quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

O BESOURO


Por Lêdo Ivo 
 
O recorte misterioso
 
Encontraram-se na esquina bulhenta e o céu de um azul lívido, entre as estruturas de vidro e concreto, era talvez a primeira antecipação do crepúsculo. Teseu do Carmo ia sozinho. Ia ou vinha, não sabia ao certo, pois tudo quanto o cercava (pessoas, coisas, rumores, as inumeráveis tintas do dia) se deixava palidamente revestir de um envoltório de indecisão. Assim se encontraram: na meia-luz universal. O outro segurava a mão de uma menina, e um pouco atrás estava a sua mulher. E foi precisamente ele que se aproximou de Teseu do Carmo e admitiu não estar sendo reconhecido. Não estava mesmo, mas a pausa desajeitada das contemplações mútuas durou um átimo, fagulhando no ar esbranquiçado da tarde madura. Ele disse que era: um amigo de infância, garantiu que há muitos anos vinha seguindo a carreira de seu antigo companheiro de grupo escolar. Teseu do Carmo! repetiu o nome. Findas a adolescência e as ilusões, sentara praça no Exército, era agora um sargento quarentão; e como o seu nome só circulava nos boletins militares, pensava que nome em jornal era sinônimo de glória. Teseu do Carmo! repetiu. E o nosso amigo sentiu que seu nome era como um besouro, e zoava na tarde amarela. Ia-se ver, não era ninguém... 
 
O sinal abriu, mas nenhum dos dois atravessou a rua. O sargento à paisana falava de algumas coisas sumidas, como um sol: dona Ermelinda, a professora que ambos haviam amado, as tardes em que gazeteavam as aulas e iam tomar banho de mar, a morte de um colega de olhos verdes chamado Vilela. Lembrava-se de tudo, o amigo, sabia de tudo, não deixara a infância deteriorar-se. E Teseu do Carmo se recordava de muita coisa, mas esquecera exatamente a existência do colega agora encontrado, o qual se misturava, na escada de sua memória, a outras figuras imóveis nos degraus, a outros rostos, a outros nomes, a outros banhos de mar. 
 
Teseu do Carmo perguntou pelo nome da menina, achou-o bonito, esqueceu-o logo. O sargento apresentou-lhe a mulher, que se mantinha silenciosa ao seu lado, e cujo ar abrigava algo de inconfundivelmente suburbano como um cheiro de jasmim. Outro sinal abriu. O amigo de infância pediu-lhe um livro seu, autografado. Teseu do Carmo prontificou-se a enviá-lo. De súbito, os seus dedos apertavam o cartão de visitas com o nome, o posto e o endereço do amigo. Para simplificar, garantiu-lhe que, logo no dia seguinte, deixaria o volume na caixa de uma livraria do centro da cidade. 
 
Deixou o livro lá, com o nome do sargento bem visível no pacote. Os dias, as semanas, os meses se passaram, novas tardes amarelas reverberaram nos vidros dos arranha-céus, e o amigo de infância não apareceu para levar o volume. 
 
E o pacote foi amarelecendo, como a infância, e terminou sumindo debaixo de outros embrulhos, cartas e encomendas. Às vezes, o livreiro advertia Teseu do Carmo: "Há um pacote seu aí embaixo. O homem não veio buscar". 
 
E fez bem. Não se deve perturbar a infância. 
 
Sim, na esquina rumorosa, Teseu do Carmo deveria ter dito não, tornando impossível o reconhecimento, repelindo as identificações fantasiosas. Pois a vida não é uma evolução, mas um buquê de metamorfoses. E o Teseu do Carmo repentinamente descoberto pelo sargento não correspondia à visão perdida, que o vento da antiga praia diluíra. Assim, tudo se resumiria a uma coincidência de nomes, espetacularmente facilitada se ele se chamasse, por exemplo, João da Silva. E à medida que os dias passavam, o seu pequeno drama de consciência se fechava em cicatriz. Pois o amigo sargento não viera buscar o livro, recusava distante o elo indesejável, decerto se desinteressara e se arrependera da súbita curiosidade explodida naquela esquina do sim que devera ter sido a esquina do não. 
 
