quarta-feira, 29 de março de 2023

TIRADENTES NA HISTÓRIA DE SETE LAGOAS


Por Editorial do JORNAL TRIBUNA de Sete Lagoas
O Blog de São João del-Rei dedica a reprodução deste histórico Editorial de 21 de abril de 2012 ao saudoso historiador sete-lagoano Márcio Vicente Silveira Santos, saudoso confrade no Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei.
Márcio Vicente Silveira Santos (✰ Traíras, distrito de Cordisburgo, hoje município de Santana de Pirapama, 23/03/1942  ✞ Sete Lagoas,  29/07/2019)

 

O brasileiro esta é uma crítica recorrente não cultua seus heróis. Antes, aceita como "falha" de caráter e, depois, como decorrência natural da despolitização do povo, essa indiferença aos que deveriam ser "consagrados no altar da Pátria". A exaltação é reduzida à expressão mais simples pela chamada "nova historiografia". Para ela, o Brasil não tem heróis. Os nomes que frequentam as páginas de nossos compêndios escolares e que passamos a conhecer e aceitar como realizadores de grandes feitos não teriam, portanto, aquela necessária dimensão arquetípicas capaz de dar-lhes dimensão histórica. 

Nessa vala comum, estariam sepultados Marechal Cândido Rondon, que expandiu nossas fronteiras, realizando obra de integração nacional; Deodoro da Fonseca, que partejou a República; Caxias, o gênio militar da espada a serviço da Pátria; Santos Dumont, que deu asas ao homem e encantou o mundo; Caneca, o frei político da Revolução Pernambucana e da Confederação do Equador; Zumbi, o rebelde libertário de Palmares; e, no coletivo, os "pracinhas" da FEB, que derramaram seu suor, seu sangue e suas lágrimas na Itália durante a II Guerra Mundial. E há tantos outros lembrados e pouco ou nada consagrados. Talvez, nesse rol, salva-se (e com justiça) o alferes de Cavalaria Joaquim José da Silva Xavier Tiradentes , o mineiro que sonhou com a liberdade e morreu em seu nome. 

Tiradentes deveria ser, de fato, o herói nacional, mas tal não acontece. Homenageiam-no, apenas, bordando sua efígie nos uniformes, as Polícias Militares, que o têm como patrono. A Inconfidência Mineira, por sua vez, é tratada em outros Estados, como em São Paulo da "nova" geração de historiadores revisionistas, como fato menor da história nacional. No Rio Grande do Sul, o italiano Garibaldi ocupa maior espaço na memória do povo e no calendário cívico do que qualquer brasileiro. Mesmo em Minas Gerais, o 21 de Abril é mais um dia a ser emendado para o prazer de um feriado estendido, do que data reservada ao exercício da cidadania e do civismo. 

Não fosse exigir demais, Sete Lagoas poderia fazer a diferença no Estado comemorando a Inconfidência a partir da presença, aqui, do alferes Tiradentes, como comandante do Quartel do Sertão. Se há motivos históricos para tal, uma expressão do professor e jornalista Fernandino Júnior (quem não o conhece?) cria o espaço ideológico para que o sete-lagoano se integre às comemorações do 21 de Abril. Escrevia ele na edição do dia 30 de novembro de 1930 do Jornal "Minas Central", ao se referir à "presença" de Tiradentes em nossa cidade: "Naquele tempo quem sabe? , talvez o humilde soldado já acalentasse no espírito a ideia da liberdade da Pátria, que lhe valeu, anos depois, o sacrifício da própria vida". 

Como o sete-lagoano não poderá contestar essa possibilidade, talvez possa adotá-la como legenda para a bandeira do seu civismo. 

"Tiradentes em Sete Lagoas", livro de 2010, de autoria do jornalista, advogado, escritor e historiador Márcio Vicente Silveira Santos, Sete Lagoas: Tip. Kosmos, 245 p. - Na capa, ilustração do Quartel da Tropa, comandado por Tiradentes, retratado em bico de pena pelo artista plástico sete-lagoano: Ivânio Cristelli (1984), intitulada "Casarão" e Quartel do Sertão

Centro Cultural Nhô-Quim Drummond - casarão na Praça Tiradentes, centro de Sete Lagoas. No seu lado direito, era onde se localizava o Quartel da Tropa, sob o comando do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o herói e mártir da Inconfidência Mineira, Tiradentes

Quartel da Tropa, comandado por Tiradentes, retratado em bico de pena pelo artista plástico sete-lagoano, Ivânio Cristelli (1984), ilustração intitulada "Casarão" e Quartel do Sertão

 

TIRADENTES 

 

O alferes de Cavalaria Joaquim José da Silva Xavier está na história de Sete Lagoas: alguns autores citam sua "passagem" pelo Registro ¹; outros, que estudaram mais profundamente os acontecimentos da Capitania no final do século XVIII, falam de sua "presença", já na condição de comandante da guarnição militar encarregada da segurança do posto de arrecadação fiscal aqui instalado em 1775. Entre os primeiros alinham-se Dimas Perrin ("Inconfidência Mineira"), Tarquínio Oliveira ("Um banqueiro na Inconfidência") e Márcio Jardim ("Inconfidência Mineira - Uma síntese factual"). Os historiadores Joaquim Drummond ("O passado compassado de Sete Lagoas") e Jovelino Lanza ("História de Sete Lagoas: Subsídios", entretanto, informam sobre a presença de Tiradentes "em terras de Vapabuçu", transcrevendo em seus livros textos de alguns documentos, como recibos de pagamento de soldos passados pelo militar e datados de Sete Lagoas. 

Coube ao jornalista Márcio Vicente Silveira Santos aprofundar as pesquisas e recolher documentos (muitos deles até então inéditos para a historiografia) que comprovam a "presença" do alferes em Sete Lagoas no período de 22 de abril de 1780 (essa é a data do primeiro registro) a 23 de junho de 1781. Além de garantir a segurança do Registro, o destacamento militar comandado por Tiradentes tinha como missão patrulhar as estradas, coibindo o contrabando, e auxiliar na cobrança dos impostos. O livro do jornalista, lançado em novembro de 2010, reproduz cerca de 60 cartas e recibos e transcreve textos oficiais que citam Joaquim José da Silva Xavier como comandante do "Quartel das Sete Lagoas" ou do "Quartel do Sertão, do Registro de Sete Lagoas". Esses documentos vão compor o acervo do "Memorial Tiradentes", a ser instalado pela Prefeitura na antiga estação ferroviária do Distrito de Silva Xavier. 

A pesquisa também acaba com uma série de informações sem base histórica que vinha sendo repetida na Cidade, através de várias gerações de sete-lagoanos, chegando até a aparecer em relatos publicados pela Imprensa ao longo do tempo: "Tiradentes pernoitou no Casarão", "Tiradentes veio a Sete Lagoas batizar o filho do comandante do Quartel" ou "o Quartel de Tiradentes ficava no Bairro da Várzea". Sabe-se agora, com apoio em documentos, que Tiradentes "morou" aqui durante um ano e um mês, e que o Quartel da Tropa estava localizado ao lado do Casarão, na atual Praça Tiradentes. Tiradentes também era padrinho do filho de um comandante do Quartel, mas o batizado foi na Fazenda da Jaguara, tendo como oficiante o padre Rolim, futuro inconfidente. 

REGISTRO IMPORTANTE 

A vinda de Tiradentes para o comando do Quartel de Sete Lagoas teve pelo menos dois grandes motivos. 

O primeiro estava relacionado com a importância econômica da região e a grande movimentação fiscal proporcionada pelo Registro, posicionado entre os que mais arrecadavam na Capitania. Por aqui passavam principalmente o gado vacum originário das extensas fazendas de criação do Sul da Bahia média de 7 mil cabeças/ano, número considerado como "extraordinário" e uma variada gama de "produtos do sertão", como milho, feijão, rapadura e peixe seco, oriundos do Alto Rio das Velhas e Médio São Francisco. Vale registrar que, na década de 1790, o posto aqui instalado era o quarto em arrecadação entre os 17 existentes em Minas. Sete Lagoas também supervisionava outros cinco centros fiscais, como os de Jequitibá (hoje, município) e do Zabelê (atual distrito de São Vicente, em Baldim). 

O segundo motivo a explicar a criação do Quartel em Sete Lagoas foi sua posição geográfica estratégica "entre a zona dos currais e de produção e as minas de ouro". 

Uma extensa rede de estradas "reais" e outras vias abertas sem autorização régia, mas de tráfego intenso, cruzava Sete Lagoas, permitindo a ligação com os principais núcleos habitacionais da Capitania, como Vila Rica, São João del-Rei, Pitangui e Paracatu. 

O próprio traçado urbano de Sete Lagoas ainda guarda registros dos antigos e principais "caminhos", todos passando pela atual Praça Tiradentes, onde estavam o Registro e o Quartel. A estrada para Paracatu e São João del-Rei adentrava pelo agora Bairro Canaã e seguia rumo a Paraopeba (Fazenda do Paga Bem); a que demandava o Sul da Bahia seguia pela atual Rua Monsenhor Messias, contornava a Lagoa Paulino e pegava a Rua dos Tropeiros, seguindo em direção a Silva Xavier. 

