quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Ah! doutor Tancredo: que saudade!


Por REINALDO PAES BARRETO *
 

 
Texto publicado originalmente no JORNAL DO BRASIL, edição de 4/3/2010, na coluna Sociedade Aberta.

Tancredo de Almeida Neves (✰ São João del-Rei, 4/3/1910  ✞ São Paulo, 21/4/1985)


 

E não só da sua presença, serena, cordial, no mais das vezes bem-humorada mas, também, do professor estilo grego: ensinando por metáforas. E por exemplos. Exemplo: nos primeiros meses de 1983, eu trabalhava na Souza Cruz, na gerência da área institucional e o meu então chefe e amigo era o Kenneth Light (hoje um dos maiores especialistas nas circunstâncias da chegada de D. João VI ao Brasil). Uma manhã ele me chamou e disse: A BAT (British American Tobacco, nossa matriz) decidiu que os maços de cigarros no Brasil também deverão trazer nos rótulos a advertência de que fumar pode fazer mal à saúde

(A hipotética perda de fumantes era compensada pelo freio nas ações indenizatórias contra os fabricantes de raro prazer, ao sucesso, etc). 

E completou: você conhece algum parlamentar amigo, capaz de propor essa lei? Sim, respondi imediatamente e, na sequência, pedi ligação para Brasília para falar com o Doutor Tancredo (deixaria o senado logo depois para se candidatar ao governo de Minas), a quem conhecia por intermédio da minha longa e querida amizade com o Tancredo Augusto, seu filho, meu colega de Mello e Souza desde 1960 e em cujo apartamento na Avenida Atlântica muitas vezes me encontrei com o futuro presidente. 

Ele prontamente marcou data para dali a dois dias, com almoço no Piantella. Lá nos encontramos. Papo vai, papo vem (era um conversador inesgotável) fiz-lhe o pedido. Ele nem pestanejou: sem problemas! Acho até muito bom para conscientizar o fumante. Me mande um fax (old good times) com o texto sugerido que eu vou submeter ao meu assessor jurídico e apresento como projeto de lei

Dito e feito, mais tarde. 

Mas, antes de terminar o cafezinho, pôs a mão no meu braço e disse: mas Reinaldo, isso tem um preço

Gelei, claro. A Souza Cruz era a empresa mais certinha do planeta e qualquer mensalinho daria na demissão de toda a diretoria e mais as secretárias! 

Só que o Doutor Tancredo era um daqueles varões de Plutarco com um DNA de probidade e amor pela sua gente  a quem Brasília nunca contaminou. Fez um silêncio (só de sacanagem) e rematou: vou querer que a Souza Cruz construa o Museu de Arte Sacra de São João Del Rey

Alvíssaras! Dali mesmo liguei para o Light, que aprovou com entusiasmo a iniciativa, e dias depois estava sendo criado um grupo executivo, comandado pelo arquiteto e grande figura do Alvino Costa Filho, que praticamente se mudou para o eixo São João-Tiradentes para dar início à seleção e ordenamento do maior acervo de arte sacra mineira e brasileira, já reunida em Minas. 

TESOURO - Imagem da Confraria de Nossa Sra. da Boa Morte, no museu.
 

O Museu de Arte Sacra está lá, instalado no prédio da antiga cadeia de São João del Rei, que neste lugar funcionou por 113 anos. Em 1983, como disse, o imóvel, que então pertencia a particulares, foi comprado pela Souza Cruz que patrocinou a restauração e a organização do MAS.

MAS-Museu de Arte Sacra de São João del-Rei - Crédito: Acervo de Antônio F. Giarola

Tancredo Neves prestigiou a inauguração do MAS em 1984 - Crédito: Acervo de Antônio F. Giarola

 

A inauguração foi em 1984, com Doutor Tancredo já governador, e é um órgão importante de divulgação da cultura religiosa local. O valioso patrimônio é composto por cerca de 200 peças dos séculos XVII, XVIII e XIX que pertenceram às irmandades da cidade e está organizado nas seguintes salas:  Sala de Exposição Temporária  Sala da Imaginária  Sala da Prataria  Sala dos Paramentos. 

Vale a visita: vale a lição. 

* Reinaldo Paes Barreto é diretor Institucional do Jornal do Brasil.

 

domingo, 24 de setembro de 2023

CORREIA DA SERRA, UM SÁBIO ENTRE OS SÁBIOS


Por ANTÓNIO VALDEMAR *
 
Conviveu com os grandes cientistas da sua época e com intelectuais e políticos proeminentes das principais capitais da Europa e dos Estados Unidos. As comemorações do segundo centenário da morte desta personalidade do maior protagonismo permitem evocar a relação com açoreanos de prestígio local e outros de projeção nacional e internacional. (Texto originalmente publicado no Diário dos Açores, edição de 24 de Setembro de 2023, p. 6 da coluna OPINIÃO).
Quadro de Correia da Serra (pintado por Domenico Pellegrini) que pertence à Academia das Ciências de Lisboa / Crédito: Wikipedia

 
Um novo ciclo se iniciou em Portugal com a Revolução de 1820. Refletiu a corajosa determinação de substituir as conceções absolutistas, por estruturas políticas, sociais e culturais que fundamentaram um novo regime em que todos podem ouvir a sua voz, desde que se possam concretizar as liberdades, direitos e garantias constitucionais. Houve o contributo decisivo dos que permaneciam no exílio, submetidos às contingências do ostracismo e da solidão; e de outros, dentro de Portugal, que se empenharam na mesma luta, mas agindo com a reserva e a discrição impostas pelo sigilo. 
 
José Francisco Correia da Serra, cujo segundo centenário da morte agora se completou, tem, finalmente, comemorações nacionais em torno da sua vida agitada e da sua obra exemplar. Nasceu em Serpa, a 5 de junho de 1751 e faleceu nas Caldas da Rainha, a 11 de setembro de 1823, quando ali se recorria ao tratamento termal. Ali ficou sepultado, sem que lhe prestassem as devidas homenagens. 
 
