quarta-feira, 22 de março de 2023

OUVINDO MÚSICA E LENDO POESIA


Por JOSÉ CIMINO *
 
Todos aqueles que, atentos ao que acontece ao seu redor e que não vivem como cordeiros tangidos pelas forças ocultas do Sistema, têm percebido que o ser humano, deste Milênio, está não só perdendo sua capacidade de pensar, como também de sentir. Sinal sensível do esvaecimento da humana capacidade de sentir é o progressivo desinteresse pela música erudita e pela poesia de boa qualidade. O Sistema, agindo desde o subsolo das sociedades, opera um processo de massificação que distancia, aos poucos, mas constantemente, o ser humano da arte e das suas manifestações. Sendo assim, são oportunas as reflexões sobre a importância da arte, tal como a história nos tem legado. Nestas reflexões, vamos nos ater à música e à poesia. 
 
De pronto, indagamos: o que é que faz com que algo seja arte, por exemplo, uma música ou uma poesia? Consideremos os dois extremos, a saber: de um lado, o compositor de uma peça musical ou o texto de um poeta, e, de outro, o ouvinte da música ou o leitor da poesia. Vejamos: é da relação entre esses dois pólos que a arte conquista sua plenitude vital. De fato, não assumiria a dimensão de obras de arte de valor universal, por exemplo, a “Missa Solemnis” de Beethoven ou a sua consagrada Nona Sinfonia, se suas partituras não viessem para a luz do público e não tivessem sido objeto de concertos pelo mundo a fora. A obra musical, no que tange a sua missão, se completa ao adentrar os ouvidos do atento ouvinte, despertando nele inusitadas emoções. O ouvinte, de certo modo, recria a música com sua imaginação e os sentimentos que ela desperta em seu coração. 
 
Toda obra de arte pressupõe um dom. Mas, também competência, esforço, tenacidade e criatividade. A celebérrima Missa Solemnis de Beethoven foi composta no período de 1819 a 1823, antes da Nona Sinfonia (concluída em 1824). A obra lhe consumiu cinco anos de exaustivo trabalho. Narra-se que, durante esse período, Beethoven mudou seu modo de ser. Tornou-se recolhido, meditativo. Sua fértil mente estava centrada nos textos sagrados do Kyrie, Glória, Credo in Deum, Sanctus e Agnus Dei. Beethoven considerava a Missa Solemnis a sua obra mais perfeita, l´oeuvre la plus accomplie. A obra mais bem acabada. A perfeita. Assim, além do “dom’, Beethoven era tenaz, perseverante. 
 
Beethoven quando compunha sua Missa Solemnis, por Joseph Karl Stieler (obra de 1820)

 
Ouvir música é também uma arte. Para se ouvir música, sobretudo se clássica, deve-se ter sensibilidade, alma de músico. O ouvinte, concentrado nas melodias e acordes, revive, a seu modo, as emoções do autor. Então, opera-se nele uma enlevação, algo como êxtase, arroubo, deleite. 
 
E quanto à poesia? Também a poesia requer a colaboração do leitor para que o texto, enquanto obra de arte, cumpra sua missão. 
 
A leitura é a forma autêntica e representativa, em que é palpável a participação do receptor ou do leitor. No “reconhecimento” de quem lê a poesia, acontece a realização plena do texto como peça literária e de arte. Na poesia, dão-se três tipos de “reconhecimento’ por parte do leitor. 
 
Primeiro, o requisito de “saber ler”. “Saber ler”, aqui, não se refere apenas à capacidade de soletrar ou de ler mecanicamente as palavras. Trata-se de saber interpretar o texto, para que se possa penetrar no seu âmago e descobrir sua autêntica qualidade. Um texto poético só encontra sua plenitude, quando escrito na língua materna. Poesias traduzidas de outros idiomas sempre deixam a desejar, principalmente devido às peculiaridades inerentes a todo idioma, mormente suas expressões idiomáticas. 
 
O segundo “reconhecimento” refere-se a espaços livres que a poesia abre ao leitor. Devem-se esses espaços às metáforas. São as metáforas que fazem com que a mente do leitor voe para o céu da imaginação. A quintessência da poesia é a metáfora. Vejam que lindas metáforas Orestes Barbosa nos deixou na linda canção Chão de estrelas
 
“A porta do barraco era sem trinco 
Mas a lua furando nosso zinco 
Salpicava de estrelas nosso chão 
Tu pisavas os astros distraída 
Sem saber que a ventura desta vida 
É a cabrocha, o luar e o violão.”
 
Manuel Bandeira disse que se houvesse um concurso para se escolher o mais lindo verso da língua portuguesa, de todos os tempos, ele votaria neste: “Tu pisavas os astros distraída”. Vejam, então, que é a metáfora que faz o leitor sonhar. E nessa espécie de “sonho”, ele também, de certo modo, se faz poeta. 
 
Orestes Barbosa (Rio, 1893-1966)

 
O terceiro “reconhecimento” é conseqüente ao segundo. Diria que é o “esquema intuitivo” do leitor. Dá-se esse “reconhecimento”, quando o leitor consegue captar o que vai além da forma verbal. Com isso, o leitor opera certa “complementação” ao texto. Da leitura à intuição; da intuição ao “perfazimento” ou à “complementação” do texto poético. Pode-se afirmar: a obra de arte, tanto se música, quanto se poesia, só atinge sua autêntica realidade, quando alcança esse “perfazimento” no ouvinte da música ou no leitor da poesia. 
 
É com preocupação que assistimos à música erudita e à boa literatura, sendo pouco a pouco enterradas pelas cinzas do tempo. Por isso, considero oportuno e necessário refletir sobre a arte de ouvir música e ler poesia, para que, uma vez conscientizados, possamos reagir de algum modo à ditadura da tecnologia, que tende a nos oprimir. Ouvir música é também arte, assim como o é saber ler poesia. A decadência, no que se refere à arte musical, tem atingido também a liturgia da Igreja católica, a partir do Concílio Vaticano II. Principalmente a partir da Idade Média, até os nossos tempos, a liturgia sempre foi o locus da arte sacra. A radical proibição do Rito Tridentino, o que muito entristeceu o Papa Emérito Bento XVI , está enterrando tesouros de valor inestimável como o Rorate Caeli, o Salve Regina, o Ave Verum, o Magnificat e inúmeros hinos gregorianos. Por exemplo, já não se reza mais a missa de Requiem, cujos textos de bela poesia fúnebre que nos fazem meditar. E muito menos se cantam seus textos. Mozart (✰ Salzburg, 1756 - ✞ Viena, 1791), cuja derradeira obra foi seu Requiem inacabado e concluído por seu amigo e aluno Franz Süssmayr (1766-1803), dizia que daria toda a sua obra para ter a glória de ser o autor do Dies irae, a célebre sequência constitutiva da missa de Requiem gregoriana. 
 
Mozart, o Divino
 
O canto gregoriano virou peça de museu. Mas quem o conhece considera que é uma pena relegá-lo ao ostracismo. A ABROL-MG LESTE pretende desenvolver projetos de atividades que visem despertar o interesse pela música erudita e também pelo canto gregoriano, conforme se verifica no Convite abaixo para a realização da 5ª Assembleia Magna de 18/03/2023: 
Composição da mesa dos trabalhos - Crédito pela foto: Dr. Paulo Cézar Barroso de Araújo - Cadeira nº 4 - Mestre de Cerimônia

 
Convite    


 *  José Cimino é escritor e filósofo, membro efetivo da Academia Barbacenense de Letras, cadeira nº 12; membro fundador e atual Presidente da ABROL-Academia Brasileira Rotária de Letras-MG Leste, cadeira nº 16; membro fundador e atual Presidente da AMEF-Academia Mantiqueira de Estudos Filosóficos.

