segunda-feira, 19 de junho de 2023

DESPEDIDA DA PIANISTA MARIUGA ANTUNES


Por JORGE ANTUNES *
Fala do autor no velório de Mariuga Lisboa Antunes (✰ Belém-PA, 10/11/1938 - ✞ Brasília-DF, 31/05/2023), em 4 de junho de 2023 (na voz do amigo Argos de Faro).
"A Mariuga, minha eterna musa inspiradora, meu Sol." (Jorge Antunes)
 
Quero agradecer de coração a presença de vocês, o carinho de vocês, a solidariedade, neste momento tão triste. 
 
Sinto que meu brilho, como artista, como pessoa, como ser humano, começa a se apagar. Mariuga foi meu Sol permanente. Ela me iluminava. Essa iluminação começou em 1963 quando começamos o namoro. Éramos dois jovens colegas estudantes de música. Aí estão, assim, sessenta anos de convívio, amor e companheirismo. 
 
Percebendo ter encontrado meu Sol, fiz este quadro para ela em 1964:
 
Quadro pintado por Jorge Antunes, dedicado a Mariuga
No ano seguinte, 1965, brigamos. Eu soube mais tarde que ela quis destruir o quadro. O pai dela, o poeta Hugo de Abreu Lisboa, não deixou, protegeu o quadro. 
 
Em 1966 reatamos, e nunca mais nos largamos.
 
Em dezembro de 1968, com o AI-5, comecei a ser perseguido pela ditadura militar. Fui demitido do Instituto Villa-Lobos, onde eu era professor. Era o ano em que nós dois nos formávamos na Escola de Música da Universidade do Brasil, atual UFRJ. 
 
Coincidência: ganhei uma bolsa de estudos no CLAEM do Instituto Torcuato Di Tella de Buenos Aires, dirigido pelo maestro Alberto Ginastera. O prêmio não pagava as viagens.
 
No momento eu estava "incurso em inquérito policial-militar" por subversão e participação na criação de uma célula do Partido Comunista na FNFi, onde eu cursava o bacharelado em Física. 
 
Resolvemos logo nos casar e tentar sair do Brasil.
 
O pai de Mariuga não era apenas poeta: era também Dentista Tenente-Coronel do Exército. O poeta que salvou meu quadro, nos salvou da prisão. Após o casamento ficamos todos acordados até a madrugada, quando fomos levados a um avião do CAN (Correio Aéreo Nacional), órgão mantido pela FAB, rumo a Buenos Aires.
 
Ou seja, não fizemos uma "viagem de núpcias": fizemos uma "fuga de núpcias" a bordo de um avião da ditadura militar. 
 
Ali começamos uma vida maravilhosa de lutas e vitórias. Nosso primeiro filho, Mauritz, nasceu na Holanda. Os outros dois, Jorginho e Marquinho, nasceram em Brasília. Depois vieram os doces netinhos Arthur, Caio Marc, Anne, Igor e Valentina.
 
Acho que Mariuga foi feliz. Fiz tudo para isso. Ela tornou-se minha eterna musa inspiradora, minha pianista, minha metade. Esposa, mãe e avó amorosa. Graças àquela "fuga de núpcias", proporcionada pelo Tenente-Coronel, conseguimos realizar juntos uma bela e longa carreira artística no exterior e no Brasil. 
 
Resta-me, agora, tentar sobreviver sem meu Sol.
 

 
 
Registro do casamento de Jorge de Freitas Antunes com Mariuga Lisboa Antunes, tendo o pai da noiva, Dr. Hugo de Abreu Lisboa, ao fundo. Em homenagem a seu benfeitor, que era Ten Cel do Exército, Jorge Antunes escolheu o belíssimo Oratório do Soldado para a Missa de 7º Dia do passamento de sua esposa, em homenagem a seu saudoso sogro, "estendendo-a a todos os militares sensíveis que defendem a paz, a vida, os direitos humanos e a democracia".

 
 

II. AGRADECIMENTO
 
 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste ensaio. 
Homenagem da cantora lírica Rute Pardini à presença ilustre do casal Antunes no seu Recital de Formatura em 10/07/2008, do seu álbum de fotos memoriais:
 
Rute Pardini e o casal Antunes
 
Rute Pardini e Jorge Antunes

 
 
 
 
 
 
 
Rute Pardini e Mariuga se abraçam

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
III. BIBLIOGRAFIA SOBRE O AUTOR 
 
ANTUNES, Jorge: Grande Ópera Brasileira na Europa, in Blog de São João del-Rei, postado em 07/08/2019.
 
_____________: Música de Câmara (incluindo 'Maracatuzinho da Mariuga', interpretado pela homenageada)
 
BRAGA, Francisco José dos Santos: Colaborador: JORGE ANTUNES, in Blog de São João del-Rei, postado em 07/08/2019. 
 
__________________________________:  CONCERTO DE FORMATURA DA CANTORA LÍRICA RUTE PARDINI, in Blog de São João del-Rei, postado em 04/07/2016.
 
__________________________________: RUTE PARDINI interpreta cena final do IV Ato da ópera LA TRAVIATA de Giuseppe Verdi, in Blog do Braga, postado em 28/10/2021.
 
PARDINI, Rute: Um Passeio pelo Romantismo,  vídeo postado no YouTube em 27/10/2021.
 
WIKIWAND: verbete JORGE ANTUNES 

sábado, 3 de junho de 2023

AS ÚLTIMAS BATALHAS DE ANTÓNIO SÉRGIO


Por ANTÓNIO VALDEMAR *
 
Este ensaio foi concebido in memoriam do cinquentenário do falecimento de António Sérgio (1883-1969) e originalmente publicado na separata da revista de cultura libertária A IDEIA, Ano XLVIII, vol. XXV, números 97/99, p. 97-115, 2022.
António Sérgio - óleos de Almerinda Pereira - 2022

