retirando osso a osso, começando pelo crânio, logo entregue ao dr. José António de Mello, vice-director do Instituto Médico-Legal de São Paulo, que o exibiu triunfalmente aos repórteres, como se fosse um troféu de caça, que em parte o era. Por perto, uma mulher de ascendência alemã, Liselotte Bossert, que durante anos dera guarida ao criminoso nazi mais procurado do mundo, Josef Rudolf Mengele, apelidado “Anjo da Morte” pelos prisioneiros de Auschwitz. 
 
Ao contrário do que frequentemente se diz, Mengele não era o médico-chefe de Auschwitz-Birkenau, cabendo esse título sinistro a Eduard Wirths, que se suicidou por enforcamento em Setembro de 1945, após ter sido capturado pelos Aliados. Contudo, é Mengele que sempre se recorda como símbolo maior das atrocidades perpetradas pelos médicos que trabalhavam nos campos de concentração e que, à chegada dos comboios, seleccionavam os que deveriam ir de imediato para as câmaras de gás e os que viam a morte adiada, enquanto eram sujeitos a abomináveis experiências pseudocientíficas que ora os matavam em lenta agonia, ora lhes deixavam marcas e traumas para o resto dos dias. 
 
Não sendo uma biografia de Josef Mengele, até porque esse trabalho já foi feito por vários autores, com destaque para Gerald Posner e John Ware (Mengele: The Complete Story, 2000), mas também, na esteira destes, por Anna Revell (Josef Mengele: Angel of Death, 2018) ou por David Marwell (Mengele: Unmasking the “Angel of Death”, 2020), Baviera Tropical, da jornalista brasileira Betina Anton, é uma trepidante narrativa da fuga e da estada do criminoso nazi no Brasil, onde pôde esconder-se e sobreviver incólume durante duas décadas, até morrer afogado, em 7 de Fevereiro de 1979, após ter sido vítima de um AVC enquanto se banhava nas águas cálidas da praia da Enseada, em Bertioga, no litoral de São Paulo. 
 
Uma sorte dos diabos 
 
A ida para a América do Sul não se deveu ao apoio da mítica Odessa, organização que nunca terá existido, segundo a autora, mas das famosas ratlines, as redes de fuga que, por vezes com a cumplicidade do Vaticano, permitiram que muitos nazis escapassem à acção da justiça terrena. Mengele e tantos outros beneficiaram do amparo das ditaduras sul-americanas da época — a de Stroessner no Paraguai, a de Perón na Argentina, a do Brasil dos militares — e tiveram o discreto auxílio, anos a fio, dos familiares que ficaram na Alemanha ou na Áustria (o que, no caso de Mengele, vindo de gente de posses, donos de uma empresa de máquinas agrícolas, foi um apoio precioso). Mais decisivamente ainda, contaram com as comunidades de língua alemã radicadas nos trópicos ou, melhor dizendo, com alguns membros dessas comunidades, como Wolfram Bossert e sua mulher, Liselotte. 
 
Foi esta, fiel até ao fim, que os jornalistas surpreenderam no Cemitério do Rosário. E, por incrível que pareça, uma das mais remotas memórias de infância de Betina Anton, a autora de Baviera Tropical, é a de “Tante Liselotte” (“Tia Liselotte”), sua querida professora numa escola em Santo Amaro, São Paulo. Betina, também ela uma mulher de ascendência germânica, só soube muito mais tarde, como é evidente, que, durante dez anos, a sua ex-professora protegeu Josef Mengele contra tudo e todos, recebeu-o em sua casa, levou-o a passear à praia aos fins-de-semana. Depois, quando ele morreu, foi Liselotte que o enterrou — e como ele queria, com os braços colocados ao longo do tronco, como um guerreiro em sentido. Mesmo correndo riscos sérios, nunca o denunciou à polícia e, mais ainda, resistiu às ofertas milionárias que as organizações mundiais judaicas e os “caçadores de nazis”, com Simon Wiesenthal à cabeça, faziam em troca de informações sobre o paradeiro de um dos fugitivos mais procurados do planeta. 
 
Mengele teve também uma sorte dos diabos — e a astúcia que faltou a outros, como Adolf Eichmann, cuja captura num subúrbio de Buenos Aires, em Maio de 1960, e subsequente julgamento em Jerusalém, em muito perturbaram o “Anjo da Morte”, que passou a segunda metade da sua existência em permanente sobressalto. O livro mostra também — e esse é um dos seus pontos mais interessantes — que o médico nazi acabou por beneficiar da indecisão dos seus captores e, em especial, da oscilação da política de Israel em matéria de ex-criminosos de guerra, cuja captura ora foi assumida como prioridade número um dos serviços secretos, ora foi relegada para segundo plano em face de outras e mais urgentes ameaças, como as da guerra do Yom Kippur (curiosamente, depois de terem descurado a sua descoberta, os israelitas insistiriam, contra o parecer dos investigadores brasileiros, alemães e norte-americanos, que Mengele não só não morrera no Brasil como continuava a residir tranquilamente no Paraguai). A Alemanha, outro actor decisivo nesta trama, só despertou tardiamente para o imperativo de capturar e julgar os criminosos do III Reich; em bom rigor, as autoridades alemãs mobilizaram-se apenas em 1963, com os “julgamentos de Frankfurt-Auschwitz”, e, mesmo assim, nem sempre com especial empenho, como o mostrara o exemplo de Fritz Bauer, o procurador de Frankfurt que, em meados dos anos 50, e ante a passividade dos magistrados e das polícias do seu país, acabou por transmitir ao director da Mossad, Isser Harel, informações cruciais que permitiram a localização de Adolf Eichmann e o seu sequestro pelos israelitas. 
 
Não só nada disto é novo como tem sido abundantemente tratado em livros e documentários, filmes e séries de televisão, inclusive em obras romanceadas, como O Desaparecimento de Josef Mengele, de Oliver Guez (Planeta, 2018). Entre nós, e sobre a caça aos nazis, dispúnhamos já, entre outros, de Eu Persegui Eichmann, de 1972 (Círculo de Leitores), e Os Assassinos Entre Nós, de 1974 (Editores Associados), ambos da autoria de Simon Wiesenthal, um homem que acabou por ter um papel negativo nas buscas por Josef Mengele, ao insistir vezes sem conta que ele se encontrava no Paraguai, e não no Brasil (infelizmente, não foi traduzida entre nós a sua biografia da autoria de Tom Segev, Simon Wiesenthal: The Life and Legends, de 2010, nem sequer The Wiesenthal File, de 1993, da autoria de Alan Levy, igualmente interessante). Além de livros sobre ex-nazis, os horrores da medicina nazi foram tratados em Os Médicos da Morte, de Philipe Aziz, de 2019 (Livros do Desassossego), havendo também uma obra, Quando a Medicina Enlouqueceu — A Bioética e o Holocausto, de Arthur L. Caplan (Instituto Piaget, 1997), que discute a questão de saber se será ético utilizar, nos nossos dias, os dados recolhidos nos campos de morte e o produto das experiências aí realizadas. Infelizmente, permanecem por traduzir as duas grandes obras sobre a medicina nazi, o clássico de Robert Jay Lifton, The Nazi Doctors: Medical Killing and the Psychology of Genocide, de 1986, e Murderous Science: Elimination by Scientific Selection of Jews, Gypsies, and Others, Germany 1933-1945, de Benno Muller-Hill, 1988 (citamos a edição inglesa, mas há tradução brasileira). Menção ainda, como é evidente, para a investigação de José Pedro Castanheira sobre o médico português Ayres de Azevedo, primeiro saída no Expresso e, mais tarde, em livro: Um Português no Coração da Alemanha Nazi, de 2010. 
 

