sábado, 30 de julho de 2022

OTTO MOHN: UM PIONEIRO DA HOMEOPATIA

 

Por JOSÉ CARLOS GENTILI *

Otto Mohn, ilustre cristalinense, ao abraçar o autor - pioneiros e amigos inseparáveis da Capital da Esperança


Os primórdios de Brasília guardam segredos vivenciais projetados oniricamente pelo maior educador do século XIX Dom Giovanni Bosco Uomo de Castelnuovo Don Bosco, piemontês, que na noite de Santa Rita de Cássia, anteviu: 
“Quando vierem escavar as minas ocultas no meio destas montanhas, surgirá aqui a terra prometida, vertendo leite e mel. Será uma riqueza inconcebível.” 
A antevisão profética, entre os paralelos 15 e 20, seria Brasília, um novo marco! 
 
Em 1945, durante Congresso Internacional Panamericano, foi fundada no Rio de Janeiro a Federação Homeopática Brasileira, com as seguintes finalidades: 
“Criação de um curso pós-graduado para médicos, farmacêuticos e doutorandos, de medicina: organização de um hospital homeopático e ambulatório. Oficialização da homeopatia e sindicalização, divulgação da homeopatia em geral. Para tal fim apoiando e filiando todas as associações homeopáticas brasileiras.” 
A entidade foi presidida pelo Coronel Doutor Duque Estrada (Henrique Dias Duque Estrada) Diretor da Escola Militar , tendo como Vice-Presidente o Dr. Cássio de Rezende, e compunha o rol de inúmeros fundadores o cardiologista Otto Mohn, integrante da Policlínica Central do Exército Brasileiro e instrutor da Escola de Saúde. 
 
Estudioso de Christian Friedrich Samuel Hahnemann Pai da Homeopatia , o culto General Otto Mohn teve oportunidade de mostrar-nos os meandros, até hoje discutíveis pela Medicina de Galeno Pai da Farmácia , acerca do princípio latino similia similibus curantur, tratativas estas elencadas no tratamento que se dá a partir da diluição e dinamização de uma mesma substância. 
 
Usuário desde a puberdade, enraizada pela cultura europeizada dos pampas, buscava no médico de Cristalina, amigo e ambos aficionados pela museologia, algumas mezinhas medicinais, tisanas que a natureza sempre prodigalizou desde os tempos primevos.
 
Os raizeiros e as benzedeiras sempre cativaram a minha alma ignota e curiosa. 
 
Há países que oficializaram a homeopatia e outros não, daí a eterna questão. 
 
Não serei eu a emitir juízos de valor e serventia no que concerne às plantas curativas, administradas na Província dos Goyazes desde os tempos das bandeiras e entradas, à busca das minas auríferas. Em 1960, quando aqui chegamos, nestes confins da hinterlândia brasileira, a Mãe-Natureza era uma farmácia viva a céu aberto. Para picada de cobra, quer fosse do gênero crotalus, botrops ou micrurus, a salvaguarda era utilizar: rodelas de tiú, uma euforbiácea classificada como adenoropium opiferum M; igualmente, a cascaveleira (crotolaria Jungeae); a alfavaca (ocimum gratissimum L.), rica em eugenol, que eliminava fungos e bactérias; o alho (allium sativum L.), com função antiviral, fungicida, antibacteriana, por conter os elementos alicina e ajoeno; a aroeira (myracrodrurom urundeuva Fr.), cuja casca era um poderoso anti-inflamatório, pois continha chalconas diméricas; a camomila (chamomilla recutita Fr.), eficaz chá antiespasmódico, em decorrência do óleo chamazuleno e dos princípios ativos chamados bisabolol e camo-espiroeter; o capim-santo, espasmódico decorrente do óleo citral e mirceno; o anador (justicia pectoralis Leon), usado contra a asma e a bronquite; o mastruço, conhecido como erva-de-santa-maria, indicada contra tosse de garganta, bronquite, pois tem suco mucilaginoso e timol, demulcente e balsâmico; o pau-d'arco ou ipê roxo (tabebuia avvelanedeae Lor), adstringente, face à substância dita lapachol; a quebra-pedra, usada para os rins; a imbaúba, usada como anti-hipertensivo; a vassourinha (scoparia dulcis L.), que rebaixa os índices de açúcar, colesterol e triglicerídios; a sangra d'água (croton urucurana Baillon), cujas folhas protegem feridas e estancam sangramentos. 
 