 
Cinquenta anos depois do falecimento de António Sérgio continua a ser evocado com apreço, embora o esquecimento cresça à medida que desaparecem os que partilharam, direta ou indiretamente, o seu magistério cultural e cívico. Faleceu no início do consulado de Marcelo Caetano. Estava ausente da realidade política. A sua intervenção terminara há dez anos. Retirara-se com as eleições e o exílio de Humberto Delgado; a prisão pela PIDE, a morte quase simultânea da mulher, das irmãs e do cunhado, o medalhista João da Silva, acentuaram uma grave depressão que o arrasou, isolou e da qual nunca mais conseguiu recuperar. 
Jaime Cortesão, líder da oposição, faleceu em Agosto de 1960. O Programa da Democratização da República ¹ – que Jaime Cortesão não acompanhou na totalidade – só foi concluído e divulgado depois da sua morte. Já não se circunscrevia, apenas, aos princípios republicanos e ao ideário seareiro. Acrescentava objetivos definidos na República Moderna, de Mendès France, declarações programáticas de Willy Brandt e de outros dirigentes da social-democracia europeia. Mas omitia o pomo de discórdia: a autodeterminação ou a independência das colónias, intensificadas pela questão da Índia e a irradiação dos nacionalismos africanos. 
À exceção dos textos do Partido Comunista, publicados no Avante, no Rumo à Vitória de Álvaro Cunhal e nos manifestos de grupos da extrema-esquerda, o Programa da Democratização da República é o último documento da ação conjunta de 61 figuras tão diversas da oposição. Juntava sobreviventes do 5 de Outubro de 1910 (Mendes Cabeçadas e Hélder Ribeiro); fundadores e colaboradores efetivos da Seara Nova (Mário de Azevedo Gomes, Santiago Prezado, Augusto Abelaira, Fernando Piteira Santos); nomes fundadores do futuro Partido Social Democrata (PSD/PPD; Nuno Rodrigues dos Santos, Artur Santos Silva e Olívio França); e fundadores do futuro Partido Socialista (Mário Soares, Ramos da Costa e Salgado Zenha). Mas não assinaram alguns subscritores habituais nestes documentos, tais como: Aquilino Ribeiro, Augusto Casimiro e Manuel Mendes. 
A oposição já se confrontava com novos desafios: a emigração crescente de trabalhadores, o exílio de intelectuais, os protestos sindicais, o recrudescimento das manifestações nas universidades, envolvendo professores e alunos, a intervenção da polícia de choque, os gorilas, as prisões da PIDE a encher Caxias, o Aljube e Peniche. ² O regime endureceu de costas voltadas para o mundo. Colaborou na destruição, pela extrema direita, a PIDE e a Legião Portuguesa, da sede da Sociedade Portuguesa de Escritores e o seu encerramento decretado pelo ministro Galvão Teles ³; Salazar orgulhava-se de Portugal estar «orgulhosamente só». A exaltação da guerra era um imperativo. A Pátria não se discute, era outra palavra de ordem. A autodeterminação ou a independência das colónias, a guerra em três frentes (Angola, Guiné e Moçambique), a reabertura do Tarrafal pelo ministro de Salazar, Adriano Moreira , serão mais outros, senão o principal problema do regime e da oposição. Estes temas dividiam a própria Maçonaria. 
Mário de Azevedo Gomes vai assumir a liderança da oposição até falecer em Dezembro de 1965. O Diretório Democrata-Social admitiu a hipótese de entregar a presidência a Cunha Leal, antigo ministro da I a República, mas a primeira geração, formada na Seara Nova, por António Sérgio, Jaime Cortesão, Raúl Proença e Camara Reys – constituída por Manuel Mendes, Fernando Abranches Ferrão, António Macedo, Carlos Cal Brandão e outros – não aceitava Cunha Leal. Recordavam uma das mais contundentes polémicas desencadeadas por Raul Proença: o conflito entre os princípios e os interesses, o antagonismo entre as conveniências económicas, os valores morais e a ética política. É neste contexto que Mário Soares, a 16 de Dezembro de 1965, no funeral de Mário de Azevedo Gomes, no cemitério dos Prazeres, proferiu um discurso que vai mudar o futuro da oposição. Estive lá como repórter do Diário de Notícias e como amigo e admirador de Azevedo Gomes, oriundo de famílias açorianas e, ele próprio, nascido na ilha Terceira. Recordo-me do que se passou e do que a Censura truncou e suprimiu. É um momento histórico do currículo de Mário Soares. Talvez existia um registo áudio no espólio de Igrejas Caeiro. Lembro-me que este fez uma gravação. Ao usar da palavra, Mário Soares, num ambiente de extrema tensão política e apertada vigilância policial, declarou, categoricamente, que, falecido o líder indiscutível, não aceitaria outro líder que não fosse da geração do próprio Soares. Afastava-se a hipótese de Cunha Leal. Era a oportunidade da nova geração dar testemunho. Estávamos em Dezembro de 1965. Dias antes, Mário Soares completara 41 anos. O discurso foi a afirmação e o anúncio público da sua liderança política.
Sérgio continuava longe de tudo. Sem perder a lucidez, perdera o interesse de tudo aquilo que sempre o atraía e motivava. Um recenseamento de Matilde de Sousa Franco, (familiar de António Sérgio) no Dicionário da História de Lisboa sobre a Casa de António Sérgio indica os nomes dos frequentadores daquele espaço cultural e político. Sem mencionar familiares e, neste momento, já são poucos. Embora sujeito a retificações, restam: Fernando Castelo Branco, filho do ensaísta Castelo Branco Chaves; e eu próprio. E em que circunstancias cheguei a António Sérgio? Mário de Castro, amigo de sempre de António Sérgio, devido a uma discordância enérgica, num exame com Martinho Nobre de Melo, professor da Faculdade de Direito de Lisboa decidiu acabar em Coimbra a licenciatura e integrou-se no curso jurídico de 1920-1925, de que meu pai fazia parte. Estabeleceram relações de amizade, a aproximação pessoal com António Sérgio e o universo dos Ensaios. Coube-me, depois, usufruir de perto e sem intermitências essa relação. Também contribuíram outros amigos de meu Pai: Vitorino Nemésio e outro colega de curso, Eduardo de Figueiredo, um dos mais intemeratos advogados dos Tribunais Plenários, que interpôs o recurso para o Supremo Tribunal Administrativo de Lisboa, em face da extinção da Sociedade Portuguesa de Escritores. Os contactos ocasionais na Livraria Sá da Costa deram lugar ao convite de Sérgio para eu frequentar as célebres reuniões na Casa na Travessa do Moinho de Vento. Tive, então, o privilégio do convívio, no debate de ideias acerca da conjuntura política, social e cultural. A tertúlia que reunia na casa de Sérgio era um grupo plural com várias correntes da oposição, constituído por intelectuais e políticos com afinidades eletivas. Predominava o racionalismo de raiz humanista. 
