Esta edição brasileira (É Realizações Editora, 2014, 368 p.) refere-se à edição francesa revista e aumentada (Éditions Albin Michel, 2002, 416 p.) em relação à precedente (ibidem, 1987, 206 p.), com alguns novos textos na Parte VII, uns inéditos e outros não, com destaque para o inédito "Reflexões sobre a Noção de 'Cultura de Si'", que dá continuidade a "Um diálogo interrompido" com Michel Foucault (também reproduzido na Parte VI), O Sábio e o Mundo e A Filosofia é um Luxo? A versão em português é dos tradutores Flávio Fontenelle Loque e Loraine Oliveira.
I. PREFÁCIO POR ARNOLD I. DAVIDSON (p. 7-14)
Lembro-me muito bem do momento no qual Michel Foucault me falou de Pierre Hadot pela primeira vez. Mesmo constatando seu vivo entusiasmo naquele momento, respondi-lhe que eu não era de modo algum um especialista em filosofia antiga e que não queria me aventurar nesse campo. Somente muito mais tarde comecei a ler Pierre Hadot, depois da morte de Michel Foucault. Imediatamente, fiquei impressionado não somente com a exatidão e lucidez de suas interpretações dos textos, fruto de um conhecimento filológico e histórico irrepreensível, mas sobretudo com a visão em filigrana da filosofia que encontrei em seus ensaios e livros. Que Pierre Hadot seja um dos maiores historiadores do pensamento antigo em nossa época é evidente; o que talvez seja menos evidente é que ele é também um grande filósofo. Basta estudar o conjunto de sua obra para estar convencido disso. Este livro, Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga, já é um clássico, e, como todos os verdadeiros clássicos, mantém sua força de permanecer atual.
Gostaria de detalhar alguns aspectos da noção de exercícios espirituais para melhor explicar por que P. Hadot fez dela o fio condutor de sua concepção da filosofia antiga. P. Hadot sempre disse que sua descoberta da noção de exercício espiritual estava ligada a um problema estritamente literário: como explicar a aparente incoerência de alguns filósofos? Longe de buscar um novo tipo de espiritualidade edificante, Pierre Hadot queria confrontar o tema, historicamente constante, da pretensa incoerência dos filósofos antigos. É essa investigação que o conduziu "à ideia de que as obras filosóficas da Antiguidade não eram compostas para expor um sistema, mas para produzir um efeito formativo: o filósofo queria trabalhar os espíritos de seus leitores ou ouvintes para que se colocassem numa certa disposição". ¹ Antes formar os espíritos que os informar: eis a base sobre a qual repousa a ideia de exercício espiritual. Portanto, não há de causar espanto a importância, reafirmada sem cessar, que a leitura dos textos ocupa em P. Hadot: ler é um exercício espiritual e nós devemos aprender a ler, isto é, "parar, libertarmo-nos de nossas preocupações, voltar a nós mesmos, deixar de lado nossas buscas por sutilezas e originalidade, meditar calmamente, ruminar, deixar que os textos falem a nós" ("Exercícios Espirituais", p. 66) A esse respeito, há que meditar a extraordinária citação de Goethe que ele escolheu para concluir o capítulo "Exercícios Espirituais":
"As pessoas [...] não sabem quanto custa em tempo e esforço aprender a ler. Precisei de oitenta anos para tanto e sequer sou capaz de dizer se tive sucesso" (ibidem, p. 66)
