domingo, 9 de julho de 2023

O que resta de GUERRA JUNQUEIRO 100 anos depois da apoteose?


Por ANTÓNIO VALDEMAR *
 
O mais lido e aclamado poeta português, na transição do século XIX para o século XX, desencadeou as maiores polémicas religiosas e políticas. Apesar de todas as consagrações, deixou de ter a projeção literária que em tempos lhe foi atribuída (artigo publicado originalmente n' A Revista do Expresso, edição de 9/7/2023, com o título Centenário de Guerra Junqueiro: de poeta cantado a ilustre desconhecido”)
Guerra Junqueiro (1850-1923)

Cem anos depois da morte de Guerra Junqueiro, glorificado no Panteão Nacional, será possível recuperar a leitura da sua obra, tal como se verificou durante décadas? Os livros de português no ensino secundário ainda reproduzem poemas de Junqueiro? Tanto quanto se pode avaliar, o culto de Junqueiro (1850-1923) circunscreve-se às manifestações que decorrem na sua terra natal, Freixo de Espada à Cinta. Deixou de ter a amplitude que o situava na mais elevada dimensão nacional, embora neste centenário sejam várias as iniciativas que ajudam a recordá-lo. A partir de hoje, data da morte do escritor, e até julho do próximo ano, Freixo de Espada à Cinta, Porto, Lisboa e Viana do Castelo — à cidade onde nasceu juntam-se aquelas em que desenvolveu o seu trabalho — acolhem um conjunto de exposições, palestras, atividades educativas e concertos. 

A partir de 1915, a geração que lançou a revista “Orpheu” — Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e Alfredo Guisado — abriu novos caminhos na literatura, em especial na poesia. Em relação ao passado próximo, elegeu Antero, Gomes Leal e Cesário Verde entre os poetas preferidos. Outros nomes do século XIX e XX também deixaram de ter o reconhecimento que lhes era dispensado. 

Junqueiro faleceu a 7 de julho de 1923, em Lisboa, na casa da filha Maria Isabel, em Campo de Ourique. Vivia-se um dos anos mais turbulentos da Primeira República. Assistia-se a uma “balbúrdia sanguinolenta”, conforme Eça de Queirós vaticinara no “In Memoriam”, de Antero (1896), a propósito dos efeitos da implantação da República em Portugal. Entre numerosos casos insólitos, que provocaram sobressalto, a 22 de maio era morto a tiro, no cemitério dos Prazeres, um gerente da Companhia União Fabril (CUF), durante o funeral do conde de Sabugosa, o último representante do grupo Vencidos da Vida, do qual Guerra Junqueiro fizera parte. 

Os atentados eram consecutivos. No dia da morte de Junqueiro, à saída do Tribunal de Defesa Social, arremessaram três bombas a três juízes, que ficaram gravemente feridos. A falta de alimentos essenciais, como o pão, provocava greves impulsionadas pela Confederação Geral do Trabalho. Predominava a inquietação, o medo e o pânico. Cunha Leal, que já pedira a pena de morte por ocasião da “noite sangrenta” de 19 de outubro de 1921, voltou a apelar, numa conferência na Sociedade de Geografia, para a intervenção urgente da Força Armada, a fim de repor a ordem pública e a estabilidade social. 

UM GÉNIO NO PANTEÃO 

As exéquias de Junqueiro realizaram-se na Basílica da Estrela. O funeral seguiu diretamente para os Jerónimos, na altura Panteão Nacional. Ficou no espaço nobre da Sala do Capítulo, onde já estavam Herculano e Garrett. O Governo — com o apoio do Presidente da República António José de Almeida — pagou as despesas da trasladação e determinou, em decreto-lei, que os funerais fossem nacionais. O cerimonial — que se prolongou durante cerca de uma semana — constituiu uma apoteose cívica e cultural, enquanto era enterrado na maior obscuridade Basílio Teles, um dos principais ideólogos da República. 

Sepultado com todas as honras, Guerra Junqueiro continuava a ser classificado um génio, não obstante as polémicas religiosas, políticas e literárias que desencadeou. Assim apareceu nas primeiras páginas dos grandes jornais e nos depoimentos de personalidades com a responsabilidade de Teixeira de Pascoaes: 

Guerra Junqueiro é um poeta genial. A sua lira é feita do mesmo ouro que a de Apolo. A luz ri nas suas sátiras, mais belas do que as de Juvenal. Este poeta é o Sol. Nenhum outro encarnou assim a natureza no seu milagre deslumbrador e criador.” 
Era o poeta português mais lido e mais aclamado. “A Morte de D. João”, publicada em 1874, representou o início da consagração. Tinha apenas 24 anos. Em poucos meses esgotou uma tiragem de 1200 exemplares. Os êxitos repetiram-se até à morte. Sampaio Bruno não hesitou em salientar: 
“Não existe, em literatura alguma, paralelo que se lhe compare.” 
Partilhou a mesma opinião Miguel Unamuno. 

O renome de Junqueiro acentuou-se, em 1885, em “A Velhice do Padre Eterno”. A crítica indignada do padre Sena Freitas concorreu para numerosas reedições entre nós e no Brasil. Nunca houve em Portugal uma acusação tão virulenta contra a Igreja Católica. Deu lugar a uma polémica interminável. Atingiu a Igreja Católica desde as mais altas hierarquias até ao pároco de aldeia. 

Contudo, Junqueiro nunca pôs em causa a existência de Deus nem a figura de Cristo. Num poema incluído na própria “Velhice do Padre Eterno”, confessou, sem margem para equívocos: 

“Creio que Deus é eterno e que a alma é imortal. [...] Sim, creio que depois do derradeiro sono,/ há de haver uma treva e há de haver uma luz...” 
Mas denunciou, com energia, a conduta do clero, os abusos sexuais, o envolvimento descarado na rotina político-partidária. A educação de muitos jovens era orientada para o sacerdócio. No poema “Como Se Faz um Monstro” descreve a recomendação habitual de muitos pais aos filhos: 
“Hoje, padre é melhor que ser doutor. [...] Quando o abade morrer hás de vir para cá./ Despacha-te o doutor nas Cortes: quando não/ votamos contra ele, e foi-se a eleição. [...] Toca para o seminário. Eu quero ir para a cova/ só depois de te ouvir cantar a missa nova.” 
Garantia um futuro próspero. A carreira eclesiástica abrangia os maiores interesses pessoais e institucionais. Reforçava o poder em todas as instâncias. 