O projeto de Sérgio residia na sua teorização do Terceiro Homem, a formação do jovem e do cidadão, de modo a pensar e a intervir de forma ativa e responsável. Mas, na generalidade, insistia na liberdade de opinião, no exercício da crítica, na existência de partidos políticos, na cooperação e no diálogo com todos os povos do mundo. Preconizava a urgência da modernização da agricultura, o desenvolvimento da indústria, a formação de quadros especializados, a reorganização do sistema económico e do circuito produtivo, da política de saúde e da segurança social, no âmbito da reforma do Estado e da Administração Pública. Fazia, ainda, parte dos atributos do Terceiro Homem a oposição às pedras mortas, ao Segundo Homem, aos adeptos servis e oportunistas do Estado Novo, reduzido a obras públicas de fachada, ao jogo de conveniências, à teia de interesses instalados, aos rituais de oratória preopinante. Também se distanciava do Primeiro Homem, que implantou a República e se prodigalizou em conspirações intermináveis, revoluções sangrentas, exercícios de retórica dentro e fora do parlamento. O Terceiro Homem representava as Pedras vivas do país real, a consciência do presente e a determinação para o futuro. ¹
A década de 50 deu lugar a uma das fases de mais intensa produção intelectual de Sérgio. Todo o tempo era metodicamente distribuído. Completara 70 anos em 1953. Esgotava as energias numa atenção concentrada nas grandes questões culturais que sempre o mobilizaram; nos comentários aos temas políticos do dia a dia, nos cortes drásticos da censura, a mutilar-lhe os textos, a distorcer a análise, a esvaziar a crítica e a coragem da indignação. Na década de 50, Sérgio publicou mais dois tomos dos Ensaios, o VII, em 1951, e o VIII, em 1958. Em ambos, inseriu prefácios para as obras completas de Oliveira Martins (Teoria do Socialismo, 1952, Portugal e o Socialismo, 1956, O Caráter do Socialismo de Antero, 1952); e uma interpretação da História Trágico-Marítima, para uma edição anotada e comentada. ¹¹ Mas avultava outro ensaio sobre os primórdios da nacionalidade, a presença de lusitanos e romanos, a integrar num compêndio popular de uma História de Portugal, encomendada por Luís de Montalvor, poeta e editor do primeiro número do Orpheu que renovou as artes gráficas, fundou a editorial Ática, lançou História do Regime Republicano e, a partir de 1942, a obra ortónima e heterónima de Fernando Pessoa. 
Travou António Sérgio a última polémica com António José Saraiva. Decorreu em 1952 quando, na revista Vértice, Saraiva recenseou a reedição do primeiro tomo dos Ensaios, formulou reparos acerca da tese de Sérgio sobre a tomada de Ceuta e o idealismo de Sérgio, no prefácio da tradução portuguesa de Problemas da Filosofia, de Bertrand Russel. ¹² Sérgio considerava a polémica necessária e uma das componentes da sua conduta pessoal, intelectual e cívica. Para espanto de todos que nos recordávamos de algumas controvérsias aguerridas, justificava esta atitude visceral ao salientar que apenas saía à estacada porque se limitava a explicar «as suas próprias ideias quando as vê desentendidas por leitores distraídos ou quando as crê deturpadas, nada mais. As outras criaturas é que polemicam comigo porque sempre se irritam quando lhes quero explicar». ¹³ «Foi reconhecendo este meu feitio» – prosseguia noutro passo – «que certo crítico observou algures que eu não sou, intelectualmente um esgrimista, senão que sim um afinador de pianos intelectuais. Em Portugal, profissão ingrata e de bem pouco préstimo». ¹ 
A polémica com António José Saraiva não assumiu as características que marcaram os diferendos com Jaime Cortesão e Teixeira de Pascoaes; nem a dimensão escaldante nos debates com Malheiro Dias ¹ ou Manuel Múrias ou, ainda, ao enfrentar José Marinho e, em especial, Sant’Ana Dionísio, por causa do criacionismo de Leonardo Coimbra. ¹ A polémica com Cabral Moncada tem sido classificada de exemplar. Com Bento Caraça, fixou desacordos ideológicos e políticos. Na polémica com António José Saraiva – em cujos bastidores se movimentaram Fernando Piteira Santos e Jorge Borges de Macedo – voltou a demarcar-se do materialismo dialético e do marxismo. 
Ficaram sempre por sarar as feridas causadas pela saída de Sérgio da Seara Nova, uma das suas tribunas doutrinárias, mas, o vigor das polémicas, não afetou, até ao fim da vida, os laços de amizade com Teixeira de Pascoaes e Jaime Cortesão. Do convívio com Jaime Cortesão, também existia o retrato a tinta da china de um Sérgio jovem, da autoria de Cortesão. ¹⁷ Os seus retratos prediletos eram a sanguínea de António Carneiro, o desenho de José Tagarro e o bronze de Júlio Vaz. O cartunista Vasco (Vasco de Castro), autor de várias interpretações de Sérgio, acompanhou e organizou, nos anos 50, para o jornal A Planície, uma entrevista de Afonso Cautela, com uma fotografia de Walter Sampaio, um dos filhos do consagrado fotógrafo Sampaio. Julgo que não se pode classificar uma polémica – tal como as outras – a questão surgida com a reedição da História de Portugal, de António Sérgio, (coleção da Labor, de Barcelona que gozava de reputação universitária nos países hispânicos) e introduziu, sem consentimento do autor, parágrafos de elogio à política de Salazar. Sérgio limitou-se a denunciar a fraude e a instaurar um processo-crime (que ganhou). Ficou provado que não era uma atualização, mas uma afronta às suas ideias e à sua militância política. 
Existem, na Torre do Tombo, no Arquivo de Salazar e da PIDE duas cartas do jornalista Jaime Brasil (1896-1966), na altura redator d’ O Primeiro de Janeiro, no Porto, e coordenador do suplemento literário semanal das quartas-feiras. Encontram-se entre numerosa correspondência apreendida. ¹⁸ Uma carta tem apenas a indicação do ano de 1956 e a outra a data de 21 de outubro de 1959. Ambas endereçadas para a residência de Sérgio, na Travessa do Moinho do Vento, e o remetente Jaime Brasil, O Primeiro de Janeiro, Porto. Estas referências ao chegarem aos Correios – fortemente minados pela PIDE – alertaram para imediata apreensão. 