Na expressão "exercícios espirituais", é preciso levar em conta ao mesmo tempo a noção de "exercícios" e o significado do termo "espiritual". Os exercícios espirituais não funcionam simplesmente no nível proposicional e conceitual. Não é uma nova teoria metafísica que nos é proposta aqui, pois os exercícios espirituais são precisamente exercícios, isto é, uma prática, uma atividade, um trabalho sobre si mesmo, o que se pode chamar uma ascese de si. Os exercícios espirituais fazem parte de nossa experiência, são "experimentados". Além disso, P. Hadot não emprega o termo "espiritual" no sentido de "religioso" ou "teológico"; os exercícios religiosos eram apenas um tipo, muito particular, de exercício espiritual. Por que, então, o termo "espiritual"? Somente após ter eliminado outros adjetivos, P. Hadot finalmente escolheu caracterizar esses exercícios como "espirituais"; com efeito, "exercícios intelectuais" ou "exercícios morais" dão conta apenas parcialmente da densidade do sentido – "intelectual" não recobre todos os aspectos desses exercícios e "moral" pode dar a impressão inexata de que se trata de um código de boa conduta. Como P. Hadot claramente disse: "A palavra 'espiritual' permite entender bem que esses exercícios são obra não somente do pensamento, mas de todo o psiquismo do indivíduo" (ibidem, p. 20) A expressão engloba o pensamento, a imaginação, a sensibilidade assim como a vontade: "A denominação de exercícios espirituais é, finalmente, portanto, a melhor, porque marca bem que se trata de exercícios que engajam todo o espírito" ("Exercícios Espirituais Antigos e 'Filosofia Cristã'", p. 68-69). A filosofia antiga "é exercício espiritual porque ela é um modo de vida, uma forma de vida, uma escolha de vida" ², de modo que se poderia dizer também que esses exercícios são "existenciais", porque possuem um valor existencial que diz respeito à nossa maneira de viver, nosso modo de ser no mundo; eles são parte integrante de uma nova orientação no mundo, uma orientação que exige uma transformação, uma metamorfose de si mesmo. P. Hadot resumiu sua concepção dizendo que um exercício espiritual é "uma prática destinada a operar uma mudança radical do ser". ³
Para compreender a radicalidade e a profundidade da ideia dos exercícios espirituais na concepção de P. Hadot é preciso ter consciência da distinção essencial que ele opera entre o discurso filosófico e a própria filosofia. É uma distinção que, no fundo, faz emergir a dimensão prática e existencial dos exercícios espirituais. Partindo da distinção estóica entre o discurso segundo a filosofia e a própria filosofia, P. Hadot mostra que se pode utilizar essa distinção "de uma maneira mais geral para descrever o fenômeno da 'filosofia' na Antiguidade". ⁴
Segundo os estóicos, o discurso filosófico se divide em três partes – a lógica, a física e a ética; quando se trata de ensinar a filosofia, expõe-se uma teoria da lógica, uma teoria da física e uma teoria da ética. Todavia, para os estóicos – e, num certo sentido, para os outros filósofos da Antiguidade –, esse discurso filosófico não era a própria filosofia. ⁵ A filosofia não é uma teoria dividida em três partes, mas "um ato único que consiste em viver a lógica, a física e a ética. Não se faz mais então a teoria da lógica, isto é, do falar bem e do pensar bem, mas pensa-se e fala-se bem; não se faz mais a teoria do mundo físico, mas contempla-se o cosmos; não se faz mais a teoria da ação moral, mas age-se de uma maneira reta e justa ("A Filosofia como Maneira de Viver", p. 264). Dito de outro modo, "a filosofia era o exercício efetivo, concreto, vivido, a prática da lógica, da ética e da física". ⁶ P. Hadot recapitula essa ideia da seguinte maneira:
"O discurso sobre a filosofia não é a filosofia [...]. As teorias filosóficas estão a serviço da vida filosófica [...].
A filosofia, na época helenística e romana, apresenta-se então como um modo de vida, como uma arte de viver, como uma maneira de ser. De fato, ao menos desde Sócrates, a filosofia antiga tinha essa característica [...]. A filosofia antiga propõe ao homem uma arte de viver; a filosofia moderna, ao contrário, apresenta-se antes de tudo como a construção de uma linguagem técnica reservada a especialistas." ("A Filosofia como Maneira de Viver", p. 271).