ALFERES TERÁ "MEMORIAL" 

A criação do "Memorial Tiradentes" no Distrito de Silva Xavier já está em andamento na Secretaria Municipal de Cultura e Comunicação. A proposta inclui o restauro da estação ferroviária (inaugurada em 1899 e hoje desativada) e a preservação de área em seu entorno, onde será construído o "memorial" e, futuramente, instalados equipamentos para práticas de lazer e realização de eventos artísticos e culturais. O tombamento do imóvel que hoje pertence à Ferrovia Centro Atlântida já foi aprovado pelo Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico de Sete Lagoas, consequência de um "termo de compromisso" assinado pela Prefeitura e a empresa, sob tutela da Promotoria Pública de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais. 

A antiga estação de Silva Xavier, hoje desativada e vandalizada; após restauro, dará lugar ao memorial. No seu entorno, o projeto inclui instalação de esquipamentos para práticas de lazer e atividades artísticas e culturais.

Nos próximos meses, com o Município entrando na posse do prédio e do terreno, já será possível a busca dos recursos financeiros para início do trabalho de implantação do projeto, que visa a registrar a "presença" de Tiradentes em Sete Lagoas. Para este trabalho, o governo municipal deverá contar com apoio da Associação Cultural e Artística Silva Xavier (ACASIX), já em fase de constituição. Serão objetivos da entidade, além de viabilizar apoio financeiro ao projeto através de colaboração com a iniciativa privada, instalar no Distrito Silva Xavier o Centro de Pesquisa da Cultura do Sertão e desenvolver calendário de eventos que possa mobilizar a comunidade local (1.500 pessoas) e atrair visitantes. Silva Xavier está a 18 quilômetro distante da sede do Município. 

 O "Memorial Tiradentes" já conta com expressivo acervo, constituído de mapas, cartas, recibos e peças iconográficas. 

Quatro mapas elaborados nos séculos XVIII e XIX, como o de José Joaquim da Rocha, de 1777, mostram a "centralidade" de Sete Lagoas na geografia econômica da Capitania e as várias estradas que cortavam o Registro, apontado como um dos mais importantes de Minas Gerais. 

 


Mapa da Comarca do Sabará ² por José Joaquim da Rocha ³, 1777  , 1777 - Acervo da Fundação Biblioteca Nacional, Brasil
 




 

Há também reproduções de cartas enviadas ou recebidas por Tiradentes no período em que ele comandou o Quartel aqui instalado, bem como documentos contábeis que mostram a movimentação fiscal do posto de arrecadação de impostos. Parte desse material, segundo informa o secretário municipal de Cultura e Comunicação Fred Antoniazzi, será mostrada em exposição na Casa da Cultura "Francisco Timóteo Pereira". 

 

NOTAS EXPLICATIVAS DO GERENTE DO BLOG

 

¹   Registro: posto onde era feita a fiscalização do trânsito de mercadorias e a cobrança dos impostos. 

²  A Comarca do Sabará, também chamada Comarca do Rio das Velhas, era a maior da Capitania de Minas Gerais, limitando ao sul com as Comarcas do Rio das Mortes e de Vila Rica, a leste com a do Serro Frio, a oeste com a de Goiás e, ao norte, com a de Pernambuco.

³  José Joaquim da Rocha (✰ c. 1740, em São Miguel da Vila de Souza, ao sul da cidade costeira de Aveiro, no Bispado de Extremadura, no norte de Portugal ✞ 1807): engenheiro militar português que serviu no Brasil na segunda metade do século XVIII e cartógrafo. Nos Autos da Devassa da Inconfidência Mineira, apesar de ter declarado que vivia de seus negócios, ele também fizera carreira militar e servira no Regimento de Cavalaria os famosos Dragões. Ele figura nos Autos como envolvido nos planos do levante. 
Conforme testemunho do Tenente-Coronel Basílio de Brito Malheiro do Lago, estabelecido na Comarca do Serro do Frio, assim que tivera notícia de que na Capitania de Minas se premeditava alguma sedição e motim, correra a dar parte do que sabia ao Visconde de Barbacena em carta de 15/04/1789. Conforme o denunciante, a casa do sargento-mor José Joaquim da Rocha tinha servido de palanque para discursos proferidos pelo alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Tais protestos sediciosos, ditos na casa de José Joaquim da Rocha, seriam indícios da conivência e do envolvimento deste último com o levante, já que fora também anfitrião de vários encontros dos inconfidentes. Para piorar a situação do sargento-mor, o denunciante ainda relatou que ele e vários moradores de Vila Rica viram em poder do Tiradentes um mapa da população de toda a capitania, obtido de Joaquim José da Rocha, que, inclusive, era o autor do documento. O mapa configurava uma informação estratégica vital para o planejamento do levante, pois informava em detalhes a disposição do povoamento das Minas Gerais, cuja população, de acordo com o mesmo documento, "era perto de 400 mil pessoas, divididas pelas suas respectivas classes, brancos, pardos e negros, machos e fêmeas".
José Joaquim da Rocha soube esquivar-se das suspeitas que recaíam sobre ele.  Argumentou com astúcia que Tiradentes efetivamente poderia ter falado do movimento rebelde enquanto estivera em sua casa, para visitar um amigo ali hospedado, de nome Manoel Antônio de Morais, morador do Serro do Frio, mas que ele não estivera presente a essas conversações. Disse ainda que, nas conversas estabelecidas entre eles em que esteve de fato presente, não se tocara no assunto do levante, e que as que assistira tinham tratado apenas das negociações para a venda de uma lavra que Tiradentes possuía. Quanto ao mapa da capitania, admitiu tê-lo dado ao alferes, porém argumentou que o dera de forma fortuita e "sem malícia alguma, sem entender que ele pudesse servir para coisa alguma". Este era certamente um artifício de retórica, pois Rocha sabia quão estratégicas e vitais eram as informações contidas em mapas de população, seguidamente mantidos como secretos pelas autoridades portuguesas. 
Em prol de sua defesa, José Joaquim da Rocha não chegou a utilizar o argumento de que, ao emprestar o mapa ao alferes, estaria compartilhando tais informações com outro militar, o que talvez diminuísse as suspeitas sobre seu ato. 
Apesar de a sentença proferida contra Tiradentes ter deixado claro que as autoridades não tinham dúvidas de que, pelas conversas em sua casa, José Joaquim da Rocha estava a par do levante, ele não chegou a ser indiciado como réu. 
Observe-se que o simples conhecimento de um movimento sedicioso era o bastante para incorrer o indivíduo no crime de inconfidência. É, portanto, no mínimo paradoxal que, apesar de a sentença se referir ao fato de ele ter conhecimento do levante, as autoridades portuguesas não tenham denunciado José Joaquim da Rocha nem indiciado como réu.
 
 
AGRADECIMENTO
 
O gerente do Blog agradece à sua amada esposa, cantora lírica Rute Pardini Braga, a formatação e edição das imagens e fotos utilizadas nesta matéria.

 


BIBLIOGRAFIA

 

BRAGA, Francisco José dos Santos et alii: Colaborador: MÁRCIO VICENTE SILVEIRA SANTOS, relatório da Comissão do IHG que aprovou a admissão do historiador sete-lagoano no IHG de São João del-Rei.
 
MATTA, Amauri da: A nossa história: Márcio Vicente Silveira Santos, Jornal Sete Dias, coluna A Nossa História, 22/10/2022
 
SILVEIRA SANTOS, Márcio Vicente: Tiradentes em Sete Lagoas, escrito em 21/04/2010 e publicado no Blog de São João del-Rei em 22/08/2017.
 
___________________________: São João, escrito em 02/12/2017 e publicado no Blog de São João del-Rei em 26/01/2018.
 
___________________________: Tiradentes no comando, publicado na revista Memória Cult,  Ouro Preto, Ano I, nº 3, abril de 2011, pp. 34 e 35.
 
___________________________: Tiradentes em Sete Lagoas - Um mergulho na História que inscreve a Cidade no cenário da Inconfidência Mineira, Sete Lagoas: Tip. Kosmos, 2010, 245 p.   
 
___________________________: Sete Lagoas, Século XVIII - O Registro e as Estradas Reais: Centralidade e Convergências na Capitania de Minas, Sete Lagoas: Edições Instante, 2019,  235 p.
 

segunda-feira, 27 de março de 2023

A NORMALISTA


Por Luiz Alberto de Almeida Magalhães *
O gerente do Blog dedica o presente trabalho ao Diretor do Colégio Nossa Senhora das Dores (onde por anos a fio Profª Marlêne Rezende semeou seus conhecimentos de matemática e inglês), Prof. José Raimundo de Oliveira Ávila, graduado em Pedagogia pela FDB-Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, com especialização na UNILAVRAS, além de grande amigo de minha saudosa mãe, Celina dos Santos Braga, também Normalista.