Ainda hoje, o Museu da Estrada dos Currais, na goiana Fazenda Cachoeiras da Boa Vista, onde Auguste de Saint-Hilaire pernoitou durante a herborização pelo Planalto Central, guarda relíquia, vinda da Inglaterra, à época, representada por uma peça de ferro, chamada “chocolateira”, usada pelos habitantes da região para preparar as mezinhas ao fogo crepitante.
 
Uma raridade!  
 

 
 
* Escritor, membro da Academia de Ciências de Lisboa e Presidente Perpétuo da Academia de Letras de Brasília
 

 
II. AGRADECIMENTO
 
O gerente do Blog agradece à sua amada esposa, cantora lírica Rute Pardini Braga, a formatação e edição das fotos utilizadas neste elogio literário.

segunda-feira, 18 de julho de 2022

“MINAS GERAIS”

 

Por GUIMARÃES ROSA

João Guimarães Rosa (✰ Cordisburgo-MG, 27/06/1908 ✞ Rio de Janeiro, 19/11/1967)
 

 

Este ensaio foi publicado originalmente na revista "O Cruzeiro", em 25 de agosto de 1957. 

 

Minas é a montanha, montanhas, o espaço erguido, a constante emergência, a verticalidade esconsa, o esforço estático; a suspensa região que se escala. Atrás de muralhas, caminhos retorcidos, ela começa, como um desafio de serenidade. Aguarda-nos amparada, dada em neblinas, coroada de frimas, aspada de epítetos: Alterosas, Estado montanhês, Estado mediterrâneo, Centro, Chave da Abóbada, Suíça brasileira, Co­ração do Brasil, Capitania do Ouro, a Heróica Província, Formosa Província. O quanto que envaidece e intranquiliza, entidade tão vasta, feita de celebridade e lucidez, de cordilheira e História. De que jeito dizê-la? MINAS: patriazinha. Minas a gente olha, se lembra, sente, pensa. Minas a gente não sabe. 

Desenho: Milton Nascimento ("Bituca")
 

Sei, um pouco, seu facies, a natureza física muros montes e ultramontes, vales escorregados, os andantes belos rios, as linhas de cumeeiras, a aeroplanície ou cimos profundamente altos, azuis que já estão nos sonhos a teoria dessa paisagem. Saberia aquelas cidades de esplêndidos nomes, que de algumas já roubaram: Maria da Fé, Sêrro Frio, Brejo das Almas, Dores do Indaiá, Três Co­rações do Rio Verde, São João del Rei, Mar de Espanha, Tremendal, Coromandel, Grão Mogol, Juiz de Fora, Borda da Mata, Abre Campo, Passa Tem­po, Buriti da Estrada, Tiros, Pequi, Pomba, Formiga, São Manuel do Mutum, Caracol, Varginha, Sete Lagoas, Sole­dade, Pouso Alegre, Dores da Boa Esperança… Saberei que é muito Brasil, em ponto de dentro, Brasil conteúdo, a raiz do assunto. Soubesse-a, mais. 

Sendo, se diz, que minha terra representa o elevado reservatório, a caixa-d’água, o coração branco, difluente, multivertente, que desprende e deixa, para tantas direções, formadas em caudais, as enormes vias: o São Francisco, o Paranaíba e o Grande que fazem o Paraná, o Jequitinhonha, o Doce, os afluentes para o Paraíba, e ainda; e que, desde a meninice de seus olhos-d’água, da discrição de brejos e minadouros, e desses monteses riachinhos com subterfúgios, Minas é a doadora plácida. 

Sobre o que, em seu território, ela ajunta de tudo, os extremos, delimita, aproxima, propõe transição, une ou mistura: no clima, na flora, na fauna, nos costumes, na geografia, lá se dão encontro, concordemente, as diferentes partes do Brasil. Seu orbe é uma pequena síntese, uma encruzilhada; pois Minas Gerais é muitas. São, pelo menos, várias Minas. 