 
Em face desta esmagadora bibliografia, Baviera Tropical consegue surpreender, trazendo factos novos e desconhecidos, fruto do notável labor de Betina Anton, que percorreu arquivos de todo o mundo e conseguiu entrevistar alguns dos protagonistas-chave desta saga, como Liselotte Bossert, o já falecido Rafi Eitan, chefe do comando israelita que raptou Eichmann, Yigal Haychuk, o agente brasileiro da Mossad que participou nas frustradas operações de captura de Mengele, diversas vítimas deste, com destaque para Eva Mozes Kor, também já falecida, polícias, médicos, investigadores e vários membros da comunidade alemã de São Paulo, que falaram sob anonimato. O seu trabalho de muitos anos permitiu-lhe ainda, e entre outras descobertas, aceder a quase uma centena de cartas escritas por e para Josef Mengele, cujas transcrições não deixam de nos arrepiar, ao revelarem o quotidiano do monstro, mas também a sua enorme capacidade de ardil e dissimulação, deixando entrever o que já adivinhávamos: uma personalidade transviada, incapaz de empatia com os outros, recheada de tiques autoritários, barbaramente racista e desumana. 
 
No fundo, e em síntese, Betina Anton teve uma intuição certeira, ao perceber que seria inútil escrever mais uma biografia de Josef Mengele, sendo muito mais inteligente — e produtivo — explorar os seus três grandes trunfos: a ascendência germânica, o acesso à comunidade alemã de São Paulo, onde cresceu, e o facto de ter nascido e de viver no país que Josef Mengele escolheu para sua última morada (aliás, a dois passos de Mengele, o qual, a convite de Liselotte Bossert, chegou a visitar a escola que Betina frequentava...) 
 
O resultado é um livro apaixonante, escrito como um thriller, segundo a sua autora. Terminada a leitura, a sensação que fica, porém, é de desapontamento e injustiça. Condenado eternamente pelo juízo da História, Josef Rudolf Mengele conseguiu furtar-se ao julgamento dos homens; e, pior ainda, o rasto de horror e trevas que deixou parece estar hoje esquecido, tantos são os que reclamam o seu macabro legado, ou que o relativizam e menorizam. Por isso, até por isso, um livro muito importante.
 
* António Araújo é historiador, crítico literário, responsável pela escolha dos autores da colecção retratos da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Também é conselheiro do presidente da República. É licenciado e mestre em Direito e doutor em História. Publicou já vários livros sobre direito e história contemporânea, recebendo destaque: Da direita à Esquerda-Cultura e sociedade em Portugal, dos anos 80 à actualidade.

 
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OBS. do Gerente do Blog de São João del-Rei
À maravilhosa bibliografia fornecida pela resenha de António Araújo, convém adicionar pelo menos mais dois livros de grande utilidade para pesquisadores da vida tropical de Josef Mengele ou de sua biografia. O primeiro consiste num livro pelo dramaturgo e escritor norte-americano Ira Levin (1929-2007), que escreveu um romance de ficção científica intitulado The Boys from Brazil, transportado para as telas de cinema por Franklin J. Schaffner em um thriller de ficção científica de título homônimo, em 1978. O papel de Josef Mengele coube a Gregory Peck, enquanto o caçador de nazistas Ezra Lieberman ficou com o ator Sir Laurence Olivier, e o de Esther Lieberman, com Lili Palmer. Nesse filme que entre nós recebeu o nome de Os Meninos do Brasil e, em Portugal, o de Os Comandos da Morte, o caçador de nazistas Ezra Lieberman segue a pista de criminosos de guerra até a América do Sul, onde descobre e tenta impedir que o plano diabólico do cientista do III Reich Josef Mengele planeja o nascimento do IV Reich através de 94 clones de Adolf Hitler quando este ainda era garoto, utilizando para tal fim várias mães de aluguel em uma clínica brasileira, e enviá-los para serem adotados em diversos países. Claro que só isso não basta, pois era preciso ainda serem criadas diversas variáveis para traçar o perfil psicológico de Hitler. Isso se passa, enquanto Josef Mengele vivia anônimo no Paraguai. 
 
Editora Círculo do Livro, 1985
 
 
O resumo do livro abaixo foi feito pela jornalista Márcia Lira em 24/04/2010 para Menos1naestante, a saber: 
No Brasil da década de 70, um médico nazista reúne um grupo de ex-oficiais de Hitler para cumprirem a missão de matar 94 homens de 65 anos em vários países da Europa. É a primeira fase de um plano para instaurar o IV Reich. Pistas dele chegam ao judeu “caçador de nazistas” Liebermann, que é o Sherlock Holmes da história. Se não quer saber o final do livro, pare por aqui. 
Descobre-se, depois de muitas páginas, que a conspiração envolvia avançada tecnologia molecular: o médico Josef Mengele conseguiu criar crianças-clones e espalhá-las para adoção por famílias “perfeitas” da Europa. Bebês com as características da “raça ariana”, mais especificamente clones de Hitler. Os assassinatos eram mais um cuidado dos conspiradores para reproduzir o ambiente social em que o líder nazista, que perdera o pai quando era adolescente, vivera. 
O mais bizarro foi constatar que o médico Josef Mengele (fotos abaixo), mais conhecido como “O Anjo da Morte”, existiu e realmente executou inúmeras e hediondas experiências com gêmeos judeus prisioneiros de Auschwitz. 
Registros indicam que ele se refugiou no Brasil, mais especificamente no Rio Grande do Sul. No ano passado, o jornalista argentino Jorge Camarasa lançou o polêmico livro O Anjo da Morte na América do Sul, onde explora a passagem do alemão por aqui. O escritor aborda os rumores de que o médico teria, usando nome falso, continuado suas experiências no País, e assim influenciado o alto índice de gêmeos na pequena cidade de Cândido Godói (RS), por volta de 1963. Em vez da média nacional de um parto de gêmeos em 80, na época, o lugar teria um desses para cada cinco partos. 
 
Uma de cada cinco gestações em Cândido Godói resultou em gêmeos - Crédito: The Telegraph

 
Muitos cientistas negam a possibilidade, mas ela é super intrigante. Saiba mais aqui e aqui.
A única coisa que dá para concluir é que esses rumores inspiraram o romance de Ira Levin, o dramaturgo e escritor que faleceu em 2007. A história foi transformada em filme, em 1978. Ele explorou bastante o suspense, sendo inclusive lisonjeado com comparações com Hitchcock. O filme O Bebê de Rosemary é adaptação do livro dele chamado A Semente do Diabo.
 