Um dos seus biógrafos, Augusto da Silva Carvalho (1861-1957), catedrático da Faculdade de Medicina de Lisboa, reconstituiu o percurso de Correia da Serra, nas Memórias da Academia das Ciências (1948), divulgando fatos e documentos que permitiram ampliar as investigações. É o caso de Michael Teague, em 1997, no texto de apresentação do catálogo dos manuscritos arquivados na Torre do Tombo, e que possibilitaram a retificação e o acréscimo de questões primordiais. O Prof Dr. José Luís Cardoso, presidente da Academia das Ciências. – que me alertou para esta circunstância – proferiu, no dia 15 de Setembro, no salão nobre da Academia das Ciências, uma comunicação sobre As origens do programa científico de Correia da Serra. Trata-se de mais um contributo fundamental de José Luís Cardoso que já se ocupara do livro do Richard Beale Davis que revelou a correspondência com Jefferson e outros protagonistas da vida americana. Este livro, com uma introdução de José Luís Cardoso, foi traduzido com o patrocínio da Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e editado, em 2013, pela Imprensa de Ciências Sociais. 
 
A obra Cidadão do mundo: uma biografia científica do Abade Serra (Porto Editora, 2006) escrita por Ana Simões, Maria Paula Diogo e Ana Carneiro abriu novas perspectivas de conhecimento e de análise crítica. Na reabertura do ano académico de 2023/2024, Maria Paula Diogo dissertou, na Academia das Ciências acerca da História, Botânica e Geologia na obra do Abade Correia da Serra. Recapitulou alguns aspetos já destacados numa obra que revisitou, exaustivamente: os biógrafos e biografias de Correia da Serra; a juventude em Itália; o regresso às origens; o refúgio em Londres; os amores em Paris; o período americano; e, por último, o reencontro com Portugal. 
 
É de mencionar Ilídio do Amaral, autor de Estudos preliminares de inéditos juvenis de José Correia da Serra. A propósito do Catalogue raisonné des voyageurs de ma bibliothèque (1769) (Edição Colibri, 2012), coloca-nos perante a evolução de um cientista internacional, como o atestam os depoimentos de vários sábios seus contemporâneos e as numerosas instituições científicas que o acolheram. Todavia, Ilídio do Amaral não deixou de lembrar que, após o triunfo da revolução liberal, retomou o lugar de Secretário da Academia, foi deputado às Cortes (1822-1823) e desempenhou altos cargos, na Maçonaria, no Grande Oriente Lusitano
 
Numa retrospectiva sumária podemos aludir que José Francisco Correia da Serra era filho de Luís Dias Correia, médico formado na Universidade de Coimbra, que se radicou em Itália, a fim de escapar às garras da Inquisição. José Francisco Correia da Serra tinha apenas 6 anos. Em Roma licenciou-se em direito canónico e optou pela vida religiosa. Ficou a ser amigo de D. João Carlos de Bragança, Duque de Lafões, que conhecera o pai, na altura em que ambos frequentaram a Universidade de Coimbra
 
Já com o título abade Correia da Serra, regressou a Portugal. Possuía o total apoio do Duque de Lafões. Um ano depois, juntamente com D. João Carlos de Bragança fundaram a Real Academia das Ciências de Lisboa. Sucederam-se as perseguições movidas pelo Intendente Pina Manique. Abandonou o país para se fixar, alguns anos depois de exercer o cargo de secretário geral da Academia das Ciências. Esteve ao corrente da concessão de bolsas de estudos na Europa para jovens membros da Academia, tais como os brasileiros Manuel Ferreira da Câmara e José Bonifácio de Andrada e Silva, que impulsionaram a independência do Brasil. 
 
Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa fundada em 24/12/1779.

 
Envolvido em novos problemas políticos, decidiu instalar-se no Reino Unido. Pelos seus altos méritos ingressou na Royal Society e na Sociedade Lineana de Londres. Operou-se, em 1801, uma mudança inesperada na política portuguesa: Rodrigo de Sousa Coutinho foi designado Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros. Correia da Serra passou a ser secretário da representação diplomática portuguesa em Londres. Enquanto esteve em Paris, colaborou com os enciclopedistas, nomeadamente, com Antoine Laurent de Jussieu, Alexander Von Humboldt e Georges Cuvier. 
 
Mas, por ocasião da terceira invasão francesa em Portugal, terá sido instigado a subscrever um documento para justificar a política napoleónica. Ao recusar, terminantemente, Correia da Serra, mais uma vez, viu-se obrigado a procurar o exílio político, no estado americano da Virgínia. Chegou, em 1812, a Washington, com cartas de recomendação, de individualidades francesas, com influência na política americana. Uma delas o Marquês de Lafayette. Filadélfia constituiu, porém, o seu espaço privilegiado. Foi logo admitido na American Philosophical Society. Verificou-se, de imediato, a amizade recíproca e a admiração mútua entre Correia da Serra e Thomas Jefferson. Em Monticello frequentou, com assiduidade, a residência palaciana da família Jefferson. 
 
Monticello, a morada de Thomas Jefferson na Virgínia-EUA.

 
 
Voltou a Portugal em 1820. Estava implantada a revolução liberal. Eleito deputado às Cortes participou na construção de um Portugal que apostava nos imperativos do presente e do futuro. Uma eleição que integrou açoreanos de várias ilhas: André da Ponte Quental, João Bento de Medeiros Mântua, Miguel João Borges de Medeiros Amorim e Manuel José de Arriaga Brun da Silveira, Manuel Inácio Martins Pamplona e Roberto de Mesquita Pimentel. Os historiadores Ernesto do Canto (1831-1900), Eugenio do Canto (1836-1915) e Teofilo Braga (1843-1924) não ignoram a dimensão do percurso de Correia da Serra. Nem os botânicos de expressão regional como Carlos Machado (1828-1901) e Bruno Tavares Carreiro (1857-1911). Nem muito menos botânicos célebres, nascidos nos Açores, como Rui Teles Palhinha (1871-1957), Matilde Bensaude (1890-1969) e Aurelio Quintanilha (1892-1987), qualquer deles com obra científica de projeção nacional e internacional. 
 
Na sessão efetuada na Academia das Ciências, além das intervenções que anotamos, José Alberto Silva e Fernando Figueiredo, apresentarama comunicação a propósito dos Ensaios para a História da Academia das Ciências. As finalidades estatutárias definidas por Correia da Serra ficaram, logo no principio, sintetizadas na legenda: Nisi utile est quod facimus, stulta est gloria. Ou seja, na tradução portuguesa: Se não for útil o que fazemos, a glória é vã. Decorridos mais de dois séculos perdura o objetivo de Correia da Serra de unir o que está disperso, ao circunscrever a ciência e, de um modo geral, a cultura, ao serviço integral do aperfeiçoamento humano.
 