A que via geral se divulga e mais se refere, é a Minas antiga, colonial, das comarcas mineradoras, toda na extensão da cha­mada Zona Mineralógica, a de montes de ferro, chão de ferro, água que mancha de ferrugem e rubro a lama e as pedras de córregos que dão ainda lembrança da formosa mu­lher subterrânea que era a Mãe do Ouro, deparada nas grupiaras, datas, cavas, lavras, bocas da serra, à porta dessas velhas cidades feitas para e pelo ouro, por entre o trabeculado de morros, sob picos e atalaias, aos dias longos em nevoeiro e friagem, ao sopro de tramontanas hostis ou ante a fantasmagoria alva da corrubiana nas faces de soalheiro ou noruega, num âmbito que bem congrui com o peso de um legado severo, de lástimas avaliadas, grandes sinos, agonias, procissões, oratórios, pelourinhos, ladeiras, jacarandás, chafarizes realengos, irmandades, opas, letras e latim, retórica satírica, musas entrevistas, estagnadas ausências, música de flautas, poesia do esvaziado donde de tudo surde um hábito de irrealidade, hálito do passado, do longe, quase um espírito de ruínas, de paradas aventuras e problemas de conduta, um intimativo nostalgir-se, que vem de níveis profundos, a melancolia que coerce. 

Essa tradicional, pessimista talvez ainda, às vezes casmurra, ascética, reconcentrada, professa em sedições a Minas geratriz, a do ouro, que evoca e informa, e que lhe tinge o nome; a primeira a povoar-se e a ter nacional e universal presença, surgida dos arraiais de acampar dos bandeirantes e dos arruados de fixação do reinol, em capitania e província que, de golpe, no Setecentos, se proveu de gente vinda em multidão de todas as regiões vivas do país, mas que, por conta do ouro e dos diamantes, por prolongado tempo se ligou diretamente à Metrópole de além-mar, como que através de especial tubuladura, fluindo apartada do Brasil restante. Aí, plasmado dos paulistas pioneiros, de lusos aferrados, de baianos trazedores de bois, de numerosíssimos judeus manipuladores de ouro, de africanos das estirpes mais finas, negros reais, aproveitados na rica indústria, se fez a criatura que é o mineiro inveterado, o mineiro mineirão, mineiro da gema, com seus males e bens. Sua feição pensativa e parca, a seriedade e interiorização que a montanha induz compartimentadora, distanciadora, isolante, dificultosa. Seu gosto do dinheiro em abstrato. Sua desconfiança e cautela de vez que de Por­tugal vinham par ali chusmas de policiais, agentes secretos, burocratas, tributeiros, tropas e escoltas, beleguias, fiscais e espiões, para esmerilhar, devassar, arrecadar, intrigar, punir, taxar, achar sonegações, desleixos, contrabandos ou extravios do ouro e os diamantes, e que intimavam sombriamente o poder do Estado, o permanente perigo, àquela gente vigiadíssima, que cedo teve de aprender a esconder-se. Sua honesta astúcia meandrosa, de regato serrano, de mestres na resistência passiva. Seu vezo inibido, de homens aprisionados nas manhãs nebulosas e noites nevoentas de cidades tristes, entre a religião e a regra coletiva, austeras, homens de alma encapotada, posto que urbanos e polidos. Sua carta de menos. Seu fio de barba. Sua arte de firmeza. 

É a Mata cismontana, mo­lhada de ventos marinhos, agrícola ou madeireira, espessamente fértil. É o Sul, cafeeiro, assentado na terra-roxa de declives ou em colinas que européias se arrumam, quem sa­be uma das mais tranqüilas jurisdições da felicidade neste mundo. É o Triângulo, avançado, forte, franco. É o Oeste, calado e curto nos modos, mas fazendeiro e político, abastado de habilidades. É o Norte, sertanejo, quente, pastoril, um tan­to baiano em trechos, ora nordestino na intratabilidade da caatinga, e recebendo em si o Polígono das Secas. É o Centro corográfico, do vale do Rio das Velhas, calcáreo, ameno, claro, aberto à alegria de todas as vozes novas. É o Noroeste, dos chapadrões, dos campos-gerais que se emendam com os de Goiás e da Bahia esquerda, e vão até ao Piauí e ao Maranhão. 