Será melhor transcrever e pormenorizar alguns pontos da carta de Jaime Brasil a António Sérgio, sobre a reedição da História de Portugal, apesar da publicação integral em anexo do texto, com a ortografia da época. Tratando Sérgio por «querido amigo e mestre», Jaime Brasil começou por manifestar «protesto ao que todos os homens, ainda não arregimentados ao existente neste País, deveriam enviar à Editorial Labor pela patifaria de macular a sua admirável História de Portugal com sabujices aos régulos das duas infelizes nações hispânicas. Quantos conhecem a altitude do seu pensamento e a nobreza do seu carácter sabem que seria incapaz de dar o seu aplauso à política de opressão e à economia de miséria em que agonizamos». Insurgiu-se, com veemência, pelas abusivas alterações que levavam a admitir que «até António Sérgio, a despeito de ter recebido ainda há pouco a honra de ser encarcerado, também se juntava ao coro dos lacaios que entoam louvores aos césares de farsa. É isso o mais grave». Refere depois que, n’ O Primeiro de Janeiro, na página literária «fez-se eco do seu indignado protesto; mas é preciso que esse eco seja retumbante». «Penso» – afirma a concluir – «na possibilidade da realização de uma «manifestação de desagravo. Se estivesse aí, lançaria a ideia de uma mensagem, uma sessão pública, qualquer coisa que traduza o nosso protesto. Dou a minha solidariedade a tudo e colaborarei seja no que for para esse fim». ¹
A atividade imparável de António Sérgio, ultrapassava os limites da resistência física e psicológica, de um homem com 70 anos com uma vida bastante sóbria, embora desgastada por inúmeras provações. Assumiu protagonismo em duas campanhas presidenciais, a de Quintão Meireles e a de Humberto Delgado. A intervenção pontual ficou reunida em quatro publicações de grande impacto na opinião pública: Cartas de Problemática (1952-1955); Cartas do Terceiro Homem (1953, 1954 e 1957); Antologia Sociológica (1956 e 1957) e Pátio das Comédias (1958). Merecem descodificação, investigação e contextualização as referências dos visados diretos e explícitos – ou não – nos textos e que funções públicas desempenhavam na altura. Muitos textos, antes de editados em opúsculos, saíram nos jornais da oposição – República e Diário de Lisboa. A Censura prosseguia implacável. Também a PIDE seguia os passos de António Sérgio e dos que iam a sua casa e compareciam nas tertúlias da Sá da Costa, na sede da Inquérito, da Bertrand, da Guimarães e da Europa-América que principiava a atividade num primeiro andar da Rua das Flores. Controlava a correspondência que António Sérgio enviava ou recebia. Também se encontra na Torre do Tombo, nos processos da PIDE e no Arquivo Salazar a outra carta de Jaime Brasil dirigida a António Sérgio, acerca das suas mais recentes e, afinal, últimas publicações. 
Eduardo Salgueiro, editor de Sérgio, fundador e diretor da Inquérito, habituara-se às arbitrariedades da Censura e conhecia os métodos de atuação da PIDE. Daí utilizar os possíveis estratagemas para os contornar. Fui seu amigo muitos anos – escrevi sobre ele um artigo no Diário de Notícias – procurei recolher-lhe as memórias de um editor, nomeadamente, as consequências da publicação do livro D. Carlos, da autoria de Júlio de Sousa e Costa e, sobretudo, devido ao capítulo sobre o Regicídio. ²
Um estudo exaustivo de Maria Manuela Poitout, na revista Nova Augusta, número 26, editada pela Câmara de Torres Novas e publicado em 2014, examinou o processo arquivado na Torre do Tombo. Uma denúncia de Alfredo Pimenta, monárquico e salazarista – antigo anarquista, que louvara, tal como Guerra Junqueiro e Aquilino Ribeiro, e nos termos mais encomiásticos a coragem física e moral do regicida Manuel Buíça – pediu a intervenção da PIDE e da Censura. O livro foi logo retirado. A Bertrand, com existência centenária, que escapara à Inquisição, à Intendência de Pina Manique e outras polícias, foi temporariamente encerrada. A administração e comissão de leitura foram logo substituídas por Pedro de Moura e Sá, Vitorino Nemésio, Padre Moreira das Neves e Luís Forjaz Trigueiros. E presos os responsáveis pela edição: Eduardo Salgueiro e Casais Monteiro. 
A experiência de Eduardo Salgueiro, a propósito das edições de António Sérgio, levava-o a distribuir os livros e opúsculos através dos pequenos núcleos de opositores, radicados através de todo o País, antes das obras serem postas à venda nas livrarias e, entretanto, apreendidas. É neste contexto que volta a surgir Jaime Brasil, colega e amigo de Salgueiro desde a redação de O Século, para o lançamento quase clandestino, no Porto da série da Antologia Sociológica e da série do Pátio das Comédias. Numa das cartas intercetadas, Jaime Brasil, relatava a coleta que efetuara no Porto, dentro d’ O Primeiro de Janeiro, na redação e na administração. Tratando, de novo, António Sérgio por «prezado Mestre e Amigo», Jaime Brasil dava conta da «remessa dos Cadernos, da Inquérito»; da «colecta», que fizera e do envio da verba que conseguira, através de um vale do correio». A seguir, pormenorizou: «Foram apenas 150$00 e ainda assim foi preciso o nosso amigo Manuel Caetano de Oliveira ²¹ que aliás já tinha recebido os Cadernos, contribuir com 50$00. Os cinco exemplares de cada número, que recebi da “Inquérito”, foram distribuídos por quatro amigos cá do jornal, de que lhe mando os endereços em papel aparte, para serem considerados assinantes a partir do terceiro caderno. Esses pagaram os exemplares que lhes distribuí pelo dobro do seu preço de capa.» ²² «Fiz uma pequena notícia do aparecimento dos Cadernos» – acrescenta Jaime Brasil – «que deve sair na próxima quarta-feira, se a deixarem sair. Espero que sim, pois os censores não costumam atribuir importância ao que se diz em páginas de letras». «Com notícia ou sem notícia, os Cadernos farão a sua carreira, pois agora, com o mercado devidamente abastecido, consta-me que se vendem como canela. Bem merecem o êxito. Temos de agradecer o muito que contribuem para ele os estadistas e padres-mestres do corporativismo que, em orações de pouca sapiência, pretendem responder aos seus Cadernos.» 
«O Cooperativismo, a despeito das suas admiráveis reafirmações» – observa ainda Jaime Brasil – «não bastará para resolver todos os problemas económicos; mas a verdade é que ninguém sabe se basta ou não, pois nunca foi posto em prática com amplitude bastante para se poderem tirar quaisquer conclusões. Quanto ao corporativismo, já sabemos que não resolve traduzido aqui em calão quando já tinha falhado na Itália. Por mais remendos que lhe deitem, não conseguem pôr de pé o mostrengo. É como aqueles meninos que têm moleza de ossos. Nem com os carrinhos de rodas da carroça do Estado conseguem andar». E, por último, escreveu Jaime Brasil: «Parabéns, pois pelo êxito dos Cadernos e pela réplica do estadista. Acusou o toque como na esgrima, mas como não pode ripostar decentemente, oxalá não recorra ao meio costumeiro de chamar a polícia. Feliz ideia foi dar os sumários dos cadernos seguintes. Se eles não aparecerem, já o público saberá que houve motivo de força maior». ²³
