domingo, 27 de agosto de 2023

COLEÇÃO GUERRA JUNQUEIRO NO MNAA-MUSEU NACIONAL DE ARTE ANTIGA


Por Francisco José dos Santos Braga
 
A coleção Guerra Junqueiro no MNAA

 

CERIMÓNIA SOLENE EVOCATIVA: GUERRA JUNQUEIRO 
Evocação por Prof. Dr. Guilherme de Oliveira Martins 
 
A comissão, criada para comemorar o centenário da morte de Guerra Junqueiro, resolveu dar início a esta efemérida no exato dia do seu falecimento, a 7 de julho de 1923. Por resolução dessa comissão, com o apoio do MNAA (em parceria com o Panteão Nacional), decidiu-se que a primeira iniciativa teria lugar no auditório do museu evocando-se a figura polifacetada do poeta. Aliando-se a este evento, o MNAA decidiu produzir uma exposição dedicada à vertente colecionista do grande republicano. 
 
A COLEÇÃO GUERRA JUNQUEIRO NO MNAA (de 7 de julho a 22 de outubro/2023) 
 
Em homenagem a Guerra Junqueiro, neste ano em que comemoramos o centésimo aniversário do seu desaparecimento, mostramos uma parte significativa da coleção do poeta, que hoje faz parte do acervo do Museu Nacional de Arte Antiga
 
Abílio Manuel GUERRA JUNQUEIRO nasceu no ano de 1850, em Freixo de Espada à Cinta. Estudou na Universidade de Coimbra, primeiro Teologia, e depois, Direito. Foi político e tribuno proeminente, aventurando-se na diplomacia. Foi administrador agrícola. Mas deixou memória sobretudo pela atividade literária.
 
Casado com a vianense Filomena Augusta Neves, em 1880, empregou parte do «dote» no investimento em «coisas antigas»: datará dessa época o início da atividade colecionista. Junqueiro percorre o país e o estrangeiro angariando obras de arte. Compra, vende, troca, interessa-se, investiga, cria teorias, mas deleita-se principalmente com as antiguidades com que preencheu as várias casas que habitou, dividindo-as entre Viana do Castelo, Vila do Conde, Porto e Lisboa. É evidente o seu gosto por peças vernaculares, identitárias da cultura nacional: por isso prefere as obras de arte medievais, faianças, têxteis, objetos de metal, mobiliário, aquelas que a gíria dos antiquários chama de «peças de época recuada». Não menospreza, porém, a beleza da pintura renascentista, os desenhos de grandes mestres, o mobiliário português do século XVIII, de grande qualidade, produzido em madeiras exóticas, os objetos adquiridos pelos portugueses do passado nos mercados orientais, a ourivesaria, particularmente a do Porto. A área em que se considerava especialista era, todavia, a faiança dos séculos XVII e XVIII. Destinaria a coleção cerâmica –, que reputava como «insubstituível, única para a história da arte portuguesa» – à Câmara Municipal do Porto, por uma pequena importância. 
 
No Museu Nacional de Arte Antiga, a incorporação de parte da coleção Guerra Junqueiro aconteceu de três modos diversos. O poeta fez doação em vida de obras de arte, entre as quais se destaca uma iluminura assinada por Estêvão Gonçalves Neto. Procedeu também à venda «simbólica», para fazer face às despesas com o casamento da filha, de peças criteriosamente selecionadas, na sua maioria de pintura antiga. Acabará por deixar em legado testamentário esculturas em alabastro, pedra e madeira, objetos de metal, que reunira na sua quase totalidade na casa da Rua de Santa Catarina do Porto, na sala a que dava o nome de Catedral. 
 
GUERRA JUNQUEIRO: colecionador de desenhos 
Comissária: Alexandra Gomes Markl 
 
Guerra Junqueiro, colecionador de desenhos

 Em outubro de 1911, o Museu Nacional de Belas Artes (antepassado do MNAA) adquiriu ao poeta e político republicano Abílio Guerra Junqueiro (1850-1923), um conjunto de obras artísticas, a maioria desenhos, pertencentes à coleção que reunira ao longo de várias décadas. Trata-se de alguns desenhos de autores portugueses e, maioritariamente, de autores italianos e espanhóis que aqui iremos descobrir. 
 