Legenda da Academia das Ciências de Lisboa

* Jornalista, carteira profissional numero UM; sócio efetivo da Academia das Ciências.

domingo, 10 de setembro de 2023

CEM ANOS DE NATÁLIA CORREIA: a criação literária e a intervenção política de uma mulher única


Por ANTÓNIO VALDEMAR *
 
A expressão de Natália Correia (1923-1993) constituiu sempre um espetáculo: umas vezes as palavras eram macias e aveludadas, outras escaldantes de cólera e sarcasmo. Nunca recorreu a máscaras. Foi, orgulhosamente, ela própria. No centenário de seu nascimento, que se assinala na próxima quarta-feira, recordamo-la. (Texto publicado originalmente na revista do Expresso nº 2654, vol. 2, Lisboa, edição de 9 de setembro, 2023)
NATALIA SEM MÁSCARAS

Era uma força da natureza que desejava manter-se na íntegra. Mas só o pôde enquanto a saúde lhe permitiu. Natália Correia queria o impossível: continuar com o porte altivo, imponente, olímpico e a elegância física que faziam parar o Chiado, ou onde quer que passasse. Contudo, os últimos anos foram penosos. Fumar cigarros uns a seguir aos outros e ter apetite devorador para jantares opíparos e ceias pantagruélicas têm o seu preço. As caricaturas do Vasco não foram impiedosas. Um cartunista com força de Vasco podia ter sido muito mais cruel. 

Nasceu a 13 de setembro de 1923, na ilha de São Miguel dos Açores, na freguesia da Fajã de Baixo, próximo da cidade de Ponta Delgada. O país mergulhara na turbulência social, na agitação política e na indisciplina militar. A crise financeira acentuava-se. As sucessivas alterações governamentais, na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler começavam a alastrar na primeira metade do século XX, um dos séculos mais trágicos e mais contraditórios da História. Foi neste quadro que se consolidou e expandiu o fascismo, o nazismo, o salazarismo e o franquismo. 

Desenvolveu-se, partir de então, a indomável personalidade de Natália. Pai e mãe entraram em rutura quando tinha alguns meses. O pai emigrou para o Brasil. A mãe, Maria José Oliveira, professora primária que assimilou os valores cívicos e culturais da República, adquiriu formação laica e tendências libertárias. Colaborou em jornais e revistas. Frequentou tertúlias literárias e políticas, mas, desde sempre, preocupou-se com a educação das filhas: Carmen e Natália. Incutiu-lhes os princípios da liberdade, da independência, da solidariedade humana, os valores universais que fundamentam uma sociedade democrática.

O salazarismo arrancara com o patrocínio de um sector decisivo das Forças Armadas, da Igreja Católica — ferida pelas leis da República — e o contributo do poder financeiro e económico. A instauração da Censura, a vigilância sistemática da polícia política e o apoio incondicional de tribunais especiais reprimiram a opinião pública e silenciaram os vários sectores da oposição. Foi em 1934 que a mãe de Natália e de Carmen se instalou, definitivamente, em Lisboa. 

Procurou dar às filhas outros horizontes. “Sendo uma intelectual que não se pôde realizar inteiramente devido ao meio e às circunstâncias — recordou Natália — quis preparar-nos.” Entendia que “o desenvolvimento intelectual da mulher corresponde a uma atitude social”. “A permanência em São Miguel, mesmo na cidade de Ponta Delgada, não reunia condições para nos desenvolver.” (...) era “um meio muito exíguo.” Natália Correia ainda passou pelo Liceu de Ponta Delgada; frequentou em Lisboa o Liceu Filipa de Lencastre, mas sem qualquer aproveitamento. Ficou, apenas, com o primeiro ciclo dos liceus. 

Mostrou-se refratária aos métodos de ensino. Ela própria o declarou que “não podia aceitar regras impostas de fora: eu é que as tinha de criar”. A passagem pelos liceus foi, segundo as suas palavras, de “ave migratória”. O problema não se colocava, apenas, em São Miguel. Em Lisboa repetiu-se a mesma situação: os métodos eram semelhantes. A escola não constituía um espaço de formação. O ensino tinha de ser um ato de participação e cidadania, para habilitar os alunos a pensar e a interrogar o mundo. 

PRIMEIRAS ASAS 

Natália tornou-se, aos 22 anos — no esplendor da juventude —, uma figura de Lisboa ligada aos acontecimentos literários e políticos que permaneciam na ordem do dia. Nesta primeira fase — dos anos 40 aos anos 50 — conciliou o jornalismo, a literatura e a política. Ainda colaborou no Rádio Clube Português. Integrou-se nos círculos da oposição democrática. 

Três jornalistas micaelenses, amigos da mãe, que trabalhavam em Lisboa, estimularam as aspirações de Natália. Trata-se de Rebelo de Bettencourt (1894-1969) amigo de Fernando Pessoa e de Almada Negreiros, antigo chefe de redação do “Portugal Futurista” e que se acomodou, depois, a chefiar a redação da “Gazeta dos Caminhos de Ferro” e da revista “Viagem”; e o padre Diniz da Luz (1915-1988), antifascista e exaltado e antigermanófilo tempestuoso, embora redator do jornal “A Voz”, um dos diários monárquicos, católicos, ultraconservadores, onde se preparou a conspiração para implantar a ditadura militar, em 28 de Maio de 1926, e introduzir , depois, o salazarismo. 

Em 1946, Natália, principiou no quinzenário “Portugal Madeira e Açores”, empenhado na defesa dos interesses das então chamadas “ilhas adjacentes”. Chefiava a redação outro amigo da mãe: Breno de Vasconcelos (1909-1993), oriundo do “Correio dos Açores”, o memorialista do livro “A Paz Cinzenta” (1979). 

Colaborou, depois, no semanário “O Sol”, fundado e dirigido por Alberto Lello Portela, (1893-1949), antigo político e parlamentar republicano e um dos militares que ingressaram nos primórdios da aviação. 

Destacou-se com seu irmão, o advogado Raul Lello Portela, nos combates da oposição ao salazarismo. A chefia da redação de “O Sol” era assegurada por Alves Morgado (1901-1980), um outro profissional, conhecedor das regras do ofício. A distribuição de trabalho à redação (inclusive o desporto), nas relações com os colaboradores, nos contactos com a tipografia e na revisão escrupulosa de textos. 

Tinha a colaboração de grandes nomes, como António Sérgio e Maria Archer, que deram visibilidade mediática a “O Sol”. Acrescente-se: Sérgio vacinou Natália contra o PCP e os outros núcleos marxistas e comunistas. 