"Todas as escolas denunciaram o perigo que o filósofo corre se imagina que seu discurso filosófico pode bastar a si mesmo sem estar de acordo com a vida filosófica [...]. Tradicionalmente, aqueles que desenvolvem um discurso aparentemente filosófico, sem buscar relacionar a vida ao discurso e sem que o discurso emane da experiência e da vida são chamados "sofistas" pelos filósofos [...]." ⁷
"é bem evidente que não pode haver filosofia sem um discurso interior e exterior do filósofo. Todavia, todos esses filósofos [...] se consideram filósofos não porque desenvolvem um discurso filosófico, mas porque vivem filosoficamente. O discurso se integra à vida filosófica [...]. Para eles, a própria filosofia é antes de tudo uma forma de vida e não um discurso." ⁸
"Quando tu vais começar a viver virtuosamente, dizia Platão a um velho que lhe contava que escutava lições sobre a virtude. Não se trata de especular sempre, mas é preciso, em algum momento, pensar em passar ao exercício. Hoje, porém, se toma por exaltado aquele que vive de uma maneira conforme ao que ensina." ¹⁰
"O que é, em última instância, o mais útil ao homem enquanto homem? É discorrer sobre a linguagem ou sobre o ser e o não ser? Não é, antes, aprender a viver uma vida humana?" ("A Filosofia é um Luxo?", p. 329)
"[O historiador da filosofia] deverá ceder lugar ao filósofo, ao filósofo que deve sempre permanecer vivo no historiador da filosofia. A tarefa última consistirá em colocar para si mesmo, com uma lucidez aguda, a questão decisiva: "o que é filosofar?". ¹²
Agora, deixo que os textos falem a nós.
* Professor de Filosofia na Universidade de Chicago, membro do Conselho do Instituto do Pensamento Contemporâneo na Universidade Paris VII e professor visitante no Collège de France.
II. APRESENTAÇÃO POR PIERRE HADOT À EDIÇÃO DE 1993 (p. 15-16)
O presente volume reúne estudos, já publicados ou inéditos, que escrevi há vários anos, mas o tema geral a que eles dizem respeito esteve no centro de minhas preocupações desde minha juventude. Um dos meus primeiros artigos, publicado nas Atas do Congresso de Filosofia de Bruxelas, em 1953, já tentava descrever o ato filosófico como uma conversão, e lembro-me sempre do entusiasmo com o qual, no inquietante verão de 1939, ocasião de meu Baccalauréat em Filosofia, eu comentava o tema da redação extraído de Henri Bergson:
"A filosofia não é uma construção de sistema, mas a resolução, uma vez tomada, de olhar ingenuamente para si e ao redor de si".
Não previa, em 1939, que passaria minha vida a estudar o pensamento antigo e, mais pormenorizadamente, a influência que a filosofia grega exerceu na literatura latina. Todavia, é nessa direção que a misteriosa conjunção do acaso e da necessidade interior que dá forma a nossos destinos me orientou. Nessas pesquisas, constatei que muitas das dificuldades que experimentamos para compreender as obras filosóficas dos Antigos frequentemente provinham do fato de que cometemos, ao interpretá-las, um duplo anacronismo: cremos que, como muitas obras modernas, elas são destinadas a comunicar informações referentes a um conteúdo conceitual determinado e que podemos também tirar diretamente delas informações claras sobre o pensamento e a psicologia de seus autores. De fato, porém, elas são muito frequentemente exercícios espirituais que o próprio autor pratica e faz seu leitor praticar. Elas são destinadas a formar as almas. Têm um valor psicagógico. Toda asserção, portanto, deve ser compreendida na perspectiva do efeito que visa a produzir e não como uma proposição exprimindo adequadamente o pensamento e os sentimentos de um indivíduo. Assim, minhas conclusões metodológicas acabaram por se unir às minhas convicções filosóficas.