 
 
 
II. AGRADECIMENTOS
 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste trabalho de divulgação. Também manifesta sua gratidão ao Sr. António Valdemar, jornalista e investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa e sócio correspondente português para a ABL-Academia Brasileira de Letras-cadeira nº 3, por sua colaboração sempre efetiva ao Blog e pela notícia da presente Exposição Guerra Junqueiro no MNAA em Lisboa.

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

MACHADO DE ASSIS VAI À MISSA


Por José Murilo de Carvalho * (✰ Piedade do Rio Grande, 8/9/1939 ✞ Rio de Janeiro, 13/8/2023)

Machado de Assis fotografado por Joaquim Insley Pacheco, em 1884, no Rio de Janeiro. Cópia fotográfica de Marc Ferrez. Crédito: Acervo FBN-Fundação Biblioteca Nacional.

 
Bendito o olhar de lince de Andrea Wanderley, que identificou o rosto de Machado de Assis na foto de Antonio Luiz Ferreira da missa celebrada em 17 de maio de 1888, no Campo de São Cristóvão, em ação de graças pela passagem da lei do dia 13 desse mês que abolira a escravidão no Brasil. 
 
A foto está disponível no portal Brasiliana Fotográfica, fantástica iniciativa da Biblioteca Nacional em parceria com o Instituto Moreira Salles. Outras figuras são identificáveis, além, naturalmente, da princesa Isabel e do conde d’Eu. O presidente do Conselho de Ministros do Gabinete conservador que fez passar a lei, João Alfredo Correia de Oliveira, está à direita de Isabel, um pouco abaixo. 
 
Os responsáveis pelo portal veem José do Patrocínio à frente do grupo, segurando a mão do filho. Ampliando o foco, deverão aparecer outros políticos e outros militantes da causa abolicionista. Nabuco não foi à missa, mas André Rebouças, quase íntimo da família imperial, estava lá. Também certamente estavam seus companheiros da Confederação Abolicionista, com quem se fizera fotografar na véspera, acompanhados de Ângelo Agostini, João Clapp, presidente da Confederação, Taunay, grande amigo de Rebouças, Silveira da Mota, filho, Quintino Bocaiúva… Dezenas de outros certamente também estavam presentes e podem ser, eventualmente, identificados. 
 
A escravidão no Brasil foi bastante fotografada, mas a abolição, sobretudo a semana de 13 a 20 de maio, nem tanto, mesmo na capital onde havia muitos fotógrafos. A razão disso não sei. É quase total a ausência de fotos fora da Corte (há apenas duas), quando se sabe que as festividades ganharam todo o país. Mas a consequência disso é que os poucos registros até agora descobertos, umas 25 fotos, ganham extraordinária importância. E o destaque vai todo para Antônio Luiz Ferreira, autor das 15 fotos com que presenteou Isabel. Sua foto mais espetacular é, sem dúvida, a da sessão da Câmara do dia 10 de maio, quando foi aprovado o projeto da abolição. A foto mais curiosa é a de Luís Stigaard, tirada na colônia Isabel, no Rio Grande do Sul. Retrata dezenas de colonos, imigrantes europeus, disciplinadamente organizados em filas, comemorando a abolição, em contraste com a exuberância das celebrações na capital do Império. 
 
Mas o registro importante hoje é a descoberta de que Machado foi à missa. Não era pessoa de frequentar igrejas. Também não apreciava manifestações multitudinárias. Mas a essa missa, a esse ajuntamento de milhares de pessoas, ele compareceu e fica claro na foto seu esforço para aparecer, prensado entre duas robustas figuras uniformizadas. Anos depois, em crônica (Gazeta de Notícias, 14/5/1893), ele anotou sobre o 13 de maio, “Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto”. A missa foi continuação do delírio e é muito bom saber que o tímido, circunspecto e cético Machado estava lá.
 