Estas publicações fazem parte das últimas batalhas de Sérgio, num tempo de adversidades pessoais e guerrilhas políticas. O empenhamento de Sérgio na campanha de Humberto Delgado como candidato à Presidência da República aumentou-lhe a inquietação. Deixou-o em contínuo sobressalto. Contra ventos e marés, estimulou a indigitação de Humberto Delgado. Era Jaime Cortesão o candidato predileto, quase consensual, embora não se ignorassem as catilinárias de Ferro Alves, n’ Os Budas, um dos panfletos ferozes de exilados portugueses na Espanha republicana. O nome de Cortesão, já se apontava, em 1952 num texto de Mário de Castro, na Seara Nova. Todavia, Sérgio e Henrique Galvão optaram por Delgado, a fim de «rebentar o regime por dentro». Iniciada a campanha, Sérgio rejubilou com o impacto da apresentação pública, do rastilho que se estendeu em todo o país, embora prevendo a falsificação das eleições. ²⁴ A Conferência de Imprensa, no café Chave de Ouro, no Rossio, ficou célebre por um episódio de enorme repercussão nacional e internacional. Ao responder ao jornalista Pinto Basto, chefe da redação, em Lisboa, da France Presse, se mantinha Salazar, caso viesse a ser eleito, respondeu sem hesitações: «Obviamente, demito-o.» ²⁵ Pela primeira vez, Salazar deixava de ser intangível. 
O Diário de Notícias, com a colaboração da União Nacional e da Legião Portuguesa – e o chefe de redação Tomé Vieira com ligações à PIDE – desencadeou, na primeira página, um movimento de repúdio durante mais de um mês. Assinaram os intelectuais e políticos do regime. E padres de muitas paróquias. Até Júlio Dantas não conseguiu escapar, mas, em 1960, – a derradeira acrobacia, depois de mais de cinquenta anos de malabarismos políticos e literários – também subscreveu, ao lado de representantes dos sectores da oposição, o apoio à candidatura de Aquilino Ribeiro ao Prémio Nobel da Literatura. ²
Sérgio ficou, contudo, muito perturbado com as peripécias de Humberto Delgado durante o asilo político na embaixada do Brasil, em Lisboa, os ruidosos conflitos no Brasil e noutros países, envolvendo personalidades da oposição, num processo agitadíssimo que culminou numa emboscada e no assassinato por uma brigada da PIDE. Confirmou-me Álvaro Salema, numa tarde repleta de confidências, que Sérgio começou a ter graves «problemas de consciência» por se julgar «o principal responsável» pela escolha de Delgado, candidato à Presidência da República e, também, pelo incentivo à solução do asilo na embaixada do Brasil – «o escândalo também faria estremecer o regime». Só que excedeu, e em muito, o previsível. Era, na altura, embaixador do Brasil Álvaro Lins, intelectual de prestígio. Já conhecia Portugal, lecionara na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e fora eleito para a Academia das Ciências, sem nenhuma bola preta, em reunião prévia da seção de efetivos de Letras, presidida por Júlio Dantas, que admitiu Vitorino Nemésio (duas bolas pretas dos que se opunham à entrada de um maçon). Mas no livro de memórias, Missão em Portugal, Álvaro Lins registou situações insólitas do asilo político de Humberto Delgado; as impressões de monumentos históricos e de paisagens que o surpreenderam; e aludiu, em pormenor e citando nomes e fatos, as boas e as péssimas recordações que lhe deixaram intelectuais e políticos portugueses. ²
Entretanto, em Novembro de 1958, António Sérgio era preso pela PIDE, interrogado na sede, na Rua António Maria Cardoso, e enviado para Caxias. Também foram interrogados e presos Jaime Cortesão, Mário de Azevedo Gomes e Vieira de Almeida. Preparavam a organização da vinda a Portugal de Aneurin Beevan, deputado trabalhista britânico e de Pierre Mendès France para fazerem conferências sobre Democracia. ² Com pouco tempo de intervalo, verificavam-se a morte da mulher de Sérgio, Luísa Sérgio, companheira inseparável de mais de 50 anos de um casal fortemente unido e sem filhos, que também sofreu com as prisões e os exílios; e as mortes, quase seguidas, de uma das irmãs de Sérgio, Matilde, e de seu cunhado, o escultor João da Silva. A seguir, a outra irmã Pilar também morreu. Sérgio sentia-se só. Terrivelmente só. 
A conjugação destas vicissitudes provocou uma depressão irrecuperável. Tinha antecedentes. A primeira depressão – revelou-me David Mourão-Ferreira – aconteceu horas depois da proclamação da República e ao assistir, no Vale do Zebro, ao suicídio de um dos seus mais íntimos amigos e colega na Marinha, Frederico Pinheiro Chagas; a segunda depressão no Brasil em consequência de um malogro editorial e perda de considerável parte da fortuna (que pertencia à esposa) e que obrigou ao internamento psiquiátrico em Petrópolis onde concluiu – e datou – o primeiro tomo dos Ensaios. A crise de 1958, 1959 deu lugar a outro internamento. Barahona Fernandes, psiquiatra clássico, genro de Viana da Mota e visita assídua de casa, foi substituído por Miller Guerra. Pulido Valente julgou recomendável que o doente fosse observado e seguido por um médico que não pertencesse ao círculo de convívio. Sem ferir qualquer regra deontológica, anos mais tarde, Miller Guerra disse-me que Sérgio, nas depressões e euforias, tinha semelhanças com Antero. Sabia muito bem o que dizia. Estudara Antero e publicara trabalhos de investigação científica, ao desmontar várias teses, entre as quais a do lendário Sousa Martins, incluída no In Memoriam. ²
A doença de Sérgio prolongou-se até à morte. Foram dez anos de muita angústia. Falta de dinheiro para despesas do internamento e honorários de médicos. Sérgio já recorrera ao crédito bancário para acudir a tratamentos indispensáveis a sua mulher. Aliás houve sempre dificuldades económicas e ocultadas sempre com elegância. Decidiu garantir a privacidade do casal, com algumas obras na casa concebida e realizada pelo arquiteto Raúl Lino na Travessa do Moinho de Vento. Um amigo de todas as horas, Carlos Estorninho, diretor da Biblioteca do Instituto Britânico, colaborava no aluguer de quartos a senhoras inglesas. Pagavam mais e estavam menos tempo em Portugal. E seria menos chocante ter hóspedes estrangeiros, recrutados entre pessoas com estatuto social distinto. A renda completava o escasso vencimento mensal que António Sérgio recebia, desde os anos 30, ao regressar do exílio, quando ingressou na redação da Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (1935 a 1958). Outra precária fonte de receita resultava das pequenas verbas de colaborações em jornais e direitos de autor; do pagamento das aulas que lecionara num colégio particular – salvo erro Pedro Nunes, dirigido por Adrião Castanheira – e das explicações, se as havia, a alunos que se deslocavam a sua casa. Correndo outra vez o risco de omissões involuntárias, direi que, além do apoio de vários familiares, contou com a solidariedade de um amigo, Fernando Rau. Discretamente, avançou com dinheiro e disponibilizou para a convalescença de Sérgio da crise que o atingiu, a histórica Quinta da Penha Verde, de que Sérgio tanto gostava e onde (ainda no tempo de vida da mulher), passava um mês de férias de verão. 