Se são tantas Minas, porém, e contudo uma, será o que a determina, então, apenas uma atmosfera, sendo o mineiro o homem em estado minasgerais? Nós, os indígenas, nem sempre o percebemos. Acostumaram-nos, entretanto, a um vivo rol de atributos, de qualidades, mais ou menos específicas, sejam as de: acanhado, afável, amante da liberdade, idem da ordem, anti-romântico, benevolente, bondoso, comedido, ca­nhestro, cumpridor, cordato, desconfiado, disciplinado, de­sinteressado, discreto, escrupuloso, econômico, engraçado, equilibrado, fiel, fleumático, grato, hospitaleiro, harmonioso, honrado, inteligente, irônico, justo, leal, lento, morigerado, meditativo, modesto, moroso, obstinado, oportunidade (dotado do senso da), otário, prudente, paciente, plástico, pa­chorrento, probo, precavido, pão-duro, personalista, perseverante, perspicaz, quieto, recatado, respeitador, rotineiro, roceiro, secretivo, simples, sisudo, sensato, sem pressa nenhuma, sagaz, sonso, sóbrio, trabalhador, tribal, taciturno, tímido, utilitário, virtuoso. 

Sendo assim, o mineiro há. Essa raça ou variedade, que, faz já bem tempo, acharam que existia. Se o confirmo, é sem quebra de pejo, pois, de mim, sei, compareço como espécime negativo. 

Reconheço, porém, a aura da montanha, e os patamares da montanha, de onde o mineiro enxerga. Porque, antes de mais, o mineiro é muito espectador. O mineiro é velhíssimo, é um ser reflexivo, com segundos propósitos e enrolada natureza. É uma gente imaginosa, pois que muito resistente à monotonia. E boa porque considera este mundo como uma faisqueira, onde todos têm lugar para garimpar. Mas nunca é inocente. O mineiro traz mais individualidade que personalidade. Acha que o importante é ser, e não parecer, não aceitando cavaleiro por argueiro nem cobrindo os fatos com aparatos. Sabe que “agitar-se não é agir”. Sente que a vida é feita de en­­coberto e imprevisto, por isso aceita o paradoxo; é um idealista prático, otimista através do pessimismo; tem, em alta dose, o amor fati. Bem comido, secularmente, não entra caninamente em disputas. Melhor, mesmo não disputa. Atencioso, sua filosofia é a da cordialidade universal, sincera; mas, em termos. Gregário, mas necessitando de seu tanto de solidão, e de uma área de surdina, nos contactos verdadeiramente importantes. Desconhece castas. Não tolera tiranias, sabe deslizar para fora delas. Se precisar, briga. Mas, como ouviu e não entendeu a pitonisa, teme as vitórias de Pirro. Tem a memória longa. Não tem audácias visíveis. Ele escorrega para cima. Só quer o essencial, não as cascas. Sempre frequentado pelo enigma, pica o enigma em pedacinhos, como quando pica seu fumo de rolo, e faz contabilidade da metafísica; gente muito apta ao reino-do-céu. Não acredita que coisa alguma se resolva por um gesto ou um ato, mas aprendeu que as coisas voltam, que a vida dá muitas voltas, que tudo pode tornar a voltar. Até sem saber que o faz, o mineiro está sempre pegando com Deus. Principalmente, isto: o mi­neiro não usurpa. 

Aí está Minas: a mineiridade. 