O amigo da infância, criatura falto de nome e de rosto, recusava, dos desdobrados longes de sua humildade, o Teseu do Carmo de agora, autor de obras, escrivão do nada. O seu amigo verdadeiro, o dos mergulhos vespertinos nas águas macias da meninice, não morava no espaço nem nessas desconfortáveis casas de papel talvez impropriamente chamadas de livros. Fôra uma figura do tempo. Fôra e por que não dizê-lo, ante o céu ofuscante de qualquer tarde? o próprio tempo, besouro sumido. 
 
 
II. AGRADECIMENTO
 
Agradeço à minha amada Rute Pardini Braga a formatação e edição da foto do recorte utilizada neste artigo.
 
 

Colaborador: LÊDO IVO


Por Francisco José dos Santos Braga 
 

LÊDO IVO (✰ Maceió, 1924 - ✞ Sevilha, Espanha, 2012). Poeta, romancista, contista, cronista, jornalista e ensaísta. Em 1940, transfere-se para o Recife e, influenciado pelo ambiente intelectual da cidade, publica poemas e artigos na imprensa local. Três anos mais tarde, muda-se para o Rio de Janeiro, e estuda na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Passa a trabalhar na imprensa carioca como jornalista profissional, colaborando com textos literários e reportagens. Em 1944, publica seus primeiros poemas no livro As Imaginações.  À obra de estreia se seguiria intensa produção poética, com Ode e Elegia, de 1945, e Ode ao Crepúsculo, do ano seguinte, além de muitos outros, até Finisterra, de 1972. Seu primeiro romance, As Alianças, foi publicado em 1947. Os anos subsequentes vêem sua obra literária ganhar corpo com o lançamento de poesias, romances, contos, crônicas e ensaios. 

Nas suas crônicas, em geral aparece o protagonista Teseu do Carmo (este nome ecumênico, pagão e cristão), o alter ego de Lêdo Ivo, sósia que criou, para falar de si mesmo na terceira pessoa e até para criticar-se ao atingi-lo, às vezes, com sua ironia. Na pele de Teseu do Carmo, declara sua perplexidade em face da vida e dos acontecimentos. 

Em 1949, forma-se em direito, mas não exerce a profissão de advogado, preferindo a carreira jornalística e de literato. Foi com Ninho de cobras, de 1973, traduzido para várias línguas, que Lêdo Ivo conquistou notoriedade como romancista. É eleito em 1986 para ocupar a cadeira número 10 da Academia Brasileira de Letras - ABL e no seu ingresso foi saudado por Dom Marcos Barbosa em célebre Resposta ao seu Discurso de imortal. Em 2004 é lançada a primeira edição de suas obras completas, com seis décadas de poesia e prosa. 

Para os críticos e historiadores literários, Ivo filia-se à terceira geração do modernismo ou pós-moderna que vai de 1945 a 1980 (conhecida por Geração de 1945, à qual pertencem ainda João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles, com evidente preocupação com a linguagem e o retorno a sensos estéticos anteriores à fase experimental do movimento desencadeado pela Semana de 1922 e representada por autores preocupados em buscar uma nova expressão literária, por meio da experimentação e inovações estéticas, temáticas e linguísticas, do que resultaram mais intimistas sua poesia e sua prosa urbana e regionalista). 

Em 2006, doa seu arquivo pessoal, reunindo correspondências, manuscritos, recortes de jornais e fotografias, ao Instituto Moreira Salles - IMS, de São Paulo. Merece destaque a correspondência do autor, que reúne cartas que lhe foram enviadas pelas personalidades mais importantes de sua geração. Em 2007, o IMS publicou E agora adeus, seleção dessas cartas. 