* Crônica escrita em 29 de maio de 2015.
 
II. AGRADECIMENTO
 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas nesta crônica.

III. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL: BRASILIANA FOTOGRÁFICA 

Colaborador: JOSÉ MURILO DE CARVALHO


Por Francisco José dos Santos Braga

 

José Murilo de Carvalho (1939-2023)

JOSÉ MURILO DE CARVALHO foi um cientista político e historiador mineiro, membro da Academia Brasileira de Letras, de 2004 a 2023. 
 
Foi o sexto ocupante da cadeira 5 da Academia Brasileira de Letras, eleito em 11 de março de 2004 na sucessão de Rachel de Queiroz. Foi recepcionado em 10 de setembro de 2004 pelo acadêmico Affonso Arinos de Mello Franco. 
 
A partir da investigação inicial sobre o Império, José Murilo de Carvalho expandiu sua investigação para as relações cidadãs no Brasil, de que resultou, entre inúmeras publicações relevantes, o livro "A construção da cidadania no Brasil", publicado pela Civilização Brasileira e com o qual conquistou o prêmio Casa de las Americas em 2004. Na sua opinião, “o cidadão vota racionalmente, mas preso ao mundo da necessidade". E acrescenta: "É um voto que tem limitações decorrentes da desigualdade social”, "há uma questão de dependência do Estado”. 
 
Em 2022, Murilo se desencantara com o seu país: "O Brasil não será um grande país. Não há nada a celebrar nos 200 anos da Independência...
 
Recebeu os seguintes prêmios: de melhor livro em ciências sociais de 1987 da ANPOCS por seu livro Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987; e o Prêmio Jabuti, em duas ocasiões: em 1991 por sua obra A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990 e em 2008, com Dom Pedro II: ser ou não ser
 
Dentre suas muitas obras, vale lembrar que escreveu ainda os seguintes livros: A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Campus, 1980; Cidadania no Brasil: O longo caminho. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2001; Dom Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, 2007; Nação e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007; Histórias que a Cecília contava. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008; A Academia Brasileira de Letras, subsídios para sua história (1940-2008). Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2009; O Pecado Original da República. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2017. 
 
Eis o depoimento de Arnaldo Niskier sobre José Murilo de Carvalho, seu colega de ABL: "Sou testemunha do quanto o acadêmico José Murilo de Carvalho trabalhou pela cultura do nosso país, como historiador excepcional que foi, mas também no âmbito da Academia Brasileira de Letras, o quanto ele coordenou, com paixão, o nosso arquivo. Ele deu vida ao arquivo da Academia Brasileira de Letras e, sempre presente, emprestou o brilho da sua inteligência e da sua cultura à casa de Machado de Assis. Nós estamos sofrendo muito a perda dele:  ele na verdade é insubstituível."

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

MISSA CAMPAL DE 17/05/1888 CELEBRADA EM AÇÃO DE GRAÇAS PELA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA NO BRASIL

Por Luciana Muniz (BN) e Rodrigo Bozzetti (IMS), historiadores; Daniel Arruda(IMS), designer  
 
Vista panorâmica da Missa Campal em ação de graças pela Abolição da Escravatura no Brasil, realizada em São Cristóvão, Rio de Janeiro, em 17/05/1888 - Crédito: Antônio Luiz Ferreira/Brasiliana Fotográfica

 
Recorte da vista panorâmica (conforme delineado acima) a fim de se analisar melhor o altar


 