 
BIBLIOGRAFIA


LIRA, Márcia: "Os Meninos do Brasil", ficção científica nazista de Ira Levin, publicado em 24/04/2010 pelo portal Menos1naestante
Link: https://menos1naestante.com/quando-uma-ficcao-cientifica-nazista-nao-e-bem-uma-ficcao/  👈

THE TELEGRAPH: Nazi angel of death Josef Mengele 'created twin town in Brazil' por Nick Evans em Buenos Aires, em 21/01/2009 


WIKIPEDIA: verbete "The Boys from Brazil"
Link: https://pt.wikipedia.org/wiki/The_Boys_from_Brazil  👈

sexta-feira, 12 de abril de 2024

ENTREVISTA com António Pinho Vargas


Por Luciana Leiderfarb - Texto * 
Rui Oliveira - Fotografia
 
Transcrevemos com a devida vênia da REVISTA DO EXPRESSO, edição 2.684 de 05/04/2024, pp. 40 a 44, da coluna Entrevista
É um dos maiores compositores portugueses, tem mais de 70 obras no catálogo e uns 20 discos gravados, mas passou por um mau bocado, ao ponto de pensar: “Acabou tudo.” Nascido no Porto há 72 anos, hoje diverte-se a compor segundo novas lógicas. Leitor omnívoro e homem atento, a sua música reflete um corpo e um mundo em disfunção.
“Componho para continuar a sentir-me vivo.”
   
António Pinho Vargas (✰ Vila Nova de Gaia, Portugal, em 1951)

Chegar à Casa da Música num Porto chuvoso em obras pode não ser tarefa fácil, mas nem isso o irrita. Parece até divertido com a ideia de que a cidade onde nasceu em 1951, e para onde agora voltou, possa quase diariamente mudar de fisionomia. António Pinho Vargas pede um café, deixa-se conduzir até à sala onde irá decorrer a entrevista, fecha os olhos para se concentrar face à primeira pergunta. Não parece alguém que, nos últimos quatro anos, atravessou um longo túnel escuro. Mas foi o que lhe aconteceu. Pensou que tudo tinha acabado. O que faz um compositor quando ouvir se torna uma agressão e o seu maior obstáculo? 
A resposta chama-se “Lamentos”, o disco que Pinho Vargas gravou no meio da sua pandemia particular. Ou “Oscuro”, a obra que demorou dois anos a escrever, que estreou em 2022 e que ele define como um “bloco de granito”. Ou ainda “Collections & Translations”, tocada pela primeira vez há um mês no CCB e que corresponde a um novo modo de compor e de dispor os gestos musicais. 
Com mais de 70 obras no catálogo e uma discografia de mais de 20 discos, este pianista clássico que passou pelo jazz e deveio compositor contemporâneo, que ensinou o ofício na Escola Superior de Música de Lisboa, que estudou História e se doutorou em Sociologia com uma tese sobre os mecanismos de hegemonia musical no Ocidente, que escreveu livros, que teve dois filhos, que terá plantado uma ou outra árvore, chega aos dias de hoje menos afirmativo e “muito mais modesto”. Porque, como diz, “num certo extremo retórico”, compõe para sobreviver. “Não quero usar palavras demasiado fortes, como ‘renascer’ e coisas assim. Não quero, porque não morri antes. Simplesmente, passei um mau bocado”, remata, após duas horas de conversa, de que aqui transcrevemos uma parte. 
 
R.E.: Em meados de 2023 publicou no seu site um texto que começava assim: "Há dias em que a música me pesa." O que quis dizer? 
Lembro-me dessa frase. Tinha gravado as obras do meu disco "Lamentos" em maio de 2023, e tanto a gravação como o concerto correram muito bem. Ao perceber que teria de esperar até setembro para começar a trabalhar nelas, a distância pareceu-me imensa, muito maior do que acontecera sempre no passado, e isso pesou-me. Mas a frase aplica-se a outros momentos. Como, por exemplo, quando quero compor e não sei como começar ou entro em bloqueio  que pode durar dias ou meses. Piores ainda são as dúvidas sobre se devo eliminar e tornar a fazer ou sobre a minha perceção, mesmo num estado de satisfação e de encantamento: “Estou a ouvir bem? Estarei a exagerar ou a enlouquecer?” 
 
R.E.: Como é isso de o encantamento lhe pesar? 
Pode acontecer em relação a peças gravadas que passei 10 anos sem ouvir. Há semanas voltei à ópera “Os Dias Levantados” [com libreto de Manuel Gusmão, que será apresentada a 27 de junho no São Carlos, onde se estreou em 1998] e dei por mim a achar: “Esta música, afinal, é muito boa. Como foi possível eu fazer uma coisa destas?” O encantamento com a minha música leva-me a interrogar-me sobre se terei perdido a capacidade autorreflexiva. Será que os meus afetos se sobrepõem à lucidez que pensava ter? 
 
R.E.: E que outras coisas lhe pesam hoje? 
A criação. Sempre tive imensas dúvidas durante o processo criativo. Às vezes, a temática das peças invade-me o corpo e a alma. Em 2000/2001 estava a compor [a oratória] “Judas”, da qual fiz também o libreto. Ia para casa ao fim da tarde e transportava literalmente o peso daquela temática. Hoje, o que me pesa mais é que a idade traz consigo um rol de problemas físicos. E os últimos anos mostraram-me que as fragilidades aumentam e a vida pode sofrer ameaças. No meio disso tudo, o mais pesado foi ter passado dois anos sem poder tocar o piano. 
 
R.E.: Devido à sua doença? 
Sim. A doença do ouvido atingiu-me no centro da minha vida adulta e, como é incurável, aterrorizei-me e deprimi-me muito fundo... Logo depois veio a pandemia. 
 
R.E.: Mas o António já atravessava a sua. Quer contar esse processo? 
Em 2018 começaram as crises. Estava a tocar o piano e comecei a ouvir uma ressonância anormal, que se transformou em dor. Na altura tomava um corticóide durante cinco dias e aquilo parava. Mas, com o tempo, as crises aumentaram em frequência e intensidade. Até que, em janeiro de 2019, a otorrino diagnosticou a Doença de Ménière, que é um mal crónico. Numa palavra, acordo e está lá, adormeço e está lá. 
 
R.E.: O que é que está lá? 
O ruído. Inicialmente era um som grave, uma coisa estranhíssima que se passava no meu cérebro. Tornei-me também muito sensível a qualquer ruído externo, tudo me provocava uma reverberação insuportável. Deixei de tocar o piano, de ouvir música e de compor; disse a alguns amigos que tudo tinha acabado. Nessa fase, os amigos dividiram-se entre os que ficaram ao meu lado e os que desapareceram. Há pessoas para quem o sofrimento dos outros é insuportável. E há outras que se mantêm perto de nós, que tentam ajudar e mostram empatia. Esses são os amigos verdadeiros, estou-lhes muito grato. 
 