Cronologicamente, com o título de Calima foi sua última obra de poemas editada inicialmente em solo espanhol pela Vaso Roto Ediciones que ganhou versão em português com o título de Mormaço pouco depois da morte do autor (Rio de Janeiro: Contracapa, 2013). A morte, a “indesejada das gentes”, conforme famosa expressão de Manuel Bandeira, entendida como dissolução inarredável da natureza humana, é a temática principal dos poemas de Mormaço, de Lêdo Ivo. A visão do sujeito poético é desalentadora e irredutível, desde as reminiscências poéticas que remetem à terra natal (Alagoas) até as passagens pela Europa e Estados Unidos, atravessando toda a trajetória pessoal de longos 70 anos de ininterrupta e intensa carreira literária. 

A publicação de um livro fora de seu país natal sugere uma enormidade de questionamentos, que vão desde a inexpressiva presença do poeta alagoano no cenário acadêmico até a posição do autor no cenário editorial e literário brasileiro, pautada por seu tom cáustico na crítica e nos comentários, às vezes reiterativo e mordaz em relação ao cânone modernista brasileiro e seus influxos, isto é, à literatura que se sente tributária da Semana de 1922.

Janela aberta

A multiplicidade, uma das seis propostas de Italo Calvino para o milênio, parece ter sido a grande marca da atividade literária de Lêdo Ivo, cujos “versos longos”, mais abundantes nos primeiros dez anos de escrita, continuariam ocorrentes, porém convivendo com formas curtas, medidas ou não, do sonetilho ao haicai, e até os aforismos espalhados em obras de enquadramento difícil (memorialismo? ensaísmo?), como O aluno relapso e Confissões de um poeta

É essa variedade formal que se vê em seu último volume de poesia, Mormaço, publicado originalmente na Espanha, aonde Lêdo Ivo ia com freqüência nos últimos anos, conhecendo ali uma recepção literária mais intensa e entusiasmada que no Brasil. Em solo espanhol o poeta partiu para o desconhecido, deixando inacabada a última viagem, o que talvez agradasse (ou agrade) à sua consciência, já que celebra a incompletude no primeiro poema de Mormaço:  

O dia inacabado 

Lêdo Ivo, by Robson Vilalba (Revista Ler e Cia.)
 
 
Como todos os homens, sou inacabado. 
Jamais termino de ser. 
Após a noite breve um longo amanhecer 
me detém no umbral do dia. 
Perco o que ganho no sonho e no desejo 
quando a mim mesmo me acrescento. 
Toda vez que me somo, subtraio-me, 
uma porção levada pelo vento. 
Incompleto no dia inacabado, 
livre de ser ainda como e quando, 
sigo a marcha das plantas e das estrelas. 
E o que me falta e sobra é o meu contentamento.


 
 
 
 
II. REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS


ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS: Discursos Acadêmicos, tomo VI (1981-1995), Rio de Janeiro, 2010, 951 p. 
 
BLOG ÚLTIMAS PALAVRAS: Mormaço: a última estação de Lêdo Ivo? 
 
LÊDO IVO. In: INSTITUTO MOREIRA SALLES. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2017. Disponível em: https://ims.com.br/2017/06/01/sobre-ledo-ivo/. Acesso em: 28/12/2021. 
 