O autor fazendo o juramento durante sua posse na ALACIB - Crédito: Jornal Aldrava Cultural

 

Ali, num cantinho de uma rua larga, que a gente chamava “rua do tanque”, viveu por muitos anos a mais encantadora professorinha de meu tempo ginasial. Ali mesmo, numa casinha simples, mas cheia de cultura, Marlêne Rezende (com acento circunflexo), muito mocinha ainda, num cantinho de sala da casa de seus pais, João Rezende e dona Ritinha, ministrava suas aulas particulares a alunos menos disciplinados do Ginásio Santo Antônio, como reforço de matérias que os padres franciscanos exigiam conhecimento pleno. Numa bicicleta Monark, sem barra (porque servia, também, a minha irmã), pneu balão, ia eu pedalando de casa, com o coração na mão pela perda de média em várias matérias. Marlêne, sempre pronta a resolver qualquer assunto, quer de matemática ou português, e até mesmo desenho geométrico, me deixava tinindo para as provas que seriam aplicadas dois ou três dias depois. Foi assim por muitos anos e, uma coisa é certa: aprendi, e bem, com os reforços de minha querida Marlêne, pequenina na estatura, mas grandiloquente no saber e na didática. E assim, nasceu um enternecimento enorme entre mim e ela como também com seus irmãos Joãozinho, Dudu e Duduca, esta última, intrépida menina que adorava andar em minha bicicleta enquanto “dava duro” para aprender o que Marlêne ministrava. Aprendi também, naquelas magistrais aulas vesperais, o amor, o carinho e o respeito para com as pessoas, porque Marlêne, além de sábia, era a cidadã em pessoa. 

Hoje, terça-feira de uma luminosa primavera, tomo conhecimento, aqui em Belo Horizonte, do falecimento de minha querida amiga em São João del-Rei, a quem, sinceramente, devo tudo de minha vida, como conhecimento e cidadania. Perde a cidade a sua mais cativante e culta Normalista, no sentido autêntico da palavra, de ensinar com amor e desvelo, como aquela mulher que de si deu tudo para o aprendizado de seus alunos, jamais visando o que lhe pagavam pelas suas aulas. Nela, o importante era que o aluno e os seus pais estivessem satisfeitos. Pois é, voltas que a vida dá! Quando pequenos, qual de nós, em momento de desespero por uma nota baixa, não desejou a morte do professor? Dormíamos jogando praga, tínhamos ódio, até! Às vezes, nem mesmo dormíamos, com o pavor da “bomba” no final do ano. Com a morte dele achávamos que íamos passar de ano. O seu substituto, naturalmente, seria mais complacente. Com Marlêne, era diferente. Gostava muito dela e nem me passava pela cabeça que um dia ela iria morrer (aliás, quando pequenos, nem sabemos direito o que é a morte). Como pensar na morte de um anjo, se anjo não morre! Já agora, com família constituída, vejo muitos de meus professores morrerem e colegas também. Hoje sei que a morte vem pra todos, até para os professores de quem a gente tanto gostou. E morrem quando começamos a lhes dar valor, por tudo que nos ensinaram; e sei, também, que se foram rigorosos é porque tiveram em mente, unicamente, a boa ensinança e um futuro melhor para os jovens aprendizes. Mas, Marlêne era diferente, achava que ela nunca ia morrer. Bem, para mim Marlêne não morreu, deixou de ser vista, para ser natureza cega. Terei saudades de suas aulas, de sua rua só dela e a memória me traz agora a lembrança de minha bicicleta, que nem sei onde anda. 

Do grande poeta Mário Quintana transcrevo: 

Ah, essas pequenas coisas, tão quotidianas, tão prosaicas às vezes, de que se compõe meticulosamente a tecitura de um poema... talvez a poesia não passe de um gênero de crônica, apenas: uma espécie de crônica da eternidade”. 

Pois é, tudo que fica pronto na vida foi construído antes na alma. 

Com esta singela crônica, espero ter feito a minha homenagem à mais bonita e amiga professora que eu já tive. E que Marlêne Rezende (sempre me lembro que é com acento circunflexo) seja o exemplo às demais professoras de minha terra e que, contemplando-a, exerçam elas o seu mister com doçura, encantamento e coragem, porque, não nego, ensinar com ternura é estender a missão dos anjos aqui na terra. 

Link: https://www.jornalaldrava.com.br/pag_alacib_luiz_alberto.htm  👈

 

* Procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais. membro efetivo da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais (AMULMIG) e da Academia de Letras, Artes e Ciências Brasil (ALACIB), ocupante da Cadeira nº 27 - Patrono: Mário Quintana. Membro correspondente da Academia de Letras de São João del-Rei.

O autor dando autógrafos e distribuindo livros infantis à criançada no Balneário das Águas Santas em São João del-Rei (outubro de 2017)

 

quinta-feira, 23 de março de 2023

O ABC DO SERTÃO

 

Por JOSÉ CARLOS GENTILI *

 

Luiz Gonzaga do Nascimento (13.12.1912- 2.8.1989) Exu, Pernambuco


O compositor e cantor Luiz Gonzaga, denominado O Rei do Baião, e seu companheiro Zé Dantas, egressos do sertão pernambucano, lançaram invulgar música, intitulada O ABC do Sertão, a relembrar como o abecedário da língua portuguesa era soletrado, que enunciava a letra G, como GUE, por exemplo. Atualmente, os lusitanos denominam o “gmail” como “guemeil”, enquanto que os brasileiros dizem “gemeil”. 

Vejam a letra da canção, a rememorar o aprendizado do abecedário:
 
 “Lá no meu sertão, pro caboco’ ler 
Tem que aprender um outro 
 
ABC O J é ji, o L é lê 
O S é si, mas o R tem nome de rê
 
Até o Y, lá é pissilone 
O M é mê, e o N é nê 
O F é fê, o G chama-se guê 
Na escola é engraçado ouvir-se tanto ê 
A, B, C, D 
P, Q, lê, mê 
Nê, P, Q, rê 
T, V e Z.” 
 
Verdadeira aula de passado no presente! A prosódia e seus meandros mágicos deixam-nos encantados.
 
Correio eletrônico é muito mais sonante! Cheira à estafeta, às cartas, ao mundo epistolar com ares de modernidade. 
 
A língua portuguesa, em nove países do mundo, conforme registra a Comunidade dos Países da Língua Portuguesa – CPLP, por ordem alfabética, é utilizada pelas seguintes nações: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Portugal, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste. 
 
Apesar de acordos ortográficos estabelecidos durante muitos anos, visando a uniformidade ortográfica, o último acordo vigente (AO90) foi celebrado pelas Altas Partes Contratantes do Brasil e Portugal, em 16.12.1990. 
 
Moçambique e Angola até a presente data não aderiram, enquanto que outros não implantaram. A propósito, a sociedade civil portuguesa deseja revisão do acordo, que foi assinado, politicamente e às pressas, por dois presidentes: Luiz Inácio Lula da Silva e Aníbal Cavaco e Silva. Sem comentários desairosos, assim deve ser! 
 
As críticas em geral, quer no Brasil, quer em Portugal, receberam, inclusive, apoio do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, bem como do saudoso Carlos Heitor Cony, membro da Academia Brasileira de Letras, além da professora Maria Helena Moura Neves, quando de sua manifestação no Simpósio Internacional da Língua Portuguesa, monumental evento realizado pela Academia de Letras de Brasília, à época. 
 
Indiscutível é que o AO90 ao invés de unificar o idioma, conseguiu gerar intransponíveis regramentos, inclusive em sua praticidade de aplicação e entendimento, no tocante a hifenização e em tantos outros segmentos. 
 
Verdadeira mixórdia, razão pela qual a Academia Brasileira de Filologia outorgou ao autor do livro – A Infernização do Hífen –, o Prêmio Nacional Antenor Nascentes, que demonstrou a origem do hífen na Língua Portuguesa. 
 
Somente nosso idioma e o francês utilizam essa excrescência anômala do hífen! 
 
Prémio assim se escreve em Portugal, enquanto que no Brasil grafa-se – prêmio. Além de inúmeras outras palavras! Onde está a unidade do acordo? Mera fantasia de requintes, regidos pela vaidade de muitos, que se arvoram imortais regedores da língua, que desconhecem as mutações dos gentios do Condado Portucalense até hoje. A língua é viva e transporta valores, no dizer do saudoso Adriano Moreira, homem de Macedo dos Cavaleiros. 
 
Anos atrás manteve-se reunião com o Presidente José Manuel Blecua Perdices, da Real Academia Española, entidade que reuniu os 29 países do idioma hispânico no mundo e fixou uma só gramática, a respeitar as variações. 
 
Algo extraordinário e motivador de profundas reflexões. Verdadeira aula magna de bom senso vernacular! 
 
A língua portuguesa é uma só com suas variantes!
 
Fonte: A Infernização do Hífen, lançado em 11/2015 em Lisboa, 616 p.
 
 
 
II. Manifestação de José Carlos Gentili na Audiência Pública Ordinária da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, em 3 de setembro de 2019 
 
(...) 
O SR. PRESIDENTE (Dr. Jaziel. PL - CE) - Obrigado.
Passo a palavra agora ao Sr. José Carlos Gentili, que disporá de 3 minutos.
 
O SR. JOSÉ CARLOS GENTILI - Parabéns, Presidente Jaziel! 
Os ilustres membros que compõem esta Mesa tiveram a oportunidade de equacionar, de verificar a oportunidade da realização deste movimento. Eu sou um escritor de Brasília, membro da Academia de Letras de Brasília e um dos 20 brasileiros membros da Academia de Ciências de Lisboa, onde sempre estou a proferir palestras a respeito de vários assuntos, inclusive sofrendo as aferições deste AO90 (Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa). 
 
O Prof. Sidney Silveira foi oportuníssimo. Nós, anos atrás, mantivemos contato com estes dois ícones da filologia: o do Brasil, o nosso Evanildo Bechara, como também o do lado português, o nosso João Malaca Casteleiro. Eu sempre perguntei a ambos, nas tertúlias portuguesas: "Quem é que inventou o hífen?" Nenhum dos dois teve a coragem de me dizer: "Eu sei". Disseram-me: "Não sei". Se esses dois, que são os dois ícones da língua portuguesa nesse campo, não sabem, pobre de mim, simples mortal. 
 
Eu fui estudar hífen. Fui para a Torre do Tombo, para a Biblioteca de Portugal. Fui aos escaninhos da Academia de Ciências de Lisboa, antigo mosteiro quase tricentenário da Casa do Duque de Lafões, como também à biblioteca no Rio de Janeiro. Após a análise, desde o Condado Portucalense, constatei, Prof. Silveira, que D. Dinis, quando oficializou a língua portuguesa, naquela amostragem galaico-portuguesa, simplesmente não utilizava o hífen. 
 
Então, escrevi um livro. Chama-se A Infernização do Hífen. Esse livro procura mostrar essa dissonância das relações lusófonas. Verificou-se que quem gerou toda essa alteração foi um tipógrafo de nome Gutenberg, há 500 anos, lá na Mogúncia. Ao fazer a impressão da Bíblia dentro dos novos moldes, eles chegavam ao final da oração e, na hora da translineação, simplesmente colocavam um tracinho, um sinal de igualdade. Aí os aritméticos, os matemáticos disseram: "O senhor não pode utilizar isso, porque esse sinal é privativo da aritmética". Então, tirou-se um traço, Presidente. Aí, nasceu essa figura incrível, o hífen. Eu verifiquei que apenas duas línguas no mundo utilizam o hífen. Uma é o francês, e a outra é o português. 
 
Fui conversar com o homem que estabeleceu a unicidade da língua espanhola no mundo, o doutor filólogo membro da Real Academia Espanhola Prof. Blecua Perdices, com quem tive uma relação extraordinária. Eu perguntei: "Como é que o senhor conseguiu finalizar esse registro reunindo 20 países de língua espanhola?" Ele disse: "Apenas tendo a paciência, o estudo, a releitura e a conjugação de todas as gramáticas dos 20 países que fazem a estrutura da língua espanhola". 
 
Acho que faltou no Brasil, Prof. Sérgio Pachá, a ultrapassagem dos limites da convivência filológica, gramatical e linguística. Tanto é que a Academia Brasileira de Filologia me destinou, a este pobre mortal, o Prêmio Antenor Nascentes. 
 
Muito obrigado a todos.
(...)
 
 
 
* Jornalista e escritor, integra a Academia das Ciências de Lisboa, como correspondente brasileiro; é Membro Patrono da Associação Internacional dos Colóquios de Lusofonia, com sede em São Miguel, nos Açores; e faz parte do Conselho-Geral do Museu da Língua Portuguesa de Bragança.

quarta-feira, 22 de março de 2023

OUVINDO MÚSICA E LENDO POESIA


Por JOSÉ CIMINO *
 
Todos aqueles que, atentos ao que acontece ao seu redor e que não vivem como cordeiros tangidos pelas forças ocultas do Sistema, têm percebido que o ser humano, deste Milênio, está não só perdendo sua capacidade de pensar, como também de sentir. Sinal sensível do esvaecimento da humana capacidade de sentir é o progressivo desinteresse pela música erudita e pela poesia de boa qualidade. O Sistema, agindo desde o subsolo das sociedades, opera um processo de massificação que distancia, aos poucos, mas constantemente, o ser humano da arte e das suas manifestações. Sendo assim, são oportunas as reflexões sobre a importância da arte, tal como a história nos tem legado. Nestas reflexões, vamos nos ater à música e à poesia. 
 
De pronto, indagamos: o que é que faz com que algo seja arte, por exemplo, uma música ou uma poesia? Consideremos os dois extremos, a saber: de um lado, o compositor de uma peça musical ou o texto de um poeta, e, de outro, o ouvinte da música ou o leitor da poesia. Vejamos: é da relação entre esses dois pólos que a arte conquista sua plenitude vital. De fato, não assumiria a dimensão de obras de arte de valor universal, por exemplo, a “Missa Solemnis” de Beethoven ou a sua consagrada Nona Sinfonia, se suas partituras não viessem para a luz do público e não tivessem sido objeto de concertos pelo mundo a fora. A obra musical, no que tange a sua missão, se completa ao adentrar os ouvidos do atento ouvinte, despertando nele inusitadas emoções. O ouvinte, de certo modo, recria a música com sua imaginação e os sentimentos que ela desperta em seu coração. 
 
Toda obra de arte pressupõe um dom. Mas, também competência, esforço, tenacidade e criatividade. A celebérrima Missa Solemnis de Beethoven foi composta no período de 1819 a 1823, antes da Nona Sinfonia (concluída em 1824). A obra lhe consumiu cinco anos de exaustivo trabalho. Narra-se que, durante esse período, Beethoven mudou seu modo de ser. Tornou-se recolhido, meditativo. Sua fértil mente estava centrada nos textos sagrados do Kyrie, Glória, Credo in Deum, Sanctus e Agnus Dei. Beethoven considerava a Missa Solemnis a sua obra mais perfeita, l´oeuvre la plus accomplie. A obra mais bem acabada. A perfeita. Assim, além do “dom’, Beethoven era tenaz, perseverante. 
 
Beethoven quando compunha sua Missa Solemnis, por Joseph Karl Stieler (obra de 1820)

 
Ouvir música é também uma arte. Para se ouvir música, sobretudo se clássica, deve-se ter sensibilidade, alma de músico. O ouvinte, concentrado nas melodias e acordes, revive, a seu modo, as emoções do autor. Então, opera-se nele uma enlevação, algo como êxtase, arroubo, deleite. 
 
E quanto à poesia? Também a poesia requer a colaboração do leitor para que o texto, enquanto obra de arte, cumpra sua missão. 
 
A leitura é a forma autêntica e representativa, em que é palpável a participação do receptor ou do leitor. No “reconhecimento” de quem lê a poesia, acontece a realização plena do texto como peça literária e de arte. Na poesia, dão-se três tipos de “reconhecimento’ por parte do leitor. 
 
Primeiro, o requisito de “saber ler”. “Saber ler”, aqui, não se refere apenas à capacidade de soletrar ou de ler mecanicamente as palavras. Trata-se de saber interpretar o texto, para que se possa penetrar no seu âmago e descobrir sua autêntica qualidade. Um texto poético só encontra sua plenitude, quando escrito na língua materna. Poesias traduzidas de outros idiomas sempre deixam a desejar, principalmente devido às peculiaridades inerentes a todo idioma, mormente suas expressões idiomáticas. 
 
O segundo “reconhecimento” refere-se a espaços livres que a poesia abre ao leitor. Devem-se esses espaços às metáforas. São as metáforas que fazem com que a mente do leitor voe para o céu da imaginação. A quintessência da poesia é a metáfora. Vejam que lindas metáforas Orestes Barbosa nos deixou na linda canção Chão de estrelas
 
“A porta do barraco era sem trinco 
Mas a lua furando nosso zinco 
Salpicava de estrelas nosso chão 
Tu pisavas os astros distraída 
Sem saber que a ventura desta vida 
É a cabrocha, o luar e o violão.”
 
Manuel Bandeira disse que se houvesse um concurso para se escolher o mais lindo verso da língua portuguesa, de todos os tempos, ele votaria neste: “Tu pisavas os astros distraída”. Vejam, então, que é a metáfora que faz o leitor sonhar. E nessa espécie de “sonho”, ele também, de certo modo, se faz poeta. 
 
Orestes Barbosa (Rio, 1893-1966)

 
O terceiro “reconhecimento” é conseqüente ao segundo. Diria que é o “esquema intuitivo” do leitor. Dá-se esse “reconhecimento”, quando o leitor consegue captar o que vai além da forma verbal. Com isso, o leitor opera certa “complementação” ao texto. Da leitura à intuição; da intuição ao “perfazimento” ou à “complementação” do texto poético. Pode-se afirmar: a obra de arte, tanto se música, quanto se poesia, só atinge sua autêntica realidade, quando alcança esse “perfazimento” no ouvinte da música ou no leitor da poesia. 
 
É com preocupação que assistimos à música erudita e à boa literatura, sendo pouco a pouco enterradas pelas cinzas do tempo. Por isso, considero oportuno e necessário refletir sobre a arte de ouvir música e ler poesia, para que, uma vez conscientizados, possamos reagir de algum modo à ditadura da tecnologia, que tende a nos oprimir. Ouvir música é também arte, assim como o é saber ler poesia. A decadência, no que se refere à arte musical, tem atingido também a liturgia da Igreja católica, a partir do Concílio Vaticano II. Principalmente a partir da Idade Média, até os nossos tempos, a liturgia sempre foi o locus da arte sacra. A radical proibição do Rito Tridentino, o que muito entristeceu o Papa Emérito Bento XVI , está enterrando tesouros de valor inestimável como o Rorate Caeli, o Salve Regina, o Ave Verum, o Magnificat e inúmeros hinos gregorianos. Por exemplo, já não se reza mais a missa de Requiem, cujos textos de bela poesia fúnebre que nos fazem meditar. E muito menos se cantam seus textos. Mozart (✰ Salzburg, 1756 - ✞ Viena, 1791), cuja derradeira obra foi seu Requiem inacabado e concluído por seu amigo e aluno Franz Süssmayr (1766-1803), dizia que daria toda a sua obra para ter a glória de ser o autor do Dies irae, a célebre sequência constitutiva da missa de Requiem gregoriana. 
 
Mozart, o Divino
 
O canto gregoriano virou peça de museu. Mas quem o conhece considera que é uma pena relegá-lo ao ostracismo. A ABROL-MG LESTE pretende desenvolver projetos de atividades que visem despertar o interesse pela música erudita e também pelo canto gregoriano, conforme se verifica no Convite abaixo para a realização da 5ª Assembleia Magna de 18/03/2023: 
Composição da mesa dos trabalhos - Crédito pela foto: Dr. Paulo Cézar Barroso de Araújo - Cadeira nº 4 - Mestre de Cerimônia

 
Convite    


 *  José Cimino é escritor e filósofo, membro efetivo da Academia Barbacenense de Letras, cadeira nº 12; membro fundador e atual Presidente da ABROL-Academia Brasileira Rotária de Letras-MG Leste, cadeira nº 16; membro fundador e atual Presidente da AMEF-Academia Mantiqueira de Estudos Filosóficos.

segunda-feira, 20 de março de 2023

A INTERVENÇÃO DE NISKIER PARA A TRANSFORMAÇÃO DO BRASIL


Por ANTÓNIO VALDEMAR *
 
A crise que se manifesta, no Brasil, nos mais diversos sectores da Educação e do Ensino constitui o tema de comunicação e debate hoje na Academia das Ciências.

 

Arnaldo Niskier, que é – e há muito, no Brasil  – uma das maiores autoridades em matéria de Educação e de Ensino, encontra-se em Portugal para estabelecer contactos institucionais e, entretanto, apresentar (terça feira, 21 de Março, às 15 horas) uma comunicação na Academia das Ciências, de cuja Classe de Letras é sócio correspondente brasileiro. O tema abrange a história do passado e a problemática do presente. Subordinada ao tema genérico «Da Companhia de Jesus à Educação no Brasil nos dias de Hoje», Arnaldo Niskier como, aliás, se verifica em numerosos ensaios criticos que tem publicado, não se escusará de abordar a «conjuntura atual que permanece» – e, conforme tem repetidamente destacado, «repleta de condicionalismos. Muitas das soluções apresentadas têm sido precárias e acentuam, cada vez mais, a profunda crise que se manifesta, no Brasil, nos mais diversos sectores da Educação e do Ensino». 

A Academia das Ciências de Lisboa, na sua trajetória bicentenária, inscreveu o Brasil, logo de início, nos seus grandes objetivos literários, científicos, políticos e diplomáticos. A presença de José Bonifácio, como secretário geral, constitui um dos exemplos mais emblemáticos. Este objetivo voltou a ser relançado e inserido numa hierarquia de prioridades pelo Prof Dr José Luís Cardoso, atual presidente da Academia das Ciências e pelos seus diretos colaboradores. Mas é com a maior satisfação que reconheço, também, faz parte da programação que está a ser realizada, pelo meu colega e confrade Merval Pereira, Presidente da Academia Brasileira de Letras, mestre de Jornalismo e de Jornalistas, grande repórter e grande protagonista nas tribunas de opinião, do jornal O Globo e membro do conselho editorial do Grupo Globo, o maior universo da comunicação social não apenas do Brasil mas, também, da América Latina. 

Eleito em 2 de Dezembro de 1999 sócio correspondente brasileiro da Academia das Ciências, Arnaldo Niskier tem uma forte e extensa relação com Portugal. Somos amigos desde 1963 – há, portanto, 60 anos – e ambos nos conhecemos como jornalistas a realizar um trabalho profissional – Arnaldo Niskier para a Manchete e eu para o Diário de Notícias

Além da comunicação que vai proferir e que já mencionamos, a Academia das Ciências presta-lhe homenagem, em cerimónia presidida pela Vice Presidente da Classe de Letras, Profª Drª Maria da Glória Garcia, para evidenciar os aspetos mais relevantes da obra e da personalidade de Arnaldo Niskier. É uma intervenção em torno dos múltiplos aspetos do magistério, mas também abrange uma expressiva atividade pública, no exercício de funções governamentais. Em largas dezenas de livros ocupou-se do estudo e refexão da investigação histórica e literária e do jornalismo profissional, adquirindo, nas últimas décadas, uma dimensão nacional e um estatuto internacional. 

Com efeito, os últimos 50 anos do Brasil têm a inapagável marca da intervenção cultural, social e política de Arnaldo Niskier. O Planetário da Gávea, no Rio de Janeiro – referência obrigatória da cidade e invadido, diariamente, por sucessivos grupos de jovens estudantes e turistas – constitui uma das suas notáveis realizações, resultantes das quatro vezes que desempenhou cargos governamentais nas áreas da Cultura e Educação, da Ciência e da Tecnologia. Ao proceder à requalificação da cultura do Brasil também projetou um Museu da Ciência, na cidade de Campos, no espaço emblemático da Quinta da Baronesa; e, ainda, no Rio de Janeiro, organizou e pôs em funcionamento um Museu do Automóvel, ao lado do Planetário

Mas também avultam – no diversificado currículo de Arnaldo Niskier – a implantação de uma centena de escolas e o lançamento de uma rede de bibliotecas, a fim de estimular a leitura e promover a difusão do livro. Instituiu concursos e festivais de literatura, organizou debates sobre novas tecnologias, colóquios, seminários e outras iniciativas, para a valorização da língua portuguesa, como língua de expressão e cultura, como língua de trabalho, idioma de comunicação para o diálogo e o encontro de povos e civilizações. 

Membro da Academia Brasileira de Letras, desde 1984, e seu presidente em 1998 e 1999, exerceu uma ação de tal modo relevante que Carlos Heitor Cony, com pleno conhecimento de causa, afirmou que a existência centenária da ABL se caracteriza por «dois períodos – antes e depois de Arnaldo Niskier. Trouxe para a ABL o seu know-how de grande executivo. Impôs a modernidade». Devem-se-lhe, por exemplo, a instalação do Banco de Dados, que catalogou mais de 12 mil escritores da língua portuguesa; e, ainda, a instalação e inauguração do Teatro Magalhães Júnior e a fundação da Galeria Manuel Bandeira

E last, but not the least, intensificou o culto por Machado de Assis, grande escritor, o maior entre os maiores fundador da Academia Brasileira de Letras. Arnaldo Niskier já havia consagrado um livro que tem lugar primordial na bibliografia de Machado e, onde a dado passo, observa, com penetrante lucidez que, «toda a obra machadiana, é sempre uma lição, mesmo quando não é, exatamente, esse o seu objetivo”. Nada mais exato, seja qual for a perspetiva que contemplemos a obra multifacetada de Machado de Assis. Isto porque Machado de Assis ensinou o Brasil a ser ele mesmo. 

Perante embaraços suscitados por familiares que continuavam nas fronteiras do absurdo, Arnaldo Niskier empenhou-se, com tenacidade, na trasladação, em Abril de 1998, para o mesmo jazigo do Cemitério São João Batista, de Machado de Assis e de sua mulher e inseparável companheira Carolina celebrada num dos mais belos sonetos da língua portuguesa. Havia uma questão fundamental a resolver. Depois do falecimento de Machado, a família de Carolina recusou, obstinadamente, a colocação do seu corpo ao lado dos restos mortais do marido, sob a alegação de que «ele era mulato». Arnaldo Niskier conseguiu que Machado e Carolina voltassem a ficar juntos para sempre. Uma alegoria escultórica, dois pares de mãos entrelaçadas, simboliza a vida vivida em comum e repara a odiosa discriminação racial.

Jazigo de Joaquim Maria Machado de Assis e nascida Carolina Augusta Xavier de Novais, no Porto, em Portugal, casada Carolina Augusta de Novais Machado de Assis no Cemitério São João Batista-RJ
 

Apesar das inevitáveis citações que remontam aos séculos XVI, ao século XVII e a uma parte do século XVIII, Arnaldo Niskier vai, na Academia das Ciências, chamar a atenção – e com a frontalidade que lhe é peculiar – na complexa situação que se vive, presentemente, no Brasil e que requer medidas pontuais e estruturais da maior urgência. Aliás, são frequentes as interpelações de Arnaldo Niskier nas tribunas de opinião que lhe estão reservadas nos mais importantes jornais diários como, por exemplo, o Globo e O Estado de São Paulo nas quais disserta e analisa questões de flagrante atualidade – e nas mais diversas vertentes – nos sectores da Educação e do Ensino. 

O magistério cultural e cívico de Arnaldo Niskier vai, como sempre, incidir – nesta comunicação apresentada na Academia das Ciências de Lisboa – em questões primordiais destinadas a transformar o Brasil. É a aposta no futuro. É doutrinação e crítica necessárias para alertar e propor a urgência das soluções fundamentais destinadas à reconstrução do Brasil, perante um novo ciclo da sua história cinco vezes centenária. 

 * Jornalista - sócio efetivo da Academia das Ciéncias.

O FOLCLORE DO VALE DO JEQUITINHONHA


Por MARCELO Nóbrega da CÂMARA Torres *
 
Publicado originalmente na Revista da Comissão Fluminense do Folclore, edição de maio de 1975.
Em 1975, o jornalista, escritor, folclorista e consultor cultural, Marcelo Câmara, então com vinte e cinco anos, era o Secretário da Revista da Comissão Fluminense de Folclore, editada pelo jornalista, educador, folclorista e escritor Rubens Falcão (1901-1995), Secretário da Comissão. Naquele ano, Marcelo já havia publicado vários artigos e ensaios sobre o Folclore Brasileiro e, juntos, Marcelo e Rubens, foram assistir, na cidade do Rio de Janeiro, a uma palestra, com apoio audiovisual, do Frei Francisco van der Poel, o "Frei Chico", acerca do trabalho científico e pioneiro que o Vigário de Araçuaí, MG, desenvolvia sobre o Catolicismo Popular no Vale do Jequitinhonha. A reportagem foi publicada na Revista, na edição de maio de 1975. No último 14 de janeiro, Frei Chico partiu, conforme registrou, no dia seguinte, este blog. Em homenagem à memória, à vida e obra do querido sacerdote, pesquisador e estudioso do nosso Folclore, autor do Dicionário da Religiosidade Popular – Cultura e Religião no Brasil (Nossa Cultura, 2013), o Blog de São João del-Rei republica a histórica matéria do seu colaborador Marcelo Câmara.

 

Frei Francisco van der Poel (✰ Zoeterwoude, Holanda em 03/08/1940 ✞ Belo Horizonte em 14/01/2023)

 

FREI FRANCISCO VAN DER POEL é um jovem missionário holandês, radicado no Brasil há sete anos e vigário de Araçuaí, sede de Bispado no Vale do Jequitinhonha, nordeste de Minas Gerais. Município pobre, que tem a sua economia de subsistência realizada, precariamente, em atividades da pecuária, agricultura e mineração. Araçuaí, entretanto, possui um dos mais ricos e originais folclores do País. 

Com uma etnia tríplice de negros, brancos e descendência indígena, o folclore do Vale do Jequitinhonha, em razão de sua formação histórica, apresenta identificações nitidamente nordestinas. Foram o processo econômico, as injunções sócio-políticas que proporcionam esses pontos de contato, trocas, empréstimos e transferências entre os sertões do Leste e Nordeste. 

"Frei Chico" - assim conhecido na região - encontrou em Araçuaí manifestações culturais de surpreendente significação social, principalmente as ligadas ao Catolicismo Popular. Pastor de segura responsabilidade e consciência vocacional, integrando-se na vida comunitária, procurando o diálogo, Frei Chico, que é também professor de Música e Canto, passou imediatamente a se interessar por todas aquelas manifestações do homem do Vale. 

Depois de percorrer o Nordeste brasileiro, perscrutando a alma popular, ele voltou a Minas e, de gravador a tira-colo, lápis e papel, interrogou, aprendeu e registrou costumes e ideologias, filmando e fotografando fatos e sobrevivências. De início, confessou, confessou , sentiu o arredio e a desconfiança da gente. Sem esmorecimento, Frei Chico se embrenhou pelos caminhos das fazendas, rios, visitou vilas e freguesias para colher um vasto e precioso material de campo. Suas conclusões, de caráter antropológico e religioso, levaram-no a um projeto de estudo, interpretação e, finalmente, a uma inteligente tarefa: a de não censurar, reprimir ou desvalorizar aquelas práticas conflitantes com a Liturgia oficial da Igreja de Roma. Através de um planejamento e método adequados, com preocupação educacional e espírito científico aplicado à realidade do Jequitinhonha, Frei Chico consegue harmonizar os ensinamentos do Evangelho com as "rezas", faz conviver o pensamento da chamada "Igreja Nova" com as dolentes "incelências", os princípios da Justiça Social com os "cantos do gado" do sertanejo. 

Não castrar a espontaneidade, não dirigir, não oficializar as expressões marginais, não contrariar o sentimento, a criação do povo e suas sobrevivências tradicionalizadas - estas as diretrizes do trabalho de Frei Chico. Alia as intenções maduras do Cristianismo à pesquisa e compreensão destes elementos culturais indestrutíveis, que persistem vivos e contemporâneos às metamorfoses das Leis e dos Poderes. Aproveitando a funcionalidade lúdica e reivindicatória destes monumentos, Frei Chico os utiliza como instrumental de catequese, assistindo, com liberalidade e inteligência, aos processos dos folk-lores, tecidos no sonho e no tempo. 

O Conservatório Brasileiro de Música, por iniciativa da ilustre folclorista Profª Dulce Martins Lamas, no seu programa dedicado à "Semana do Folclore Brasileiro", apresentou, no mês de agosto último, uma conferência, ilustrada com gravações e slides, onde Frei Francisco van der Noel considerou os "Aspectos do Folclore Musical do Vale do Jequitinhonha". Naquela ocasião, ele já havia registrado, em cento e vinte fitas magnéticas, toda a poesia popular e musical do Vale do Jequitinhonha, principalmente os patrimônios de Itinga e Araçuaí. Num trabalho paciente e penoso, Frei Chico anotou mais de mil versos.

Colheu no Vale os improvisos das "Folias de Reis", os "cantos dos canoeiros" (do Rio Araçuaí), os "cantos dos tropeiros", "cantos do gado", "cantos da pobreza", os "versos de roda", as "contradanças", os "cantos da ema", os "encontros", "tiranos", "cocos", "batuques" e "modinhas". 

O folclore religioso do Vale do Jequitinhonha e sua variedade própria a cada motivo, está vinculado, principalmente, ao calendário de festas oficiais. Em Araçuaí, por exemplo, temos um "Folclore do Rosário", referente às comemorações pela passagem do dia votivo de Nossa Senhora do Rosário, que inclui, desde as manifestações puramente religiosas, litúrgicas, como as rezas, procissões alegóricas, novenas preparatórias, práticas de altar, até os folguedos, coreografia, folias específicas, etc. Em Itinga, as Festas da Santa Cruz e o ciclo da Semana Santa também apresentam raridades na antologia folclórica brasileira. 

Porém, foi em Araçuaí, sua paróquia, que Frei Chico encontrou essa inédita e interessantíssima expressão: o "Louvor de Anjo". São cantos de quadras improvisadas e refrões fixos, com os quais a família e os vizinhos de uma criança falecida ("anjo") choram, ao redor do corpo, a perda prematura do servo de Deus, e louvam a entrada gloriosa de sua alma no Paraíso. O "Louvor de Anjo" tem uma geografia social que determina suas variações, realizando-se em peças de melancolia, ingenuidade telúrica e beleza poética. 

Frei Chico registrou ainda a enciclopédia dos "abecês" longas narrativas cantadas que, seguindo a ordenação do alfabeto, dizem, com intensa legitimidade, todos os sentimentos do povo. Os "abecês" estão comprometidos com as atividades da região. Assim, codificaram-se a Fé, a Economia, a Política, a Crítica Social, a Criação, todos os valores da ideologia praticada pelo homem do Vale do Jequitinhonha. Eis alguns deles: o "abc dos negros", "dos brancos", "dos índios", o "abc da Alegria", o "abc do Amor", o "abc da Pesca", o "abc do Garimpo", e muitos outros. 

O mais extenso e solene é o "abc da Paixão de Cristo". O tema desenvolve-se dentro da igreja, após as celebrações do programa oficial da Sexta-feira Santa (via-sacra, procissão, representações) cumpridas sob o jejum e as penitências. Terminadas estas cerimônias fúnebres, o povo homens, mulheres e crianças, atraídos de distantes rincões e depois de longas caminhadas até à cidade invade o templo, acomodando-se nos bancos, chão e degraus. Inicia-se, então, a récita do "abc da Paixão de Cristo", dirigida por um chefe religioso leigo. Os fiéis percorrem os fatos mais marcantes do suplício, tocando nas partes chagadas da imagem do Cristo morto, em exposição. Lamentações e lágrimas se juntam à repetição dos versos introdutórios de cada episódio. A letra "o" enuncia o ombro martirizado de Deus, a letra "c", o coração vazado pela lança do centurião, e assim por diante. As orações denotam esperança na Ressurreição, arrependimento e amor. 

Classificado em acervo, o extraordinário material recolhido por Frei Francisco van der Poel constitui um promissor laboratório de qualidade artística e extrema valia documental. São milhares de fotografias, gravações ao vivo, depoimentos, filmes, anotações, cópias, peças de artesanato, música, instrumentos, adereços coreográficos, etc. 

Frei Chico espera o interesse de alguma editora, ou da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, para que seja publicada a Antologia Musical e Poética do Folclore do Vale do Jequitinhonha, sem dúvida mais uma importante contribuição aos estudos nesse setor.

*  Graduado em Direito e Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense, Dr. Marcelo Câmara é jornalista, ensaísta, produtor fonográfico, editor e consultor cultural. Ex-consultor legislativo do Senado Federal, ocasião em que assessorou o Senador Darcy Ribeiro. É membro da Academia Fluminense de Letras, ocupante da Cadeira nº 37.

terça-feira, 14 de março de 2023

A MIGRAÇÃO JUDAICA EM BELMONTE E SUAS INFLUÊNCIAS CULTURAIS

 

Por JOSÉ CARLOS GENTILI *
 
Primeiro, eles o ignoram, depois riem de você; depois brigam, e então você vence. (Mahatma Gandhi)
HERÓDOTO, o Pai da História (✰ Halicarnasso, c. 484 - ✞ colônia grega de Thurii da Magna Grécia, c. 426 a.C.) - Crédito: Wiki Culturama

 
 
Os ciclos civilizacionais renovam-se, mantendo a historiografia mundial os registros que demonstram constituírem os acontecimentos verdadeiros marcadores de contemporaneidade. 
 
Fatos milenares, seculares, apontam que os homens, através dos tempos, suplantam os seus desafios vivenciais, buscando, no poder hegemônico, a razão maior de suas existências. 
 
Poder e religiosidade são entes gemelares, a orbitar o universo dos homens e o da divindade. A glória é que cada segmento tenha o seu deus próprio, exclusivo, a feitio de um conglomerado divinal. O Olimpo grego, mitológico, fantasmagórico na interação da figura humana com a da divindade, gerou profundas reflexões no período greco-romano, alcançando os tempos atuais, guardados os avanços tecnológicos das comunicações. Deuses e semi-deuses olímpicos! 
 
Assim, de forma diacrônica, voltamos à migração judaica em Belmonte, incrustada em Portugal, terra natal de Pedro Álvares Cabral e cenário da presença helenística e de atuante romanização, posterior. 
 
Aliás, nos moldes vassaláticos, Pedro Álvares Cabral, Fidalgo do Conselho do Rei e Cavaleiro da Ordem de Cristo, segundo consta, foi batizado como Pedro Álvares de Gouveia, passando a usar o sobrenome Cabral, somente três anos após o descobrimento do Brasil. A mãe dele se chamava Isabel Gouveia de Queiroz, com vínculo judaico em sua ancestralidade. 
 
A propósito, Cabral era genro do rico comerciante asturiano, Fernando de Noronha, conhecido também como Fernão de Noronha (Fernan de Loronha), cristão-novo, preposto do celebérrimo banqueiro judeu Jakob Fugger, e que recebeu da Corte a primeira capitania insular da colônia brasileira, a ilha de Fernando de Noronha, antigamente denominada ilha de São João da Quaresma, com direitos à exploração de pau-brasil. 
 
Fernando de Noronha (✰ ?, c. 1470 - ✞ Lisboa, 1540) - Crédito: Wikipédia

 
Fernando de Noronha e seu genro Cabral, de Belmonte, representavam uma verdadeira sucursal do poderio financeiro de Jakob Fugger, estabelecendo sua malha de importância e interesses na expansão ultramarina da Península Ibérica, o primeiro ostensivamente e o segundo estruturado na órbita familiar. 
 
O germânico Fugger, via seu representante Fernando de Noronha, foi o primeiro não-português a investir no Brasil, ainda em 1503. 
 
Nos primórdios do século XVI, após o descobrimento do Brasil, duas expedições exploradoras, uma de 1501 e outra de 1503, capitaneadas pelos judeus conversos Gaspar de Lemos (Gaspar da Gama) e Gonçalo Coelho, tiveram a interferência de Noronha junto ao Rei de Portugal (D. Manuel), estabelecendo-se contratos exploratórios da Terra de Santa Cruz, que chegou a ser conhecida como Terra de Gonçalo Coelho.
 
A importância de Belmonte e a judiaria atingiram extraordinário grau de importância nas atividades comerciais ultramarinas. Judeus como Diogo Álvares Correa (Caramuru), João Ramalho, náufragos na costa brasileira, constituíram pontos de apoio comercial madeireiro, ensejando orientações a todos, inclusive a Martim Afonso de Souza, judeu também, donatário de capitania hereditária.
 
A força judaica permitiu a criação da primeira sinagoga das Américas, em Recife, a Kahal Zur Israel, que, após a retirada batava da colônia, foi esta falange de judeus para os Estados Unidos, criando a Nova Amsterdã, hoje New York. 
 
Jakob Fugger (1459-1525), por Albrecht Dürer c. 1520 - Crédito: Wikipédia

 
Para que se reavive a importância de Jakob Fugger, dito o Rico, o maior banqueiro de todos os tempos no mundo, ressalte-se que ele tinha como seu representante em Portugal o sogro do belmontense Pedro Álvares Cabral, o cristão-novo Fernando de Noronha.
 
Traz-se à colação notícia alusiva ao poder econômico inconteste de Fugger: “Um negócio escandaloso”
 
“Tudo teria começado em 1513/14 com a ambição da dinastia Hohenzollern, da Prússia, em querer ampliar o controle sobre os arcebispados alemães. Aproveitando-se da vacância de dois importantíssimos postos, Alberto de Brandenburgo, que apesar de ter apenas 23 anos já era arcebispo de Madenburgo, reivindicou junto ao papado a acumulação das funções das dioceses de Mayence e Halberstadt. Pretensão tida como ilegal, mas contornável se amparada com dinheiro ofertado a Roma. A confirmação dada pelo papa Leão X (da família dos banqueiros Médici, de Florença), em agosto de 1514, custaria a Alberto de Brandenburgo a soma de 14 mil ducados, acompanhada de uma “concessão voluntária” de mais 10 mil ducados. 
 
A intermediação do negócio entre o arcebispo e o papa foi reservada ao grande banqueiro Jakob Fugger, o Rico († 1525), que naquela época praticamente detinha o monopólio das relações financeiras de Roma com os estados alemães (conforme A. Schulte, Die Fugger in Rom, tomo I, 1904). Foi para pagar os adiantamentos de Fugger que o papa Leão X concedeu a Alberto de Brandenburgo a permissão de vender indulgências ao preço entre oito e nove ducados cada uma, nas dioceses do seu arcebispado. 
 
A concessão, conforme determinou a bula papal de 31 de março de 1515, se extenderia por oito anos, sendo que o arcebispo e o pontífice dividiriam entre si os proventos alcançados repassando-os ao credor Fugger. Sendo que Leão X, com o que lhe cabia, pensava em acelerar as obras do Vaticano, então em construção. Todavia, Maximiliano, o imperador do Sacro Império Romano Germano, desde que fora informado do acordo, exigiu sua participação, reclamando para si, durante os três primeiros anos, 1/3 do que fosse recolhido entre os crentes temerosos das penas eternas.” 
 
Crê-se que Belmonte tenha sido o polo mais forte da presença judaica em Portugal, mantendo-se através do tempo a singularidade da tradição hebraica, da cultura, como demonstram e registram os historiadores, constituindo o Museu Judaico de Belmonte um verdadeiro repositório da memória do povo de Israel.
 
Pedro Álvares Cabral, homem de Belmonte, tido como cristão-novo, descobridor do Brasil, em 22 de abril de 1500, quando fazia acompanhar-se de inúmeros judeus, tais como Gaspar da Gama, que falava várias línguas, entre elas o hebraico, o árabe e o caldeu; Mestre João (João Faras), médico particular da Coroa e astrônomo espanhol, nascido na Covilhã; além de clérigos. 
 
"Castelo dos Cabrais"

 

Mais, ainda, a efetiva história dos judeus em Portugal teve início com a formação do Condado Portucalense até o processo da Reconquista Cristã, após oito séculos de domínio muçulmano, quando os mouros venceram os visigodos na Batalha de Guadalete (711 d.C.). 
 
Durante cinco séculos o Judaísmo floresceu na Espanha, mais tarde obstado pela Inquisição. 
 
A Península Ibérica (Sefarad) ganhou novos contornos sócio-políticos sob o mando de D. Afonso Henriques, o primeiro Rei de Portugal (O Conquistador), ex-Conde de Portucale, partícipe das Cruzadas, quando os judeus ibéricos passaram a ser denominados de sefarditas. A Reconquista encontrou no mundo judaico um apoio inconteste, tornando-se D. Iachia ibn Yaisch, rabi-mor, uma figura da maior importância da Corte portuguesa. 
 