 
Silhuetas de personalidades já identificadas até o presente momento no séquito da Princesa Isabel
1 – Princesa Isabel (1846-1921) – princesa imperial do Brasil e três vezes regente do Império do Brasil. Ficou conhecida como a Redentora por ter assinado a Lei Áurea. 
2  – Conde d'Eu (1842-1922) – príncipe do Brasil por seu casamento com a princesa Isabel. 
3  – Não identificada. 
4 – Possivelmente o Marechal Hermes Ernesto da Fonseca (1824-1891) – político e militar brasileiro, irmão do general Deodoro da Fonseca, primeiro presidente do Brasil, e pai do futuro presidente do Brasil, Hermes Rodrigues da Fonseca. 
5 – Machado de Assis (1839-1908). 
6 – Possivelmente José de Miranda da Silva Reis, marechal de campo e Barão Miranda Reis (1824-1903) – foi ajudante de campo e camarista do imperador Pedro II e participou da Guerra do Paraguai. Exerceu importantes cargos, dentre eles foi ministro do Superior Tribunal Militar e dirigiu a Escola Superior de Guerra e o Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro. 
7 – Possivelmente José do Patrocínio (1854-1905) – escritor e jornalista, uma das maiores figuras do movimento abolicionista. Na foto está segurando a mão de seu filho primogênito, que ao fim da missa foi beijado pela princesa Isabel. 
8 – Jornalista (?) não identificado. 
9 – Possivelmente José Ferreira de Souza Araujo, conhecido como Ferreira Araujo (1848-1900) – um dos mais importantes jornalistas da época, foi diretor da Gazeta de Notícias e sob o pseudônimo Lulu Sênior escreveu as muito populares colunas Macaquinhos no Sótão, Balas de Estalo e Apanhados. Foi o vice-diretor da Comissão Central da Imprensa Fluminense, formada para organizar e programar os festejos em torno da Abolição. 
10 – Thomaz José Coelho de Almeida (1838-1895) – ministro da Guerra, integrante do Gabinete de 10 de março de 1888. 
11 – Rodrigo Silva (1833-1889) – ministro dos Negócios da Agricultura e interino dos Negócios Estrangeiros, integrante do Gabinete de 10 de março de 1888. 
12  José Fernandes da Costa Pereira Junior (1833-1899) – ministro do Império, integrante do Gabinete de 10 de março de 1888. 
13  João Alfredo Correia de Oliveira (1835-1919) – presidente do Conselho de Ministros do Gabinete de 10 de março de 1888, em substituição ao Barão de Cotegipe. 
 
Observações:
 
1) A outra dama presente no palanque da Princesa Isabel é Maria Amanda de Paranaguá Dória, Baronesa de Loreto (1849-1931) – dama do Paço e amiga íntima da princesa Isabel.
 
2) À esquerda da fotografia, estão vários padres diante do altar, que ainda não conseguimos identificar. Dentre eles, segundo a imprensa da época, estariam o celebrante da missa, padre Cassiano Coriolano Collona, capelão do Exército e um dos fundadores da Confederação Abolicionista, criada em 19 de fevereiro de 1888; o padre-mestre Escobar de Araújo, vigário de São Cristóvão; os padres Castelo Branco, Telêmaco de Souza Velho e o padre José Alves Martins do Loreto (1845-1893), redator e sócio proprietário do jornal O Apóstolo
 
O missal usado na cerimônia, em veludo carmezin, tinha a seguinte inscrição: “13 de maio de 1888 – Esse missal foi o que serviu na missa campal, celebrada em 17 de maio de 1888, no campo de S. Cristóvão, em ação de graças pela promulgação da lei que extinguiu a escravidão no Brasil”. O missal e a campainha utilizados foram, assim como a garrafa de vinho Lacryma Christi, doados. Segundo a imprensa da época, formavam as alas do altar as ordens terceiras de São Francisco de Paula, de São Francisco da Penitência e de Nossa Senhora do Carmo, além das irmandades de São Cristóvão e do Rosário com seus galões e candelabros. Estandartes de associações e de escolas podem ser vistos na foto. 
 
A importância dos jornais do Rio de Janeiro no processo da Abolição da Escravatura fica evidenciada na missa campal por dois fatos: antes do início da cerimônia, o ministro da Guerra, Thomaz José Coelho de Almeida (identificado na foto – número 10), “ergueu um viva à imprensa nacional”; e, representando a imprensa, o jornalista Fernando Mendes de Almeida (identificado na foto – número 16, vestindo uma toga) ajudou na celebração da missa campal. 
 
A missa campal do dia 17 de maio de 1888 foi um dos festejos pela Abolição da Escravatura organizada pela Comissão Central da Imprensa Fluminense. Possivelmente, seus integrantes estão identificados na foto usando uma faixa na qual podemos ler a palavra imprensa. 
 
3) Um pouco mais da história dos festejos pela Abolição da Escravatura no Brasil promovidos pela imprensa 
 
No dia 12 de de maio de 1888, quatro dias após a apresentação na Câmara pelo ministro Rodrigo Silva (identificado na foto – número 11) do projeto para o fim da escravidão no Brasil, representantes dos periódicos Jornal do Commercio, Cidade do Rio, Diário de Notícias, Revista Illustrada, A Epoca, Gazeta da Tarde, Novidades, Apóstolo e Gazeta de Notícias decidiram promover festejos populares para celebrar a iminente promulgação da Lei Áurea. Reuniram-se com colegas de outros jornais no Clube de Esgrima e Tiro, localizado na rua São Francisco de Paula, n°22, e formaram a Comissão Central da Imprensa Fluminense (Gazeta de Notícias, edição de 13 de maio de 1888). José do Patrocínio, representando o jornal O Paiz, participou do encontro. 
 
No dia seguinte, 14 de maio, em uma segunda reunião realizada no Clube de Esgrima e Tiro, foi nomeada a diretoria da Comissão Central da Imprensa Fluminense. Foi formada pelos redatores-chefes dos principais jornais: João Carlos de Souza Ferreira, do Jornal do Commercio, na direção; José Ferreira de Souza Araujo, da Gazeta de Notícias, na vice-diretoria; e como primeiro e segundo secretários Demerval da Fonseca, da Gazeta de Notícias; e Fernando Mendes de Almeida, do Diário de Notícias, respectivamente. A tesouraria ficou a cargo de Henrique Villeneuve, do Jornal do Commercio; e de Artur Azevedo, da A Estação. As festas promovidas pela Comissão começaram com a missa campal no dia 17 e terminaram no dia 20 com a queima de fogos de artifício em diversos pontos da cidade (Gazeta de Notícias, edição de 15 de maio de 1888). Mais um baile foi programado para o dia 19 à noite, na praça da Aclamação, atual Campo de Santana. 
 
A fim de envolver toda a população do Rio de Janeiro nos festejos, a Comissão Central da Imprensa Fluminense publicou pedidos nos jornais para que todos os moradores da cidade se empenhassem na iluminação e na ornamentação das ruas e para que os estabelecimentos comerciais fechassem durante as festas. Convocou também mestres de obras para a construção de coretos e arquibancadas. Comerciantes doaram dinheiro para a realização das festas. O Sport Club pôs à disposição da comissão a arrecadação do páreo 13 de maio de 1888 e artistas se encarregaram dos fogos de artifício. O importante cenógrafo Frederico de Barros ofereceu seus serviços à comissão. Enfim, toda a cidade participou da celebração da Lei Áurea. 
 
Além de organizar os festejos, a Comissão Central da Imprensa Fluminense decidiu publicar um jornal especial, intitulado A Imprensa Fluminense, que foi o único a ser distribuído no dia 21 de maio de 1888. 
 
Essas comemorações promovidas pela imprensa fluminense, e as fotografias de Antônio Luiz Ferreira sobre os vários eventos em torno do mais importante acontecimento histórico no Brasil, após a proclamação da Independência, são fundamentais para a formação da memória da Abolição da Escravatura. A euforia e o entusiasmo dos brasileiros, mostrados tanto nas festas como nas fotos de Ferreira, e também os textos publicados nos jornais da época podem ser interpretados como um contraponto a tão longa duração do regime escravocrata no país.
 