R.E.: Voltemos ao piano, algo que sempre esteve presente na sua vida. 
Não aguentava o som, ouvia-o amplificado e distorcido. Perturbava-me enormemente. Aos poucos, em finais de 2022, fui-me reaproximando. Chamei um afinador para tornar o piano mais suave com uma ‘super-surdina’. Funciona, mas por vezes algumas notas disparam agudos que me agridem e sou obrigado a parar... e passado pouco tempo tenho de voltar a chamá-lo. Uma vez, tinha ido a Lisboa assistir a um ensaio com a [violinista] Joana Cipriano. No regresso ao Porto dormi parte da viagem. Ao chegar a casa, toco um acorde e ouço uma coisa completamente desafinada. Chamo a Ana Mafalda [Castro, cravista e mulher de A.P.V.] para ouvir: seria que, em dois dias, o piano desafinara? 
 
R.E.: O que tinha acontecido? 
Era a doença a distorcer as notas. A partir de então, todos os dias de manhã tocava um acorde em dó sustenido menor — de uma peça de Beethoven que andava a estudar —, que me soava sempre desafinado. Num sábado reparo que isso só acontece na parte grave do teclado. No domingo toco aquele acorde... e já soa bem. Outra coisa complicada foi a ressonância desencadeada pela própria fala. Em 2019, um amigo veio visitar-me e tive de lhe pedir que saísse. Não aguentava a sua voz nem a minha. Isso foi de uma dureza incrível. Escrevi-lhe um SMS a dizer-lhe que estava devastado. Imagine, ter de dizer a um amigo para sair... Estava a ficar cheio de medo, a palavra é essa. Já tinha parado de dar aulas. 
 
R.E.: Medo de não poder mais compor? 
Ao ver-me sem poder tocar nem ouvir música, sem compor, pensei: “Acabou.” Mas não acabou. Não. Houve um pequeno recomeço, incipiente, com uma peça curta para violino que compus para uma exposição em Vila Nova de Cerveira. Chama-se “Angst” [“Medo”]. Sabe porquê? Porque era o tempo da pandemia e havia vários tipos de pavores misturados. Lembro-me de ir visitar o [crítico] Augusto Seabra e de ele me dizer: “A vida nunca mais vai ser a mesma.” Hoje dá a sensação de que houve um enlouquecimento global. Começaram guerras que ninguém esperava, terríveis e cada vez mais violentas, crises políticas em Portugal, a subida da extrema-direita no país, na Europa e no mundo. Toda essa disfunção começou ali. E pouca gente analisa isso. 
 
R.E.: Vê uma relação de causa-efeito entre a pandemia e todas estas situações? 
A minha convicção é empírica, não tenho dados para o afirmar. Houve imensa gente a dizer que [a pandemia] seria uma lição para a Humanidade, por causa dos excessos e dos maus-tratos à natureza. O vírus obrigou-nos a parar durante um tempo. Só que a pandemia acabou e parece que se entrou numa espécie de assobio coletivo. A vida continuou, mas o que se passou a seguir foi tudo menos normal. 
 
R.E.: Voltando atrás, quando é que soube que ‘não acabou’? 
Fiz aquela pequena peça para violino, mas não fiquei satisfeito. Nessa altura pedi ajuda ao Luís Tinoco e ao Carlos Caires [compositores], porque, de repente, deixei de saber mexer com o programa de computador. Tive de ligar-lhes e reconhecer: “Como é que se faz a coisa mais simples do mundo que até tenho vergonha de dizer?” E eles ajudaram-me. Estão no Olimpo dos deuses da amizade. 
 
R.E.: Quando falamos de um compositor não poder ouvir, é inevitável pensar em Beethoven. Pensou nele também? 
Algumas vezes. E o que vou dizer é muitíssimo suspeito. Não tenho a certeza de que Beethoven não ouvisse nada. Não sabemos o que se passava em 1820 e só conhecemos a sua descrição da situação. Posso argumentar que ele, sendo um génio extraordinário, podia compor sem ouvir. Não sendo um génio, eu próprio poderia escrever sem ter necessidade de ouvir fosse o que fosse. Só que isso contrariaria a minha história de vida. Porque eu, antes de ser compositor, era um músico. E a linguagem musical atualmente é muitíssimo mais complexa do que a da música tonal que Beethoven herdou de Haydn. Eles partilhavam uma common practice que Beethoven começou a pôr em causa, exagerando, transitando para os sons graves do piano. Li algures que compunha naquele registo justamente porque não podia ouvir — o que é uma hipótese absurda. 
 
R.E.: Integrou o universo sonoro da sua doença nos seus processos de composição? 
Por vezes digo aos meus amigos, aqueles dois de quem estou sempre a falar. “Vocês não imaginam o que é o meu universo sonoro quando entro num restaurante.” Não sabia que existia este mundo que de repente sou obrigado a ouvir. Sabe, sou muito grato ao António Jorge Pacheco, da Casa da Música, com quem tive divergências no passado, mas que, sabendo o que me estava a acontecer, me fez uma encomenda. Senti que, por uma questão ética, não aceitaria receber qualquer adiantamento. Porque não sabia se seria capaz de a concretizar. Essa obra, “Oscuro”, é muito importante para mim, mas tem aspetos que não são amáveis. Era impossível compor música amável. Foi a primeira peça que escrevi em confronto com a doença.
 
R.E.: O que tinha “Oscuro” de diferente? 
Foi a minha reaprendizagem de gestos musicais e técnicos. E também o resultado de um exercício que tenho feito, o de compor com material meu, já composto. Confesso que me deu algum prazer encontrar isso num artigo de Benoît Gibson, que fez o doutoramento sobre Xenakis. Ele falava sobre o self-borrowing, isto é, utilizar música de peças anteriores em peças seguintes. E dava imensos exemplos em que Xenakis o pratica.  
 
R.E.: Fala de autocitações? 
Da reutilização de material já utilizado. Bach está cheio disso, temas que passam das Cantatas para as Fugas, etc. Podemos admitir que os casos são muitos, só que no meu isso era feito sob uma ameaça e um self-criticism — sai-me dizê-lo em inglês — muito agudo. “Oscuro” demorou dois anos a ser composta. Em outubro de 2022, quando foi estreada, escrevi nas notas ao programa: “Cada obra responde sempre às determinações de um corpo e às determinações de um mundo.” A frase foi cuidadosamente pensada. É verdadeira de todos os pontos de vista, porque tanto o meu corpo como o mundo estavam em disfunção. Não era suposto compor uma peça sobrecarregada de orquestração, mas porque é que isso aconteceu? Talvez, secretamente, tivesse medo de que não se ouvisse. Uma espécie de raciocínio ‘antivazio’. É uma peça violenta, dura. Tudo o que nela existe de belo mete medo, é uma tempestade na montanha.  
 