POETA DE CAUSAS 

As questões políticas e sociais mobilizaram, sempre, a atenção de Junqueiro. Foi um poeta de causas de interesse público. Enumeramos, por exemplo: “A Vitória da França”, sobre a República em França (1870); “A Espanha Livre”, acerca da instauração da República em Espanha (1873); “A Fome no Ceará”, um dos grandes flagelos no Brasil; “A Lágrima”, por ocasião do incêndio do Teatro Baquet, no Porto; e, ainda, “O Crime”, contestação ao ministro da Justiça do assassínio a um militar. “Contra o braço da forca e contra a guilhotina,/ eu que proscrevo o algoz, eu exigi-lo-ei/ para enforcar somente esse bandido — a Lei.” 

Integram-se, neste contexto, “Finis Patriae” (1890) e, sobretudo, “Pátria” (1896). Basta citar que uma tiragem de 6000 exemplares — caso sem precedentes em Portugal — vendeu-se em cinco dias. No “Pátria” arrasou com ferocidade a dinastia de Bragança. D. Pedro V foi a exceção. Despedaçou o rei D. Carlos, a corte que o rodeava, os chefes dos partidos que permaneciam à frente das instituições. Protagonista e espectador dos acontecimentos quotidianos, Junqueiro interveio nas guerras e nas guerrilhas que agitaram o país, tais como o Ultimato de 1890 e a Revolução Republicana de 31 de janeiro. Tudo quanto precipitou o fim da Monarquia e acelerou a instauração da República. 

Elogiou inclusive o regicídio. 

“Lamento de olhos enxutos” — e citamos para não haver dúvidas — “a execução do monarca. Mas se tivesse o dom de o ressuscitar não o levantava do túmulo. Deploro angustioso a morte do príncipe. E diante dos cadáveres dos homicidas descubro-me ajoelhado, com lágrimas de piedade, e, porque não hei de confessá-lo, de adoração e carinho.” 
A glorificação de Junqueiro prosseguiu com “Os Simples” (1892), “Oração ao Pão” (1902) e “Oração à Luz” (1904). Três livros da última fase, voltada para a exaltação da família e para celebrar a paisagem natural de Trás-os-Montes e do Alto Minho e a paisagem ideal sonhada em explosões de lirismo. Revela um panteísmo transcendente, sem as ironias e os sarcasmos que lhe atribuíram notoriedade. 

Cumpria-se o vaticínio de Antero de Quental, numa carta de agosto de 1874 a Oliveira Martins, da qual resumimos o seguinte passo: 

“Estou curiosíssimo por saber o que você dirá de Guerra Junqueiro e de ‘A Morte de D. João’. Mas que admiráveis páginas! Há de fazer-se daquele rapaz um grande poeta — nos limites em que hoje se pode ser grande poeta —, um eco vibrante das grandes ideias do nosso tempo.” 

REAÇÕES CRÍTICAS 

Esta circunstância não impediu que, na “Revista Portugal”, dirigida por Eça de Queirós, o crítico mais arguto da Geração de 70, Moniz Barreto (1863-1896), prematuramente falecido, sem dissecar as controvérsias políticas e religiosas, se ocupasse de Guerra Junqueiro, no âmbito estritamente literário, contrariando a unanimidade de opinião que predominava. Assinalou 

“os recursos da expressão, a sumptuosidade e o vigor da frase, a sábia gradação dos efeitos, a arte consumada de formular, intimar, ornar e lançar à circulação um tema poético”. 
Logo a seguir acrescentou: 
“Um vocabulário escolhido e nobre, uma adjetivação abundante e nova, uma sintaxe regular e ampla” constituem “o segredo do seu prestígio”. 

Para concluir categoricamente: Junqueiro é

“muito mais orador do que poeta. Tem muito mais eloquência do que imaginação”. (“Revista Portugal”, nº 1, 1889)
Nos últimos anos da vida de Junqueiro publicou António Sérgio (1883-1969), no primeiro tomo dos Ensaios”, uma extensa interpretação com o título: “O Caprichismo Romântico do Sr. Guerra Junqueiro”. Teve, em Portugal e no Brasil, o maior impacto. Em 1928, Vieira de Almeida (1888-1962), em dois números da revista “O Instituto”, de Coimbra, publicou o estudo “A Obra de Guerra Junqueiro”. Também surgiu mais outro estudo, de António Sardinha (1887-1925), repleto de objeções e recolhido no livro póstumo “Purgatório de Ideias” (1929). 

Intelectuais quer da “Seara Nova” quer do “Integralismo Lusitano” formularam críticas à obra e à personalidade de Junqueiro. Lopes de Oliveira (1881-1971), biógrafo e memorialista de Junqueiro, reagiu: 

“Trata-se de um ataque dos zoilos, mais ou menos obscuros, mas todos horríveis e despeitados versejadores. Desenvolvia-se uma reação obscurantista, à conta da defesa da religião. Não só se acusava o ateísmo (de Junqueiro), mas descia-se à calúnia sobre a vida pública e particular.” 
O ensaísta Amorim de Carvalho (1904-1976) procurou examinar as posições de António Sérgio e de Vieira de Almeida no livro “Guerra Junqueiro e a Sua Obra Poética" (Porto, 1948). Teve por objetivo “fazer justiça a Junqueiro, um dos maiores poetas portugueses, e que, no dizer de Unamuno, foi ‘um dos maiores do mundo’”. “Toda a análise interpretativa que António Sérgio fez do pensamento científico e filosófico do poeta Guerra Junqueiro terá de ser rejeitada como improcedente”, salientou. Quanto a Vieira de Almeida, “pelo exagero que assume, é toda ela uma autêntica cegueira, em que os exemplos e a tese — sem ele dar por isso — se voltam a cada passo contra o detrator”, comentou. Para Amorim de Carvalho, “o senso estritamente lógico — que nunca fez qualquer literatura de mérito — encontra sempre contradições”. 