II. AGRADECIMENTO
 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste trabalho.

III. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 

Link: https://blogdabn.wordpress.com/2015/06/02/brasiliana-fotografica-missa-campal-de-17-de-maio-de-1888-novas-identificacoes/  👈

sábado, 19 de agosto de 2023

Minha mãe e seu conto humorístico


Por Francisco José dos Santos Braga
Estação Ferroviária de César de Pina (1923-2023)

Foi reinaugurada no dia 1º de julho p.p. a Estação Ferroviária de César de Pina, que no passado foi uma parada obrigatória do trem de bitola estreita da E.F.O.M., designado com o apelido carinhoso de "Trenzinho das Águas Santas", que partia de São João del-Rei, passava sobre o (primeiro, ainda existente) pontilhão do Ribeirão Água Limpa e seguia para Estação Chagas Dória no bairro de Matosinhos; daí tomava a linha do ramal das Águas Santas, passando sobre o (segundo, demolido) pontilhão do Rio das Mortes, ramal este inaugurado em 21 de agosto de 1911 e desativado juntamente com a Estação de César de Pina em 1966. 
 
Pontilhão sobre o Ribeirão Água Limpa no Km 96 em Matosinhos- Crédito: https://i.ytimg.com/vi/JxUEBZGRMlc/maxresdefault.jpg

Trem turístico atravessando o Pontilhão do Ribeirão Água Limpa - Crédito: Renan Carvalhais



Pontilhão sobre o Rio das Mortes (sem corrimão para proteção lateral) - Crédito: Águas Santas, memórias em nossos corações, por Maria do Carmo Lopes de Oliveira Braga, 2019, p. 91


Base que restou do pontilhão demolido sobre o Rio das Mortes - Crédito: Carlos Fernando dos Santos Braga
 
A inauguração dessa Estação, com o nome popular de "Chacrinha", se deu em 1923; após inaugurada, recebeu o nome oficial de "César de Pina", em homenagem ao engenheiro da Rede Ferroviária, Augusto César de Pina.
 
 
Hoje tanto a comunidade de César de Pina quanto o balneário das Águas Santas, apartados do centro de Tiradentes, cidade à qual pertencem, apresentam ainda grande potencial turístico, pois, além da estância hidromineral, dispõem de um artesanato de primeira qualidade, potencial para ecoturismo e turismo rural.
 
No começo do século XX, a E.F.O.M. justificava a construção daquele ramal de 11,8 quilômetros de extensão, pelas seguintes razões: ligar São João del-Rei à entrada do balneário Estação Águas Santas e escoar a produção agrícola local, especialmente impulsionada pela instalação dos imigrantes italianos na Colônia do Marçal, em São João del-Rei. 
 
Esta saudosa linha foi criada especialmente para atender a clientela que buscava o destino final das Águas Santas ou uma de suas nove "paradinhas" de todo o itinerário, a saber: paradas do Portão, do Neves (antes do Pontilhão do Água Limpa), do Cascalho (após o Pontilhão do Rio das Mortes), do Brighenti, do Giarola, do Batista, da "Chacrinha", do João Pio e do Juca Vieira. Com exceção da "Chacrinha", essas paradas eram não obrigatórias e deviam ser solicitadas ao maquinista. Em terminologia geográfica, a locomotiva partia da Estação Ferroviária de São João del-Rei, atravessava o Ribeirão Água Limpa e o Rio das Mortes, percorria toda a Várzea do Marçal até alcançar o Rio Carandaí, no município de Tiradentes, onde percorria todo o bairro das Águas Santas, para chegar a seu destino final, a Estação Ferroviária de Águas Santas.
 