António Sérgio faleceu, em Lisboa, a 24 de Janeiro de 1969, no Hospital da Cruz Vermelha. A primeira homenagem póstuma foram as “Obras Completas” de Sérgio pela Livraria Sá da Costa, sob a orientação de Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e Joel Serrão e organizadas por Idalina Sá da Costa e Augusto Abelaira. O seu aparecimento prolongou-se, nos anos 70, entre o fim do marcelismo, o processo da implantação do 25 de Abril e a consolidação da Democracia. Sucederam-se outras homenagens – dois livros de A. Campos Matos – condensando para uma ampla divulgação o que é fundamental para conhecer Sérgio; o livro de Joaquim Montezuma de Carvalho – António Sérgio – a obra e o homem ³; uma sessão, na Academia das Ciências – que havia rejeitado a admissão por motivos políticos, conforme denunciou Henrique Vilhena – com intervenções de Joel Serrão e David Mourão-Ferreira ³¹; numerosas manifestações em Lisboa e Coimbra para comemorar em Setembro de 1983 o centenário do nascimento; teses de mestrado e doutoramento nas principais universidades e até, em Roma, na Faculdade de Filosofia da Universidade Gregoriana ³²; a inscrição na toponímia de Lisboa e de outros locais do País e o nome também como patrono de escolas perpetuaram a memória de Sérgio. ³³
Também houve contestação da obra ensaística, por Vasco Magalhães Vilhena ³⁴, Eduardo Lourenço ³⁵ e Jorge Borges de Macedo ³. Mas no colóquio António Sérgio: Pensamento e Acção realizado pelo Centro Regional do Porto da Universidade Católica Portuguesa, para grande espanto de muitos, António José de Brito, intelectual e político de extrema direita e fascista assumido proferiu a afirmação perentória de que ficamos a dever a António Sérgio: “páginas de grande agilidade mental e de estilo inimitável, posto que não havia reparo que lhe não merecesse resposta e que o seu estilo polémico era da mais alta qualidade.” ³⁷ Os adversários não ignoravam que António Sérgio elegera como norma de conduta – ele próprio o declarou – «soltar amarras, para singrar no oceano da procura livre, com o horizonte limpo a todos os rumos e aberto à audácia da investigação.” ³⁸ A rejeição do pensamento único em todos os domínios. Defendia o pluralismo de opinião. Pronunciava-se com frontalidade. Tinha orgulho na sua independência. E não se fechou numa torre de marfim. Daí a influência que exerceu na sua geração, na geração anterior à sua e nas gerações que lhe sucederam. 
Participantes das reuniões em casa de António Sérgio e muitos outros que beneficiaram o seu magistério consolidaram o regime democrático instaurado com o 25 de Abril. Integraram autarquias e estiveram representados na primeira Assembleia Constituinte, presidida por Henrique de Barros, um dos amigos mais próximos de António Sérgio. A Constituição Política da República de 1976 incluiu reivindicações de Sérgio, no capítulo dos Direitos, Liberdades e Garantias e no âmbito do setor cooperativo. A Casa de António Sérgio esteve, vários anos, sob o signo da fatalidade. O edifício, que permaneceu ao abandono e o recheio em caixotes, foi ocupado e incendiado. O fogo propagou-se ao telhado. Entretanto, o proprietário tentou a demolição, até que, e depois de insistente campanha na Imprensa, a casa foi adquirida pela Câmara Municipal de Lisboa para o Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo criado no 1.o Governo Constitucional, presidido por Mário Soares, sendo Henrique de Barros Ministro de Estado. O decreto, subscrito por Mário Soares e por Henrique de Barros, foi por unanimidade aprovado na Assembleia da República. ³
Apesar da grande estima e admiração que manteve com Sérgio, Henrique de Barros tinha uma divergência de fundo. Para Henrique de Barros, Sérgio contemplara, apenas, o movimento cooperativo como organização de proteção dos consumidores. Não fazia parte da sua doutrinação o funcionamento das cooperativas de produção. Pode e deve concluir-se que foi Henrique de Barros que pensou as regras e estabeleceu as bases orgânicas das cooperativas de produção. A sede do Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo ficou, em Lisboa, na Rua Carlos de Mascarenhas. Ainda não estavam concluídas as negociações para a posse da casa de residência e realizadas as obras de adaptação. Uma vez terminadas, a casa destinou-se ao Núcleo de Altos Estudos Cooperativos, para desenvolver a formação cooperativa do movimento e dos seus dirigentes e a promoção de estudos específicos. Nela ficaram o que sobrou da biblioteca de António Sérgio, assim como da biblioteca de Fernando Ferreira da Costa, outro dos discípulos de Sérgio, que presidiu à comissão instaladora do Instituto e foi seu primeiro presidente. Encerrou, em 2009, o Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo. Decorreu no XVII governo, presidido por José Sócrates e com Teixeira dos Santos como ministro das Finanças. ¹ Foi o fim de uma ambição de António Sérgio, consagrada depois do 25 de Abril na Assembleia da República. As atribuições passaram a ser desempenhadas pela Cooperativa António Sérgio para a Economia Social. 
António Sérgio que pagou com o exílio e a prisão – a última, com mais de 70 anos – elaborou propostas para concretizar uma educação cívica; empenhou-se no esclarecimento de problemas funda- mentais da história de Portugal, da sua formação e expansão. Na análise crítica de figuras e acontecimentos da cultura portuguesa que se consideravam intocáveis. Muitas das polémicas que travou, sujeitas a diversos reparos, mas com a forte marca da sua personalidade, ainda não se encontram encerradas. 
A vida e a obra de António Sérgio podem resumir-se em três verbos: recusar, resistir, mobilizar. Recusar a ditadura, resistir à prepotência e ao arbítrio; mobilizar vontades dispersas para ultrapassar o isolamento. A cultura e a educação representaram o caminho para a conquista da liberdade e a descoberta do homem e do mundo. Por tudo isto, as suas lutas – ao contrário de tantas outras lutas de alguns dos seus contemporâneos – ainda não se extinguiram. 
 