Mas, entretanto, cuidado. Falei em paradoxo. De Minas, tudo é possível. Viram como é de lá que mais se noticiam as coisas sensacionais ou esdrúxulas, os fenômenos? O diabo aparece, regularmente, homens ou mulheres mudam anatomicamente de sexo, ocorrem terremotos, trombas-d’água, en­chentes monstras, corridas-de-terreno, enormes ravinamentos que desabam serras, aparições meteóricas, tudo o que aberra e espanta. Revejam, bem. Chamam a seu povo de “carneirada”, porque respeita por modo quase automático seus Governos, impessoalmente, e os acata; mas, por tradição, conspira com rendimento, e entra com decisivo gosto nas maiores rebeliões. Dados por rotineiros e apáticos, foram de repente à Índia, buscar o zebú, que transformaram, dele fazendo uma riqueza, e o exportam até para o estrangeiro. Tidos como retrógrados, cedo se voltaram para a instrução escolar, reformando-a da noite para o dia, revolucionàriamente, e ainda agora dividindo com São Paulo o primeiro lugar nesse campo. Sedentários famosos, mas que se derramaram sempre fora de suas divisas estaduais, iniciando, muito antes do avanço atual, o povoamento do Norte do Paraná, e enchendo com suas colônias o Rio, São Paulo, Goiás e até Mato Grosso. Pacíficos por definição, tiveram em sua Força Pública militar, pressianamente instruída e disciplinada, uma formidável tropa de choque, tropa de guerra, que deu o que temer, e com larga razão. E, de seus ho­mens políticos, por exemplo, vê­em-se atitudes por vezes imprevisíveis e desconcertantes; que não serão anômalas, senão antes marcas de sua coerência profunda a única verdadeiramente com valibilidade e eficácia. 

Disse que o mineiro não crê demasiado na ação objetiva; mas, com isso, não se anula. Só que mi­neiro não se move de graça. Ele per­­manece e conserva. Ele espia, indaga, protela ou palia, se sopita, tolera, remancheia, perrengueia, sorri, escapole, se retarda, faz véspera, tempera, cala a boca, matuta, destorce, engambela, pauteia, se prepara. Mas, sendo a vez, sendo a hora, Minas entende, atende, toma tento, avança, peleja e faz. 

Sempre assim foi. Ares e modos. Assim seja. 

Só, e no mais: sem ti, jamais nunca Minas, Minas Gerais, inconfidente, brasileira, paulista, emboaba, lírica e sábia, lendária, épica, mágica, diamantina, aurífera, ferrífera, ferrosa, férrica, balneária, hidromineral, jê, puri, acroá, goitacá, goianá, cafeeira, agrária, barroca, luzia, árcade, alpestre, rupestre, campestre, de el-rei, das minas, do ouro das minas, das pretas minas, negreira, mandigueira, moçambiqueira, conga, dos tem­plos, santeira, quaresmeira, processional, granítica, de ouro em ferro, siderúrgica, calcárea, das perambeiras, serrana bela, idílica, ilógica, translógica, supralógica, intemporal, interna, leiteira, do leite e da vaca, das artes de Deus, do caos calmo, malasarte, conjuradora, adversa ao fácil, tijucana, januária, peluda, baeteira, tapiocana, catrumana, fabril, industriosa, industrial, fria, arcaica, mítica, enigmática, asiática, assombrada, salubre e salutar, assobradada, municipal, municipalíssima, paroquial, marília e heliodora, de pedra-sabão, de hematita compacta, da sabedoria, de Borba Gato, Minas joãopinheira, Minas plural, dos horizontes, de terra antiga, das lapas e cavernas, da Gruta de Maquiné, do Homem de Lagoa Santa, de Vila Rica, franciscana, barranqueira, bandoleira, pecuária, retraída, canônica, sertaneja, jagunça, clássica, mariana, claustral, humanista, política, sigilosa, estudiosa, comum, formiga e cigarra, labiríntica, pública e fechada, no alto afundada, toucinheira, metalúrgica, de liteira, mateira, missionária, benta e circuncisa, tropeira, borracheira, mangabeira, comboieira, rural, ladina, citadina, devota, cigana, amealhadora, mineral e intelectual, espiritual, arrieira, boiadeira, urucuiana, cordisburguesa, paraopebana, fluminense-das-velhas, barbacenense, leopoldinense, itaguarense, curvelana, belo-horizontina, do ar, do lar, da saudade, do queijo, do tutu, do milho e do porco, do angu, do frango com quiabo, Minas magra, capioa, enxuta, groteira, garimpeira, sussurrada, sibilada, Minas plenária, imo e âmago, chapadeira, veredeira, zebuzeira, burreira, bovina, vacum, forjadora, nativa, simplória, sabida sem desordem, sem inveja, sem realce, tempestiva, legalista, legal, governista, revoltosa, vaqueira, geralista, generalista, de não navios, de não ver navios, longe do mar, Minas sem mar, Minas em mim: Minas comigo. Minas. (grifo nosso)  