Esses temas filosóficos e metodológicos encontram-se na presente coletânea. Vários dos estudos aqui reunidos exprimem em seus próprios títulos sua relação com a noção de exercício espiritual. Contudo, compreender-se-á facilmente por que outros trabalhos têm lugar neste volume. A figura mítica de Sócrates é a figura mesma do filósofo, daquele que "se exercita" na sabedoria. Marco Aurélio é um homem da Antiguidade que pratica seus exercícios espirituais segundo um método rigoroso. Michelet é um homem moderno, mas ele também se exercitava, ao longo de sua vida, na esteira de Marco Aurélio, para realizar em si mesmo a "harmonização". O esboço relativo ao fenômeno geral da conversão permite compreender melhor como a filosofia é essencialmente conversão; portanto, uma vez mais, exercício vivido. O outro esboço, consagrado desta vez ao apofatismo e à experiência mística, deixa entrever os problemas do discurso filosófico deparando com os limites da linguagem, precisamente porque a filosofia é uma experiência que transcende toda expressão (e entrevê-se, a esse respeito, que o Tractatus de Wittgenstein é também um exercício espiritual).
Agradeço de todo coração a meu amigo de longa data Georges Folliet, graças a quem esta coletânea pôde ser publicada. Dedico esta obra à memória de Pierre Courcelle, que tanto me legou pela riqueza de suas obras e o exemplo de seu método.
III. NOTAS EXPLICATIVAS
¹ Pierre Hadot, La Philosophie comme Manière de Vivre, entretien avec Jeannie Carlier et Arnold I. Davidson. Paris, Albin Michel, 2001, p. 101.
² Ibidem, p. 152.
³ Pierre Hadot, Qu' est-ce que la Philosophie Antique?, Paris, Folio, 1995, p. 271. [Em português: Pierre Hadot, O que é a Filosofia Antiga?, 3ª ed. Trad. D. D. Machado, São Paulo, Loyola, 2008].
⁴ Ibidem, p. 265.
⁵ Para a distinção análoga em Plotino entre o método da teologia negativa e a experiência mística, ver o capítulo "Apofarismo e Teologia Negativa", p. 217.
⁶ Pierre Hadot, La Philosophie comme Manière de Vivre, op. cit., p. 153.
⁷ Idem, Qu' est-ce que la Philosophie Antique?, op. cit. , p. 268-69.
⁸ Idem, "La Philosophie Antique: une Éthique ou une Pratique", Études de Philosophie Ancienne, Paris, Les Belles Lettres, 1998, p. 228.
⁹ Idem, Qu' est-ce que la Philosophie Antique?, op. cit. , p. 387, 379.
¹⁰ Idem, La Philosophie comme Manière de Vivre, op. cit., p. 185. Ver também Hadot, Qu' est-ce que la Philosophie Antique?, op. cit. , p. 387-91, 399-406.
¹¹ Ver também Hadot, "La Figure du Sage dans l' Antiquité Greco-Latine", Études de Philosophie Ancienne, op. cit.
¹² Pierre Hadot, "Préface à Richard Goulet, Dictionnaire des Philosophes Antiques", Études de Philosophie Ancienne, op. cit., p. 272.
IV. BIBLIOGRAFIA
4 comentários:
OK GRATO
ABS
ROGÉRIO
Caro professor Braga
Interessante "resgate" da importância da Filosofia Antiga na referência a esses autores e a essa obra de P. Hadot. E seguimos nós pela aridez da filosofia contemporânea, instrumentalizada como ferramenta de dominação de massa, na qual a Lógica e a Ética são tolhidas pelo Dogmatismo, pelos Sofismas, peloTecnicismo e Desinformação, tão distantes de quaisquer exercícios verdadeiramente espirituais.
Congratulações.
Cupertino
Prezado Professor, obrigada pela indicação. Salomea
Prezad@,
Tenho o prazer de apresentar a reprodução do Prefácio ao livro "Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga" de PIERRE HADOT, produzido por ARNOLD I. DAVIDSON, professor associado de filosofia e membro dos Comitês sobre Fundações Conceituais de Ciência e Estudos Gerais nas Humanidades na Universidade de Chicago. Sua página na Internet informa que ele desenvolve o projeto denominado Critical Inquiry, onde esboça a profunda importância que os escritos de Hadot representam para os últimos trabalhos de Michel Foucault.
TEXTO DO PREFÁCIO
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/07/prefacio-ao-livro-exercicios.html 👈
DADOS BIOBIBLIOGRÁFICOS DE PIERRE HADOT
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/07/colaborador-pierre-hadot.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
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