Natália falava e escrevia com desembaraço inglês e francês. Escreveu sobre política nacional e internacional: analisou as consequências da guerra de 1939 a 1945; as diretrizes de Mussolini e de Hitler, os efeitos do nazismo, os fundamentos do Reich, as extensões do fascismo na Europa (e a sua) disseminação em Portugal, na classe política e militar. Também escreveu sobre literatura e arte. Publicou um romance, um livro de poemas e um livro de reportagem e de crónicas de viagens. 

Natália Correia, por Inácio Ludgero


 O VENENO DA POLÍTICA 

Herdou também da mãe — opositora declarada do salazarismo — o interesse pela política. Até à morte, a política constituiu uma solicitação irresistível: a ânsia incontrolável de possuir informação, em cima da hora, o desejo de partilhar nos debates e a disponibilidade para se embrenhar nas possíveis conspirações, num país repleto dos condicionalismos que se prolongaram até ao 25 de Abril. 

Subscreveu as listas do MUD que reclamavam a reposição das liberdades e garantias fundamentais. Envolveu-se na candidatura de Norton de Matos, deslocou-se, expressamente, a Ponte de Lima, para entrevistar o general, na sua casa de férias. 

Participou, em 1958, na candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República, concedendo uma entrevista explosiva ao “Diário Ilustrado”. Apoiou outros movimentos, entre os quais a ocupação do navio “Santa Maria”, comandado por Henrique Galvão, para acelerar a queda de Salazar e para pôr termo à política colonial. Nas primeiras eleições do consulado de Marcello Caetano, em 1969, colaborou com Mário Soares e Salgado Zenha na formação da CEUD, em luta com o MDP/ CDE, que incorporava comunistas e outros radicais de esquerda. Incluindo os chamados “católicos progressistas”. 

Apesar de toda esta intervenção, ao surgir o 25 de Abril, os dirigentes partidários recearam convidá-la. Era imprevisível e um perigo iminente, em momentos delicados e complexos. Na linhagem das “Cantigas de Escárnio e Maldizer”, Natália Correia criou as “Cantigas de Risadilha”, para escarnecer a classe política. Não poupou amigos como Mário Soares e o Partido Socialista: “Já não sei se é país se é orfanato/ pois nem vela, nem reza, nem sabá/ impede que em berreiro ou desacato/ ande tudo à procura do Papá”. (...) “Tinha o PS pai. Mas o Marocas/ mandou alguns filhotes para o galheiro/ e do partido por trocas e baldrocas,/ já não consegue ser o pai inteiro”. (...) “nesta lusa farronca sem vintém,/ neste muda que muda sem mudança,/ venha o que venha, há de lixar-se quem/ do salsifré tiver a governança”. 

Em termo desdenhoso alvejou Freitas do Amaral: “muito a preceito dos cristãos fervores/ do CDS, o Lucas é o retrato/ De um menino Jesus entre os doutores/ A meter mestre Freitas num sapato”. Devido ao insólito mergulho no Tejo e outras peripécias não escapou Marcelo Rebelo de Sousa, o “picareta falante”: “o Marcelo neste mapa/ a brincar aos cowboys não há nenhum./ passa rasteira: o mais subtil derrapa;/ dá ao gatilho da intriga e faz: pum-pum.” Sempre que podia dissecava o poder político e a rotina social. Zurziu as prosápias de fidalguia; os vícios e as vilezas dos novos e novíssimos ricos, os intelectuais e artistas enfatuados, os políticos arrivistas e corruptos. Execrava, ruidosamente, a ignorância e o fanatismo. 

Estreitou amizade com Francisco Sá Carneiro, ao apadrinhar a aproximação íntima com Snu Abecasis. Assim, só em 1979, por insistência de Francisco Sá Carneiro, ingressou na Aliança Democrática. Finalmente, passou a ser deputada pelo PSD. Assumiu, como era de presumir, posições em divergência frontal com a linha de orientação política e religiosa da quase totalidade do PSD e do CDS. 

A defesa do aborto deu lugar a uma intervenção de Natália que agitou a Assembleia da Republica. Ficaram célebres os seus versos, ao arrasar o deputado do CDS João Morgado, por ter proferido, no auge do debate parlamentar sobre a legislação sobre o aborto, a afirmação perentória que “o ato sexual é para fazer filhos”. Natália não se conteve e escreveu, de jato, um poema que circulou, em todo o país, até porque sairia, no dia seguinte, no “Diário de Lisboa”: “Já que o coito — diz Morgado — /tem como fim cristalino, /preciso e imaculado/ fazer menina ou menino;/ e cada vez que o varão/ sexual petisco manduca,/ temos na procriação/ prova de que houve truca-truca./ Sendo pai só de um rebento, /lógica é a conclusão/ de que o viril instrumento/ só usou — parca ração! — / uma vez. E se a função/ faz o órgão — diz o ditado —/ consumada essa exceção,/ ficou capado o Morgado!” 

Confirmaram-se todas as apreensões. Nem o PSD lhe renovou o mandato, nem o PS — à frente do qual estava Jorge Sampaio — aceitou a proposta de entrar nas listas. Natália aderiu, então, ao Partido Renovador Democrático (PRD), que se constituiu sob a égide de Ramalho Eanes. Porque nada mais lhe restava, em 1992, cerca de um ano antes de falecer, juntamente com José Saramago e Luís Francisco Rebelo, entre outros, integrou a Frente Nacional Para a Defesa da Cultura (FNDC). Foi no segundo mandato presidencial de Mário Soares. Tinha por objetivo denunciar violações à liberdade de expressão, à ausência de pluralidade e diversidade na cultura e exigir uma estratégica para a real democratização do país. Os mal-entendidos e os conflitos reacenderam-se. O projeto extinguiu-se. 