Fonte: ROSA, João Guimarães: Ave, palavra, São Paulo: Editora Nova Fronteira, 5ª edição, 2001, p. 339-45

 

II.  COMENTÁRIOS por Francisco José dos Santos Braga (crônica, análise literária e discurso em evento comemorativo)

 

Apresenta-se-me a oportunidade, no caso deste brilhante ensaio de Guimarães Rosa, de trazer ao proscênio a visão de diferentes análises e comentários a respeito desse texto lapidar.

1) Primeiramente, apresento ao leitor a visão da Profª Ivana Ferrante Rebello, uma autora que tem experiência plena na área de Letras, tanto como professora da Unimontes/MG quanto como escritora de livros consagrados sobre o Modernismo brasileiro. Além disso, ela é autora de livros de crítica literária e de biografias. Foi eleita presidente da Academia Montes-clarense de Letras no biênio 2022-2023. Vejamos o seu comentário ao texto intitulado "Minas Gerais" de Guimarães Rosa, inserida no corpo de sua crônica "Cordéis, Cordelistas e Mineiridades": 

"(...) Em Ave, palavra, livro de publicação póstuma, há um ensaio intitulado “Minas Gerais”, no qual Guimarães Rosa apresenta oito regiões culturais que compõem a multiplicidade do estado em que nasceu. É nesse ensaio que se encontra a máxima, muito repetida e popularizada: “Minas Gerais são muitas ou, pelo menos, várias”. O escritor apresenta, no texto, as muitas Minas Gerais que compõem o estado: a Minas Antiga, situada na Zona Mineralógica, tradicional, geratriz, “a de montes de ferro, chão de ferro, água que mancha de ferrugem e rubro a lama e as pedras dos córregos que dão ainda mais lembrança da formosa mulher subterrânea que era a Mãe do Ouro”. Aponta, a seguir, a Minas da Mata, “cismontana, molhada ainda de marinhos ventos, agrícola ou madeireira” a Minas do Sul, “cafeeiro, assentado em terra roxa”, a Minas do Triângulo, “saliente avançado, reforte, franco” a Minas do Oeste, “calado e curto nos modos, mas fazendeiro e político” a Minas do Centro “corográfico, do vale do Rio das Velhas, calcário, ameno, claro” a Minas do Noroeste, dos chapadões, dos campos-gerais que se emendam com os de Goiás e da Bahia esquerda e vão até ao Piauí e ao Maranhão ondeantes” e, ainda, a Minas do Norte, “sertanejo, quente, pastoril, um tanto baiano em trechos, ora nordestino na intratabilidade da caatinga, e recebendo em si o Polígono das Secas.” 

A partir das diferenciações, Guimarães Rosa elabora uma espécie de tratado sobre a mineiridade e o ser mineiro, encerrando o seu texto com um inconteste testemunho de amor à terra natal, no qual sujeito e lugar fundem-se numa mesma identificação: “Minas sem mar, Minas em mim: Minas comigo. Minas.” O ensaio do criador de Diadorim coloca em cena a multiplicidade do estado mineiro, sobressaltando as características que marcam tais diferenciações, que vão desde a formação e o tipo de colonização da região até a vocação econômica e política peculiar de cada lugar. No entanto, somente para a “Minas do Norte” há o reconhecimento de uma identidade mestiça e fragmentada, “um tanto baiano” ou nordestino, conforme as palavras de Guimarães Rosa." 

REBELLO, Ivana Ferrante: Cordéis, Cordelistas e Mineiridades, revista do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros (IHGMC), volume XVIII, 1º semestre 2017, p. 41-53. 
 

