sexta-feira, 16 de outubro de 2015

MEU TIPO INESQUECÍVEL


Por José Carlos Hernández Prieto



Tomo emprestada a expressão que conheci, ainda criança, ao ler alguns artigos que eram publicados na revista Seleções do Reader’s Digest que meu pai comprava todos os meses. De fato, sob esse título vinham relatos edificantes sobre pessoas que eram exemplos de virtude, coerência, ética e honestidade. Tendo eu recebido neste último dia dos pais a visita de meu filho mais velho, sua esposa e três dos meus lindos netos, veio-me à lembrança meu pai, homem que tive a sorte de conhecer e com ele conviver durante o tempo que me foi dado desfrutar de sua presença.

Não existiriam palavras que pudessem abranger tudo o que significou esse quase meio século de convivência, durante o qual pude aprender do seu exemplo, formar meu caráter e espelhar-me em suas mostras de integridade e sacrifício. Foi assim que elevei minha consciência, graças ao seu altruísmo e singeleza filosófica e perante a coerência com a qual sempre pontuou o dito com o feito.

Frente a tanta amplitude de espírito, posso tão só agradecer filialmente por ter-me dado a oportunidade de beber de sua fonte de amor e sabedoria: toda uma vida prenhe de dedicação à sua mulher e filhos, como objetivo e projeto de vida e de futuro.

Dizia tão só, mas equivoco-me. Também procurei e procuro fazer-lhe justiça: tentar repetir, com meus filhos, a mesma lição de vida. Dizer-lhe, lá onde estiver, que ele continua em mim. Não entenderia o ato de pôr filhos no mundo, sem oferecer a eles as mesmas oportunidades que meu pai me deu e fazer com que também se orgulhem da herança recebida do avô.

Foi um homem que se fez a si mesmo. Ficou órfão de pai e mãe aos quatro anos, indo morar com uma tia, que o criou, numa época em que a Espanha sofria os horrores da guerra civil e, depois, todas aquelas agruras de um país devastado no pós-guerra, com carências de todos os tipos, reguladas pelos cartões de racionamento. Estudou com afinco. Formou-se desenhista projetista, mas avançou pelos mais diversos ramos da mecânica industrial e engenharia civil, com a única ajuda dos livros que comprava em sebos. A tal ponto que, já em São João del-Rei, como projetista e executor de obras civis e mecânicas na então CIF – Cia. Industrial Fluminense, desempenhou todas essas funções, sem jamais ter feito qualquer curso superior. Todos aqueles galpões projetados por ele naquela empresa, chamada agora AMG Brasil, estão lá até hoje, firmes como uma rocha, após mais de meio século.

No final da década de 1970, saiu da CIF para montar um negócio próprio: metalurgia de bronze e alumínio e construção de máquinas industriais. Nessa nova etapa, fazia de tudo, ajudado por seus empregados. Porém, quantas vezes me surpreendeu, ao me chamar para ir com ele alguns domingos pela manhã à empresa que mantinha. Um dia era para ele fazer o papel de pedreiro (e eu, o de ajudante). Outro dia era para fazer uma reforma na fiação elétrica. Outro mais, para consertar a bomba d’água... Tudo ele só, com a única ajuda de minhas mãos inábeis para esse tipo de trabalho.

Procurando atender a tudo que ele esperava de mim, não pude contentá-lo em um quesito específico. Ele, que tantas habilidades tinha, era absolutamente incapaz de tocar instrumentos musicais, desejo que carregava consigo desde menino. Dizia, então, que gostaria que um de seus filhos tivesse esse dom. Lamentavelmente, nenhum de nós pôde atendê-lo. Contudo, imagino seu sorriso aberto, se pudesse hoje ver seu primeiro neto, meu filho Rodrigo, esforçando-se em extrair arte do seu violino nas horas de folga.

Fez e deixou muitos amigos. Todos se lembram dele com saudade e admiração. Guardo com muito carinho um escrito que me foi presenteado pelo saudoso Pe. Luís Zver, contendo as palavras com as quais homenageou meu pai na Rádio São João del-Rei quando de seu falecimento, em novembro de 1998. Permito-me aqui reproduzi-las:

"Deram-me ontem a notícia do falecimento do Sr. Santos Hernández Seco. Era sócio e benfeitor da APAE há mais de quinze anos. Tive a oportunidade de conhecê-lo quando, certa vez, o procuramos para consertar uma engrenagem rachada de uma máquina tipográfica. Perito em metalurgia, consertou a engrenagem, que está funcionando até hoje. Naquela ocasião tornou-se sócio da APAE. Sócio, amigo e benfeitor. Visitava-nos algumas vezes e todos os meses mandava sua contribuição, às vezes por mãos de sua esposa, Dª. Maria Luisa. Em 1987 pediu-me que fizesse o casamento de sua filha Luisa Francisca. Eu, pessoalmente, gostava muito dele. Por sua cultura e retidão. O Sr. Santos era um homem reto. Toda vez que deparo com a passagem do Evangelho, em que Jesus elogia São João Batista, por não ser um caniço agitado pelo vento, ocorre-me à mente a figura do Sr. Santos Hernández Seco. Para mim, aquele Hernández Seco soa como Hernández, o Reto. Reto como uma régua.” 

Neste mês de agosto, ao escrever sobre meu pai, dedico estas palavras a todos os pais e avôs que me lêem, como homenagem por essa nobre missão que temos pela frente: educar nossos filhos e netos, mirando-nos no exemplo daqueles que nos precederam.

Colaborador: JOSÉ CARLOS HERNÁNDEZ PRIETO

JOSÉ CARLOS HERNÁNDEZ PRIETO. Membro da Academia de Letras de São João del-Rei. Patrono: Hildebrando Bolivar de Magalhães. Cadeira nº 20. Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei. Patrono: Gentil Palhares. Cadeira nº 27. José Carlos Hernández Prieto nasceu em Salamanca, Espanha, em 1953. Veio para São João del-Rei em 1960, acompanhando seus pais, na esteira da implantação da Companhia Industrial Fluminense (atual LCM) nesta cidade. Aqui residiu até 1970, quando se mudou para Belo Horizonte, onde se formou em Administração de Empresas pela UFMG. Trabalhou durante 26 anos na Contrutora Andrade Gutierrez S.A., exercendo suas funções nas áreas de Controle, Custos e Planejamento Estratégico e na implantação dos sistemas da empresa em suas obras no Brasil e no exterior. Desligou-se da empresa em 2001, passando a trabalhar como tradutor técnico e literário. Nessa nova atividade, traduziu textos de arte para diversas entidades como o Museu de Arte Moderna de São Paulo, Pinacoteca do Estado de São Paulo, Instituto Tomie Ohtaki, dentre outras. Foi nomeado tradutor juramentado em El Salvador em 2004 e no Brasil em 2009, passando então a exercer esse ofício público, paralelamente às suas atividades como tradutor técnico e literário. Em 2011 publicou, em coautoria, o livro "Grêmio Espanhol 100 anos de História", edição bilíngue, que descreve a existência dessa instituição belo-horizontina, nascida pouco tempo depois da fundação de Belo Horizonte. Finalmente, após quase 43 anos fora de sua terra de adoção, voltou para São João del-Rei em janeiro de 2013, quando foi afetuosamente acolhido em seu retorno. Tendo sido convidado para participar do Instituto Histórico e Geográfico e da Academia de Letras desta cidade, atualmente é membro efetivo dessas duas instituições.