A anterioridade migratória tem origem na diáspora judaica, consubstanciada nas diversas fugas dos judeus mundo afora, na confrontação com outros povos na busca do poder hegemônico civilizatório e na cristalização da busca da Terra de Canaã. Sem dúvida, longa e sofrida história do povo judeu em suas diásporas! 
 
O judeu é um povo peregrino. 
 
Até então, os monarcas portugueses propiciavam liberdade do culto judaico e as judiarias constituíam uma realidade social. Em toda a região, especialmente, em Belmonte, em razão de que os imperadores tinham noção exata do poder e prestígio dos judeus na condução do projeto expansionista ultramarino, o judaísmo se expandiu. Em 1516, o Rei D. Manuel proporcionou meios para que os cristãos-novos desenvolvessem a indústria canavieira no Brasil, despontando a figura judaizante do dono do Engenho Santiago, do judeu Diogo Fernandes. 
 
O rei D. Manuel e seu tio antecessor, D. João II, tiveram o descortino de aproveitar a capacidade e os conhecimentos dos fugitivos judeus da Espanha, reunindo homens eruditos, como, por exemplo, Abraão Zacuto, nomeado astrólogo e cronista da Corte. Abraão Zacuto foi o autor de um novo astrolábio, que ensinou aos navegantes portugueses utilizar tábuas astronômicas na orientação das caravelas portuguesas em alto-mar, tendo publicado um tratado notável de astronomia em hebraico e em latim, impresso na tipografia de Leiria de Abraão de Ortas, em 1496, como Almanach Perpetuum.
 
Abraão Zacuto (✰ Salamanca, 1450 - ✞ Damasco, após 1522) - Crédito: Wikipédia

 
A erudição dos judeus ensejou o esplendor da escola de Sagres, e permitiu que o belmontense Pedro Álvares Cabral e Vasco da Gama atingissem os feitos heroicos do descobrimento do Brasil e da chegada às Índias pelo Ocidente. 
 
Na frota cabralina esteve presente o judeu Mestre João (José Vizinho), cirurgião de D. Manuel, e cosmógrafo, físico, matemático, astrólogo, nascido na Covilhã. 
 
A Igreja preocupada com o avanço do mundo judaico impôs a expulsão dos judeus da Espanha, em 1492, permitindo que os sefarditas levassem todos os seus bens, menos ouro, prata, joias e moedas... Este ato apenas fez crescer o contingente dos participantes da judiaria lusitana. Foram cerca de 100 mil sefarditas para Portugal. 
 
Dada a proximidade geográfica, Portugal recebeu os exilados, impondo-lhes o pagamento de oito cruzados por migrante, além da obrigatoriedade de procurarem novos destinos no prazo de oito meses, após o que seriam vendidos como escravos. Nova artimanha imperial foi engendrada por D. Manuel I, estendendo o prazo por mais um ano, e preocupado com a perda econômica desta saída, criou obstáculos de emigração, tendo determinado o batismo de todas as crianças com menos de 14 anos, na fé cristã e, consequentemente seus pais, agora cristão-novos, ditos marranos, filhos dos sefarditas.
 
Em razão do Édito de Expulsão, de 1496, a sinagoga de Belmonte foi transformada na Igreja do Espírito Santo.
 
Sempre a Igreja, a ferro e fogo, a impor seus desígnios de poder junto aos monarcas, razão pela qual criou a famigerada Inquisição em Portugal, em 16 de julho de 1524, verdadeira sucursal da hispânica, sob o comando do temível dominicano Tomás de Torquemada, Inquisidor-Geral, que lançou milhares de judeus às fogueiras medievais, em nome do Cristo! Impõe-se registrar que, após o primeiro auto de fé em Lisboa com execuções em diversas cidades, o Papa suspendeu a Inquisição em Portugal, mas aquiesceu, mais tarde com o seu retorno, e atendendo ao monarca D. João III, expediu bula suplementar, em 16.7.1547. 
 
Em resumo, os interesses da Igreja e os monárquicos eram entrelaçados, cujo exemplo maior foi a implantação do Padroado. 
 
A Inquisição em Portugal durou até 1821, quando foi extinta pelas Cortes Constituintes, minimizando-se a perseguição clerical. 
 
Há que se louvar, sempre, o credo judaico em sua luta titânica na preservação de seu ideário, mormente quando os conversos, marranos, descendentes dos sefarditas, fugindo das perseguições da Santa Inquisição (sic), clandestinamente, continuaram a professar o criptojudaísmo.
 
Vislumbra-se que o criptojudaísmo foi a forma velada que proporcionou a manutenção da língua, dos costumes, da alimentação, da religiosidade, das tradições hebraicas, mantendo-os preservados socialmente, como se estivessem sob uma redoma protetora, o que aconteceu em Belmonte e circunvizinhanças. 
 
Veja-se o que aconteceu com o latim, como língua dominante de um Império! 
 
O latim, dito Flor do Lácio, transportou os valores do Império Romano mundo a fora, gerou as línguas românicas logo adiante elencadas, no continente europeu, fruto da miscigenação e embates entre dominantes e dominados, caldeou hábitos, costumes, formas de expressão, valores étnicos e novos gentios. 
 
O latim vulgar teve seu declínio por volta de 1300 como língua, ao contrário do árabe, do hebraico e do aramaico, em uso até os dias atuais, ditas línguas de raiz semítica.
 
Há que se reflexionar do porquê o hebraico resistiu às intempéries civilizatórias desde os primórdios da eliminação do Templo de Jerusalém por Nabucodonosor, por volta do ano 70, antes de Cristo.
 
Línguas românicas 
 
• aragonês 
• aromeno/arrumânico 
• asturiano 
• italiano 
• ladino/judeu-espanhol 
• estremenho 
• franco-provençal 
• francês 
• mirandês 
• moldavo 
• napolitano 
• provençal 
• romeno 
• sardo 
• siciliano 
• catalão 
• corso/córsico 
• emiliano-romanholo 
• espanhol/castelhano 
• italiano 
• megleno-romeno 
• friulano/friuliano 
• galego 
• gallo 
• istro-romeno 
• normando 
• occitano 
• piemontês 
• português 
• valenciano 
• valão 
• vêneto
 
Diz-se que o ladino, que se assemelha ao espanhol, era usada pelos judeus na Península Ibérica, que constituía uma reunião de palavras de origem hebraica com termos castelhanos, portugueses, árabes e catalães. Era uma adequação ao mundo dos negócios. 
 
Por sua vez, o occitano era concorrente ao latim como língua científica, utilizada pelos trovadores e tinha a característica de língua franca nas trocas comerciais. 
 
Deste conglomerado linguístico, duas raízes permaneceram intactas: o árabe e o hebraico, ambas semíticas como o aramaico (Jesus falava aramaico) e o siríaco. 
 
Crê-se que a fé professada por ambas seja o sustentáculo da coexistência até os tempos atuais, razão pela qual a Igreja tenha promovido luta insana pela primazia de evangelização catequética. Recorde-se a figura do notável orador sacro, Padre Antônio Vieira, defensor dos indígenas brasileiros, da erradicação da escravização negra, do retorno dos judeus expulsos, motivo pelo qual foi preso pela Inquisição, durante dois anos. 
 
A forma do criptojudaismo ensejou limites preservacionistas da religião, dos costumes, da cultura, até mesmo de sobrevivência física. 
 
Belmonte é uma ponta deste gigantesco iceberg cultural linguístico. 
 
O Museu Judaico de Belmonte é uma chama viva de resgate desta odisseia, a mostrar as entranhas da tortura eclesiástica, revivida pelos nazistas insanos, que geraram o Holocausto. Belmonte é o único núcleo intacto de marranos no mundo, constituindo a sinagoga de Tomar, o mais antigo templo judaico em Portugal. 
 
Como um farol a iluminar os incautos, encontra-se a primeira sinagoga em Belmonte, datada de 1297, onde está afixado em seu vestíbulo, o dizer: 
 
ADONAI ESTÁ NO TEMPLO SAGRADO. 
NA SUA PRESENÇA TODA A TERRA 
PERMANECE EM SILÊNCIO. 
 
Fotos pertencentes ao arquivo do autor

 
* Jornalista e escritor, integra a Academia das Ciências de Lisboa, como correspondente brasileiro; é Membro Patrono da Associação Internacional dos Colóquios de Lusofonia, com sede em São Miguel, nos Açores; e faz parte do Conselho-Geral do Museu da Língua Portuguesa de Bragança.
 
 
II. AGRADECIMENTO
 
O gerente do Blog agradece à sua amada esposa, cantora lírica Rute Pardini Braga, a formatação e edição das imagens e fotos utilizadas nesta Comunicação, proferida pelo orador Dr. José Carlos Gentili no 27º Colóquio da Associação Internacional dos Colóquios da Lusofonia em Belmonte/Portugal - 6/4/2017.