NOTAS 
 
¹  Programa para a Democratização da República, 1961, Porto Tipografia JPLoes. 
²  Valdemar, António, Vasco a Regra de Ouro, 2019. 
³  Valdemar, António, «Maio de 65 – o encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores», Público, 20 de Maio de 2015. 
Valdemar, António, «Tarrafal no património da Resistência», Público, 8 de Novembro de 2013. 
Valdemar, António, «Soares 65, o anúncio de um líder», Público, 7 de Janeiro de 2017. 
Ibidem
Ibidem e idem, «Soares, Tal e Qual», Expresso, 7 de Janeiro de 2019. 
Franco, Matilde Sousa, «Casa de António Sérgio» in Santana, Francisco (coord.), Dicionário de História de Lisboa, Lisboa, 1992. 
Sérgio, António, Cartas ao Terceiro Homem. Porta-voz das “Pedras Vivas” do “País Real”, Lisboa, Editorial Inquérito, 1957. 
¹ Ibidem
¹¹  Idem, Ensaios VII, Lisboa, Europa América, 1954. Idem, Ensaios VIII, Lisboa, Guimarães Editora, 1958. 
¹²  Saraiva, António José, O Caprichismo Polémico do sr. António Sérgio, Porto 1952. 
¹³  Sérgio, António, Cartas de problemática dirigidas a um grupo de jovens amigos, alunas e alunos da Faculdade de Ciências, Lisboa, Inquérito, 1952-1955. 12 v. 
¹  Idem
¹ Valdemar, António, «correspondência inédita para Malheiro Dias», Diário de Notícias, 3 de Setembro de 1983; Matos, A. Campos de «Bibliografia de António Sérgio» in Revista da História das Ideias, tomo 1, vol. 5, Coimbra, 1983 e Diálogo com António Sérgio, Lisboa, Presença, 1989. 
¹ V. Jornal O Diabo (Lisboa, 1934-1940). 
¹⁷ Valdemar, António, Jaime Cortesão – poetas e escritores que retratou, [estudo inédito, a publicar]. ¹⁸ ANTT, Pide, SC, SR 750, NT 2334. 
¹ ANTT, Pide, SC, SR 750, NT 2334. 
² Poitout, Maria Manuela, «Júlio de Sousa e Costa, a obra e o livro proibido pela censura», Nova Augusta, Torres Novas, Câmara Municipal de Torres Novas, Gabinete de Estudos e Planeamento Editorial, n.o 26, 2014. 
²¹ Republicano histórico do Porto, maçon, opositor ferrenho do salazarismo, como já fora do sidonismo, administrador de O Primeiro de Janeiro, sogro do arquiteto Octávio Lixa Filgueiras. Também é citado por Ferreira de Castro em Emigrantes
²²  Como exerci as funções de chefe da redação em Lisboa, de O Primeiro de Janeiro substituindo Jaime Brasil, de 1968 a 1980, até o jornal ser entregue ao CDS e pela irmã de Manuel Pinto de Azevedo após a sua morte, presumo tratar-se de Manuel Pinto de Azevedo, diretor de O Primeiro de Janeiro e bibliófilo; Mário de Vasconcelos e Sá secretário da direção do jornal; do poeta e bibliófilo Alberto de Serpa, outro secretário da direção de O Primeiro de Janeiro, que ajudava Jaime Brasil na página literária; e Viriato Gonçalves, redator de O Primeiro de Janeiro e chefe da seção do noticiário internacional. 
²³   ANTT, Pide, SC, SR 750, NT 2334. 
²⁴  Rosas, Fernando, Salazar e o Poder: A Arte de Saber Durar. 1a reimpressão. Lisboa: Tinta-da-China, 2015. E Rosas, Fernando; Brito, J. M. Brandão de (dir.) – Dicionário de História do Estado Novo. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. 
²⁵ Múrias, Manuel, Obviamente demito-o, Lisboa, Intervoz. 
² Valdemar, António, Cem anos de Dantas, Diário de Notícias
²  Lins, Álvaro, Missão em Portugal, Rio de Janeiro, edição Civilização Brasileira, 1960. 
²  Vide os volumes da Comissão do Livro Negro sobre o Regime Fascista. 
² Guerra, Miller, Medicina e Sociedade, Lisboa, Moraes Editora, 1961. 
³ Carvalho, Joaquim Montezuma de, António Sérgio – a obra e o homem, edição Arcádia. 
³¹ Mourão-Ferreira, David, «Situação de António Sérgio na História da Critica Literária», in Homenagem a António Sérgio, Academia das Ciências de Lisboa, 1976. 
³²  Branco, J Oliveira, O Humanismo Critico de António Sérgio
³³ Serrão, Joel, «O Lugar da História no Pensamento de António Sérgio», in Homenagem a António Sérgio. Academia das Ciências de Lisboa, 1976; Mourão-Ferreira, David, «Situação de António Sérgio na História da Critica Literária», in Homenagem a António Sérgio, Academia das Ciências de Lisboa, 1976. 
³⁴ Vilhena, Vasco Magalhães, António Sérgio. O idealismo crítico e a crise da ideologia burguesa, Lisboa, Cosmos, 1975. 
³⁵ Lourenço, Eduardo, Labirinto da Saudade, Lisboa, Gradiva, 2008. 
³ Macedo, Jorge Borges de «Significado e evolução das polemicas de António Sérgio: A ideologia da Razão – 1912-1930», Revista das Ideias, tomo 1, vol. 5, Coimbra. 
³⁷ António Sérgio: Pensamento e Acção. Actas do Colóquio realizado pelo Centro Regional do Porto da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional da Casa da Moeda, 2004, 2 volumes. Brito, António José, «António Sérgio e o Idealismo», António Sérgio: Pensamento e Acção. Actas do Coloquio realizado pelo Centro Regional do Porto da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional da Casa da Moeda, 2004 vol. I, pág. 259 
³⁸  Prefácio em Sérgio, António, Ensaios, Lisboa, Seara Nova, 1929, tomo II. 
³ Decreto Lei 902—76 de 31 de dezembro e Lei 35-77 de 8 de julho de 1977. 
Barros, Henrique de Os Grandes Sistemas da Organização da Economia Agrícola, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1975. Barros, Henrique de A Cooperativa Agrícola, Lisboa, Livros Horizonte, 1979. Barros, Henrique de; Costa, Fernando Ferreira da, António Sérgio: Uma nobre Utopia, Cadernos de O Jornal, 1983. 
¹  Decreto Lei no 282/2009 de 7 de Outubro. 
 