2) Em seguida, convido o leitor a apreciar a crítica abalizada de Luiz Cláudio Vieira de Oliveira sobre a 5ª edição (2001) do livro Ave, palavra de Guimarães Rosa, obra publicada postumamente pela Editora Nova Fronteira, organizada por Paulo Rónai. 

"(...) Ave, palavra é um livro irregular. Paulo Rónai, que o organizou e lhe deu o título, deveria ter acrescentado um prefácio que desse conta dessa miscelânea, tal como se declara na orelha do volume, discutindo os critérios para a inclusão deste ou daquele fragmento no livro. O descaso pela edição, feita pela Editora Nova Fronteira, evidencia-se pela inexistência de um estudo crítico e pelo tom genérico empregado na apresentação do livro. A qualidade desigual dos textos merecia uma abordagem comparativa, com base na crítica genética, que não foi feita. Na orelha do livro, lê-se: 

Ave, palavra é uma obra póstuma, e aos textos que o autor já havia deixado prontos foram acrescentados, pelo organizador da edição, Paulo Rónai, outros que Guimarães Rosa havia começado a rever e refundir para o livro, sendo que quatro deles eram totalmente inéditos. Em adendo, foram acrescentadas crônicas não originalmente planejadas para este livro, em sua maioria também inéditas.

Nele couberam textos que Guimarães Rosa, com sua visão crítica, talvez deixasse no limbo por mais algum tempo, para irem se apurando e depurando, ganhando alma, se aperfeiçoando, tal como o doce no tacho, que precisa ser muito mexido para chegar ao ponto. Mas aí estão também alguns dos textos mais bonitos que Guimarães Rosa já escreveu, como “Minas Gerais”, em que procura definir o mar de montanhas que é Minas, o mar de montanhas e de despenhadeiros, paradoxal, de cavernas e de alturas que há em Minas, as múltiplas direções em que Minas se estende, concentradas apenas nas duas que são visíveis: para cima e para baixo. É quase impossível defini-la, porque é “Minas, patriazinha. Minas – a gente olha, se lembra, sente, pensa. Minas – a gente não sabe.” Ou porque “(...) Minas Gerais é muitas. São, pelo menos, várias Minas.” Ou ainda, porque “(...) sendo a vez, sendo a hora, Minas entende, atende, toma tento, avança, peleja e faz.” Ou, talvez, de tão vastas, são “Minas em mim: Minas comigo. Minas.” O texto procura definir Minas, a mineiridade, o mineiro (...)" 

Fonte: "Ave, palavra", objeto da recensão de Luiz Claudio Vieira de Oliveira in Caligrama Revista de Estudos Românicos, Belo Horizonte nº 13, p. 139-153, dezembro 2008 
 
 
3) Na comemoração do DIA DE MINAS em Mariana, em 16 de julho de 2022, o Presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais iniciou seu discurso, tomando um trecho do ensaio "Minas Gerais" de Guimarães Rosa, por se tratar de verdadeira declaração de amor incondicional do escritor cordisburguense ao seu Estado de Minas Gerais, sua inspiração maior e palco precípuo de sua obra capital: Grande Sertão: Veredas. 
 
Cerimônia de 16 de julho de 2022 em Mariana - DIA DE MINAS 
 
O presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, desembargador José Arthur de Carvalho Pereira Filho, foi homenageado, neste sábado (16/7), em Mariana, com a Medalha Comemorativa do Dia do Estado de Minas Gerais, honraria outorgada pela Prefeitura Municipal da cidade histórica. Ele também atuou como orador oficial do evento. (...) . 
 