O PERCURSO LITERÁRIO 

Os primórdios da escrita de Natália Correia aproximam-se, em alguns aspetos, do neorrealismo. Demarcou-se, todavia, deste movimento literário e político. Ela própria explicou a sua opção: “Se pusAnoiteceu no Bairro’ (romance da sua autoria, de 1946) à margem, não foi por ter sido escrito numa fase imatura da minha vida, mas porque o entendo inautêntico. Embora o livro corresponda a preocupações ideológicas que mantenho, não estou interessada em fazer literatura programada.” Era da opinião que, entre nós, “se fizera neorrealismo de empréstimo, de segunda mão” (...) “não se agitaram as pessoas e as instituições de forma a tornar visível o lodo depositado no fundo”(...) “Houve o medo” — concluiu — “de se realizar sequer um realismo a sério, porquanto este exige uma descida ao inferno e não vejo por aí quem se atreva além do purgatório”. Por isso se afastou do neorrealismo, cortou com a orientação literária e política de escritores portugueses que o representavam, muitos dos quais pertenciam ao Partido Comunista ou estavam próximo dele. Foi ainda mais explícita: “Não podemos competir — insistiu — com os mestres do neorrealismo americano e europeu, que, bons ou maus, para quem aprecia o género, já disseram a última palavra.” 

Seguiu outro caminho que prosseguiu, com variantes óbvias. Passou a estar próxima do surrealismo. Já tinha relações pessoais com Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Isabel Meyrelles, Alexandre O’Neill, Manuel de Lima, Mário Henrique Leiria e David Mourão-Ferreira. Acrescente-se Luís Pacheco, editor dos surrealistas e de livros de Natália nesta fase literária: “Dimensão Encontrada” (1957), “Passaporte” (1958), “Comunicação” (1959) e, mesmo, “O Canto do País Emerso” (1961). 

A propósito da ligação ao surrealismo e aos surrealistas portugueses fez questão de observar: “Se existe qualquer relação entre a minha poesia e o surrealismo é francamente a posteriori, isto é para os que quiserem vê-la. Quanto a procurarem antecedentes, também temos por cá outros mais à mão que foram surrealistas sem pensar nisso: Gomes Leal e Sá Carneiro.” 

A criação de Natália, sempre avessa a códigos literários e estéticos, verificou-se nos livros de poemas, nos romances, nas memórias, nas peças de teatro e nos ensaios, nasce e expande-se, em todos os sen- tidos, mergulha na complexidade do mundo, umas vezes numa interpelação provocatória, outras em torno das mais ínfimas e subtis realidades. Em suma, um todo bastante diverso, mas coeso, nas suas afinidades eletivas. 

O ÚLTIMO SALÃO DE LISBOA 

Mesmo em vida, Natália Correia já pertencia à História de Lisboa. Residia num quinto andar do número 52 da Rua Rodrigues Sampaio, entre a Rua de Santa Marta e a Avenida da Liberdade. Ali permaneceu 40 anos, desde 1953 a 1993. Ali faleceu a 16 de março de 1993, horas depois de chegar a casa, ao regressar do Botequim. O lendário diretor do “Diário de Notícias” Augusto de Castro repetiu, até à exaustão, em livros, discursos e editoriais, que o “último salão literário de Lisboa” fora a casa, em Santa Catarina, de Maria Amália Vaz de Carvalho (1847-1921). É certo que marcou um tempo cultural, mas cada época tem o seu salão literário. 

Na segunda metade do século XX, a casa de Natália Correia, entre várias outras, foi um espaço privilegiado de convívio, rodeado de uma fabulosa biblioteca, de notáveis obras de arte e de surpreendentes peças de arte decorativa. A hospitalidade afetuosa conjugava-se com a estatura intelectual dos convidados de Natália, em noites inesquecíveis que avançavam pela madrugada. Durante a passagem por Lisboa ofereceu receções a Marcel Marceau (que entrevistei, em 1959, ao lado de Natália, para o jornal “República”); ao poeta russo Ievtuchenko, ao poeta Henri Michaux; e, já no Botequim, ao jornalista e escritor Dominique de Roux, autor do enigmático romance “O Quinto Império”; e ainda aos escritores americanos Graham Greene e Henry Miller. 

VISCERALMENTE AÇORIANA 

Ficou sempre agarrada aos Açores. Nasceu, viveu e morreu açoriana. Um dos seus muitos poemas de forte componente insular resume-se nestes versos: “Para Lisboa me trouxeram/ não de uma vez e embarcada:/ minha longa matéria foi/ pouco a pouco transportada./Recém-vinda de ficada/ em morosa maravilha,/ sempre a chegar a Lisboa/ e sempre a ficar na ilha”. 

Num dos seus livros mais emblemáticos, “Não Percas a Rosa”, encontramos sucessivas recordações da infância e da adolescência associadas a memórias gustativas, olfativas e visuais como, por exemplo, o cozido das Furnas sempre com inhames e maçarocas de milho. Desce mesmo ao pormenor: “Cozidas na terra fervente e mole à beira da Lagoa e que depois comemos numa mesa de pedra sob as plumas dos fetos; por entre colinas de pedra pomes, líquenes, musgos, mantos verdes que pendem dos ribanceiros onde se abrem as alas rosadas e azuis das hortênsias.” Ficou a ser, por vários motivos e até ao fim, uma ilha dentro da sua própria ilha. 

O BOTEQUIM 

Multiplicaram-se as dificuldades financeiras. O marido, Alfredo Machado, um jogador compulsivo, deixou de ter os recursos para manter uma vida aparatosa para Natália possuir em casa um salão — o seu palco doméstico — para receções faustosas e requintadas. 

O Botequim nº 79 do Largo da Graça
 

Em 1971, Natália, com o marido e a escultora Isabel Meyreles fundaram, no Largo da Graça, onde existiu em tempo uma carvoaria, um bar restaurante que lhe permitiu um novo espaço para voltar a pontificar. Tinha necessidade permanente de espetáculo. Chamava-se O Botequim, um nome que remetia para os cafés e restaurantes de Lisboa, do século XVII, do tempo de Bocage, da implantação do regime liberal e da independência do Brasil. 

Rapidamente, O Botequim ganhou a maior notoriedade. Existiam (e existem) outros centros de convívio e de conspiração: o Snob, na Rua do Século; o Procópio, nas Amoreiras; o After Eight, na Praça das Flores. Nenhum deles, comparável a O Botequim. 

Concentravam-se no Botequim poetas e escritores de várias tendências. Políticos de todos os quadrantes. Deputados, ministros, atuais ou futuros, presidentes da República. Representantes da FLAD, o movimento da independência dos Açores. Incorporou as fases conturbadas do processo revolucionário e contrarrevolucionário que vivemos na sequência do 25 de Abril. 

Encontrava-se Natália envolvida, em 1971, em controvérsias políticas e literárias que deram brado em todo o país. Desencadeara no consulado de Salazar e na “primavera marcelista” duas ruidosas polémicas que a levaram à barra do Tribunal Plenário de Lisboa. O primeiro processo, motivado pela introdução e coordenação da “Antologia de Poesia Erótica e Satírica” (1965). O segundo processo devido à responsabilidade editorial das “Novas Cartas Portuguesas” (1972), da autoria de Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. Ambos os livros desencadearam o alarme da Censura e a imediata apreensão da PIDE. Natália foi julgada e condenada, ao cabo de nove anos de guerrilhas judiciais. O 25 de Abril determinou o ponto final. 

A presença carismática de Natália pontificou, no Botequim, durante mais de 20 anos. Com a morte de Natália, morreu o Botequim. Revive, contudo, no livro de Fernando Dacosta “O Botequim da Liberdade” (Lisboa, 2013). Na “Fotobiografia de Natália Correia”, de Ana Paula Costa (2006) e na extensa biografia romanceada de Filipa Martins “O Dever de Deslumbrar” (2024). Um facto, porém, é incontestável: malograram-se as tentativas de revitalizar o Botequim. Com a morte de Natália, o Botequim ficou morto e enterrado. 

ELAESÓELA 

A memória de Natália perdura na sua obra. Pouco antes de falecer reuniu as poesias completas em dois volumes e com o título genérico “O Sol das Noites e o Luar dos Dias” (1993). Clara Rocha classificou nesta síntese lapidar: “O retrato de uma voz que se modula nos sons da fúria ou da emoção lírica, do riso ou da mágoa, da saudade e da vivência, mas que estremece e, livre, resiste, se transforma e transforma.” 

O nome de Natália encontra-se consagrado em ruas, de Lisboa e dos Açores, em diversas bibliotecas, no repertório musical de Carlos Alberto Moniz e num café de Angra do Heroísmo e com a seguinte lápide: “Quando me derem por morta/ de lágrimas nem uma pinga:/ um trevo de quatro folhas/ tenho debaixo da língua./ Está em regra o passaporte./ Venha o limite de idade/ não me chorem, não é morte/ é só invisibilidade./ Túnel, poço ou espiral/ suga a alma. Fica o corpo./ Vai-se a cópia sideral/ e isso não é estar morto.” 

As comemorações centenárias — a realizar de 2023 a 2024 — em Portugal, em França e noutros países vão, mais uma vez, demonstrar que está viva.

RECUPERADO O ESPÓLIO DE NATÁLIA CORREIA 

O património familiar de Natália resumia-se aos bens de um tio, irmão do pai, o padre Francisco Oliveira Correia, muitos anos pároco da freguesia da Achadinha, na costa norte da ilha de São Miguel. Acumulou bens patrimoniais e depósitos bancários. Era extremamente conservador. Como poderia aceitar a separação da mãe do pai, a rebeldia literária e política de Natália e, ainda por cima, três casamentos civis consecutivos? — com Dias Ferreira, em 1949; com William Hylen, e com Alfredo Machado, um homem muito mais velho (e a partir de 17 de março de 1990 viria ainda a casar com um amigo íntimo de longos anos, o poeta e realizador Dórdio Guimarães). O resultado foi óbvio. O advogado José de Medeiros Tavares (1899-1986), da Ribeira Grande, a meu pedido, sem levar quaisquer honorários, consultou as possíveis disposições testamentárias. Obviamente, Natália e a irmã ficaram sem hipótese de se habilitar aos bens móveis e imóveis. No início do livro “Não Percas a Rosa” (1978), Natália aludiu ao tio com o maior desdém. 

Pertenciam ao colecionador Manuel Cardoso Martha — a quem Natália, na casa da Rodrigues Sampaio deu acolhimento no final da vida — a biblioteca, os quadros, óleos, guaches, desenhos, esculturas e objetos raros de arte decorativa. Era amigo de sua mãe e também o professor de Natália que, durante anos, contribuiu para que ficasse com uma sólida cultura intelectual. Apurou-lhe os conhecimentos de língua portuguesa. Desenvolveu-lhe os rudimentos de francês e inglês, que passou a falar e a escrever corretamente. 

O viúvo de Natália, o poeta e realizador Dórdio Guimarães, viria a ser o herdeiro natural de todos os bens de Natália que eram de Cardoso Martha. Após a morte de Dórdio Guimarães, que fizera 16 testamentos, Luís Fagundes Duarte, na altura diretor regional da Cultura, decidiu avaliar a importância da biblioteca. Como solução de emergência mandou fotografar cada uma das prateleiras das numerosas estantes. Incumbiu o advogado Álvaro Monjardino de clarificar este processo. Por tudo isto o espólio distribuiu-se por São Miguel, para a Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada; pela Biblioteca Nacional de Lisboa e pela Sociedade Portuguesa de Autores. Evitou-se o roubo e a dispersão. Manuel Cardoso Martha (1882-1958), figueirense dos quatro costados, lecionava em Lisboa na Escola Fonseca Benevides. Antigo seminarista, com profundo conhecimento das humanidades clássicas da literatura portuguesa e das várias literaturas europeias, Cardoso Martha era um notável erudito, bibliógrafo, bibliófilo, colecionador de manuscritos e de livros raros e antigos. 

Entre numerosos manuscritos encontrou-se uma coleção de poesias — cuja capa reproduzimos — com o título “O Purgatório dos Poetas: Poesias Eróticas d’Alguns Escritores Portugueses dos Séculos XV a XIX / Coligidas por Cardoso Marta — 1935”. Revista e acrescentada com autores contemporâneos, viria a constituir a polémica “Antologia de Poesia Erótica e Satírica”, coordenada por Natália Correia e editada por Fernando Ribeiro de Melo. A herança de Cardoso Martha — que organizou em 1912 e 1913 no Grémio Literário o I e II Salão dos Humoristas — possuía desenhos, aquarelas e guaches de Almada Negreiros, Stuart Carvalhais, Christiano Cruz, Jorge Barradas e outros participantes no primeiro modernismo. 

O então presidente e vereadores da Câmara da Figueira da Foz fizeram diligências para que todo esse acervo literário e artístico ficasse depositado no Museu Santos Rocha, na altura a cargo de Vítor Guerra. Consultados os advogados Manuel João da Palma Carlos e Luís Francisco Rebello, amigos de Natália e do marido Alfredo Machado, apenas terão sido entregues à Figueira da Foz livros e opúsculos relacionados com a cidade e o seu concelho. Um tema ainda a investigar.

* Jornalista e investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa e sócio correspondente português para a ABL-Academia Brasileira de Letras-cadeira nº 3.

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

VENI CREATOR SPIRITUS: SOLO AO PREGADOR DE JOÃO FRANCISCO DA MATTA


Por Francisco José dos Santos Braga
 
Vinde Espírito Criador - Crédito: comshalom.

 
O VENI CREATOR SPIRITUS: Solo ao Pregador para orquestra e tenor solista, do compositor são-joanense JOÃO FRANCISCO DA MATTA (✰ São João del-Rei, c. 1832 - ✞ localidade de Serranos, distrito de Aiuruoca-MG, 1909), escrito para solenizar a Festa do Divino em 04/09/1873 em Lavras-MG, pôde ser ouvido em 4 de setembro p.p., graças à união de esforços do pesquisador de Oliveira-MG, Lívio Antônio Silva Pereira, que resgatou a partitura da obra, em parceria com a Filarmônica da USP Ribeirão Preto; além disso, Lívio Pereira foi o tenor solista convidado para ser acompanhado pela Filarmônica da USP Ribeirão Preto para maior brilhantismo do grandioso evento musical em comemoração aos exatos 150 anos da composição, partitura localizada pelo pesquisador Lívio Pereira em Lavras, para orquestra e tenor solista. Essa importante obra sacra vem coroar o trabalho de resgate da posição de destaque ocupada pelo compositor sacro são-joanense no segundo meado do século XIX. 
 
Graças ao pesquisador Lívio Antônio Silva Pereira que teve o mérito de localizar e resgatar a partitura original da obra, foi possível essa primeira audição mundial da obra, disponível no YouTube, executada pela Filarmônica da USP Ribeirão Preto sob a notável regência do Prof. Dr. Rubens Russomanno Ricciardi, tendo o tenor oliveirense cantado o Solo ao Pregador com maestria, sentimento piedoso e profundo conhecimento da partitura.
 
Confira a primeira audição mundial do VENI CREATOR SPIRITUS: Solo ao Pregador de João Francisco da Matta:
 
Também é possibilitado o acesso à partitura digitalizada e disponibilizada por Musica Brasilis

Esse trabalho pioneiro de resgate do VENI CREATOR SPIRITUS: Solo ao Pregador vem se juntar a outras gravações de João Francisco da Matta já editadas no YouTube, em página do grupo musical Vocalis Barroco, que Lívio Antônio Silva Pereira rege em Oliveira-MG. Até o lançamento da recente apresentação, já era possível citar as seguintes obras sacras de João Francisco da Matta disponíveis no YouTube sob a regência de Lívio Pereira:
4º Responsório Fúnebre: Libera me Domine
3º Responsório Fúnebre: Ne recorderis
2º Responsório Fúnebre: Memento mei
1º Responsório: Subvenite Sancti Dei
Missa Stella Maris: Kirie
Missa de São Sebastião: Kirie
Ecce Sacerdos Magnus

Eis os vídeos já editados por Vocalis Barroco de Oliveira-MG:
Link: https://www.youtube.com/@vocalisbarroco5287 
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Finalmente, mas não menos importante, cabe uma referência à Filarmônica da USP Ribeirão Preto. Fundada em fevereiro de 2011 e regulamentada a 19 de fevereiro de 2018, é a orquestra jovem de alunos de graduação do Departamento de Música da FFCLRP-USP (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto), bolsistas da Reitoria da USP. 
Desde sua fundação, Rubens Russomanno Ricciardi é seu maestro principal e José Gustavo Julião Camargo, seu maestro assistente.
O corpo docente do Departamento de Música da FFCLRP-USP é formado por grandes nomes da música contemporânea, cabendo destaque especial ao Prof. Dr. Rodolfo Coelho de Souza, professor associado de teoria e composição musical, e o Prof. Dr. Rubens Russomanno Ricciardi, atual chefe do Departamento de Música e regente da Filarmônica da USP Ribeirão Preto. 
Com temporadas de concertos sinfônicos e récitas de óperas, a Filarmônica da USP é sediada em Ribeirão Preto e São Carlos. 
 
A USP FILARMÔNICA cumpre as atividades-fim da USP em ensino, pesquisa e extensão, bem como integra, na performance musical, a poíesis (composição) e a práxis (interpretação-execução) em sua filosofia de trabalho. Em um contraponto dinâmico entre antigo e novo, clássico e experimental, regional e cosmopolita, a USP FILARMÔNICA está atrelada ao Núcleo de Pesquisa em Ciências da Performance em Música (NAP-CIPEM da FFCLRP-USP). A USP FILARMÔNICA, desde 2012, é também a orquestra do Festival Música Nova Gilberto Mendes.

[SANTOS, 2012, 1089-90], em sua dissertação de mestrado pela UNIRIO, investigou as composições intituladas Solo ao Pregador, não apenas como objeto, mas, também, enquanto prática, particularmente em São João del-Rei (MG), onde a manifestação paralitúrgica desse tipo de composição ainda sobrevive nas tradicionais festas e solenidades religiosas. Paralelamente, o autor apresentou a edição crítica de quatro Solos ao Pregador do são-joanense Padre José Maria Xavier (1819-1887), disponíveis também no IMSLP.  
Na Introdução,  o autor comenta:
Solo ao Pregador ou Ária ao Pregador é o nome dado à composição musical baseada em textos religiosos que, na tradicional liturgia católica, é executada ocasionalmente nas missas solenes após o evangelho e antes da homilia, ou então, precedendo o sermão feito antes do canto alternado do Te Deum, que finaliza as comemorações da festa ou solenidade que se celebra. Geralmente cantados em latim, os textos referem-se à festa própria ou ao santo homenageado. A finalidade dessa música de circunstância é cobrir o trajeto que o sacerdote incumbido da pregação percorre no interior da igreja, quando se desloca do altar-mor até o púlpito, geralmente localizado na nave central, para proferir o sermão. Conforme tradição oral, acontecia de alguns pregadores mais eloquentes tomarem como mote o texto da música cantada nessa ocasião, que, obrigatoriamente, referia-se à festa que se celebrava.
As composições de Solo ao Pregador foram, comumente, escritas para uma voz solista e orquestra, apresentando, na grande maioria, dois andamentos contrastantes: lento e rápido. É importante mencionar que há registro destas composições para todos os tipos de vozes do naipe vocal. Nota-se em várias obras a estrutura de recitativo e ária, com o emprego de ornamentos e coloraturas na linha vocal, revelando a influência do bel-canto e da ópera italiana. (...)
Este tipo de composição foi muito frequente no Brasil durante o século XIX. Mas, encontra-se registro dessas, também, na segunda metade do século XVIII. A prática de se executar essa música circunstancial não é prescrita pela liturgia, ou seja, não faz parte do Próprio nem do Ordinarium Missæ; constitui-se, portanto, uma manifestação paralitúrgica.

No subtítulo "O Solo ao Pregador em São João del-Rei", outro capítulo de sua monografia, [SANTOS, ibidem, 1093]  observa:

Esse costume mineiro talvez explique a grande ocorrência de composições de Solo ao Pregador em Minas Gerais. Ou seja, o Solo ao Pregador foi uma prática que conferia mais pompa e solenidade às celebrações religiosas, principalmente no século XIX, quando se verifica uma grande proliferação desse tipo de composição.
Dentre as cidades históricas mineiras, São João del-Rei guarda uma particularidade: a atuação ininterrupta das tradicionais orquestras Lira Sanjoanense e Ribeiro Bastos, que até hoje abrilhantam as festas religiosas da cidade. (...)
No arquivo da Orquestra Lira Sanjoanense, encontramos cerca de vinte e seis composições de Solo ao Pregador; e no da Orquestra Ribeiro Bastos, seis obras catalogadas. Dessas composições, chama a atenção o fato de que treze são de autoria do compositor são-joanense José Maria Xavier (1819-1887).
Entrevista concedida à jornalista Mariane Fonseca da Revista Vertentes Cultural em dezembro de 2018 intitulada "Eu sou João da Matta"

Em outro trabalho de minha autoria, mostrei que, naquela época, negros, mulatos e pardos tinham a chance de alcançar melhor status social se se dedicassem à arte musical e conseguissem destaque junto à musa de Euterpe. Foi o caso de João Francisco da Matta, que se descobriu sob a batuta de Martiniano Ribeiro Bastos, lembrando que o próprio Ribeiro Bastos era mulato. Não só ele como outros grandes nomes da música são-joanense eram igualmente mulatos, como o Padre José Maria Xavier (1819-1887), cujo bicentenário de nascimento celebramos em 2019, e Presciliano José da Silva (1854-1910), que ganhou de Dom Pedro II uma bolsa de estudos em Milão. A distinção por cor da pele se refletia, portanto, no próprio meio musical. E foi pano de fundo para certa “rivalidade” entre a Orquestra Ribeiro Bastos e a Lyra Sanjoanense no século XIX. 

À época, os primeiros foram apelidados de "Coalhadas" e os últimos, de "Rapaduras". João Francisco da Matta pertenceu à Orquestra da Lyra Sanjoanense (ou seja, era um autêntico "rapadura"), conforme comprova o estandarte da Sociedade Lyra S. Joanense, trabalho de Luiz Batista Lopes, benzido solenemente a 31/03/1889.

Estandarte da Sociedade Lyra S. Joanense, trabalho de Luiz Batista Lopes, originalmente benzido solenemente a 31/03/1889 e refeito em 1976 a partir do original. O nome de João F. da Matta aparece à direita do ramo verde superior. Crédito pelas imagens: Rute Pardini.

 

Diante desses fatos, é bem provável e até natural que, sendo o compositor João Francisco da Matta alguém de prestígio dentro da Lira Sanjoanense, considerado um "rapadura" de destaque dentro dessa corporação musical são-joanense, tivesse conhecimento de todas as composições denominadas Solos ao Pregador existentes no seu arquivo. 

 

TEXTO UTILIZADO POR JOÃO FRANCISCO DA MATTA

 

Veni Creator Spíritus, 
Mentes tuorum vísita, 
Imple superna grátia, 
Quae tu creásti péctora. 
 
Qui diceris Paráclitus, 
Altissimi donum Dei, 
Fons vivus, ignis, cáritas, 
Et spiritalis unctio. 
 
Tu septiformis múnere, 
Digitus paternae déxtera, (sic)
Tu rite promissum Pátris, 
Sermone ditans gúttura. 
 
Accende lumen sensibus: 
Infunde amorem córdibus: 
Infirma nostri córporis 
Virtute firmans pérpeti. 
 
Hostem repellas lóngius, 
Pacemque dones prótinus: 
Ductore sic te praevio, 
Vitemus omne nóxium. 
 
Per te sciamus da Pátrem, 
Noscamus atque Fílium; 
Teque utriúsque Spíritum 
Credamus omni tempore. (BIS) 
 
Deo Patri sit glória, 
Et Filio, qui a mórtuis 
Súrrexit (2X), ac Paráclito, 
In saeculórum (3X). Amen (4X). (sic)
 
 
TRADUÇÃO por Francisco José dos Santos Braga
 

Vinde, Espírito criador, 
visitai as Vossas almas; 
enchei da graça do alto 
os corações que criastes. 
 
Sois chamado Consolador, 
dom de Deus Altíssimo, 
fonte viva, fogo, caridade 
e unção espiritual. 
 
Sois formado de sete dons, 
dedo da mão direita de Deus, 
solene promessa do Pai 
a inspirar-nos a palavra. 
 
Iluminai os sentidos, 
infundi o amor nos corações, 
curai as nossas fraquezas
com o bálsamo da Vossa força. 
 
Afastai para longe o inimigo, 
dai-nos a paz sem demora; 
assim guiados por Vós, 
evitaremos todo o mal. 
 
Fazei-nos conhecer o Pai, 
e revelai-nos o Filho, 
para acreditar sempre em Vós, 
Espírito que de ambos procedeis. 
 
Glória seja dada ao Pai, 
e ao Filho, que da morte 
ressuscitou, e ao Paráclito, 
pelos séculos dos séculos. Amen.
 
 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 
BRAGA, Francisco José dos Santos: 110 ANOS SEM O COMPOSITOR JOÃO F. DA MATTA, publicado no Blog de São João del-Rei em 1º de maio de 2019.
 
SANTOS, Adilson Cândido: O Solo ao Pregador em São João del-Rei, Anais do II SIMPON 2012-Simpósio Brasileiro de Pós-Graduandos em Música, pp. 1089-1098.
 
______________________: O Solo ao Pregador em São João del-Rei: história, prática e edições, dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Música do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, Rio de Janeiro, 159 p.

SICOOB CREDIVERTENTES: "Eu sou João da Matta", entrevista concedida pelo autor a Mariane Fonseca da Revista Vertentes Cultural, Edição 11, Ano 5, dez. 2018, pp. 20-24.