Duas cartas inéditas de Jaime Brasil a António Sérgio 
 
 
 
Artur Jaime Brasil Luquet Neto (1896-1966), que assinou Jaime Brasil, nasceu em Angra do Heroísmo, Açores, e chegou a ser oficial do exército, profissão que logo trocou pela de jornalista e escritor. Fez parte da redacção de muitos jornais, com destaque para ‘A Batalha’ (1919-27), na sua fase de diário de grande expansão, e para ‘O Primeiro de Janeiro’, onde organizou um suplemento artístico e literário que teve grande impacto na vida cultural portuguesa, ‘Das Artes, das Letras’, sucedendo a António Pinto Quartim na chefia da redacção de Lisboa. Libertário desde muito cedo, alinhando numa corrente filosófica individualista, daí o interesse que manifestou pela sexualidade, publicando um livro inovador, ‘A Questão Sexual’ (1932), logo atacado pela Igreja, foi um dos fundadores em 1925 do Sindicato dos Profissionais de Imprensa de Lisboa, que se integrou na CGT. Nunca perdeu a ligação às ideias anarquistas, escolhendo para seu convívio o meio libertário que sobrevivera à chacina da década de 30 (Alexandre Vieira, Aurélio Quintanilha, Campos Lima, Pinto Quartim, Ferreira de Castro, Julião Quintinha, Mário Domingues, Emílio Costa e outros). Comprovadas por estas duas cartas aqui trazidas a lume pela mão do também jornalista e investigador António Valdemar, e que o destinatário nunca chegou a receber, pois foram apreendidas em trânsito pela polícia política (estão hoje na Torre do Tombo), as suas relações com António Sérgio não são surpresa se atendermos à presença em força de anarquistas no Ateneu Cooperativo, onde Sérgio era a figura tutelar na década de 50. Sérgio alinhava com as teses da demopaideia de Proudhon, que volta a referir com agrado nos seus derradeiros escritos, e do self-government que desde a Renascença Portuguesa era uma das suas preocupações principais. Nos anos 30, no jornal ‘O Diabo’, a propósito da interpelação dum leitor do jornal sobre os seus textos de agrobiologia, afirma-se leitor de Kropotkine, aceitando deste com entusiasmo e sem qualquer reticência, o que nele era raro, a ideia duma era geral de abundância. [A IDEIA]
 
1 
[em papel timbrado d’ O Primeiro de Janeiro
Porto, 21 de Outubro de 1956 
Prezado Mestre e Amigo: 
Desculpe-me não ter acusado, há mais tempo, o recebimento da sua estimadíssima de 9 e a remessa dos “Cadernos”, enviados pela “Inquérito”. Estive à espera de fazer a colecta, que, ontem, lhe enviei num vale do correio. 
Foram apenas 150$00 e ainda assim foi preciso o nosso Amigo Manuel Caetano de Oliveira, que aliás já tinha recebido os “Cadernos”, contribuir com 50$00. Os cinco exemplares de cada número, que recebi da “Inquérito”, foram distribuídos por quatro amigos cá do jornal, de que lhe mando os endereços em papel aparte, para serem considerados assinantes a partir do terceiro caderno. Esses pagaram os exemplares que lhes distribuí pelo dobro do seu preço de capa. 
Fiz uma pequena notícia do aparecimento dos “Cadernos”, que deve sair na próxima  quarta-feira, se a deixarem sair. Espero que sim, pois os censores não costumam atribuir importância ao que se diz em páginas de letras. 
Com notícia ou sem notícia, os “Cadernos” farão a sua carreira, pois agora, com o mercado devidamente abastecido, consta-me que se vendem como canela. Bem merecem o êxito. Temos de agradecer o muito que contribuem para ele os estadistas e padres-mestres do corporativismo que em orações de pouca sapiência pretendem responder aos seus “Cadernos”. 
O Cooperativismo, a despeito das suas admiráveis realizações, não bastará para resolver todos os problemas económicos; mas a verdade é que ninguém sabe se basta ou não, pois nunca foi posto em prática com amplitude bastante para se poderem tirar quaisquer conclusões. Quanto ao corporativismo já sabemos que não resolve. Traduzido aqui em calão quando já tinha falhado na Itália, por mais remendos que lhe deitem não conseguem pôr de pé o mostrengo. É como aqueles meninos que têm moleza de ossos. Nem com os carrinhos de rodas da carroça do Estado conseguem andar. 
Parabéns, pois pelo êxito dos “Cadernos” e pela réplica do estadista. Acusou o toque como na esgrima, mas como não pode ripostar decentemente, oxalá não recorra ao meio costumeiro de chamar a polícia. 
Feliz ideia foi dar os sumários dos cadernos seguintes. Se eles não aparecerem, já o público saberá que houve motivo de “força maior”. 
Renovo o pedido de desculpa pela demora na resposta e peço creia sempre na muita admiração e viva estima. 
Do muito e devotado amigo Jaime Brasil 
 
2 
[em papel timbrado d’ O Primeiro de Janeiro
Porto, 5-1-1959 [no carimbo de envio] 
Querido Mestre e Amigo: 
Junto o meu protesto ao que todos os homens, ainda não arregimentados ao existente neste País, deveriam enviar à Editorial Labor pela patifaria de macular a sua admirável “História de Portugal” com sabujices aos régulos das duas infelizes nações hispânicas. 
Quantos conhecem a altitude do seu pensamento e a nobreza do seu carácter sabem que seria incapaz de dar o seu aplauso à política de opressão e à economia de miséria em que agonizamos. 
Os livros da Labor são lidos nos países de língua castelhana e nalguns, por deficiente informação acerca das suas atitudes de sempre e das suas últimas obras, poderá haver quem suponha que até António Sérgio, a despeito de ter recebido ainda há pouco a honra de ser encarcerado, também se juntava ao coro dos lacaios que entoam louvores aos césares de farsa. É isso o mais grave. 
O jornal fez-se eco do seu indignado protesto; mas é preciso que esse eco seja retumbante. Penso numa manifestação de desagravo. Se estivesse aí, lançaria a ideia duma mensagem, uma sessão pública, qualquer coisa que traduza o nosso protesto. Dou a minha solidariedade a tudo e colaborarei seja no que for para esse fim. 
Abraço-o comovidamente e desejo que o ano que entra seja de menos atribulações para o meu Amigo e sua Exma Esposa que muito terá sofrido no lance da sua prisão. 
Seu do coração, muito admirador e amigo Jaime Brasil 
 
Carta de Jaime Brasil para António Sérgio ( excerto )

 

  * Jornalista - sócio efetivo da Academia das Ciéncias de Lisboa.

 

AGRADECIMENTO

 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste ensaio.