R.E.: Há outro Pinho Vargas nessa música? 
Há um Pinho Vargas com novas condicionantes. Talvez por isso me tenha posto a ouvir música que não ouvia há anos, como peças de Webern ou de Varèse. Comecei a fazer transcrições, para voltar a estar dentro da linguagem musical de outra maneira. Tive de reinventar-me e de rever velhos processos. Como é que eu conheci a música de Bach? Transcrevendo-a nota a nota, encantado com o contraponto. Muitas vezes disse isto aos meus alunos. Mozart era um génio e um grande pianista, podia ter-se limitado a tocar Bach. Mas não, copiou-o à mão, porque ao copiar há uma espécie de apropriação daquilo que está a acontecer, que tem um tempo diferente do tempo da performance. Depois de “Oscuro”, que é aquela pedra de granito, senti a necessidade de fazer tudo isso.  
 
R.E.: Como é a disfunção do mundo que o afeta a si e à sua música? 
Tenho muitas dúvidas. Li a sua entrevista à Lídia Jorge, e impressionou-me a frase em que ela diz: “Deve haver milhares de escritores no mundo a pensarem sobre como continuar a criar a partir daqui.” Ela capta uma interrogação que todos partilhamos. Já referi que tenho uma teoria particular acerca das consequências da pandemia. Até me interrogo sobre a existência da filosofia nos tempos que correm, porque nela não encontro respostas. Prefiro ler poemas.  
 
R.E.: Mas depois de criar o tal bloco de granito, reflexo da sua condição interna, como responde ao exterior?  
Não sei bem. Em 2002, quando a Culturgest realizou o ciclo de seis concertos com a minha música, fez-se também um documentário, dirigido por Manuel Mozos. No final, ouço-me a perguntar: “Para quem compomos? Quem é que ouve?” Isto tem a ver com os outros, com aquilo a que genericamente chamamos ‘público’, que é uma abstração. Sabemos que o número de pessoas que nos ouve está a diminuir, que estamos a atingir um ponto de total irrelevância. Mas isso não muda nada, a prova é que continuamos a compor. 
 
R.E.: A pergunta não será antes: “Para quê compor?” 
Sim, e cada um dará uma resposta. Houve uma altura em que eu era demasiado afirmativo nalgumas opções — estilísticas, musicais — que fiz. Hoje sou tudo menos afirmativo. Tornei-me muito mais modesto, porque, num certo extremo retórico, eu componho para sobreviver. Componho porque quero continuar a sentir-me vivo. 
 
R.E.: Não para os outros, mas para si. 
Neste momento, o mundo, o Estado e os outros são... um peso. Vivi a campanha eleitoral com enorme sofrimento. Vejo o que se passa no mundo e não estou muito encantado com o Ocidente, que não se comporta em conformidade com os valores que diz defender. Isso verifica-se com a sobreposição das duas guerras. A superioridade moral do Ocidente, tão proclamada no início da guerra da Ucrânia, esfumou-se. E o próprio Josep Borrell, de quem toda a gente falava mal, diz hoje coisas que posso reconhecer como importantes. 
 
R.E.: O que se esfumou? 
A coerência. Um bombardeamento num sítio desencadeia uma condenação generalizada, e noutro, um silêncio muito cauteloso. É uma posição insustentável. Nós conhecemos a História, nasci em 1951, a questão israelo-palestiniana já existia. Cresci a ver aquilo eternamente sem solução. Mas as posições estão há muito extremadas. Há tempos vi no YouTube um vídeo em que Daniel Barenboim, ao receber um prémio, relia os princípios fundadores do Estado de Israel. Foi criticado por atacar o seu país — ou seja, a situação política israelita não permite sequer que se leiam os princípios fundadores do Estado. A questão é que hoje temos duas guerras e perante elas temos dois pesos e duas medidas. E não é só neste aspeto. O meu filho estava em Berlim quando os primeiros refugiados da Síria eram barrados na Polónia por um arame farpado. A seguir começa a guerra na Ucrânia e a atitude é completamente diferente. O meu filho diz-me: “Não sei se consigo aceitar o argumento de que ‘estes são brancos e cristãos’.” 
 
R.E.: Voltou a ser pertinente a pergunta de Theodor Adorno sobre a possibilidade da poesia depois de Auschwitz? 
Essa frase sempre me suscitou perplexidade justamente por ter sido dita pelo Adorno, um grande amante de música e ele próprio compositor. Ele lança a pergunta apesar de estar convencido de que [criar] continua a ser possível. De facto, depois vieram a poesia de Paul Celan, os romances de Primo Levi. Atualmente, acho que estamos todos a viver uma espécie de impotência em relação às grandes questões. É preciso evitá-las, porque qualquer pensamento em conjunto sobre elas é impossível. O diálogo intercultural que perseguíamos transformou-se numa fonte de conflito. As identidades tornaram-se assassinas, como escreveu Amin Maalouf. No meio disto tudo, talvez tenha de me agarrar àquele bocadinho de encantamento de que falei há bocado. Eu quero compor primeiro para sobreviver. Depois, espero que aquela música possa ajudar outros a viver ou a pensar. 
 
R.E.: Publica no Facebook o que anda a ler. Ultimamente andou entre Edward Said, Hermann Broch e Ana Hatherly. Foi sempre assim omnívoro? 
Sempre tive essa tendência de ler três livros ao mesmo tempo. Não de poesia, esses vão-se lendo. E há coisas que já não leio — como Kant, acho que ele não me ajuda a viver. Por vezes leio Adorno, porque há ali uma inteligência brilhante em relação à música. O Said é interessante porque, sendo um palestiniano americano, escreveu “Orientalismo” e foi parcialmente o inventor dos estudos pós-coloniais, além de ser fundador, com Barenboim, do projeto maravilhoso — e desperdiçado — que é a West-Eastern Divan Orchestra. 
 
R.E.: Teve uma infância com livros? 
Sim, mas fui o primeiro grande leitor da minha casa. O meu irmão era médico e a minha irmã tirara o curso de Biologia — ambos já morreram. Sabíamos muitas coisas da história dos Estados Unidos por causa dos livrinhos de índios e cowboys. A partir dos 15 ou 16, quando comecei a ver os filmes de John Ford e de Howard Hawks, tudo aquilo era material conhecido. Há um artigo de um americano, Fredric Jameson, que explica esta questão. Ele diz que o Plano Marshall incluía uma cláusula que obrigava todos os subscritores, ou seja, todos os países que recebiam dinheiro dos Estados Unidos — a maior parte da Europa — a exibirem uma determinada quota de cinema americano. Lemos isto e percebemos que algo aconteceu ao nosso imaginário. Tenho amigos de Coimbra que vão aos Estados Unidos para fazer a estrada do Jack Kerouac. Porquê? Porque nos tornámos familiares com aquela cultura e os seus símbolos, porque houve uma penetração dessa cultura nas nossas vidas. 
 
R.E.: O que o levou a doutorar-se em Sociologia aos 60 anos? Foi para prosseguir aquilo que começou com o curso de História? 
Foi para perceber algumas coisas que me aconteceram na vida, para estudar com alguma sistematicidade por que razão a música portuguesa não era tocada em geral. Porque é que nós, como professores de composição, estávamos sempre a ir buscar o último compositor que se tornou eminente em França, Alemanha, Inglaterra ou Estados Unidos. Quis perceber os mecanismos disso. E devo dizer que hoje não concordo com as conclusões que tirei na altura, tenho de assumir essa responsabilidade. 
 
R.E.: A sua tese analisa a hegemonia musical desses países que nomeou. Com o que é que não concorda? 
Fui demasiado otimista em relação às alternativas a essa hegemonia. O peso da história da música é de tal ordem, com aquela conjugação de génios no século XIX alemão, que hoje não podia acontecer outra coisa. O peso da História é invencível. Aquela confluência histórica de tendências que ali ocorreu entre Bach e Wagner produziu música de uma tal qualidade e capacidade de expansão e de satisfação que justifica que, 200 anos mais tarde, continuemos a encantar-nos a ouvir aquilo. E repare que estou a falar de mim próprio. As “Variações Goldberg” de Bach pelo Glenn Gould é um dos discos da minha vida. É insuperável. 
 
R.E.: A tese chama-se “Música e Poder” e tinha como subtítulo: “Para uma Sociologia da Ausência da Música Portuguesa no Contexto Europeu”. Essa ‘ausência’ mantém-se? 
A tese foi feita em 2010. Ao longo destes anos, compositores portugueses mais novos do que eu, alguns meus amigos e ex-alunos na Escola Superior de Música de Lisboa, tiveram peças tocadas com alguma regularidade nalguns centros. Na tese, chamo o fenómeno de ‘sub-campo contemporâneo’, ou seja, um conjunto de músicos que circula pela Europa e faz os seus concertos. Este circuito tem afinidades com o das corridas de Fórmula 1, em que os pilotos são sempre os mesmos e correm na China, em Hong Kong, em Dallas, em Amsterdão. Aquilo é conhecido como o ‘circo’, por ser uma estrutura que se monta para que a corrida aconteça e se desmonta a seguir, para ela ter lugar noutro local. Como qualquer microcampo, tem as suas estrelas. O star system não existe apenas em Hollywood. 
 
R.E.: A música contemporânea portuguesa está então presente nestes subcampos?  
Sim, coisa que dantes não acontecia, à exceção de Emmanuel Nunes. E qual foi o preço que ele teve de pagar? Viver lá, em Paris — viver e morrer, aliás. Mas nem é preciso recuar tanto. Uma grande compositora sul-coreana chamada Unsuk Chin ganhou este ano o Prémio Siemens. Ela organiza festivais no Japão e na Coreia do Sul. Mas onde é que vive? Em Hamburgo, onde estudou composição com Ligeti. Claro que os europeus dizem que ela tem qualquer coisa de oriental. Mas o fundamental daquela música é europeu, é ligetiano, e por isso ela recebe os 250 mil euros do prémio! Temos de reconhecer os mecanismos de poder que efetivamente existem, dar-lhes visibilidade, mas não podemos condenar um sul-coreano a ser sul-coreano a vida toda se a sua música está no centro da contemporaneidade europeia. 
 
R.E.: De que falamos quando falamos de música clássica? Da eterna reprodução de uma hegemonia? 
Não sei se posso dizer isso. A hegemonia existe, é um facto. Por exemplo, não podemos apagar a existência do império romano e as suas consequências no direito, nas línguas. Faz parte da história do mundo nas suas múltiplas circulações. Claro que pelo meio há muitos crimes — o massacre dos autóctones da Austrália, dos índios da América do Norte, a captura dos africanos para as Américas. Os Papas pedem sucessivamente desculpa, e de quê? Dos crimes cometidos em determinados momentos da História. Há um texto de Aristóteles que defende a escravatura. Esta é indefensável, mas para um grego cinco séculos antes de Cristo podia não o ser. 
 
R.E.: Mas não me respondeu à pergunta sobre a música clássica. 
A expressão ‘música clássica’ contém em si a sua própria sobrevivência. É o cânone histórico, que nos últimos cem anos conseguiu transformar em canónicos homens que morreram na miséria ou na desgraça. Há uns anos tive uma conversa com um homem que me faz muita falta, o António Mega Ferreira. Eu dizia-lhe: “Não estou a imaginar que, nos anos 50 do século XXI, o grande acontecimento do ano seja uma nova integral das sinfonias de Beethoven.” E ele respondeu: “Você não tem razão.” Ele tinha uma visão da sobrevivência histórica das grandes obras de arte muito diferente da minha, que na altura exprimi daquela forma mais ou menos vulgar. 
 
R.E.: Que coisas o empurram, o fazem sentar-se a compor? 
A minha peça “Oscuro” mudou tudo. Tornei-me um colecionador. 
 
R.E.: Como assim? 
Vou retirando de outras peças minhas aquilo de que preciso para as novas. Um ataque, um gesto, uma nota, que me interessam noutro contexto. Componho usando aqueles materiais. E sinto-me quase de regresso à infância, quando tinha legos e construía os meus próprios castelos e estádios de futebol. Olho para aquele período da minha vida e estou sentado no chão, no quarto dos meus pais, ao lado de uma cadeira onde estava a minha avó, que morreu aos 75 anos. Eram tardes inteiras de invenção, com objetos que eu combinava de maneiras que não estavam fixadas em lado nenhum, só na minha imaginação. Se inventei alguma coisa, se a minha música tem alguma carga de invenção, ela vem dali. E quando sinto encantamento — e por vezes uma culpabilização — é porque tenho medo de estar a olhar-me com demasiada benevolência. E agora o meu amigo Mega Ferreira mandava-me calar. 
 
R.E.: O que sobressai aqui é que mudou. Não ficou igual. 
Não posso deixar de ser moldado por aquilo que passei. 
 
R.E.: Está a divertir-se com os legos? 
Estou a divertir-me com os legos, completamente. No meio das dúvidas de sempre. Não quero usar palavras demasiado fortes como ‘renascer’ e coisas assim. Não quero, porque não morri antes. Simplesmente, passei um mau bocado. E agora encontrei uma maneira de me divertir que me dispensa de algum do esforço que dantes fazia.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

O PROFETA


Por SAMUEL RAWET *
 
Extraído de Contos do Imigrante, de Samuel Rawet, livro de estreia do autor, publicado em 1956. Trata-se de uma coletânea de contos cujo tema principal é a figura do imigrante, aquele que abandona sua terra e ruma para outra fronteira, país ou continente, em geral por motivos políticos de guerra ou em busca de melhores condições de vida, e se vê diante de outra cultura e outra língua.
“A guerra o despojara de todas as ilusões anteriores e afirmara-lhe a precariedade do que antes era sólido. Só ficara intacta sua fé em Deus e na religião, tão arraigada, que mesmo nos transes mais amargos não conseguira expulsar. (Já o tentara, reconhecia, em vão.)”