CENTENÁRIO NO SALAZARISMO 

O ano de 1949 não apagará os horrores da Segunda Guerra Mundial e, no plano interno, os movimentos democráticos em torno da candidatura presidencial de Norton de Matos. A oposição encontrava-se retalhada. A PIDE multiplicava as prisões em todo o país. Aproximava-se, a 15 de setembro de 1950, a homenagem devida a Guerra Junqueiro. 

Egas Moniz proferiu, a 14 de outubro de 1949, uma conferência no salão de festas do Coliseu do Porto na qual propôs: 

“Estamos no limiar do centenário do poeta, que passa no próximo ano de 1950. Homenagem de gratidão lhe deve ser tributada, em todo o país, mas deve partir a iniciativa dos homens de letras do Porto, para que tenha maior retumbância por esse Portugal além. Em cada cidade, em cada vila, em cada aldeia, sejam lidos os seus versos. Deram-me o feliz ensejo de dar o sinal de alvorada, poucos meses antes da comemoração de um dos maiores poetas.” 
Ainda houve duas conferências no Porto: uma de Teixeira de Pascoaes e outra de João de Barros. Entretanto, Egas Moniz recebia o Prémio Nobel. Mas o apelo suscitado por Egas Moniz passou a ser controlado pela censura e pela polícia política, até se organizar uma Comissão Nacional presidida por Júlio Dantas. Inspirava total confiança ao regime. Escrevera, em 1921, em “Os Galos de Apolo”: 
“Tem sido em Portugal, no Brasil, na própria Espanha, o pai espiritual de algumas gerações de poetas.” 
Embora agnóstico — recorde-se que exigiu, em testamento, funeral civil —, Dantas não iria afetar a estreita relação do Governo com a Igreja. Respeitava a cartilha definida pelo cardeal Cerejeira, antes de ascender ao episcopado. Consta das conferências promovidas pelo CADC e compiladas no livro “A Igreja e o Pensamento Contemporâneo” (1924). Recorde-se que o professor Sílvio Lima (1904-1993) desmontou, factualmente, em 1930, as teses de Cerejeira em “Notas Críticas ao Livro ‘A Igreja e o Pensamento Contemporâneo’”. Custou-lhe a demissão de professor da Universidade de Coimbra, dificilmente recuperada. 

“TROVOADA DE LATA” 

Mesmo em cima da morte, do funeral, da tumulização de Junqueiro no Panteão Nacional, Raul Proença (1884-1941), sem deixar de enaltecer méritos ao poeta, teve a coragem de contestar o génio de Junqueiro (“Seara Nova”, julho de 1923). Observou ele: 

“Falta-nos o sentimento da medida, a rigorosa disciplina das qualificações. Toda a nossa crítica se encerra nos dois termos antinómicos dum dilema: a apoteose ou a descompostura. Resvalamos sempre sobre um plano inclinado: deixamo-nos ir à mercê do impulso laudativo ou pejorativo. [...] Sem a mínima preocupação de fazer restrições, de ver os defeitos ou as qualidades daquilo que se elogia ou se censura. Não há por isso crítica em Portugal.” 
A propósito dos versos introdutórios de “A Morte de D. João”, não hesitou Raul Proença em afirmar que era uma “trovoada de lata hoje ilegível”, para concluir: 
“Junqueiro ocupa apenas um dos primeiros postos entre os nossos escritores de segunda ordem. Mais direito do que ele entrar nos Jerónimos têm certamente Eça de Queirós e Antero — de primeiro plano, esses, sem dúvida. O tempo se encarregará de pôr os homens e as coisas nos seus lugares, quando se fizer a distância que permitirá avultar os gigantes, a reduzir os que não foram à sua exata proporção.” 

É evidente que, mais do que previa Raul Proença em 1923, deixou Guerra Junqueiro de ter a projeção literária que em tempos lhe foi atribuída. Perdura, contudo, a veemência do inconformismo e do protesto, que ganha atualidade perante a degradação política e social que se tem intensificado nos dias que vivemos, e de forma preocupante. 

* Jornalista - sócio efetivo da Academia das Ciéncias de Lisboa.

Fonte: https://expresso.pt/revista/2023-07-09-Centenario-de-Guerra-Junqueiro-de-poeta-cantado-a-ilustre-desconhecido-409f5469  👈

 

AGRADECIMENTO

 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição da foto utilizada neste artigo.
 
 

sábado, 8 de julho de 2023

AFONSO ARINOS E O BURITI PERDIDO


Por Danilo Gomes

Praça do Buriti em Brasília - Crédito pela foto: Flickr/Francisco Aragao


Como outros treze colegas, tive a oportunidade de participar do II Encontro de Escritores em Arinos, coordenado pelo poeta e prosador Napoleão Valadares, autor de vários livros, entre eles “História de Arinos”. 
 
O dia 19 de maio foi fecundo e fez da cidade de Arinos, MG um tempo de amor à literatura. O evento literário contou com o apoio do prefeito Marcílio Almeida. Auditório lotado, numerosos estudantes e professores. Tivemos a presença do escritor Fabio de Sousa Coutinho, presidente da Associação Nacional de Escritores-ANE e da Academia Brasiliense de Letras. Além deste amanuense, foram palestrantes os escritores Edmílson Caminha, Marcelo Perrone Campos e Xiko Mendes. Coube-me falar sobre “Afonso Arinos e o sertão”. 
 
O nome de Arinos figura na geografia de Minas Gerais desde 30 de dezembro de 1962. O escritor que dá nome à cidade é uma das figuras mais importantes da literatura brasileira. Sua obra foi estudada e aplaudida por grandes críticos literários e historiadores da literatura, como José Veríssimo, Afrânio Coutinho, J. Galante de Sousa, Lúcia Miguel Pereira, Mário de Alencar (filho de José de Alencar), Assis Brasil, Alceu Amoroso Lima, Bernardo Élis e outros. 
 
Nascido em Paracatu, MG, em 1º de maio de 1868, Afonso Arinos de Melo Franco morou com os pais em Pirenópolis, estudou em São João del-Rei e em Goiás Velho (então Villa Boa de Goyaz). Formou-se em Direito em São Paulo, onde se casou com Antonieta Prado. 
 
Desde moço, colaborou na imprensa de Minas, Rio e São Paulo. Fez sua primeira viagem à Europa em 1896. Morou na Paris da ‘belle-époque’ de Marcel Proust. Vinha sempre ao Brasil, em busca do seu amado sertão natal. Deu aulas em Ouro Preto. Era um homem muito culto, de educação refinada, com uma legião de amigos. 
 