___________ In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa2861/ledo-ivo. Acesso em: 28/12/2021. 
 
RASCUNHO: A morte solar de Lêdo Ivo  

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

ADEUS A FRANCISCO RODRIGUES DE OLIVEIRA (1932-2021)


Por Francisco José dos Santos Braga 
 
 
"O meu xará, historiador Francisco Oliveira, cognominado "Francisco Teoria", foi meu parceiro inconfundível desde o momento em que fui admitido como sócio correspondente da Academia Barbacenense de Letras em 2013, sob a presidência do Prof. Mário Celso Rios. Inesquecível foi ainda a participação dele nas várias edições de Encontros de Pesquisadores do Caminho Novo, proferindo palestras e divulgando estudos de elevada significação histórica. Impossível seria esquecer aqui de citar a sua coautoria do livro "Padre-Mestre Correia de Almeida" (2003), feito a quatro mãos e obra indispensável para constar de toda bibliografia respeitável sobre o Padre-Mestre. Numa grata oportunidade, tive a alegria de ter seu aplauso no Centro de Memória Belisário Pena, onde fiz uma palestra sobre a vida e obra de Lincoln de Souza. Ele teve o mérito de "garimpar" muitas informações sobre São João del-Rei na ACAHMPAS e, mais tarde quando se mudou para Belo Horizonte, no APM-Arquivo Público Mineiro, municiando-me dentro do melhor espírito de amigável cooperação por e-mail. Sempre teve o cuidado de atender-me com desprendimento, numa atitude típica de "homem de boa vontade". Fará falta a todos nós, seus amigos, confrades e familiares."

Reproduzo aqui a Nota de Pesar da ACAHMPAS, repassada gentilmente por Edna Resende:

 

NOTA DE PESAR DA ACAHMPAS


 

Nesta quarta-feira, dia 22 de dezembro de 2021, o Sr. Francisco Rodrigues de Oliveira nos deixou. Aos 89 anos. Sr. Francisco dedicou grande parte da sua vida ao estudo da história de Barbacena e região. Nascido em 1932, em Alfredo Vasconcelos, Sr. Francisco estudou Agronomia e foi professor de Matemática e apaixonado pela História. Do seu interesse pela área nasceram livros como “História da estrada de rodagem Barbacena-Ibertioga” (2002) e “Godofredo Rodrigues de Oliveira, seus ancestrais e sua vida” (2005). Sr. Francisco também participou da fundação da Associação Cultural do Arquivo Histórico Municipal Professor Altair Savassi (ACAHMPAS), em 2009. Ele foi presidente da ACAHMPAS entre 2009 e 2012. O Arquivo, a ACAHMPAS e toda a cidade de Barbacena perdem muito com a partida do Sr. Francisco. Que ele descanse em paz e que sua família e amigos encontrem conforto neste momento difícil. 

domingo, 19 de dezembro de 2021

Rute Pardini - ÁRIA DAS PALMEIRAS DA GRANDE ÓPERA O SERTÃO DE FERNAND JOUTEUX


Por Francisco José dos Santos Braga 
 
Convite para o Concerto da OSPM-Orquestra Sinfônica da Polícia Militar de Minas Gerais no Teatro Municipal de São João del-Rei em 03/12/2021, abrindo a "Semana da Cidade" que comemora seus 308 anos

 

Constou do referido Concerto Prelúdio e Ária das Palmeiras / (Ato I, Cena 1) da grande ópera O SERTÃO de Fernand Jouteux  / Participação especial: Duo Rute Pardini & Francisco Braga - soprano lírica Rute Pardini no papel de "Cília", interpretando Ária das Palmeiras, e pianista Francisco Braga ao piano, em substituição à harpa, instrumento para o qual o acompanhamento foi originalmente composto. 
Maestro: 1º Ten PM Marco Aurélio da Cruz Correa 
Mestre de Cerimônias: Sgto Samuel Eudóxio do 38º BPM sediado em São João del-Rei 
 
Com esse concerto em data cívica comemorativa, as instituições de cultura são-joanense acreditavam estar modestamente pagando um tributo a esse valoroso compositor francês, tendo aqui morado, ensinado e encantado em 1937 e onde fundou e dirigiu o Conservatório Sanjoanense de Música. 

Diante da excelente organização do evento, só me resta dizer: Parabéns a São João del-Rei e a suas autoridades pela inserção de parte da grande ópera O Sertão de Fernand Jouteux nesta data tão expressiva de nossa história!
 
Neste concerto, estava programada, como segundo número, a apresentação do Prelúdio e Ária das Palmeiras
 
No que se refere à Ária das Palmeiras sem interrupção e em sequência imediata ao Prelúdio, cabe dar algumas informações para ambientação à grande ópera O Sertão. Segundo o libreto original em francês, em tradução de Celso Brant, lê-se o seguinte:
 
ATO I 
 
O jardim da fazenda "Boa Viagem" 
A cena representa o Jardim da fazenda "Boa Viagem" de Dona Chiquinha, perto de Quixeramobim, no Estado do Ceará. Ao fundo, está o chalé, para cuja varanda vão dar as portas e as janelas dos apartamentos de Dona Chiquinha e de Cília, separados por toda a extensão do corredor. Palmeiras, bananeiras, laranjeiras, bambus, loureiros rosas, jasmins, orquídeas, trepadeiras. Cília está indolentemente reclinada numa rede presa a bambus. 
 
CENA I: ÁRIA DAS PALMEIRAS
 
CÍLIA (só)
 
(assentando-se na rede) 
Minh'alma está atacada de estranho sofrimento, 
Malgrado atrações que enfeitiçam meus olhos. 
 
(levanta-se) 
Terra formosa de céu azul, calmo ribeiro, fresca planície 
Jardim risonho, natureza amada 
Cumpre-me dizer hoje adeus! 
 
Palmeiras lindas e sombrosas, sois testemunhas da minha dor 
Vossas flexíveis folhas verdes se agitam menos que o meu coração. 
Ó céu! Dignai-vos ser-me propício, tende piedade de mim. 
Devo ou não fugir à malícia 
Que tece sua teia ao meu redor? 
 
Palmeiras lindas e sombrosas, sois testemunhas da minha dor 
Vossas flexíveis folhas verdes se agitam menos que o meu coração. 
 
Palmeiras lindas e sombrosas, ouvi minha voz dizer hoje ADEUS!!! 
 
O leitor do Blog de São João del-Rei pode ouvir a gravação para Prelúdio e Ária das Palmeiras de Fernand Jouteux na belíssima interpretação de Rute Pardini, clicando no link abaixo:  
 
Link: https://youtu.be/ddEnREiWArk  👈 

 
Rute Pardini canta "Ária das Palmeiras" da grande ópera O Sertão de Fernand Jouteux - Crédito pela foto: Antônio Élber




 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Crédito pela foto: Antônio Élber
 
 
Soprano Rute Pardini no papel de Cília - Crédito pela foto: Antônio Élber
 
Rute Pardini acompanhada pela OSPM - Crédito pela foto: Antônio Élber

 
Que tipo de premonições terríveis toma conta do espírito de Cília? Na conversa da Cena II, que vem em seguida à Ária das Palmeiras, ficamos sabendo, num diálogo entre Cília e Patrício, seu cunhado e irmão por parte de mãe (D. Chiquinha) de Antônio Conselheiro, que sua sogra a persegue e "sempre a considerou como uma vil estrangeira e jamais a perdoará por ser filha de seu intendente e ter entrado no seio do seu lar". Cília está inconsolável porque "daquele que adoro, querem-me, à força, apartar." Ou seja, D. Chiquinha não tolera o amor entre Cília e Antônio e está disposta a tudo para impedi-lo. 
 