Samuel Rawet (✰ Klimontów, Polônia, 1929- ✞ Brasília, 1984)
 

Todas as ilusões perdidas, só lhe restara mesmo aquele gesto. Suspenso já o passadiço, e tendo soado o último apito, o vapor levantaria a âncora. Olhou de novo os guindastes meneando fardos, os montes de minérios. Lá embaixo correrias e línguas estranhas. Pescoços estirados em gritos para os que o rodeavam no parapeito do convés. Lenços. De longe o buzinar de automóveis a denunciar a vida que continuava na cidade que estava agora abandonando. Pouco lhe importavam os olhares zombeteiros de alguns. Em outra ocasião sentir-se-ia magoado. Compreendera que a barba branca e o capotão além do joelho compunham uma figura estranha para eles. Acostumara-se. Agora mesmo ririam da magra figura toda negra, exceto o rosto, a barba e as mãos mais brancas ainda. Ninguém ousava, entretanto, o desafio com os olhos que impunham respeito e confiavam um certo ar majestoso ao conjunto. Relutou com os punhos trançados nas têmporas à fuga de seu interior da serenidade que até ali o trouxera. Ao apito surdo teve consciência plena da solidão em que mergulhava. O retorno, única saída que encontrara, afigurava-se-lhe vazio e inconseqüente. Pensou, no momento de hesitação, ter agido como criança. A idéia que se fora agigantando nos últimos tempos e que culminara com a sua presença no convés, tinha receio de vê-la esboroada no instante de dúvida. O medo da solidão aterrava-o mais pela experiência adquirida no contato diário com a morte. Em tempo ainda.

Desçam o passadiço, por favor, desçam!... 
 
A figura gorda da mulher a seu lado girou ao ouvir, ou ao julgar ouvir, as palavras do velho.
 
O senhor falou comigo?
 
Inútil. A barreira da língua, sabia-o, não lhe permitiria mais nada. O rosto da mulher desfigurou-se com a negativa e os olhos de súplica do velho. Com exceções, o recurso mesmo seria a mímica e isso lhe acentuaria a infantilidade que o dominava. Só então percebeu que murmurara a frase, e envergonhado fechou os olhos.
 
Minha mulher, meus filhos, meu genro. 
 
Aturdido mirava o grupo que ia abraçando e beijando, grupo estranho (mesmo o irmão e os primos, não fossem as fotografias remetidas antes ser-lhe-iam estranhos, também), e as lágrimas que então rolaram não eram de ternura, mas gratidão. Os mais velhos conhecera-os quando crianças. O próprio irmão havia trinta anos era pouco mais que um adolescente. Aqui se casara, tivera filhos e filhas, e casara a filha também. Nem recolhido às molas macias do carro que o genro guiava cessaram de correr as lágrimas. Às perguntas em assalto respondia com gestos, meias-palavras, ou então com o silêncio. O corpo magro, mas rijo, que apesar da idade produzira trabalho, e garantira sua vida, oscilava com as hesitações do tráfego, e a vista nenhuma vez procurou a paisagem. Mais parecia concentrar-se como que respondendo à avalanche de ternura. O que lhe ia por dentro seria impossível transmitir no contato superficial que iniciava agora. Deduziu que seus silêncios eram constrangedores. Os silêncios que se sucediam ao questionário sobre si mesmo, sobre o que de mais terrível experimentara. Esquecer o acontecido, nunca. Mas como amesquinhá-lo, tirar-lhe a essência do horror ante uma mesa bem posta, ou um chá tomado entre finas almofadas e macias poltronas? Os olhos ávidos e inquiridores que o rodeavam não teriam ouvido e visto o bastante para também se horrorizarem e com ele participar dos silêncios? Um mundo só. Supunha encontrar aquém-mar o conforto dos que como ele haviam sofrido, mas que o acaso pusera, marginalmente, a salvo do pior. E consciente disso partilhariam com ele em humildade o encontro. Vislumbrou, porém, um ligeiro engano. 
 
O apartamento ocupado pelo irmão ficava no último andar do prédio. A varanda aberta para o mar recebia à noite o choque das ondas com mais furor que de dia. Ali gostava de sentar-se (voltando da sinagoga após a prece noturna) com o sobrinho-neto no colo a balbuciarem ambos coisas não sabidas. Os dedos da criança embaraçavam-se na barba e às vezes tenteavam com força uma ou outra mecha. Esfregava então seu nariz duro ao arredondado e cartilaginoso e riam ambos um riso solto e sem intenções. Entretinham-se até a hora em que o irmão voltava e iam jantar.
 
Nas primeiras semanas houve alvoroço e muitas casas a percorrer, muitas mesas em que comer, e em todas revoltava-o o aspecto de coisa curiosa que assumia. Com o tempo, arrefecidos os entusiasmos e a curiosidade, ficara só com o irmão. Falar mesmo só com este ou a mulher. Os outros quase não o entendiam, nem os sobrinhos, muito menos o genro, por quem principiava a nutrir antipatia. 
 
Aí vem o "Profeta"!
 
Mal abrira a porta, a frase e o riso debochado do genro surpreenderam-no. Fez como se não tivesse notado o constrangimento dos outros. Atrasara-se no caminho da sinagoga e eles já o esperavam à mesa. De relance, percebeu o olhar de censura do irmão e o riso cortado de um dos pequenos. Só Paulo (assim batizaram o neto, que em realidade se chamava Pinkos) agitou as mãos num blá-blá como a reclamar a brincadeira perdida. Mudo, depositou o chapéu no cabide, ficando só com a boina preta de seda. Da língua nada havia ainda aprendido. Mas, observador, se bem que não arriscasse, conseguiu por associação gravar alguma coisa. E o "profeta" que o riso moleque lhe pespegara à entrada, ia-se tornando familiar. Seu significado não o atingia. Pouco importava, no entanto. A palavra nunca andava sem um olhar irônico, uma ruga de riso. No banheiro (lavava as mãos) recordou as inúmeras vezes em que os mesmos sons foram pronunciados à sua frente. E ligou cenas. Do fundo boiou a lembrança de coisa análoga no templo.
 
O engano esboçado no primeiro dia acentuava-se. A sensação de que o mundo deles era bem outro, de que não participaram em nada do que fora (para ele) a noite horrível, ia se transformando lentamente em objeto consciente. Eram-lhe enfadonhos os jantares reunidos nos quais ficava à margem. Quando as crianças dormiam e outros casais vinham conversar, apalermava-se com o tom da palestra, as piadas concupiscentes, as cifras sempre jogadas, a propósito de tudo, e, às vezes, sem nenhum. A guerra o despojara de todas as ilusões anteriores e afirmara-lhe a precariedade do que antes era sólido. Só ficara intacta sua fé em Deus e na religião, tão arraigada, que mesmo nos transes mais amargos não conseguira expulsar. (Já o tentara, reconhecia, em vão.) Nem bem se passara um ano e tinha à sua frente numa monótona repetição o que julgava terminado. A situação parasitária do genro despertou-lhe ódio, e a muito custo, dominou-o. Vira outras mãos em outros acenos. E as unhas tratadas e os anéis, e o corpo roliço e o riso estúpido e a inutilidade concentravam a revolta que era geral. Quantas vezes (meia-noite ia longe) deixava-se esquecer na varanda com o cigarro aceso a ouvir numa fala bilíngüe risadas canalhas (para ele) entre um cartear e outro. 
 