Em 1898 suas histórias sertanejas são publicadas no seu livro mais famoso, “Pelo sertão”. Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa escreveram, na sua “Enciclopédia de Literatura Brasileira”: 
“Na busca da temática brasileira, ao lado dos ciclos do indianismo, do sertanismo, do caboclismo, do cangaço, Afonso Arinos introduziu na ficção o ambiente inóspito e selvático do planalto central. Sua técnica foi a do Realismo, caracterizando-se pela fidelidade e verossimilhança, sem qualquer tendência a estilizar e a fantasiar. Homens, costumes, paisagens do sertão são retratados fotograficamente, com muita segurança e num estilo próprio, destacando-se ainda a reprodução da fala coloquial típica. (…) Em sua obra, é o próprio sertão, é a própria alma sertaneja que se retratam, com a psicologia típica do homem local.
Mais adiante, prosseguem os autores: 
“Seu regionalismo é fruto de profunda vivência , acumulada na sua alma desde a infância, num contato com o meio, as matas, as serras, a paisagem, o homem, os costumes. Apesar das viagens, Afonso Arinos manteve as raízes presas ao meio sertanejo nativo e soube ajustar as figuras humanas e as forças naturais. E assim, graças a essa base telúrica, à miragem de todo grande criador, alçou-se com sua obra de contista ao primeiro plano na literatura nacional.
Além de “Pelo Sertão”, Afonso Arinos publicou os livros “Notas do dia”, “O contratador de diamantes”, “A unidade da pátria”, “Lendas e tradições brasileiras”, “O mestre de campo”, “Histórias e paisagens”. Resultou inacabado o livro “Ouro ! Ouro !” 
 
Homem afável, um cavalheiro leal e impecável, tinha Afonso Arinos, na legião de seus amigos, o poeta e cronista Olavo Bilac. Conviveram em tertúlias de camaradagem no Rio de Janeiro. Durante a ditadura de Floriano Peixoto, Bilac teve que deixar seu Rio para escapar da prisão (como tantos outros). Foi parar em Ouro Preto. A história é contada no livro “Crônicas e novelas - 1893-1894”, publicado pela Editora Liberdade, de Ouro Preto, dirigida pelos professores universitários e escritores M. Francelina Silami Ibrahim Drummond e Arnaldo Fortes Drummond. Esse livro conta com primoroso aparato editorial para as saborosas crônicas e novelas de Olavo Bilac. Quando Afonso Arinos entrou para a Academia Brasileira de Letras, em 1901, quem o recebeu foi Olavo Bilac. 
 

 
A página mais famosa de Afonso Arinos intitula-se “Buriti perdido”, que releio com frequência. É um antológico conto, com cara de crônica. O buriti perdido, aquela velha palmeira solitária; uns dizem que situada em Paracatu; outros, como Bernardo Élis, que situada em Corumbá de Goiás. 
 
Afonso Arinos escreveu que esse buriti perdido, “cantor mudo da natureza virgem dos sertões”, estaria, um dia, numa “larga praça”. Palavras proféticas, premonitórias, de um brasileiro que viveria apenas 48 anos. Com efeito, hoje temos na nossa querida Brasília, fundada pelo diamantinense Juscelino Kubitschek de Oliveira, uma Praça do Buriti, onde se situa o Palácio do Buriti, sede do Governo do Distrito Federal. 
 
O amigo escritor Silvestre Gorgulho me conta a história do plantio da palmeira na Praça do Buriti. Silvestre Gorgulho foi secretário de Comunicação do governador José Aparecido de Oliveira, que cuidou do tombamento da emblemática “palmeira solitária” no jardim externo do Palácio do Buriti. Foi no dia 30 de maio de 1985, presente à cerimônia o sobrinho de Afonso Arinos, o também escritor e político Afonso Arinos de Melo Franco Sobrinho, membro da Academia Brasileira de Letras. Afonso Arinos de Melo Franco Sobrinho foi também membro da Academia Mineira de Letras, na época do presidente Vivaldi Moreira, pai do escritor Pedro Rogério Moreira. 
 
Assim, aquele buriti que uniu e vinculou mais ainda o sertão à nova capital do Brasil foi, graças a José Aparecido de Oliveira, tombado pelo IPHAN. Estava realizada, em pleno Eixo Monumental de Brasília, a intuição profética e poética de Afonso Arinos. O imponente buriti perdido se encontrou, lá na Praça do Buriti, com sua sóbria e singela beleza. A encantadora página de Afonso Arinos é reescrita ao vivo e a cores para o olhar atento de brasilienses e turistas. Um simbolismo capital para nossa Brasília, coração do Sertão.

terça-feira, 4 de julho de 2023

PREFÁCIO AO LIVRO “EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS E FILOSOFIA ANTIGA" DE PIERRE HADOT

Por ARNOLD I. DAVIDSON *


Esta edição brasileira (É Realizações Editora, 2014, 368 p.) refere-se à edição francesa revista e aumentada (Éditions Albin Michel, 2002, 416 p.) em relação à precedente (ibidem, 1987, 206 p.), com alguns novos textos na Parte VII, uns inéditos e outros não, com destaque para o inédito "Reflexões sobre a Noção de 'Cultura de Si'", que dá continuidade a "Um diálogo interrompido" com Michel Foucault (também reproduzido na Parte VI), O Sábio e o Mundo e A Filosofia é um Luxo? A versão em português é dos tradutores Flávio Fontenelle Loque e Loraine Oliveira. 
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I. PREFÁCIO POR ARNOLD I. DAVIDSON (p. 7-14)

 

Lembro-me muito bem do momento no qual Michel Foucault me falou de Pierre Hadot pela primeira vez. Mesmo constatando seu vivo entusiasmo naquele momento, respondi-lhe que eu não era de modo algum um especialista em filosofia antiga e que não queria me aventurar nesse campo. Somente muito mais tarde comecei a ler Pierre Hadot, depois da morte de Michel Foucault. Imediatamente, fiquei impressionado não somente com a exatidão e lucidez de suas interpretações dos textos, fruto de um conhecimento filológico e histórico irrepreensível, mas sobretudo com a visão em filigrana da filosofia que encontrei em seus ensaios e livros. Que Pierre Hadot seja um dos maiores historiadores do pensamento antigo em nossa época é evidente; o que talvez seja menos evidente é que ele é também um grande filósofo. Basta estudar o conjunto de sua obra para estar convencido disso. Este livro, Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga, já é um clássico, e, como todos os verdadeiros clássicos, mantém sua força de permanecer atual. 