9 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
JOSÉ CIMINO, autor do presente ensaio, é filósofo e poeta, conforme já tem demonstrado em trabalhos já publicados por este Blog de São João del-Rei (respectivamente em posts de 24/11/2021, intitulado "Na Luz do Ser: investigações de ontoantropologia, por José Cimino" e de 21/04/2019, epigrafado 'Poemas seletos de "Infinito Instante"').
Seu presente trabalho, fruto de sua reflexão sobre o mundo atual, foi lido na noite de 18/03/2023, durante a 5ª Assembleia Magna da ABROL-Academia Brasileira Rotária de Letras-MG Leste, que ele preside com muita alegria e satisfação.
O seu discurso "Diálogo com a Arte: Ouvindo Música e lendo Poesia" foi pronunciado na 2ª parte da sessão magna, que constou de Programação Acadêmica e Programação Cultural. Esta última trouxe a preleção do Presidente José Cimino e ainda o recital do Duo Rute Pardini & Francisco Braga e outorga de certificados aos dois artistas, que se apresentaram com um repertório muito apropriado para a ocasião festiva.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/03/ouvindo-musica-e-lendo-poesia.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerentte do Blog de São João del-Rei

Anizabel Nunes Rodrigues de Lucas (flautista, professora de música e regente são-joanense) disse...

Realmente é preocupante a atual indiferença humana com relação à música sacra, música erudita e à poesia. Música sacra de alta qualidade e em latim...

Diamantino Bártolo (professor universitário Venade-Caminha-Portugal, gerente de blog que leva o seu nome http://diamantinobartolo.blogspot.com.br/) disse...

Olá, estimado amigo.

Muito obrigado.

Abraços.

José Cimino (escritor e filósofo, membro efetivo da Academia Barbacenense de Letras, cadeira nº 12; membro fundador e atual Presidente da ABROL-Academia Brasileira Rotária de Letras-MG Leste, cadeira nº 16; membro fundador e atual Presidente da AMEF-Academia Mantiqueira de Estudos Filosóficos) disse...

Meu caro e prezado Braga,
Sua publicaçao ficou ótima. Ainda ilustrou o texto com fotos
Muito obrigado.

Edu Oliveira (ex-seminarista salesiano, organizador e facilitador de encontros) disse...

Forte abraço, Francisco.

Grande saudade do José Cimino, por nós fraternalmente chamado de Cimino.

edu

João Alvécio Sossai (escritor, autor de "Um homem chamado Ângelo e outras histórias, ex-salesiano da Faculdade Dom Bosco e ex-professor da UFES (1986-1996)) disse...

Prezado Francisco,

São 3 horas da madrugada. Perdi o sono. Decidi ler o texto que você me enviou. Coloquei a Missa de Bethoven no YouTube e, enquanto lia, ouvia essa maravilhosa obra. Lembrei-me da orquestra Ribeiro Bastos de SJDR, dos tempos do seminário (1964-1967).

Uma dúvida: temos um colega, ex-padre salesiano, chamado José Cimino. É filósofo, mas não sei se é poeta. No nosso encontro do ano passado ele apresentou um livro de temas filosóficos (um calhamaço, bastante pesado). Será o José Cimino que você cita esse nosso colega?

Mais uma vez, obrigado pelo material enviado.

Abraço

Maria Auxiliadora Muffato (poetisa são-joanense) disse...

Maravilhoso e convincente o ensaio de José Cimino. Quem já se sentiu no céu, ao ouvir o Canto Gregoriano? O tom solene, velado de incenso, do Tantum Ergo? A novena de Nossa Senhora, em latim? As antífonas da Novena do Natal- Ó Adonai, Ó Sapientia e outras ? A beleza do Panis Angelicus ? ... Beleza imortal. Grata.

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga.

Apresentando uma inquietação, dando uma aula e introduzindo propostas; bela palestra de José Cimino ! E parabéns também a si e esposa pelas participações .
Agradecido,
Cupertino