Então é isso?
 
Os outros julgariam caduquice. Ele bem sabia que não. O monólogo fora-lhe útil quando pensava endoidar. Hoje era hábito. Quando só, descarregava a tensão com uma que outra frase sem nexo senão para ele. Recordava-se que um dia (no início, logo) esboçara em meio a alguma conversa um tênue protesto, dera um sinal fraco de revolta, e talvez seu indicador cortasse o ar em acenos carregados de intenções. O mesmo na sinagoga quando a displicência da maioria tumultuara uma prece.
 
Esses gordos senhores da vida e da fartura nada têm a fazer aqui  murmurara algum dia para si mesmo. 
 
Talvez daí o profeta. (Descobrira, depois, o significado.)
 
Pensou em alterar um pouco aquela ordem e principiou a narrar o que havia negado antes. Mas agora não parecia interessar-lhes. Por condescendência (não compreendiam o que de sacrifício isso representava para ele) ouviram-no das primeiras vezes e não faltaram lágrimas nos olhos das mulheres. Depois, notou-lhes aborrecimento, enfaro, pensou descobrir censuras em alguns olhares e adivinhou frases como estas: "Que quer com tudo isso? Por que nos atormenta com coisas que não nos dizem respeito?" Havia rugas de remorso quando recordavam alguém que lhes dizia respeito, sim. Mas eram rápidas. Sumiam como um vinco em boneco de borracha. Não tardou que as manifestações se tornassem abertas, se bem que mascaradas.
 
O senhor sofre com isso. Por que insiste tanto? 
 
Calou. E mais que isso, emudeceu. Poucas vezes lhe ouviram a palavra, e não repararam que se ia colocando numa situação marginal. Só Pinkos (ele assim o chamava) continuava a trançar sua barba, esfregar o nariz, e contar histórias intermináveis com seus olhos redondos. Inutilidade. 
 
O mar trazia lembranças tristes e lançava incógnitas. Solidão sobre solidão. Interrogava-se, às vezes, sobre sua capacidade de resistir a um meio que não era mais o seu. Chiados de ondas. Um dedo pequeno mergulhado em sua boca e um riso ao choque. Riso sacudido. Poderia condenar? Não, se fosse gozo após a tormenta. Não, não poderia nem condenar a si mesmo se por qualquer motivo aderisse, apesar da idade. Mas os outros? Cegos e surdos na insensibilidade e auto-suficência! Erguia-se então. Caminhava pelos cômodos, perscrutando no conforto um contraste que sabia de antemão não existir. Aliciava argumentos contra si mesmo, inutilmente. E do fundo um gosto amargo, decepcionante. Os dias se acumulavam na rotina e lhe era penosa a estada aos sábados na sinagoga. O livro de orações aberto (desnecessário, de cor murmurava todas as preces), fechava os olhos às intrigas e se punha de lado, sempre de lado. No caminho admirava as cores vistosas das vitrinas, os arranha-céus se perdendo na volta do pescoço, e o incessante arrastar de automóveis. E nisso tudo pesava-lhe a solidão, o estado de espírito que não encontrara afinidade. 
 
Soube ser recente a fortuna do irmão. Numa pausa contara-lhe os anos de luta e subúrbio, e triunfante, em gestos largos, concluía pela segurança atual. Mais que as outras sensações essa ecoou fundo. Concluiu ser impossível a afinidade, pois as experiências eram opostas. A sua, amarga. A outra, vitoriosa. E no mesmo intervalo de tempo!? Deus, meu Deus! As noites de insônia sucederam-se. Tentou concluir que um sentimento de inveja carregava-lhe o ódio. Impossível. Honesto consigo mesmo entreviu sem forças essa conclusão. E suportou o oposto, mais difícil. As formas na penumbra do quarto (dormia com o neto) compunham cenas que não esperava rever. Madrugadas horríveis e ossadas. Rostos de angústia e preces evolando das cinzas humanas. As feições da mulher apertando o xale no último instante. Onde os olhos, onde os olhos que mudos traíram o grito animal? Risada canalha. Carteado. Cifras. Olha o "profeta" aí! E caras de gozo gargalhando do capote suspenso na cadeira. Impossível.
 
Gritos amontoados deram-lhe a notícia da saída. Olhou o cais. Lentamente a faixa d'água aumentava aos acenos finais. Retesou todas as fibras do corpo. Quando voltassem da estação de águas encontrariam a carta sobre a mesa. E seriam inúteis os protestos, porque tardios. Aproveitara as duas semanas de ausência. O passaporte de turista (depois pensavam em torná-lo permanente) facilitara-lhe o plano. O dinheiro que possuía esgotou-se à compra da passagem. Regresso. A empregada estranhou um pouco ao vê-lo sair com a mala. Mas juntou o fato à figura excêntrica que no início lhe infundira um pouco de medo. Planos? Não os tinha. Ia apenas em busca da companhia de semelhantes, semelhantes, sim. Talvez do fim. As energias que o gesto exigiu esgotaram-no, e a fraqueza trouxera hesitações. E ante o irremediável os olhos frustrados dilataram-se na ânsia de travar o pranto. Miúdas, já, as figuras acenando. O fundo montanhoso, azulando num céu de meio-dia. Blocos verdes de ilhotas e espumas nos sulcos dos lanchões. (Há sempre gaivotas. Mas não conseguiu vê-las.) Novamente os punhos cerrando e trançando, as têmporas apoiadas nos braços, e a figura negra, em forma de gancho, trepidando em lágrimas.
 
* Nascido em família judaica, veio para o Brasil em 1936, trazido por seus pais. Passou o restante de sua infância e adolescência nos subúrbios do Rio de Janeiro, nos bairros de Ramos e Olaria. Tendo se formado em engenharia na década de 1950 participou, como calculista, das obras de construção de Brasília, onde fixou residência. Sua obra literária publicada inicia-se com Contos do Imigrante, de 1956, e encerra-se com Que os Mortos Enterrem Seus Mortos, de 1981. Seu estilo é considerado único, fundador de uma nova forma para o conto brasileiro. Após sua morte, porém, sua obra passou a ser buscada mais intensamente pelo público leitor e a receber estudos acadêmicos e críticos, dentre os quais se destacam o trabalho biográfico desenvolvido por Natalia Klidzio e a coletânea crítica em dois volumes organizada por André Seffrin. A obra rawetiana é marcada por temas como alienação, urbanidade e deslocamento. Muitas de suas personagens pertencem a segmentos sociais marginalizados, como imigrantes judeus, moradores do subúrbio e homossexuais.