Gostaria de detalhar alguns aspectos da noção de exercícios espirituais para melhor explicar por que P. Hadot fez dela o fio condutor de sua concepção da filosofia antiga. P. Hadot sempre disse que sua descoberta da noção de exercício espiritual estava ligada a um problema estritamente literário: como explicar a aparente incoerência de alguns filósofos? Longe de buscar um novo tipo de espiritualidade edificante, Pierre Hadot queria confrontar o tema, historicamente constante, da pretensa incoerência dos filósofos antigos. É essa investigação que o conduziu "à ideia de que as obras filosóficas da Antiguidade não eram compostas para expor um sistema, mas para produzir um efeito formativo: o filósofo queria trabalhar os espíritos de seus leitores ou ouvintes para que se colocassem numa certa disposição". ¹ Antes formar os espíritos que os informar: eis a base sobre a qual repousa a ideia de exercício espiritual. Portanto, não há de causar espanto a importância, reafirmada sem cessar, que a leitura dos textos ocupa em P. Hadot: ler é um exercício espiritual e nós devemos aprender a ler, isto é, "parar, libertarmo-nos de nossas preocupações, voltar a nós mesmos, deixar de lado nossas buscas por sutilezas e originalidade, meditar calmamente, ruminar, deixar que os textos falem a nós" ("Exercícios Espirituais", p. 66) A esse respeito, há que meditar a extraordinária citação de Goethe que ele escolheu para concluir o capítulo "Exercícios Espirituais": 

"As pessoas [...] não sabem quanto custa em tempo e esforço aprender a ler. Precisei de oitenta anos para tanto e sequer sou capaz de dizer se tive sucesso" (ibidem, p. 66) 
Ler é uma atividade de formação e de transformação de si mesmo, e, seguindo P. Hadot, não se há de esquecer que os exercícios espirituais não são limitados a um campo particular de nossa existência; eles têm um alcance muito largo e penetram nossa vida cotidiana. 

Na expressão "exercícios espirituais", é preciso levar em conta ao mesmo tempo a noção de "exercícios" e o significado do termo "espiritual". Os exercícios espirituais não funcionam simplesmente no nível proposicional e conceitual. Não é uma nova teoria metafísica que nos é proposta aqui, pois os exercícios espirituais são precisamente exercícios, isto é, uma prática, uma atividade, um trabalho sobre si mesmo, o que se pode chamar uma ascese de si. Os exercícios espirituais fazem parte de nossa experiência, são "experimentados". Além disso, P. Hadot não emprega o termo "espiritual" no sentido de "religioso" ou "teológico"; os exercícios religiosos eram apenas um tipo, muito particular, de exercício espiritual. Por que, então, o termo "espiritual"? Somente após ter eliminado outros adjetivos, P. Hadot finalmente escolheu caracterizar esses exercícios como "espirituais"; com efeito, "exercícios intelectuais" ou "exercícios morais" dão conta apenas parcialmente da densidade do sentido "intelectual" não recobre todos os aspectos desses exercícios e "moral" pode dar a impressão inexata de que se trata de um código de boa conduta. Como P. Hadot claramente disse: "A palavra 'espiritual' permite entender bem que esses exercícios são obra não somente do pensamento, mas de todo o psiquismo do indivíduo" (ibidem, p. 20) A expressão engloba o pensamento, a imaginação, a sensibilidade assim como a vontade: "A denominação de exercícios espirituais é, finalmente, portanto, a melhor, porque marca bem que se trata de exercícios que engajam todo o espírito" ("Exercícios Espirituais Antigos e 'Filosofia Cristã'", p. 68-69). A filosofia antiga "é exercício espiritual porque ela é um modo de vida, uma forma de vida, uma escolha de vida" ², de modo que se poderia dizer também que esses exercícios são "existenciais", porque possuem um valor existencial que diz respeito à nossa maneira de viver, nosso modo de ser no mundo; eles são parte integrante de uma nova orientação no mundo, uma orientação que exige uma transformação, uma metamorfose de si mesmo. P. Hadot resumiu sua concepção dizendo que um exercício espiritual é "uma prática destinada a operar uma mudança radical do ser". ³

Para compreender a radicalidade e a profundidade da ideia dos exercícios espirituais na concepção de P. Hadot é preciso ter consciência da distinção essencial que ele opera entre o discurso filosófico e a própria filosofia. É uma distinção que, no fundo, faz emergir a dimensão prática e existencial dos exercícios espirituais. Partindo da distinção estóica entre o discurso segundo a filosofia e a própria filosofia, P. Hadot mostra que se pode utilizar essa distinção "de uma maneira mais geral para descrever o fenômeno da 'filosofia' na Antiguidade".

Segundo os estóicos, o discurso filosófico se divide em três partes a lógica, a física e a ética; quando se trata de ensinar a filosofia, expõe-se uma teoria da lógica, uma teoria da física e uma teoria da ética. Todavia, para os estóicos e, num certo sentido, para os outros filósofos da Antiguidade , esse discurso filosófico não era a própria filosofia. A filosofia não é uma teoria dividida em três partes, mas "um ato único que consiste em viver a lógica, a física e a ética. Não se faz mais então a teoria da lógica, isto é, do falar bem e do pensar bem, mas pensa-se e fala-se bem; não se faz mais a teoria do mundo físico, mas contempla-se o cosmos; não se faz mais a teoria da ação moral, mas age-se de uma maneira reta e justa ("A Filosofia como Maneira de Viver", p. 264). Dito de outro modo, "a filosofia era o exercício efetivo, concreto, vivido, a prática da lógica, da ética e da física". P. Hadot recapitula essa ideia da seguinte maneira: 

"O discurso sobre a filosofia não é a filosofia [...]. As teorias filosóficas estão a serviço da vida filosófica [...].
A filosofia, na época helenística e romana, apresenta-se então como um modo de vida, como uma arte de viver, como uma maneira de ser. De fato, ao menos desde Sócrates, a filosofia antiga tinha essa característica [...]. A filosofia antiga propõe ao homem uma arte de viver; a filosofia moderna, ao contrário, apresenta-se antes de tudo como a construção de uma linguagem técnica reservada a especialistas." ("A Filosofia como Maneira de Viver", p. 271). 
Na Antiguidade, a tarefa essencial do filósofo não era construir ou expor um sistema conceitual; é por isso que P. Hadot critica os historiadores da filosofia antiga que representam a filosofia primeiramente como um discurso ou uma teoria filosóficos, um sistema de proposições. Ele explica esse ponto desta maneira: 
"Todas as escolas denunciaram o perigo que o filósofo corre se imagina que seu discurso filosófico pode bastar a si mesmo sem estar de acordo com a vida filosófica [...]. Tradicionalmente, aqueles que desenvolvem um discurso aparentemente filosófico, sem buscar relacionar a vida ao discurso e sem que o discurso emane da experiência e da vida são chamados "sofistas" pelos filósofos [...]."
Nesse sentido bastante preciso, poder-se-ia dizer que os sofistas encarnam sempre um perigo para a filosofia, uma ameaça inerente à tendência que considera que o discurso filosófico basta a si mesmo e é inteiramente independente de nossa escolha de vida. Recentemente, P. Hadot continuou a detalhar sua concepção do papel do discurso filosófico na própria filosofia. Segundo ele, quando o discurso não está separado da vida filosófica, quando é parte integrante da vida, quando o discurso é um exercício da vida filosófica, ele é então completamente legítimo e até indispensável. Se os filósofos da Antiguidade recusam-se a identificar a filosofia ao discurso filosófico, 
"é bem evidente que não pode haver filosofia sem um discurso interior e exterior do filósofo. Todavia, todos esses filósofos [...] se consideram filósofos não porque desenvolvem um discurso filosófico, mas porque vivem filosoficamente. O discurso se integra à vida filosófica [...]. Para eles, a própria filosofia é antes de tudo uma forma de vida e não um discurso."
P. Hadot pretende combater a representação da filosofia "reduzida a seu conteúdo conceitual" e "sem relação direta, em todo caso, com a matéria do viver do filósofo". Quando a filosofia se torna simplesmente um discurso filosófico sem estar ligada e integrada a um modo de vida filosófico, ela sofre uma modificação radical. A filosofia começa a ser uma disciplina profundamente escolar e universitária, e o filósofo, segundo a expressão de Kant, torna-se um "artista da razão" que se interessa apenas pela pura especulação. P. Hadot cita Kant: 
"Quando tu vais começar a viver virtuosamente, dizia Platão a um velho que lhe contava que escutava lições sobre a virtude. Não se trata de especular sempre, mas é preciso, em algum momento, pensar em passar ao exercício. Hoje, porém, se toma por exaltado aquele que vive de uma maneira conforme ao que ensina." ¹
Encontra-se um eco dessa citação nestas questões de P. Hadot: 
"O que é, em última instância, o mais útil ao homem enquanto homem? É discorrer sobre a linguagem ou sobre o ser e o não ser? Não é, antes, aprender a viver uma vida humana?" ("A Filosofia é um Luxo?", p. 329) 
Apesar dessa crítica ao discurso filosófico considerado como autônomo e separado da vida filosófica, é claro também que não há, por isso, uma desqualificação desse discurso. Todavia, contrariamente à maior parte dos filósofos contemporâneos, retém sua atenção antes a modalidade psicagógica do discurso que a modalidade proposicional e abstrata. No final das contas, escolha de vida e maneira de viver, exercícios espirituais e discurso psicagógico e transformador são três elementos essenciais da visão da filosofia nos escritos de Pierre Hadot. 
 
Esta nova edição dos Exercícios Espirituais de P. Hadot traz alguns textos até então difíceis de encontrar ou inéditos. "Reflexões sobre a Noção de 'Cultura de Si'", um texto já muito discutido, continua o "diálogo interrompido" com Michel Foucault. Nessa discussão, P. Hadot acentua sobretudo o contraste entre "a estética da existência" em Foucault e a "consciência cósmica", uma outra ideia-chave de sua análise. A noção de consciência cósmica, associada à prática da física como exercício espiritual e ao ideal de sabedoria, permanece um dos aspectos mais surpreendentes e singulares de seu pensamento. O exercício da consciência cósmica não é somente um elemento capital de sua interpretação da Antiguidade; ele permanece, a seus olhos, uma prática atual que modifica nossa relação com nós mesmos e com o mundo. O texto sobre Thoreau nos lembra como a ideia dos exercícios espirituais pode funcionar como um quadro interpretativo para reler a história do pensamento de modo a nos permitir ver as dimensões filosóficas de pensadores que, habitualmente, são deixados na sombra pela representação tradicional da história da filosofia. Não somente Thoreau, mas também Goethe, Michelet, Emerson e Rilke, entre outros, são assim reconduzidos à dimensão propriamente filosófica; e até Wittgenstein, em P. Hadot, torna-se um outro tipo de pensador: além do professor de filosofia, um filósofo que exige um trabalho sobre nós mesmos e uma transfiguração de nossa visão do mundo, no mais forte sentido dessas expressões. 
 
Em "O Sábio e o Mundo", novamente falando da consciência cósmica, mas também da concentração sobre o momento presente, P. Hadot destaca a importância da figura do sábio e o papel do exercício da sabedoria em sua concepção da filosofia. ¹¹ A norma da sabedoria pode e deve realizar uma transformação da relação entre o eu e o mundo, "graças a uma mutação interior, graças a uma mudança total da maneira de ver e de viver" ("O Sábio e o Mundo", p. 326). A percepção estética, como destaca P. Hadot, é "um tipo de modelo da percepção filosófica" (ibidem, p. 316), um modelo da conversão da atenção e da transformação da percepção habitual que o exercício da sabedoria exige. P. Hadot nos fornece instrumentos para apreender as possibilidades existenciais e cosmológicas da percepção estética e, tal como Merleau-Ponty, ele percebe numa certa visão estética um meio para reaprender a ver o mundo. 
 
Os três outros textos novos desenvolvem e aprofundam o quadro das noções das quais já tentei fornecer um esboço e nos mostram a ligação íntima entre o P. Hadot historiador da filosofia e o P. Hadot filósofo. Ninguém detalhou melhor do que ele a necessidade dessa relação. Examinando a vasta tarefa do historiador da filosofia, ele conclui: 
"[O historiador da filosofia] deverá ceder lugar ao filósofo, ao filósofo que deve sempre permanecer vivo no historiador da filosofia. A tarefa última consistirá em colocar para si mesmo, com uma lucidez aguda, a questão decisiva: "o que é filosofar?". ¹²

 Agora, deixo que os textos falem a nós. 

 

* Professor de Filosofia na Universidade de Chicago, membro do Conselho do Instituto do Pensamento Contemporâneo na Universidade Paris VII e professor visitante no Collège de France.

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II. APRESENTAÇÃO POR PIERRE HADOT À EDIÇÃO DE 1993 (p. 15-16)

O presente volume reúne estudos, já publicados ou inéditos, que escrevi há vários anos, mas o tema geral a que eles dizem respeito esteve no centro de minhas preocupações desde minha juventude. Um dos meus primeiros artigos, publicado nas Atas do Congresso de Filosofia de Bruxelas, em 1953, já tentava descrever o ato filosófico como uma conversão, e lembro-me sempre do entusiasmo com o qual, no inquietante verão de 1939, ocasião de meu Baccalauréat em Filosofia, eu comentava o tema da redação extraído de Henri Bergson: 

"A filosofia não é uma construção de sistema, mas a resolução, uma vez tomada, de olhar ingenuamente para si e ao redor de si". 
Sob a influência de Bergson, depois do existencialismo, sempre concebi a filosofia como uma metamorfose total da maneira de ver o mundo e de estar nele. 

Não previa, em 1939, que passaria minha vida a estudar o pensamento antigo e, mais pormenorizadamente, a influência que a filosofia grega exerceu na literatura latina. Todavia, é nessa direção que a misteriosa conjunção do acaso e da necessidade interior que dá forma a nossos destinos me orientou. Nessas pesquisas, constatei que muitas das dificuldades que experimentamos para compreender as obras filosóficas dos Antigos frequentemente provinham do fato de que cometemos, ao interpretá-las, um duplo anacronismo: cremos que, como muitas obras modernas, elas são destinadas a comunicar informações referentes a um conteúdo conceitual determinado e que podemos também tirar diretamente delas informações claras sobre o pensamento e a psicologia de seus autores. De fato, porém, elas são muito frequentemente exercícios espirituais que o próprio autor pratica e faz seu leitor praticar. Elas são destinadas a formar as almas. Têm um valor psicagógico. Toda asserção, portanto, deve ser compreendida na perspectiva do efeito que visa a produzir e não como uma proposição exprimindo adequadamente o pensamento e os sentimentos de um indivíduo. Assim, minhas conclusões metodológicas acabaram por se unir às minhas convicções filosóficas. 

Esses temas filosóficos e metodológicos encontram-se na presente coletânea. Vários dos estudos aqui reunidos exprimem em seus próprios títulos sua relação com a noção de exercício espiritual. Contudo, compreender-se-á facilmente por que outros trabalhos têm lugar neste volume. A figura mítica de Sócrates é a figura mesma do filósofo, daquele que "se exercita" na sabedoria. Marco Aurélio é um homem da Antiguidade que pratica seus exercícios espirituais segundo um método rigoroso. Michelet é um homem moderno, mas ele também se exercitava, ao longo de sua vida, na esteira de Marco Aurélio, para realizar em si mesmo a "harmonização". O esboço relativo ao fenômeno geral da conversão permite compreender melhor como a filosofia é essencialmente conversão; portanto, uma vez mais, exercício vivido. O outro esboço, consagrado desta vez ao apofatismo e à experiência mística, deixa entrever os problemas do discurso filosófico deparando com os limites da linguagem, precisamente porque a filosofia é uma experiência que transcende toda expressão (e entrevê-se, a esse respeito, que o Tractatus de Wittgenstein é também um exercício espiritual). 

Agradeço de todo coração a meu amigo de longa data Georges Folliet, graças a quem esta coletânea pôde ser publicada. Dedico esta obra à memória de Pierre Courcelle, que tanto me legou pela riqueza de suas obras e o exemplo de seu método. 

 

III. NOTAS EXPLICATIVAS


¹  Pierre Hadot, La Philosophie comme Manière de Vivre, entretien avec Jeannie Carlier et Arnold I. Davidson. Paris, Albin Michel, 2001, p. 101.

²   Ibidem, p. 152.

³  Pierre Hadot, Qu' est-ce que la Philosophie Antique?, Paris, Folio, 1995, p. 271. [Em português: Pierre Hadot, O que é a Filosofia Antiga?, 3ª ed. Trad. D. D. Machado, São Paulo, Loyola, 2008].

⁴  Ibidem, p. 265.

⁵  Para a distinção análoga em Plotino entre o método da teologia negativa e a experiência mística, ver o capítulo "Apofarismo e Teologia Negativa", p. 217. 

  Pierre Hadot, La Philosophie comme Manière de Vivre, op. cit., p. 153.

  Idem, Qu' est-ce que la Philosophie Antique?, op. cit. , p. 268-69.

⁸  Idem, "La Philosophie Antique: une Éthique ou une Pratique", Études de Philosophie Ancienne, Paris, Les Belles Lettres, 1998, p. 228.

⁹  Idem, Qu' est-ce que la Philosophie Antique?, op. cit. , p. 387, 379.

¹Idem, La Philosophie comme Manière de Vivre, op. cit., p. 185. Ver também Hadot, Qu' est-ce que la Philosophie Antique?, op. cit. , p. 387-91, 399-406.

¹¹  Ver também Hadot, "La Figure du Sage dans l' Antiquité Greco-Latine", Études de Philosophie Ancienne, op. cit. 

¹² Pierre Hadot, "Préface à Richard Goulet, Dictionnaire des Philosophes Antiques", Études de Philosophie Ancienne, op. cit., p. 272.


IV. BIBLIOGRAFIA

 

DAVIDSON, Arnold I.: Spiritual Exercises and Ancient Philosophy: An Introduction to Pierre Hadot
 
HADOT, Pierre: Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga, São Paulo: É Realizações Editora, 2014, 368 p.

segunda-feira, 3 de julho de 2023

Colaborador: PIERRE HADOT


Por Francisco José dos Santos Braga 

 

Crédito: Wikipedia

PIERRE HADOT nasceu em Paris em 1922. Educado como católico, aos 22 anos Hadot começou a se preparar para o sacerdócio. Ordenado padre em 1944, ele estuda na Sorbonne e no Institut Catholique, frequenta cursos, conferências, círculos filosóficos parisienses. Foi nesta ocasião que se deu o seu encontro com o padre Paul Henry, jesuíta, professor de teologia no Institut Catholique e famoso especialista e editor de Plotino. Em 1946, deu início à pesquisa que o levou à sua tese de doutorado e a  uma série de grandes publicações sobre a teologia trinitária de Marius Victorinus (retórico cristão do século IV) e suas fontes neoplatônicas (sobretudo, Porfírio). No entanto, seguindo a encíclica do Papa Pio XII, Humani Generis, de 1950, Hadot deixou o sacerdócio, casando-se pela primeira vez em 1953. Entre 1953 e 1962, Hadot estudou patrística latina e formou-se em filologia. Nessa época, Hadot também estava muito interessado em misticismo. Em 1963, publicou Plotino: ou A Simplicidade da Visão, sobre o grande filósofo neoplatônico. Nesse período, ele também produziu dois dos primeiros estudos sobre Wittgenstein escritos em língua francesa. Hadot foi eleito diretor de estudos da quinta seção da École Pratique des Hautes Études en Sciences Sociales em 1964 e aí permaneceu  até 1986. Casou-se com sua segunda esposa, a historiadora da filosofia Ilsetraut Hadot, em 1966. A partir de meados da década de 1960, a atenção de Hadot voltou-se para estudos mais amplos no pensamento antigo, culminando em duas obras fundamentais: Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga, escrito em 1981 (traduzido para o inglês em 1995 como Spiritual Exercises and Ancient Philosophy) e O que é Filosofia Antiga?, escrito em 1995 (traduzido para o inglês em 2002 como What is Ancient Philosophy?). Hadot foi nomeado professor no Collège de France em 1982, onde ocupou a cadeira de História do Pensamento Grego e Romano. Hadot se aposentou dessa posição para se tornar professor honorário do Collège de France em 1991. No seu último livro, publicado em 2008, faz um profundo estudo sobre Goethe, contendo um comentário impressionante sobre o Fausto II. Ele continuou a traduzir, escrever, dar entrevistas e publicar até pouco antes de sua morte em abril de 2010.
 
Pierre Hadot, filósofo clássico e historiador da filosofia, é mais conhecido por sua concepção da filosofia antiga como um bios ou uma maneira de viver. Seu trabalho tem sido amplamente influente nos estudos clássicos e em pensadores, incluindo Michel Foucault. De acordo com Hadot, a filosofia acadêmica dos séculos XX e XXI em grande parte perdeu de vista sua origem antiga em um conjunto de práticas espirituais que vão desde formas de diálogo, passando por espécies de reflexão meditativa, até a contemplação teórica. Essas práticas filosóficas, bem como os discursos filosóficos que as diferentes escolas antigas desenvolveram em conjunto com elas, visavam principalmente formar, e não apenas informar, o aluno filosófico. O objetivo das filosofias antigas, argumentava Hadot, era cultivar uma atitude constante e específica em relação à existência, por meio da compreensão racional da natureza da humanidade e seu lugar no cosmos. Esse cultivo exigia, especificamente, que os alunos aprendessem a combater suas paixões e as crenças ilusórias de avaliação instiladas por suas paixões, hábitos e educação. Cultivar o discurso filosófico ou a escrita sem conexão com tal comportamento ético transformado era, para os antigos, ser um retórico ou um "sofista", não um filósofo. No entanto, de acordo com Hadot, com o advento da era cristã e a eventual proibição, em 529 d.C., das antigas escolas filosóficas, a filosofia concebida como uma maneira de viver desapareceu em grande parte do Ocidente. Suas práticas espirituais foram integradas e adaptadas por formas de monaquismo cristão. As técnicas dialéticas e as visões metafísicas dos filósofos foram integradas e subordinadas, primeiro à teologia revelada e depois, mais tarde, às ciências naturais modernas. No entanto, Hadot sustentou que a concepção da filosofia como um bios nunca desapareceu completamente do Ocidente, ressurgindo em Montaigne, Rousseau, Goethe, Thoreau, Nietzsche e Schopenhauer, e mesmo nas obras de Descartes, Spinoza, Kant e Heidegger. 
 
A concepção de Hadot da filosofia antiga e sua narrativa histórica de seu desaparecimento no Ocidente provocaram elogios e críticas. Hadot recebeu uma série de cartas de estudantes de todo o mundo dizendo-lhe que suas obras haviam mudado suas vidas, talvez o tributo mais adequado dada a natureza das reivindicações metafilosóficas de Hadot. Ao contrário de muitos de seus contemporâneos europeus, a obra de Hadot é caracterizada por uma prosa lúcida e contida; clareza do argumento; a quase completa ausência de jargão recôndito; e um humor gentil, embora às vezes autodepreciativo. Enquanto Hadot era um admirador de Nietzsche e Heidegger, e comprometido com uma espécie de reformulação filosófica da história das ideias ocidentais, a obra de Hadot carece de qualquer sentido escatológico do fim da filosofia, do humanismo ou do Ocidente. No final da vida, Hadot relataria que isso acontecia porque ele era animado pela sensação de que a filosofia, tal como concebida e praticada nas escolas antigas, continua sendo possível para homens e mulheres de sua época: “de 1970 em diante, senti muito fortemente que foi o epicurismo e o estoicismo que puderam alimentar a vida espiritual dos homens e mulheres de nosso tempo, assim como o meu” (Filosofia como uma Maneira de Viver, p. 280)
 
Fontes: Internet Encyclopedia of Philosophy
 
HOFFMANN, Phillippe: Pierre Hadot (1922-2010), In memoriam, in Revista Archai, UnB, nº 18, set/dez 2016, p. 291-316.
 
WIKIPEDIA: verbete Pierre Hadot