Orador oficial
 
No papel de orador oficial, ele falou em nome de todos os homenageados e citou um trecho da obra do escritor mineiro Guimarães Rosa: 
Minas é a montanha, montanhas, o espaço erguido, a constante emergência, a verticalidade esconsa, o esforço estático; a suspensa região — que se escala. Atrás de muralhas, caminhos retorcidos, ela começa, como um desafio de serenidade. Aguarda-nos amparada, dada em neblinas, coroada de frimas, aspada de epítetos (...). O quanto que envaidece e intranquiliza, entidade tão vasta, feita de celebridade e lucidez, de cordilheira e história. De que jeito dizê-la? Minas: patriazinha. Minas — a gente olha, se lembra, sente, pensa. Minas — a gente não sabe.” (grifo nosso)
E continuou:
Recorro à prosa poética do grande escritor mineiro Guimarães Rosa, que escreveu as palavras acima, para, neste 16 de julho, Dia do Estado de Minas Gerais, enaltecer a pluralidade, a beleza geográfica e a riqueza cultural e histórica deste estado, discorreu o presidente, que citou o longínquo ano de 1696, data que remonta à chegada a região da bandeira chefiada pelo coronel Salvador Fernandes Furtado de Mendonça e que registra o nascimento da cidade, afirmou o presidente José Arthur de Carvalho Pereira Filho. Uma data tão significativa para os mineiros que, para exaltá-la, esta cidade de Mariana volta a ser a sede do estado neste dia, acrescentou.
 
Agradecimentos 
 
O presidente do TJMG disse ainda que se sentiu muito honrado por ser agraciado com a Medalha Comemorativa do Dia do Estado de Minas Gerais, em uma data cheia de simbolismos. 
Sinto uma honra especial ainda por ter sido convidado para falar aqui, hoje, em nome de todas as personalidades que também recebem esta comenda, nesta magnífica Praça da Sé, cercada pela beleza enigmática e imponente desses edifícios do período colonial", ressaltou. Ele destacou que representa na cerimônia não apenas todos os homenageados com a condecoração, mas o Poder Judiciário mineiro, na condição de presidente do segundo maior Tribunal de Justiça do Brasil.
Por isso, nesta data cívica criada para reverenciar a memória do estado, gostaria, em nome da Corte estadual mineira, de expressar nosso compromisso de, no âmbito de nossas atribuições, continuar contribuindo, diuturnamente, para fazer imperar, nas Alterosas, os ideais de justiça, liberdade e igualdade que se encontram na origem de Minas, afirmou. (...)

 O presidente agradeceu à Prefeitura de Mariana, em nome do prefeito Ronaldo Alves Bento:

Parabéns a Mariana pelo seu dia. Parabéns a todos os agraciados com a Comenda do Dia de Minas. E parabéns a todos os mineiros, heróis ou anônimos, que, pelos séculos, vêm forjando as Minas Gerais, concluiu, sob aplausos. (...)
 
História 
 
O Dia de Minas Gerais, celebrado neste 16 de julho, é um marco da importância e da trajetória de mais de três séculos do estado. Simbolicamente a capital mineira é transferida para o município de Mariana. O ato é efetivado por meio de decreto. A cidade de Mariana, que comemora hoje 326 anos, tem uma participação efetiva na história de Minas Gerais. Mariana foi a primeira vila (1711), a primeira capital (1712), a primeira cidade (1745) e a primeira diocese (1745) de Minas, sendo chamada de "primaz de Minas". A Lei 7.561/1979 associou o dia 16 de julho ao Dia de Minas Gerais. Essa é a data atribuída à chegada de bandeirantes paulistas liderados por Salvador Fernandes Furtado de Mendonça, em 1696, quando foi encontrado ouro em um rio batizado de Ribeirão Nossa Senhora do Carmo. Às suas margens nasceu o arraial de Nossa Senhora do Carmo. Dia de Minas Em 16 de julho de 1977, o saudoso professor Roque José de Oliveira Camêllo, então membro da Casa de Cultura de Mariana - Academia Marianense de Letras, Ciências e Artes, durante a sessão comemorativa do 281º aniversário de Mariana, lançou a ideia de se instituir o 16 de Julho como data cívica estadual, recebendo o apoio do então presidente da Casa, historiador Waldemar de Moura Santos, dos acadêmicos, das autoridades municipais e da comunidade marianense. Após o projeto ser encaminhado ao Governo do Estado e à Assembleia Legislativa, o governador Francelino Pereira dos Santos sancionou a Lei nº 7.561, em 19 de outubro de 1979, consagrando o 16 de Julho como Dia do Estado de Minas Gerais, no art. 256 da Constituição mineira. 
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Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG