sábado, 24 de fevereiro de 2024

OS FILHOS DE CAIM

Por LUIZ RONCARI

 
De forma explícita e direta será tratado um subtema que foi apenas esboçado na matéria anterior intitulada A PALAVRA “JUDEU”, por Rosetta Loy. Refiro-me ao poema "Abel e Caim", do capítulo Revolta, extraído de As Flores do Mal, por Baudelaire. O texto que aqui será reproduzido pode ser considerado uma recensão crítica (publicada originalmente na Folha de São Paulo, Caderno Especial, edição de 4/9/1995) do livro OS FILHOS DE CAIM: Vagabundos e miseráveis na literatura europeia 1400-1700 por Bronisław Geremek (Tradução: Henryk Siewierski), São Paulo: Companhia das Letras, 1995, 372 p. Portanto, hoje damos continuidade à discussão iniciada no texto imediatamente anterior.
O pequeno mendigo, de Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682), óleo sobre painel, acervo do Museu do Louvre, Paris

 

No poema "Abel e Caim", do capítulo "Revolta" de "As Flores do Mal", Baudelaire expõe em dísticos, alternadamente, os destinos opostos das gerações de Abel e Caim. A raça abençoada de Abel goza de todos os benefícios materiais e morais da vida: dorme, come, bebe, tem as oferendas bem recebidas pelos anjos, é fecunda, produz e reproduz como os percevejos dos bosques, inclusive seu ouro, se aquece no lar patriarcal e até seus cadáveres são úteis, adubando o solo quente. A raça deserdada de Caim sofre todos os martírios dos malditos: chafurda no lodo, suas entranhas uivam de fome como um cachorro velho, treme de frio nas cavernas como o chacal, o coração queima de um amor perigoso e sua família se arrasta arquejada pelas estradas, condenada a um esforço infinito. 

Nos dois últimos dísticos, o poeta para de descrever as situações contrastantes e passa a fazer projeções. Para a vergonha da raça de Abel, "Le fer est vaincu par l'épieu!", o ferro do arado da sua geração laboriosa é vencido pelo da espada dos nômades de Caim, invertendo a situação de ambos, como aparecem no "Gênese", Caim agricultor e Abel pastor. E a raça de Caim sobe ao céu "et sur la terre jette Dieu!". 

Seja nas exposições seja nos anseios, toda a simpatia e a solidariedade do poeta está com os deserdados de Caim, o que o aproxima dos românticos hugoanos, que enxergavam neles mais humanidade. Porém não é aí também que encontra identidade, os valores que lhe permitam a transcendência "d'un monde où l'action n'est pas la soeur du rêve". O poeta agora está só, o que o distancia deles. 

Ao lado da dimensão simbólica dessa divisão dos homens, podemos enxergar também uma histórico-social, vendo na geração de Abel o burguês, o homem integrado e satisfeito: prolífico, virtuoso, honesto e, até possivelmente, belo; qualidades garantidas porém pela mesa farta e renda segura, tendo a posse como a base de sustentação das virtudes. A raça de Caim não se limita ao pobre destituído e explorado pelo novo sistema fabril, e a sua vitória final "o anúncio da vitória do proletariado revoltado", como interpreta o crítico ¹. Seus deserdados são também prostitutas, criminosos, vagabundos e mendigos, mais próximos do lumpesinato * e da boêmia (os pobres "indignos" e "não-respeitáveis") do que do mundo do trabalho. 

Para o poeta, a riqueza nas suas manifestações exteriores e morais divide e separa os homens, e o que o comove é o olhar da pobreza diante dela. Olhar inquietante e revelador, capaz de surpreender uma humanidade composta de seres tão diferentes e iguais ao mesmo tempo, como podemos observar em "Le Joujou du Pauvre", "Les Yeux des pauvres", "Assommons les Pauvres!" e outros, nos "Pequenos Poemas em Prosa". Seus "filhos de Caim" são aqueles que ficam de fora, à margem, na contramão da vida social corrente e não participam da festa e da hipocrisia comum do mundo burguês. Pertencer ou não ao universo do trabalho não é tão importante quanto afrontar e negar com seu modo de vida os termos da convivência postos pela modernidade. Nesse sentido, o dândi e o "flâneur" equivalem aos vagabundos e miseráveis. A atitude do poeta de solidarizar-se, colocar-se ao lado deles e acompanhá-los na recusa só foi possível no século 19, com as profundas repercussões que conhecemos para a poesia. 

No período estudado por Geremek, de 1400 a 1700, o termo "filhos de Caim" não tem o sentido positivo, subjetivamente dado pelo poeta, invertendo-o segundo seus próprios critérios e a partir de uma visão muito pessoal do mundo (porém global, pois todos os homens participam de uma ou de outra categoria). "Filhos de Caim" é o nome que a tradição deu a um grupo relativamente definido de pessoas: vagabundos, mendigos, vigaristas, ladrões e bandidos, e o traço comum é o de não participarem de uma das duas pontas do processo de trabalho, a dos esforços da produção, embora sejam quase todos ávidos pela posse dos resultados e benefícios. 

Não é à toa que se recorra muitas vezes aos ratos para a sua representação, não tanto pelo aspecto asqueroso dos bichinhos, como pelo lugar muito singular que ocupam no mundo animal. Nem permaneceram selvagens, mantendo-se afastados dos campos cultivados e cidades, nem se deixaram domesticar como cachorros e gatos, firmando um contrato de troca e convivência com o homem. Os ratos concentraram-se nas margens dos espaços ocupados, nem fora nem dentro, nos interstícios fronteiriços e subterrâneos, onde podiam se esconder e de onde podiam aproveitar os dejetos e os descuidos da civilização que os repelia. Desse modo, "o marginal" (sem o sentido pejorativo que a palavra tem para nós) não é aquele que se coloca fora de uma sociedade que recusa, mas o que se mantém nas bordas, numa posição que lhe permite participar da melhor maneira do que ela produz, contanto que não pelo trabalho. 

O objeto de estudo de Geremek não é portanto o pobre: o camponês, o servo, o artesão ou as camadas ditas populares das sociedades tradicionais europeias, aqueles que representam as raízes de sustentação da sociedade, como aparecem no admirável sonho alegórico de Simplex, no "Simplicius Simplicissimus", do século 17, de Grimmelshausen: “A raiz da árvore era feita do povo miúdo, artesãos, mecânicos, camponeses sobretudo e outras pessoas negligenciáveis. E entretanto eram eles que comunicavam à árvore a força e a vida, e rejuvenesciam sua seiva, à medida que ela se consumia...” ². O “marginal” de que trata o autor é também muito distinto dos excluídos da ordem atual. Enquanto estes são resultantes de um desenvolvimento econômico e tecnológico perversos, que, ao invés de criar novos postos de trabalho permitindo a integração, reduzem e expelem para as periferias sociais cada vez mais pessoas, nas sociedades tradicionais estudadas por Geremek dá-se justamente o contrário: as determinações dos poderes estão sempre voltadas para a assistência caritativa e a coação ao trabalho; as legislações, como as Poor Laws inglesas, e as ações, como a marcação a ferro e a fustigação, têm sempre em vista reprimir “a vadiagem” do pobre e forçá-lo ao trabalho. São formações com orientações e dinâmicas opostas que criam deserdados de naturezas muito distintas: uma que desqualifica e desemprega, e outra que obriga e sujeita. Não tem sentido perguntar qual a pior. 

Mas a preocupação do livro não é com a história social. Ele está mais voltado para uma história das representações, um estudo das imagens que produziram determinados grupos capazes de expressão de outros, que não gozaram das mesmas condições: aqueles que não tiveram voz nem meios na história. É esta perspectiva que leva o autor a se utilizar da literatura para o estudo da história, entendendo-se bem que sua preocupação não é com o fato social ou a verdade do fato, mas com a refração do objeto na representação e expressão de um sujeito pertencente a um outro campo social. De outro modo, como os filhos de Abel viram e representaram os filhos de Caim, ou, nas palavras do autor: “...tais representações integravam a cultura e a literatura da elite, e que foram absorvidas pelas elites sociais como produtos das elites intelectuais” ³. Segundo a representação feita por alguém estranho, quando não hostil, ao objeto representado, o preconceito contamina o meio onde a imagem se refrata, o que a deforma num alto grau. 

A escolha do objeto e a orientação da pesquisa  as imagens literárias dos vagabundos e miseráveis  mereceriam uma discussão quanto a sua produção de sentido e ao resgate de valores (como o foi para Bakhtin estudar a cultura popular da Idade Média e do Renascimento, o sistema de imagens do baixo e do grotesco, na literatura de Rabelais, um dos trabalhos-guia do autor). Em “Os Filhos de Caim”, o leitor com frequência sente-se olhando para um vazio axiológico e fica se perguntando sobre suas motivações e o que extrair dali, já que Geremek trabalha apenas na reconstituição das imagens, sem revelar outra dimensão que pudesse alterar a visão a respeito do sujeito estudado. 

Ele ainda enfrenta duas dificuldades que mereceriam ser discutidas, mas que só poderemos enunciar aqui. A primeira é quanto às fontes, que incluíam obras efetivamente literárias, como poemas, novelas e romances, e outras que só tinham algum valor literário, como crônicas e narrativas de observação , ou eram simples relatórios, panfletos, documentos judiciais, éditos etc. São fontes onde a convenção e a observação, o preconceito e a informação nova se combinam de modos e com pesos muito distintos e dão às imagens naturezas também diversas. 

Geremek porém tem o devido cuidado e mantém sempre muito discernimento nas interpretações e análises. É um dos melhores méritos do autor, para a satisfação do leitor alheio à área historiográfica, que espera sempre pegar o historiador na curva. A segunda, ligada à anterior, é quanto à relação e combinação dos estudos históricos com os literários, aproximação ao mesmo tempo fecunda e perigosa. É o modo de reunião desses dois campos no livro que parece mais problemático, gerando muitas vezes um sentimento de indefinição (e insatisfação): por um lado, é muito reduzido o seu olhar sobre o objeto histórico-social na realidade empírica, o que faz com que o referente perca em densidade  e não se mostre com outras facetas que foram obscurecidas pelos contemporâneos; e, por outro, ao procurá-lo na literatura, “excelente espelho da consciência social” (pág. 10), “como num espelho côncavo” (pág. 8), não tem como não reduzir agora a literatura a essa função de espelhamento, na sua procura pela imagem  “spectrum”, dando muitas vezes a impressão do autor estar caçando fantasmas , sem compreendê-la integrada ao todo da forma literária. Dificuldades e perigos porém de que Geremek tem clareza e que o faz atravessar com habilidade os riscos das fronteiras. 

 

II. NOTAS EXPLICATIVAS

 

¹ Baudelaire, Charles. “Oeuvres Complètes”, Paris, Robert Laffont, 1980, pág. 957, nota à pág. 91 

* Nota do gerente do blog: Para uma exposição do lumpesinato, o leitor pode servir-se da Wikipedia, por exemplo: Link: https://www.soescola.com/glossario/lumpesinato-o-que-e-significado  👈 

Além disso, há um trecho muito elucidativo na Introdução de Os Filhos de Caim..., por Geremek, que merece ser reproduzido aqui por sua importância (pp. 8 e 9): 

Quando a Ópera dos mendigos, de John Gay, foi apresentada nos palcos de Londres no século XVIII decifraram-se esses dois planos (o do pobre, por um lado, e o do marginal, por outro) e evidenciaram-se claras alusões aos governantes da Inglaterra. Em 1927, quando a peça voltou aos palcos de Londres, as alusões haviam perdido todo o seu peso mas os dois planos continuavam funcionando: além do exótico, da brincadeira e dos dramas de amor reduzidos a uma dimensão caricatural e anã, o público captou também a imagem das forças ameaçadoras que cresciam nas classes sociais baixas, forças que rejeitavam os princípios da ética e anunciavam a queda da ordem social dominante. Nas vésperas da ascensão do nazismo ao poder, em 1928, Bertolt Brecht retomou a obra de Gay e a sua Ópera dos três vinténs começou a triunfar nos palcos alemães (depois o dramaturgo alemão fez uma adaptação romanceada e atualizada da peça). De acordo com a concepção de Brecht, Macheath na peça de John Gay (Mack the Knife em inglês, Mackie Messer em alemão ou Mackie, o Punhal em português) devia ser uma personagem burguesa. A obra tinha por objetivo atacar a complacência, para não dizer a simpatia, dos burgueses em relação aos bandidos, provando a falsidade da opinião de que estes nada têm a ver com aqueles e de que o burguês não pode ser bandido. Mas quando no final do segundo ato são pronunciadas as palavras de Mackie (abreviado para Mac): 

Pois de que vive o homem? Tão-somente 
De maltratar, morder, matar como um animal insano, 
E tendo se esquecido inteiramente 
De que ele próprio é um ser humano 
 
o público encontra nelas não apenas a acusação de que o domínio da burguesia se baseia na contravenção e a provoca, mas também uma negação do sistema vigente de normas e comportamentos. O coro final da Ópera dos três vinténs exprime isso diretamente: "Primeiro o pão, depois a moral". Numa atmosfera de grande expectativa, em que o clima tenso parecia anunciar uma catástrofe para o sistema social vigente, as classes baixas surgiam como algo ainda mais ameaçador; aparentemente eram elas que estavam destinadas a assumir o leme do futuro. Em termos de repercussão sobre o público, a Ópera dos três vinténs funcionava não só no plano da associação do mundo da contravenção à sociedade burguesa, mas também  e talvez sobretudo  no plano da identificação dos esfarrapados como a força que destruiria aquela sociedade e à qual pertencia o futuro. Na peça, um modo de vida anti-social se ligava a uma negação consciente da ordem social e das normas da convivência coletiva. (...)”

Finalmente, observe que o texto da Ópera do Malandro (1978) de Chico Buarque é baseado na Ópera dos Mendigos (1728), de John Gay, e na Ópera dos Três Vinténs (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weil. (...), conforme Nota (em que o próprio autor referencia a fonte do texto) no livro Ópera do malandro por Chico Buarque de Holanda, São Paulo: Círculo do Livro, 1978, p. 17.

² Grimmelshausen, Johann Jacob. “Les Aventures de Simplicius Simplicissimus”, Alençon, Aubier, 1988, col. bilíngue, págs. 116 e 117 (t. do a.). Ou os círculos externos de cor preta, na alegoria da mesma família, de Gonçalves Dias, que representa a sociedade brasileira como as circunferências concêntricas provocadas por uma pedra lançada no lago, no diálogo “Meditação”, ficando no centro, como os círculos menores, “um punhado de homens” de cor branca 

³ Geremek, Bronisław, op. cit., pág. 302. Sobre a relatividade desses pressupostos, ver a “Introdução” do livro de Gertrude Himmelfarb, “La Idea de La Pobreza: Inglaterra a Principios de La Era Industrial”, México, FCE, 1988, em especial pág. 25 

Entre estes, para um estudo equivalente da mendicância e marginalidade no Brasil, é uma fonte interessante, não pelo que contém de observação, mas como visão “ilustre” do preconceito, que combina com piedade gosto pelo pitoresco e medidas repressivas, o livro de Mello Moraes Filho, “Factos e Memórias - A Mendicidade do Rio de Janeiro. Ladrões de Rua. Quadrilhas de Ciganos...”, Rio de Janeiro, H. Garnier, 1904 

Ver o livro notável de Gertrud Himmelfarb, acima citado, onde ela articula de modo exemplar a história social com a história das ideias no estudo do tema 

 

III. BIBLIOGRAFIA

 

LOY, Rosetta: A PALAVRA “JUDEU”, correspondente ao primeiro capítulo traduzido pelo gerente do Blog do Braga e publicada em 22/02/2024

BUARQUE, Chico: Ópera do malandro São Paulo: Círculo do Livro, 1978, 248 p.

GEREMEK, Bronisław: OS FILHOS DE CAIM: Vagabundos e miseráveis na literatura europeia 1400-1700 (Tradução: Henryk Siewierski), São Paulo: Companhia das Letras, 1995, 372 p.

RONCARI, Luiz: O universo marginal, São Paulo: Folha de S. Paulo, edição de 04/09/1995
 

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Colaboradora: ROSETTA LOY


Por Francisco José dos Santos Braga
 
 
Rosetta Loy / Crédito: Wikipedia
ROSETTA LOY (nascida em Roma em 15/05/1931 e falecida aos 91 anos de idade na mesma cidade, em 01/10/2022) é uma romancista italiana que pertence à generazione degli anni Trenta, junto com outros grandes nomes da literatura italiana. Ela é autora de vários romances e ganhou vários prêmios literários.
 
Biografia

Rosetta Loy é uma escritora italiana, nascida em Roma em 1931, a caçula de uma família de quatro filhos, um menino e três meninas. Seu pai era um engenheiro piemontês e sua mãe, de Roma, trabalhava com ele. Começou a escrever aos nove anos, mas o seu desejo real de escrever manifestou-se por volta dos 25. Após sua estreia com o romance La bicyclette (1974), que lhe rendeu o prêmio Viareggio Opera Prima, ela escreveu vários romances, incluindo Le strade di polvere, publicado pela primeira vez por Einaudi em 1987 e republicado em 2007. Graças a este livro, ela ganhou muitos prêmios literários, como o prêmio Campiello no ano da primeira publicação, o prêmio Supercampiello, o prêmio Viareggio, o prêmio Città di Catanzaro e o prêmio Rapello no ano seguinte e, finalmente, o prêmio Montalcino dois anos depois. O romance conta a história de uma família de Montferrat (Itália) no final da era napoleônica, nos primeiros anos da Unidade Italiana.

Entre suas outras obras, destacamos La porta dell'acqua 1976 (2001), La cioccolata da Hanselmann 1995 (1996), Nero è l'albero dei ricordi, l'azzura l'aria (trad. Preto é a árvore das memórias, o azul o ar 2004 (2007)), que historicamente se situou entre 1941 e os anos sessenta. Seu principal mérito foi lidar com histórias relacionadas com a guerra e as convulsões que ela provocou.

Suas obras contra o holocausto

Rosetta Loy é uma daquelas autoras que podem ser definidas como escritores "da memória", no sentido a que se refere a Marcel Proust, mas não só. A importância das suas memórias pessoais e familiares, a beleza da evocação das suas alegrias e dores da infância, da adolescência e dos acontecimentos da sua vida, quase sempre se sobrepõem às memórias de um passado histórico coletivo, muito maior e mais complexo. É um enredamento, uma mistura contínua a fundir, a ponto de confundir, a memória individual, que revive incessantemente nas suas obras, com a memória muito mais composta e articulada da história, do passado comum. A sua memória é, portanto, também uma história social e moral, é uma ética que ensina e adverte, mas, acima de tudo, é um assumir responsabilidades, como afirma a autora romana, que todos devem cumprir. Ela demonstra um profundo compromisso em manter viva a memória do Holocausto, um compromisso consubstanciado pela primeira vez em seu livro La parola ebreo (ou "Madame Della Seta também é judia", seu título francês), um romance enfocando o tema das leis raciais na Itália, e depois em um segundo romance, La cioccolata da Hanselmann. Reforçando ainda mais seu compromisso de denunciar o esquecimento da história, ela também escreveu uma carta de acusação, publicada no jornal La Repubblica, na qual condena veementemente o atual esquecimento dos horrores da perseguição aos judeus durante o período do Ventennio Fascista (ou duas décadas fascistas), considerando o esquecimento ser um crime, muito fácil e um ato estúpido. “Esquecemos por preguiça e porque é confortável”, diz Rosetta Loy, reafirmando mais tarde na entrevista a importância de saber o que aconteceu no passado, já que a memória, ela garante, continua sendo “a única forma que temos de distinguir o lugar. onde vivemos, é uma bússola que nos permite orientar. Esquecer o horror da perseguição anti-semita deste século e seu fim terrível pode ser muito perigoso. É como ser míope e jogar fora os óculos."

La parola "ebreo" (ou Madame Della Seta aussi est juive, em francês)

Este livro ainda é considerado um dos romances mais amados de Rosetta Loy hoje. Escrito em 1997, foi publicado pela Einaudi. A história começa em 1938, quando Mussolini lançou a campanha anti-semita na Itália. O drama que se desenrolava é confrontado com a inércia da família burguesa da autora, que não havia manifestado qualquer tipo de desacordo, embora sem endossar a linha política do fascismo. As razões para tal atitude residem na permanência de um clima complacente em relação à força política emergente por parte de uma burguesia que não havia compreendido todo o alcance da política de Mussolini. Também aqui, Rosetta Loy apresenta-nos as memórias de uma infância doce e inocente, que inevitavelmente se entrelaça com as memórias muito mais amargas e perturbadoras criadas pela sombra premente da Segunda Guerra Mundial. É também uma descrição linear de imagens gravadas em sua memória, as imagens dos rostos de pessoas que de repente, por causa do decreto fascista, apareceram como outras pessoas, pessoas novas e diferentes que diante de seus olhos, os de uma criança, tornam-se apenas perseguidos, perdendo quase completamente sua humanidade. Neste livro, a infância e a vida cotidiana sobreviveram ao abrigo da história, longe dos horrores e da tragédia da guerra. 
A autora foi capaz de reconstruir habilmente essa trágica era crucial com a ajuda de cartas, discursos e declarações de época, nas quais nem mesmo a diplomacia do Vaticano, na pessoa de Pio XII, foi capaz de resistir: opor-se às barbáries nazistas. A memória individual e a memória coletiva se sobrepõem (elemento característico das narrativas de Rosetta Loy), revelando os nós de um dilema histórico e moral. 
David Bidussa definiu-o como um pequeno grande livro cidadão, Cesare Segre e Furio Colombo também expressaram muito entusiasmo em relação a este romance, definindo-o, respectivamente, como sendo, não um ato de acusação, mas um exame admirável de consciência”, e “um livrinho inédito, escrito com aparente simplicidade”.

La cioccolata da Hanselmann

É o segundo romance escrito por Rosetta Loy e baseado no tema da perseguição aos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. A história, na verdade, se passa durante os anos 30 e gira em torno das aventuras de um jovem cientista judeu, cujas duas meias-irmãs, Isabella e Margot, estão apaixonadas. Uma história de amor que se passa tendo como pano de fundo um refúgio tranquilo na Suíça, onde a tragédia dos horrores da guerra é mais uma vez retratada, desta vez olhando também para a tragédia da perseguição racial. O livro foi publicado em 1997 pelas edições Rizzoli. 
 
Crédito: Link: https://pt.frwiki.wiki/wiki/Rosetta_Loy
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terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

UMA CARTA DE TIRADENTES


Por OSWALDO H. CASTELLO BRANCO
 
Mapa com Palmira ¹ em destaque, cedido por Arquivo Público Mineiro

 
OS DRAMAS DA ZONA DA MANTIQUEIRA 
 
Do Livro do Tombo, da Paróquia de São Miguel e Almas recolhemos o seguinte registro: “Em 1783, ao tempo do Governador Dom Rodrigo de Menezes, o povoado de João Gomes e as circunvizinhanças foram infestados por quadrilhas de salteadores, que não só atentavam contra os viandantes, arrancando-lhes o dinheiro e outros valores, mas também a própria vida. O coronel José Ayres Gomes, o inconfidente de João Gomes, com o seu irmão João Ayres, coadjuvados pelo alferes Joaquim José da Silva Xavier, conseguiram desbaratar os bandoleiros, após muitas lutas; há muitas lendas e alguns documentos.
 
Richard Francis Burton, em seu livro Viagens ao Planalto do Brasil, em 1868, registrou a respeito dos assaltantes da zona da Mantiqueira, o seguinte (transcrito do livro A Igreja em Barbacena, do historiador Nestor Massena, à p. 85): 
A palavra Mantiqueira também escrita e pronunciada Mantiquira ainda não foi interpretada. É geralmente traduzida como ladroeira; supõe-se que seja uma gíria local. Alguns derivam-na de manta, capa de lã, e, em sentido figurado, ardil e trapaça. No início da primeira metade do século corrente, era um nome terrível como ainda são os de Apenino e Abruzos. Os antigos viajantes estão cheios de lendas sobre os seus bandidos e os tropeiros ainda tremem ao ouvir as narrações em torno do fogo do acampamento. Os bandidos costumavam laçar as suas vítimas e atirar os cadáveres devidamente despojados dos diamantes e da areia aurífera, nos mais fundos desfiladeiros e barrancos. 
Diz uma tradição que um desses cemitérios foi revelado por uma árvore de crescimento muito rápido e que ostentava um cetim como se fora um fruto. O guarda asseverou-se que, quando se construiu a nova estrada, encontraram-se tesouros em vários lugares. As maltas mais famosas nos últimos anos eram chefiadas por um célebre "Chefe Guimarães", português 'altamente respeitável' de Barbacena. Mais ou menos em 1825, ele e seu amigo íntimo, o cigano Pedro Espanhol morreram na cadeia. Outro personagem na tragédia foi o padre Joaquim Arruda, homem rico e bem relacionado nesta parte da província, Fidus Achates ², que estava sempre ao lado deste Fra Diavolo ³, um certo Joaquim Alves Saião Beiju, geralmente chamado Beiju (beiju é um bolo feito de farinha de mandioca). 
O reverendo Arruda (Ruta graveolens ) acabou mal, em 1831, após cerca de sete anos de próspera vilania. Auxiliado pelos seus ciganos, fugiu da prisão, escondendo-se numa caverna perto de São José do Paraíba e foi morto a bala pelo destacamento que o perseguia. 
A Mantiqueira está agora despojada dos seus terrores e os seus píncaros de azul nitente são lindos de se apreciar.
 
Conceição Jardim, outra cronista da vida barbacenense, em seu livro Barbacena (1941) também registra a ocorrência ao longo do Caminho Novo, nesta região. Transcrevemos das páginas 18 e 19: 
Nesta zona, as façanhas por demais trágicas da célebre quadrilha Serra da Mantiqueira infestavam o Caminho Novo no alto da serra, tornando-o realmente perigoso e, por isso, um tanto abandonado. Foi o Coronel José Ayres Gomes encarregado pelo Governador da Capitania, Dom Rodrigo José de Menezes, de descobrir, perseguir e prender os terríveis salteadores que inspiravam romances capazes de rivalizar com os dos filmes americanos dos nossos dias. 
Neste momento surge a figura simpática do Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, que foi o auxiliar de José Ayres Gomes no arriscado empreendimento. 
Conseguiram juntos, depois de várias diligências e de numerosas batidas pelas matas, que eram naquele tempo espessas e, portanto, ótimos esconderijos, descobrir corpos de vítimas e também prender vários celerados e cúmplices que foram enviados debaixo de segura escolta para Vila Rica, onde receberam o devido castigo.
 
A ocorrência foi por demais grave e resultou na criação de uma Companhia de ordenanças. Não nos furtamos de arrolar mais um brilhante testemunho, o da intelectual Cordélia Andrés, em belíssimo artigo, intitulado "Mantiqueira", publicado na imprensa de Juiz de Fora: 
A Mantiqueira foi o palco das mais variadas aventuras. Quem conhece a história sabe que de todas a que mais se tornou lendária foi a da quadrilha da Mantiqueira, descoberta em 1783, em tempo de Dom Rodrigo de Menezes. 
É um trágico, longo e bem documentado episódio, que felizmente depois de muitas lutas acabou por se extinguir. 
A Mantiqueira foi passagem que se usou para busca do ouro... Quanta peleja, quanto sofrimento... mas também quanta riqueza por esta via! 
Mas o que mais me enternece é ter sido ela o último caminho transposto pelos Inconfidentes.
 
UMA CARTA DE TIRADENTES 
 
Recolhemos do Estado de Minas, edição de 21/04/1947, na seção “Velhas Páginas Mineiras”, a seguinte carta de Tiradentes, escrita da Mantiqueira, sobre os assaltos que desbaratou: 
 
“Ilmo. Exmo. Sr. 
Com toda a submissão e respeito, vou pôr na presença de V. Excia. que, indo na diligência da fatura do caminho, tive notícia de que acharam uns boiadeiros três corpos no alto da Mantiqueira, e indo eu logo averiguar desse acontecimento, achei o coronel José Ayres Gomes com doze pedestres que andavam à procura do corpo de José Antônio de Andrade, que certamente com fervor buscava por V. Excia. o encarregar dessa diligência; e me disse o dito Ayres que dera a V. Excia. parte do exame que fez dos ditos corpos; e ajuntando-me eu com o dito Tenente Coronel andamos a bater matos e achamos mais uma sepultura no mesmo córrego onde se achavam os outros, da outra parte da estrada; e desenterramos os corpos e achamos um negro e um cão e o corpo do dito José Antônio Andrade; o qual pondero que por permissão divina com o seu corpo inteiro, sem mais lesão nenhuma que uma cicatriz de uma facada no peito e na testa o buraco de um perdigoto com seis bagos de chumbo; vestindo uma casaca azul forrada de encarnado, que vestia salpicos com cercadura e calção de ganga; e um maço de papéis já podres que não se divisa letra alguma; mas o corpo do dito se conhecia tão perfeitamente, como se fosse morto dentro de dois dias; o qual trouxemos, mais um negro se deu sepultura no dia dezenove. Januário Vaz que tinha assistido por confissão do mesmo a doze mortes; os quais estão enterrados em vários sítios na estrada desde o alto da Mantiqueira até os pinheiros e diz o dito que ele e os companheiros andam nestes insultos há quatro anos, e que ainda outra quadrilha mas que ele não sabe quem são; e assim mostra ser, porque na averiguação que fizemos achamos um celim muito velho que se pondera aí estar há mais de dois anos e de outros trastes que achamos em vários sítios, por dentro do mato como foi o celim d'El Rei que remeto; mais duas selas e duas bestas mortas; e não demos com as sepulturas por serem já antigas. 
Também confessa o cabra que há pouco tempo matou um homem gordo e dois negros que tiraram duas canastras e acharam bastante cabedal; e por pesar muito carregaram com a besta para o campo José Galvão e Joaquim de Oliveira; ponderamos ser um cambaio de Goiás que se sumiu e dizem que trazia mais de quarenta mil cruzados. Estes acontecimentos, Senhor, têm atemorizado tanto os tropeiros e viandantes do caminho, que fazem parar na Borda do Campo  e no Registro até terem número bastante para seguirem; o mesmo fazem os que vêm debaixo da Mantiqueira com medo de ser roubados e com temor daquele passo. E para desterrar o povo do horror daqueles sítios providenciei com o Tenente Coronel José Ayres Gomes quatro soldados auxiliares para andarem a um pago da patrulha, girando todos os dias determinadamente desde o alto da serra até sair do campo para assim facilitar aos comerciantes o seu giro até V. Excia. providenciar como for o mais útil. Também mandei logo uma parada do alferes Simão da Silva Pereira, com a lista dos delinquentes, para este fazer expedir ordens para todos os registros de guarda para os prender no caso deles por lá passarem, tudo por ordem de V. Excia. Também fiz logo marchar o furriel Domingos Antônio com dois soldados em direitura da Picada de Goiás, a fim de prender o dito Galvão e o Joaquim de Oliveira que são os capatazes para ver se surpreendemos algum dinheiro da verba. No entanto, os mesmos auxiliares que andam no alto da Mantiqueira com o soldado vieram fazendo a obrigação da busca; e eu tirei o furriel da guarda e os soldados para os acompanharem pela necessidade exposta e ser esta diligência do empenho. Quanto aos outros, o mesmo Tenente Coronel, com ardor e zelo, tem dado as providências para se pegarem; e para se reparar esses roubos e mortes acho que só pondo um destacamento no alto da Serra da Mantiqueira com dois soldados e um cabo e quatro pedestres para girarem do alto ao campo. É o que de presente tenho para pôr na presença de V. Excia., cuja pessoa aos céus solicito guarde por muitos anos para mandar em quem é de V. Excia. súdito mais obsequioso, venerador e criado. 
 
Joaquim José da Silva Xavier
Borda do Campo, 19 de abril de 1783”
 
 
A CONDENAÇÃO DE TIRADENTES  
 
Comandante do destacamento de tropas que guarneciam o Caminho Novo, o alferes Joaquim José da Silva Xavier tinha por missão impedir a ação dos malfeitores que infestavam a Serra da Mantiqueira. 
Em vista disso, Tiradentes frequentemente pernoitava na estalagem da Varginha do Lourenço, localizada a pouca distância de Ouro Branco. Esta estalagem se constituiu num importante centro de conspiração do movimento liderado por Tiradentes. Os acórdãos e a sentença de condenação de Tiradentes determinaram que neste local fosse colocado em um poste um dos quartos do Alferes. 
De fato, a escolta mandada pelo Vice-Rei foi deixando no Sítio das Cebolas  próximo à Vila da Paraíba, na Capitania do Rio de Janeiro  o primeiro quarto, e nas duas maiores povoações do Caminho Novo, Arraial da Igreja Nova (Barbacena) e Carijós (Lafaiete) os outros dois quartos, enquanto que o último era fincado no Sítio da Varginha, junto à estalagem. 
 
CRIAÇÃO DE UMA COMPANHIA DE ORDENANÇAS 
 
A carta de Tiradentes, datada de 1783, teve grande repercussão, tanto assim que o governo da Capitania, em 1798, também atendendo representação de autoridades de Barbacena, determinou a criação de uma Companhia de Ordenanças, conforme memorial e documento que, pela primeira vez, é trazido a público, mediante cópia tirada de próprio punho, pelo saudoso e memorável historiador, Desembargador Múcio de Abreu e Lima, que nos confiou um magnífico documento que é do teor seguinte: 
 
CRIAÇÃO DE UMA COMPANHIA DE ORDENANÇAS NO 
DISTRITO DA CAPELA DE SÃO MIGUEL E ALMAS DO 
CAMINHO NOVO DO RIO DE JANEIRO 
 
Bernardo José de Lorena, do Conselho de sua Majestade Governador e Capitão General da Companhia da Capitania de Minas Gerais. Faço saber aos que esta minha carta pertence virem que, atendendo à representação que me foi feita pelo Capitão Mor e Oficiais da Câmara da Vila de Barbacena, comarca do Rio das Mortes, da necessidade que havia de se criar e estabelecer uma Companhia de Ordenanças em o Distrito da Capela de São Miguel e Almas do caminho do Rio de Janeiro, e tendo também consideração a que na pessoa de Gonçalo Gomes Martins concorrem os requisitos necessários para exercer o posto de Capitão da referida Companhia, por ser um dos propostos na forma das ordens pelos ditos Oficiais da Câmara, com assistência do Capitão Mor das ordenanças dela, Manoel de Sá Fortes Bustamante Nogueira, esperando dele que em tudo o de que for encarregado do Real Serviço se haverem com pronta satisfação das suas obrigações e pela faculdade de que Sua Majestade me permite no cap. 19 do reg. dos Governadores para o provimento dos semelhantes postos: 
Hei por bem criar, estabelecer a sobredita nova Companhia de Ordenanças do Distrito acima mencionado, provendo como com efeito provo no Posto do Capitão delas o dito Gonçalo Gomes Martins, a qual Companhia se compõe de sessenta soldados com seus competentes oficiais, sendo obrigado a requerer a sua Majestade pelo seu Conselho Ultra Marinho confirmação do mesmo posto dentro em dois anos, que correrão desta em diante, pena de ficar sem efeito e se lhe dar baixa assim como a residir sempre no Distrito desta Companhia debaixo da mesma pena, tudo debaixo das reais Ordens, e exercerá o dito posto enquanto se houver por bem e a sua Senhoria não mandar o contrário com o qual não se receberá soldo algum, mas gozará de todas as honras, graças, privilégio, liberdade e isenções e franqueza que em razão dela lhe pertencem. 
Pelo que o Capitão Mor das Ordenanças do termo da dita Vila lhe dará posse e livramento aos Santos Evangelhos na forma da legislação e ordens e o conheça por Capitão da mencionada Companhia do Distrito, como o trate, honre e estime e da mesma forma os Oficiais e soldados dela que em tudo lhe obedecerão e cumprirão suas ordens de palavras prontamente como devem e são obrigados. E por firmeza de tudo lhe mandei a presente por mim assinada e selada com os selos de minhas armas que se cumprirá inteiramente como nela se contém, registrando nos livros da Secretaria deste governo, no da matrícula geral, Câmara respectiva e onde mais tocar. José Vicente Pinto a fez. Dada e passada em Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto, a 27 de abril do ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1798. Pedro de Araújo Azevedo, secretário do Governo a fiz. Bernardo José de Lorena.”
 
 (Códice S.G. 283, fls. 60 verso. Arquivo Público Mineiro) 
 
Fonte: CASTELLO BRANCO, Oswaldo Henrique: Uma cidade à beira do Caminho Novo, pp. 30-35.
 
 
II. NOTAS EXPLICATIVAS por Francisco José dos Santos Braga

¹ De Apontamentos para o Dicionário Geopolítico do Brasil de 1884, por Alfredo Moreira Pinto:
PALMYRA. Palmyra está situada na encosta do morro do Cruzeiro, cercada de morros, banhada pelo ribeirão das Posses, afluente do Rio Piau, atravessada pela Estrada de Ferro Central do Brasil, a 175 km distante da Capital Federal, 55 de Barbacena, 40 de Juiz de Fora, 820m de altura do nível do mar.” (Idem, ibidem, 68)

Leis que dispuseram no passado os limites e nomes geográficos da localidade:
De simples distrito do município de Santo Antônio do Paraibuna (atual Juiz de Fora) foi, com o nome de Arraial de João Gomes, incorporada esta povoação no município de Barbacena pelo art. 01 § II da Lei Provincial nº 665, de 27 de abril de 1854, desmembrada da freguesia de Chapéu D'Uvas e incorporada à cidade de Barbacena, pelo art. 5º § II da lei 1.265, de 19 de dezembro de 1865; elevada à categoria de Paróquia (de São Miguel e Almas de João Gomes), pela lei nº 1.458, de 31 de dezembro de 1867, à de Vila com o nome de Palmyra, pelo Decreto nº 3.712, de 27 de julho de 1889 e à de cidade pelo de nº 25, de 4 de março de 1880. 
Foi instalado o município a 15 de fevereiro de 1890. 
Decreto nº 10.447, de 30 de julho de 1932 (do venerando estadista Olegário Maciel, em homenagem ao imortal brasileiro Alberto Santos Dumont, nascido no seu território em 20 de julho de 1873), o município de Palmyra passou a se denominar Santos Dumont.” (Idem, ibidem, 70)
 
²  Locução latina que significa "o fiel Acates", fiel amigo de Eneias, amigo para todas as horas. Fonte: Virgílio, Eneida, VI, 158.
 
³  "Fra Diavolo" é um termo italiano que significa "irmão diabo". Também é o título de uma ópera cômica famosa do compositor francês Auber, a partir de um libreto de seu habitual colaborador, Eugène Scribe. Ela se baseia na vida do líder de guerrilha e militar napolitano Michele Pezza, ativo na Itália meridional no período de 1801 a 1810, a quem apelidavam "Fra Diavolo".
 
  A espécie Ruta graveolens L. é uma planta de origem francesa, pertencente à família das Rutáceas, conhecida popularmente como arruda
 
A fazenda da Borda do Campo é uma propriedade em cujas terras surgiu a Freguesia de Nossa Senhora da Piedade, no atual município de Barbacena. Pela Lei Provincial nº 2.799, de 30/10/1881, foi criado o distrito de Borda do Campo e anexado ao município de Barbacena.
Em 1749, a Coroa Portuguesa concedeu a carta de sesmaria da Fazenda Borda do Campo para José Ayres Gomes. A fazenda ainda mantém a capelinha erguida para Nossa Senhora da Piedade em estilo típico das construções bandeirantes além da casa grande e sua senzala, já do século XVIII. José Ayres Gomes foi um dos mais ricos dos Inconfidentes que, por conta da participação na conspiração contra a Coroa Portuguesa, foi deportado para Moçambique, onde morreu esquecido. 
Pela Borda do Campo, circularam vários dos Inconfidentes, a exemplo de Joaquim José da Silva Xavier. 
Mais tarde, a fazenda recebeu outros convidados ilustres como Dom Pedro II e o Patriarca da Independência José Bonifácio de Andrada.
Hoje é propriedade da família dos Andrada, integrando o município de Antônio Carlos.

III. AGRADECIMENTO

 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste texto.
 
 
IV. BIBLIOGRAFIA

 
CASTELLO BRANCO, Oswaldo Henrique: Uma cidade à beira do Caminho Novo, Petrópolis: Editora Vozes, 1988, 296 p.

FONSECA, Luiz Mauro Andrade: O arraial e o distrito de João Gomes (História Antiga de Santos Dumont-Minas Gerais), Barbacena: Centro Gráfico e Editora, 2013, 269 p.
 
História da Paróquia e Matriz de São Miguel e Almas
Link: https://www.saomiguelsd.com/historia_da_paroquia.html  👈
 
IBGE: Histórico e Formação Adeministrativa de Barbacena
 

Colaborador: OSWALDO H. CASTELLO BRANCO


RESUMO AUTOBIOGRÁFICO PELO PRÓPRIO AUTOR DE "UMA CIDADE À BEIRA DO CAMINHO NOVO"
 
Crédito: Simone Moreira (foto de arquivo)
Nasci aqui mesmo, na terra natal de Santos Dumont, em 1906. 
São meus pais Pedro Athanagildo Castello Branco, velho ferroviário, como Agente da Estação local por muitos anos, e Emerenciana Angélica Castello Branco. Estudei no Ginásio Mineiro, na Serra, em Belo Horizonte. 
Comecei a trabalhar na Companhia Gráfica Palmira e no Grupo Escolar "Vieira Marques" como professor da Escola Noturna. Em 1927 ingressei na direção do jornal Palmira (1927) que depois de 1930 passou a chamar-se O Sol. Em 1929 fui designado Diretor da Secretaria da Prefeitura. Redigi o memorial do Prefeito Jacques Pansardi ao Presidente Olegário Maciel, sugerindo a denominação de Santos Dumont para o então município de Palmira, levado em mãos ao Presidente pelo Dr. José Vieira Marques, do que resultou o Decreto 10.447, de 30 de outubro de 1932. Ingressei na Secretaria da Fazenda, como Coletor Estadual de Santos Dumont em 1938, função que exerci até 1963, quando fui aposentado. 
Fui admitido como funcionário da Companhia Brasileira Carbureto de Cálcio em 1963, tendo trabalhado nesta grande empresa até 1978. Em companhia dos saudosos Antônio Fagundes Netto e Dr. Juvenal Pinto, estive, no segundo dia após a morte de Santos Dumont, pela primeira vez, na Casa de Cabangu, onde recolhi precioso documentário deixado por Santos Dumont, com o qual foi possível organizar o atual precioso Museu da Casa Natal de Santos Dumont. (N.B.: Material referente ao herói Santos Dumont está no seu livro nas pp. 207-263)
 
Casa em que nasceu Santos Dumont, em péssimo estado de conservação, visitada por Oswaldo H. Castello Branco, quando secretário do prefeito Jacques Gabriel Pansardi. "Quando (meu pai) lá chegou, estava tudo revirado. Pessoas já tinham invadido", afirma Tomás Castello Branco, ex-presidente da Fundação Casa de Cabangu. - Crédito:  Simone Moreira / Link:  https://culturadoria.com.br/150-anos-de-alberto-santos-dumont-um-inventor-para-a-humanidade/  👈


Museu Cabangu, em Santos Dumont-MG. Em 1973, o Museu Casa de Cabangu foi inaugurado na casa da fazenda onde Santos Dumont nasceu. "Papai pedia ajuda às pessoas para manter aquela casa em pé. Ele chegou a tirar telhas de nossa moradia para substituir as que tinham sido quebradas por uma árvore la na Fazenda de Santos Dumont", lembra Tomás Castello Branco. - Crédito: Link: http://turismo.santosdumont.mg.gov.br/museu-cabangu   👈

 
II. BIBLIOGRAFIA
 
 
CASTELLO BRANCO, Oswaldo Henrique: Uma cidade à beira do Caminho Novo, Petrópolis: Editora Vozes, 1988,  p. 7.
 
MOREIRA, Simone: 150 anos de Alberto Santos Dumont, um inventor para a humanidade, Santos Dumont (MG): Projeto Culturadoria em rede 

sábado, 10 de fevereiro de 2024

DUZENTOS ANOS DE UM SONHO DE SÃO JOÃO BOSCO


Por João Bosco de Castro Teixeira
 
 
O sonho dos 9 anos - Crédito: Link: http://denisdutramarques.blogspot.com/p/os-sonhos-de-dom-bosco.html  👈
 
O Fundador da Congregação Salesiana, São João Bosco, foi uma pessoa dotada de características peculiares. Uma delas, ter encontrado nos sonhos respostas, caminhos e soluções para as muitas peripécias que a vida se lhe apresentava. 
 
Certa época da vida, quando já sacerdote, relatou a seus colaboradores um sonho que tivera em sua adolescência. Um sonho cujos conteúdos tornaram-se emblemáticos para a missão que,  entendia , lhe estava reservada. “Um sonho que me ficou profundamente impresso na mente por toda a vida”. 
 
Singela e resumidamente o que ele narrou para seus colaboradores foi o seguinte:
Vi-me num prado onde multidão de meninos se divertia. Diante das blasfêmias que proferiam, pus-me no meio deles, agredindo-os com socos. Nisso, vi um homem venerando que, chamando-me pelo nome, me disse: “Não é com pancadas, mas com a mansidão e a caridade que deverás ganhar esses teus amigos”. Dirigi-me àquele senhor: quem sois para me ordenar coisas impossíveis, dado que sou menino pobre e ignorante? O senhor falou-me: “Eu te darei a mestra, sob cuja orientação poderás tornar-te sábio, orientação sem a qual toda sabedoria se converte em estultice”. Apareceu-me, em seguida, uma senhora de aspecto majestoso que me tomou pela mão. No lugar dos meninos que haviam fugido, apareceram cabritos, cães, gatos, ursos e outros animais. A senhora falou-me: “Eis o teu campo onde deves trabalhar. Torna-te humilde, forte e robusto. E o que agora vês acontecer a esses animais, deves fazê-lo aos meus filhos”. Os animais ferozes haviam se transformado em mansos cordeiros. Comecei a chorar copiosamente quando, então, a senhora descansou a mão em minha cabeça dizendo: A seu tempo tudo compreenderás”. 
 
Independentemente do que sejam os sonhos, das inúmeras indagações possíveis sobre esse “oráculo da noite”, o fato é que para São João Bosco o sonho, tido na adolescência, tornou-se referência obrigatória para sua atividade pedagógica no meio da juventude. 
 
Dom Bosco entendeu qual seria sua missão. Entendeu também quais princípios deveriam orientar seu trabalho. Antes de qualquer outra coisa, intuiu que a essência do processo educativo se dá com a presença/relação. Sem esta, nada acontece, pois só a “relação” educa. Uma relação racional, sem espaço, por exemplo, para o castigo. Uma relação carinhosa, em que o educando sinta que é amado. E uma relação espiritual, da qual não se elimina a transcendência do existir. 
 
Os Salesianos estão comemorando os “duzentos anos” desse sonho, porque acreditam que, ainda hoje, mesmo com os tempos mudados, a presença/relação do educador ao lado do educando é, no processo educativo, não só fator insubstituível como constitui seu fator chave de sucesso. E os seguidores de Dom Bosco sabem que a salesianidade não se dá sem a presença entre os jovens. 
 
Dom Bosco entendeu, pois, o que dele esperava a Divina Providência. Mais ainda: levou toda uma vida dedicada aos jovens segundo os princípios educativos colhidos daquele sonho. Um sonho luminar que inspirou o assim chamado “sistema preventivo na educação da juventude”. Preventivo no sentido de o educador ser capaz, com a presença/relação, de se antecipar aos desejos, às aspirações, às necessidades dos educandos. Do meu ponto de vista, uma maneira de ser educador com absoluta validade para nossos dias tão conturbados. 
 
Duzentos anos de um SONHO que apontou para São João Bosco, e seus seguidores, a maneira de ser graça para os jovens em des-graça.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

OS ÚLTIMOS DEZ MESES DE FREI METELO GEEVE o.f.m. (11/07/1908-18/05/1978)


Por freis Jordano Noordermeer, Seráfico Schluter e Helano van Kloppen o.f.m.
 

Esta necrologia, originalmente publicada pela Revista da Província Franciscana de Santa Cruz no Brasil, Ano XLIII, nº 2, 1978, faz parte do acervo do saudoso Gil Amaral Campos, ex-aluno do Ginásio Santo Antônio de São João del-Rei, que me foi cedido por seu filho, Bruno Braga Campos, residente em São Paulo-SP.


 

FREI METELO (Anthony Geeve) nasceu em Rotterdam, que é o porto mais movimentado da Europa: daí o "perpetuum mobile" deste rotterdamense. Em 1924 ele foi ser nosso colega no seminário S. Francisco Solano já em seu quarto ano de formação de futuros missionários franciscanos na célebre Sittard. Quantos desses estudantes vieram para o Brasil! E muitos deles ainda bem vivos. 
"Toon" (Toninho) não era craque de futebol como Celestino, Rafael, Aristides ou Sam (=Luiz Carlos) do time campeão invicto, nem tão musical quanto eles (menos o Raf), mas no palco era dos melhores, tanto para representar quanto para confeccionar e pintar bastidores, quadros e roupas. Era bom estudante, piedoso, alegre, animado e assim não houve problemas para ser aceito para o noviciado em Hoogeruts a 7-9-1930. 
Depois dos dois anos de Filosofia, primeiro ano de Teologia, ordens menores e a profissão solene, veio ele com diversos colegas para Divinópolis a 29 de novembro de 1934. Depois do subdiaconato (27-10-1935) e do diaconato (11-6-1936), recebeu ele o sacerdócio das mãos de Dom Inocêncio Engelke o.f.m. a 25-10-1936. 
No fim de 1937 completou seus estudos e logo em 1938 foi para Taquari como assistente. Em 1939 veio para Carlos Prates: coadjutor de frei Zacarias. Em dezembro de 1940 voltou para Taquari, agora como ecônomo do seminário. Em 1941 foi nomeado vigário de Cavalcante com sua matriz em prolongada construção; todo o movimento paroquial ainda era na cripta. Já em 1942 é vigário de Divinópolis. Além de outros merecimentos como Bom Pastor e animador do movimento religioso com suas boas irmandades, foi ele o fundador de "A Semana", agora já em seu 36º ano de existência. 
Depois dessa peregrinação como "pau de toda obra", chegou Metelo finalmente em 1945 ao Colégio "Santo Antônio", onde com pequena interrupção em Pará de Minas, passou o resto de sua vida como padre espiritual, professor e pastor volante, e desde 1966, por cima de tudo isso, como Assistente Eclesiástico do Quartel. 
Sua primeira função em São João era Padre Espiritual, já apreciado pelos alunos e colegas como pregador do retiro dos internos em 1944, enquanto Helano pregava para os externos. Além de aulas de Religião, foi ensinar espanhol, Química e História Natural. Por sua capacidade e vontade de distribuir os seus vastos e profundos conhecimentos e dons artísticos (autodidata!), disse uma vez um confrade: "Este homem devia ter vivido no século XV: teria sido um rival de Leonardo da Vinci!" 
Sua paixão era a História Natural. Basta ver o material que ele ajuntou: livros, material didático, etc., em grande parte ganhos de seus parentes. Era professor cem porcento. Sabia entusiasmar seus alunos pelo método áudio-visual. Vejam seus grandes cartazes e quadros da Biologia, etc.; obras de mestre de desenho e pintura, com tanta paciência, executando tudo até nas menores particularidades. Vejam os seus gráficos e esquemas de Química... perfeição de monge artista medieval. 
Há muito mais: suas coleções de Química e Biologia que sem falta usava no fim de cada mês para repassar a matéria. Seus selos... para as missões: uma coleção enorme. Ele mesmo, marceneiro, fazia as gavetinhas para conservá-los cuidadosamente. Verdade é que ultimamente não tinha mais coragem para olhar tudo isso. Isso se dava também na correção das provas bimensais. 
 
Quadro de Formatura dos formandos de 1951- Paraninfo: Frei Metelo Geeve (na primeira fila superior, última foto à direita) - Legenda: "NA SINFONIA DA VIDA"- Crédito: Luiz Antônio Ferreira (in memoriam)

 
Como bom marceneiro, Metelo compunha modelos de provas que como lembranças eram oferecidos pelo Colégio aos concluintes de cursos. Ele mesmo ajudava os marceneiros e lhes dava orientação técnica, reservando para sua própria responsabilidade os detalhes mais complicados. Nisso ele provava que de fato sabia manejar as ferramentas como profissional competente. Qualquer modelo ou lembrança em madeira tinha seu significado simbólico. Diversas plantas de igrejas e ainda de um convento têm a assinatura dele. Em 1953, quando frei Osório, em Visconde do Rio Branco, tinha de remodelar em convento uma construção, iniciada como Casa de Retiros pelos Vicentinos, veio frei Metelo para dar e desenhar seus palpites e cálculos para o que hoje é o convento de Santo Antônio. Ele desenhava as plantas que eram examinadas por algum arquiteto para sair depois conforme as exigências oficiais com os exatos cálculos de concreto. 
Sua vida de franciscano-sacerdote-mestre era marcada por outra trilogia de idealismo-abnegação-caráter. Esse franciscano-sacerdote-mestre foi perseverante, com todas as consequências, nessa caracterização de sua vida. A essas três normas de sua vida  idealismo-abnegação-caráter  deve ser atribuído o fato de que muitas vezes parecia um homem mal-compreendido. Mas persistiu... nada para si, mas sempre solícito e prestimoso para os outros, mesmo que estivesse cansado ou indisposto. Não adiantava insistir nele para cuidar de si mesmo. Às vezes ficava até nervoso ou perdia a paciência quando a gente indagava pela sua saúde. Mais cedo, porém, ou mais tarde teria de vir a explicação que ele mesmo deu: "Tenho calado e escondido muita coisa!". Ele se esgotava totalmente para os outros e nem todo mundo podia compreender isso, o que às vezes podia causar equívocos, ao menos quando a gente percebia que ele mesmo estava mal. 
É bem verdade o que nas exéquias dizia um orador ex-aluno: “Frei Metelo não viveu setenta anos, mas cento e quarenta”. Ele serviu-se de sua vida para os outros, todas as horas do dia e até uma ou duas horas da madrugada, pelo que os confrades muitas vezes meneavam a cabeça. Não queria saber de jeito nenhum de que às vezes acordava pelas duas horas da madrugada, sentado na sua cadeira; nem que às vezes fazia uma sonequinha depois do almoço. Nos últimos anos já não escondia que alguma vez dormia a sesta. Pudera! 
E como era mesmo o seu jeito de trabalhar? No tempo que não tínhamos ainda um carro, corria ele para os seus doentes de bicicleta com uma enorme penca de chaves tinindo que fazia gosto. Visitava muita gente: pessoas desorientadas, casais, cujo casamento ameaçava naufragar, agonizantes na derradeira hora; atendia confissões e consolava aqui e acolá. 
Mais tarde, quando já tínhamos uma kombi, fazia ele tudo motorizado. Mas então corria tanto que os guardas bem o queriam obrigar a parar e intimidar a diminuir a marcha, mas chamar atenção de um frade...?! Parece um rapaz novo...! De kombi fazia Metelo também muitas compras para o convento e resolvia muitos outros problemas, dando jeito em horas de aperto. Ele era conhecido na cidade toda... "Aquele frei de quepe". Bem assentava nele seu apelido: “rápido atrasado”. 
Além de tudo isso ainda vinha o seu trabalho no quartel... de graça! Celebrar missas todos os domingos e dias santos; dar conferências sobre assuntos, previamente indicados pelas autoridades castrenses, todas as semanas; e sempre dar assistência aos soldados em seus problemas; e ainda tomar parte em todos os atos oficiais e conferências especiais para os oficiais. Quem na cidade não conhecia o modo garboso do Capelão militar Metelo fazer continência? Ultimamente dava assistência também aos escoteiros. 
Nas férias do Colégio, em vez de descansar, ia pregar retiros e missões. Assim, por exemplo, aconteceu em 1952, quando ele como mestre e Acário, Conrado, Frederico e Seráfico pregaram missões em Cavalcante de 2 a 13 de julho. O trabalho foi muito: além das pregações e conferências, catecismo, confissões e missas, foi feita visita domiciliar em todas as casas de todos os bairros: umas 2.000 visitas, 95 legitimações, 1.400 confissões e umas 2.200 comunhões (S.C. 1952, p. 155 ss.). E assim fez em muitos outros lugares. 
Durante muitos anos, como frei Jordano nos informa, “ele tomou conta dos alunos doentes e da farmácia. E para os confrades doentes, particularmente frei Norberto e Adolfo, mostrou ele incansável. Aliás, incansável mostrava-se sempre: pronto a qualquer hora, para qualquer pessoa. O bom enfermeiro, porém, estava ficando ele mesmo bem doente."
Nos últimos dez anos (aqui fala frei Seráfico) “a gente percebia que ele não dava mais conta de muita coisa. Espiritualmente ele continuava cem porcento, aliás assim continuou até o fim. Mas o cansaço ele não mais o conseguia controlar como antes, com café forte para poder ficar acordado mais tempo. Faz uns anos, foi em 1974, que ele foi internado num hospital por uns quinze dias: falta de oxigênio no cérebro, como ele mesmo diagnosticava. Do Dr. Diomedes conseguimos que ele, em vez de uma semana só, ficasse internado ao menos uns quinze dias para dar-lhe ao menos um pouco de repouso. Depois de 15 dias, porém, tinha de ganhar alta sem falta, senão ficaria desconfiado. Depois ainda ficou em casa uma semana sem dar aula. 
Daí para cá ele começou a dar motivos de nos preocupar. Quando nós ou gente da cidade lhe perguntávamos se não se sentia bem ou se o poderíamos ajudar em alguma coisa, era sua reação nada agradável para nós ou para as pessoas prestativas da cidade. Às vezes os próprios alunos vinham chamar-me durante a aula, porque frei Metelo estava debruçado com a cabeça sobre a mesa. Isso também se deu diversas vezes durante sua missa. Mas ninguém tinha coragem de tomar providências. A causa era, como Metelo explicava, que tomara algum medicamento um pouco atrasado e iniciara logo seu trabalho em vez de tirar ao menos uma meia hora de repouso. Que remédio...? contra o quê...? nunca o descobrimos.”
Em 1975, continua frei Seráfico, “proibi-o certa vez de ir ao Colégio e então ficou em casa uma semana. Até que, no ano passado, ele se viu obrigado a consultar um médico em B.H. por causa da sua garganta. Como fiquei sabendo depois (eu estava na Holanda) o médico lhe prescreveu um mês de repouso absoluto, mas aqui em casa ninguém soube disso e nem nada percebeu do tal repouso. Tudo corria normalmente. A Comunidade ficou sabendo só depois que frei Jordano e frei Orêncio tiveram de levá-lo a B.H., porque ele não mais conseguia engolir. Então recebi na Holanda a notícia certa, como a recebeu também a família dele; e então sua irmã Cornélia veio comigo ao Brasil. ”
Sobre os últimos dez meses, escreve frei Jordano: “No primeiro semestre do ano passado  1977  podia-se perceber nele uma profundo cansaço, mas não diminuía sua atividade. Parecia que ele pensava: Aproveitemos os últimos anos para fazer a maior caridade possível e então posso entregar-me no campo de batalha. 
Mas não era possível continuar assim, nem a pregar nem a sair para fora. De acordo com a opinião do médico, seria melhor alimentar-se por meio de uma sonda direta ao estômago, visto que o esôfago estava paralisado. Submeteu-se a essa intervenção cirúrgica. E, sem queixar-se aos confrades, sem mostrar-se impaciente por causa do estado dele, sem mostrar-se invejoso, viveu uns dez meses assim: descendo  na casa onde moram os freis em São João del-Rei  do segundo andar até a sala de recreio, umas seis vezes por dia para alimentar-se daquela maneira, tão sem sabor. Fez isso até segunda-feira, 15 de maio. Nestes dez meses ele se mostrou realmente um homem valente.”
Sobre esse mesmo período informa frei Seráfico: “Durante todos esses meses, D. Isaura o assistia pacientemente e lhe preparava a comida, que ela sabia variar tanto que Metelo não teve anemia. Ela tratava também da roupa dele. O marido dela, o sr. Nilton, era muito prestativo, sempre pronto para qualquer coisa: ambos incansáveis todo esse tempo, grandes amigos. Todos os domingos participavam da missa de frei Metelo. Só Deus pode recompensar o quanto eles fizeram para o nosso confrade. 
O moral de frei Metelo foi extraordinário, seu comportamento exemplar, corajoso, procurando continuar ativo e sempre otimista quanto ao futuro... "Quando acabar ao menos esta dor no meu braço, então..." Ele estava cheio de projetos e se mostrava muito grato por notícias do Colégio como também pelas visitas. Queria e conseguia também fazer muita coisa sozinho até fazer os curativos. Isso era muito bom, porque assim ficava bem disposto e animado. Mas essas dores de bursite (nevrite?) não paravam; resolveu-se então fazer aplicação de ondas curtas. Ele parou com isso uns dez dias antes de seu enlace, porque o resultado era nulo: agora concentrava-se sua esperança nas injeções.”
Ainda frei Seráfico: “Assim veio o dia 15 de maio, uma segunda-feira. De manhã, como ele contou a D. Isaura, sua enfermeira, ao tentar evacuar, forçara demais e lhe parecia ter arrebentado alguma coisa. Eu fiquei sabendo esse pormenor bem depois. À noite, depois do recreio, quando eu ia dormir, ele me chamou e contou que duas vezes, ao tossir, tinha saído sangue, mas que agora já estava tudo controlado, pois na terceira vez veio sangue coagulado. 
Por cautela telefonei ao médico, expliquei-lhe o caso; opinou ele que, se Metelo não tivesse febre, seria melhor fazer no dia seguinte uma radiografia; se estivesse com febre, ele veria imediatamente. Mas, como Metelo estivesse sem febre, foi possível esperar até o dia seguinte. Pelas 2h 30min me levantei para ver como ele estava passando. Metelo puxou seu braço direito para cima do cobertor, fazendo com seu dedão o sinal de tudo OK.
No dia 16, 3ª feira, fomos à Santa Casa para fazer a radiografia; mas, porque então estava com febre, o seguraram lá. Metelo não queria saber de um apartamento melhor, porque "Eu fico aqui um dia só... estou com saudades de minha cama". Nesse dia o visitei três vezes. 
No dia 17 voltei a visitá-lo. Ele estava muito cansado e exausto; de sua boca ainda saía sangue. Exames complicados decerto não aguentava mais. Diz frei Jordano que Seráfico ainda conversou com Metelo e este tentava falar alguma coisa que Seráfico não conseguiu compreender. Então Metelo, sorrindo francamente, desistiu de fazer-se entender, como que quisesse dizer: "Está bem, o que vale tudo isso agora?...
Pelas 20 horas (de novo frei Seráfico) “perguntei a ele o que pensava de receber o sacramento dos doentes no dia seguinte. Ele aceitou. Mas o médico, que vinha visitá-lo toda hora, falou com Metelo: "É melhor fazê-lo agora mesmo, não é, frei...?" Então chamei os colegas e ele recebeu a unção dos doentes. Metelo acompanhou as orações da cerimônia, o que se podia verificar nos lábios dele. No fim, ele agradeceu. O enfermeiro do quartel ficava sempre com ele.”
No dia 18 (quinta-feira), às 7h 15min, o sr. Nilton telefonou informando que Metelo estava em estado de coma. Saímos para lá na mesma hora. Quando chegamos, comecei imediatamente as orações dos agonizantes. Depois fui para casa buscar um pijama e o hábito dele. Custou-me achar a chave do guarda-roupa dele. Quando voltei à Santa Casa, frei Metelo acabava de entregar sua alma a Deus, às 9 horas, na presença de frei Fagundes, D. Isaura e sr. Nilton e mais umas senhoras amigas. Ninguém suspeitava que Metelo nos fosse deixar tão depressa. 
Naquela manhã, o P. Provincial estava saindo do provincialado para ir visitar o Metelo, quando veio um telefonema informando que Metelo estava em estado de coma. Então frei Diogo com frei José da Silva e outros confrades da Rua Pernambuco viajaram a São João, onde chegaram depois que Metelo acabara de morrer. No mesmo dia foram celebradas solenes exéquias, seguidas pelo enterro no cemitério de S. Francisco. 
Nessa hora via-se claramente como Metelo era pessoa querida em São João. Foi enorme o comparecimento do povo às exéquias: fora da igreja tinha ainda mais gente do que lá dentro: superlotada. Oito coroas foram colocadas no seu sepulcro. Provas dessa simpatia geral são os inúmeros pedidos de alguma lembrança dele... de preferência de seu hábito. 
A melhor lembrança de frei Metelo para nós todos podia ser a sua mensagem na Formatura do Colégio de 1951:
Ideal, renúncia, caráter na sinfonia da vida.

São João - Visconde do Rio Branco (MG), 5-6-1978

II. AGRADECIMENTO

 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste texto.