 
 

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

O BAR DO CADETE DURO


Por AMARO Luiz ALVES *

Amaro Luiz Alves

Os bares e restaurantes de Barbacena no início da década de 1960 eram as opções disponíveis, nos sábados e domingos, para fugirmos um pouco do tempero do rancho da Escola Preparatória de Cadetes do Ar (EPCAR). 
Naquela época, a cidade contava com pequeno número de bares, restaurantes e lanchonetes, que ofereciam serviços para os variados níveis de renda da sociedade local. 
Na EPCAR estudavam alunos originários de famílias de todas as regiões do Brasil e, também, dos mais variados níveis de renda. Os menos abastados, obviamente, buscavam na cidade locais de alimentação compatíveis com as suas limitadas finanças. 
O "Bar do Cadete Duro" não tinha o glamour do Gino's, nem as iguarias do restaurante do Hotel Palace, nem os cardápios das boas lanchonetes da cidade. Era uma padaria simples, afastada do centro, na Rua Quinze de Novembro, no meio do percurso entre a EPCAR e a Praça dos Andradas. No jargão de caserna chamávamos esse local de “bar do cadete duro”. 
Seu "prato" mais solicitado, talvez por ser o único, era o pão com queijo minas ou mortadela, regado a guaraná ou café com leite, bem ajustado às finanças combalidas dos Alunos de origem mais humilde. 
Aos domingos, quando saíamos à cidade vestidos com o 5° uniforme completo, a liturgia da farda exigia que fôssemos discretos em nossos hábitos simples de menos afortunados. Por essa razão, esse bar mantinha um pequeno cômodo, chamado de "reservado", de modo que a simplória refeição ficasse ao resguardo dos olhares baldios dos passantes. 
Quando o dinheiro disponível estava muito mais escasso, havia outro recurso para não dormirmos com a “barriga roncando”. Era um pequeno bar, de meia porta, na descida da rua Artur Bernardes em direção à EPCAR, que servia um energético infalível: copo médio com leite quente adoçado com groselha. Era o “bar do cadete duríssimo”. 
Nesta jogada de rede no fundo do mar das lembranças, tento descrever e localizar o "bar do cadete duro" (em desafio de memória, auxiliado por testemunhas oculares da História) e, também, faço referência a outro, último recurso alimentar, quando retornávamos à EPCAR no fim da noite. Esse, que servia leite quente colorido com groselha, que passei a chamar de "bar do cadete duríssimo", localizado na Rua Artur Bernardes, à direita de quem desce no rumo da EPCAR, pertencia ao Mariano, portador de um clássico bigode à moda portuguesa. 
O "bar do cadete duro", que na realidade era uma padaria de propriedade da família Pardini, localizava-se na Rua Quinze de Novembro, onde hoje funciona uma loja de propriedade de comerciantes orientais, à direita de quem vai da EPCAR em direção à Praça dos Andradas (Praça dos Macacos). O recinto "reservado", onde se degustavam saborosos e baratos sanduiches, era um cômodo situado no mesmo nível da padaria. 
O Gino’s, pizzaria inaugurada em 1957, na galeria do Cine Apolo, funciona hoje na rua Primeiro de Maio, quase esquina com a Bias Fortes, em amplas instalações. 
O restaurante do Hotel Palace fechou junto com o hotel que, ainda hoje, exibe, saudosamente, as ruínas da fachada que viveu dias de pompa. Junto com o hotel e o restaurante, fecharam-se as cortinas do Cine Palace, palco de elegantes sessões dominicais. 
A Praça dos Andradas, apelidada de “Praça dos Macacos, em razão de ter árvores habitadas por macacos-prego, não abriga mais esses símios. Passaram-se seis décadas e muitos dos fregueses do pão com queijo e do pingado com groselha estão merecidamente aposentados, depois de galgarem altos postos nas Forças Armadas e Auxiliares, bem como nos altos escalões da vida civil nacional. 
Tenho certeza de que eles ficarão muito felizes por terem sido lembrados.
 
* Aluno-Veterano/EPCAR 60-24; hoje sanitarista aposentado, fotógrafo de Natureza.
 
 
(Texto escrito com o auxílio de muitas mãos, mentes e corações, em resposta a desafio de memória lançado na página Barbarascenas, do facebook, por Farah (Aluno-Veterano/EPCAR 61-337).  23/12/2020