Estação Ferroviária de Águas Santas (foto datada de 1956), inaugurada em 1911, tendo funcionado até 1966 - Crédito: José Antônio de Ávila Sacramento - Link: http://www.oestedeminas.org.br/2010/01/o-trem-das-aguas-efom.html

 
 
Rotunda da Estação das Águas Santas - Crédito: Carlos Fernando dos Santos Braga


Estaçoes Ferroviárias de Águas Santas e Chagas Dória no bairro são-joanense de Matosinhos, respectivamente fim e início da linha do ramal das Águas Santas - Crédito: Carlos Fernando dos Santos Braga

 
Essa cerimônia de reinauguração da Estação de César de Pina foi uma excelente oportunidade de revermos minha esposa Rute Pardini e eu, bem como meu irmão Carlos Fernando e sua esposa Maria do Carmo, a edificação do entorno, onde minha saudosa mãe, Celina dos Santos Braga (⭐︎ 23/01/1928 ✞ 29/05/2014), em 1945 e 1946, recém-formada normalista do Colégio Nossa Senhora das Dores, pôde proporcionar às crianças daquela comunidade rural o letramento e o acesso aos rudimentos das ciências, letras e artes. 
 
Era com grande orgulho que ela enchia o peito para dizer: "Durante meu curso de normalista, fui aluna do Prof. Domingos Horta, em Língua, Literatura Portuguesa e História, que, além de professor, foi paraninfo de minha turma de 1944. Também integrei o coral do Maestro Ten. João Cavalcante, meu professor de Música. Sob a sua regência, cantei o Glória de Vivaldi."
 
Durante sua atividade docente na comunidade de César de Pina, fez grande amizade com os Longatti, residentes nas proximidades da Estação, que lhe eram tão simpáticos a ponto de  convidá-la para ser madrinha de Amélia Longatti, uma menina daquela família de imigrantes italianos.
 
Sua experiência de professora rural de crianças foi muito curta, porque, no início do ano de 1947, se casou com meu pai, Roque da Fonseca Braga (⭐︎ 15/04/1918 ✞ 26/09/1984), o que a levou a abandonar o emprego para dedicar-se a educar sua própria prole de oito filhos, o que fez com muito carinho, sensibilidade e conhecimento de causa como educadora.
 
Ela, como já tratei em outra memória, costumava reunir a seu redor sua turminha para lhe ler alguma página imortal. 
 
Certa feita, folheando as páginas da antologia intitulada "Maravilhas do conto humorístico", publicado pela Editora Cultrix em 1959, localizou para ler-nos o conto indigitado com o título "Tudo vai sem novidade", da autoria do autor lisbonense Gervásio Lobato, que nasceu em Lisboa em 1850, tendo também aí falecido em 1895. Romancista, dramaturgo, jornalista, contista, tradutor e professor de declamação, ele teve como obra mais emblemática a novela “Lisboa em Camisa”, levada às telas de cinema em 1960 por Herlander Peyroteo.
 
Nós, seus filhos, escutávamos atentos, em silêncio, nossa mãe, embora nos escapasse às vezes o sentido de alguma palavra ainda desconhecida.
 
Hoje, decorridos mais de sessenta anos, não me é difícil sonhar que a ouço ainda fazendo aquela leitura, e penso quão ditosa foi minha infância por ter a mãe prendada que tive, senhora de uma educação esmerada e amorosa com todos os seus oito filhos. 
 
Eis a sua leitura bem humorada da célebre página do autor lusitano:
 
Tudo vai sem novidade
Por Gervásio Lobato
 
Os interlocutores são um morgado ¹ do Alentejo, que estava a gozar os rendimentos em Lisboa e um criado lá da sua herdade de Alter do Chão. O morgado, que já há tempo não tinha carta da terra nem notícias de seus pais, encontrou, uma manhã, na Praça do Comércio, embasbacado a ver render a guarda, o seu criado. 
 
— Olá! Tu por aqui, Tibúrcio? 
— Ah! O meu patrão! 
— Então vens a Lisboa e não me procuras? Não vens logo a minha casa? 
— Ora essa!... Então não havia de lá ir? 
— Pois sim, mas não foste. 
— Ia já lá... 
— Chegaste agora mesmo? 
— Não, senhor; cheguei ontem e, desde que cheguei que estou para ir lá já... 
— Então como está tudo por lá? 
— Tudo bom, muito obrigado. 
— Meu pai, minha mãe, a casa? 
— Tudo bem, sem novidade. 
— E o meu cavalo ruço... o Janota? 
— Ah! É verdade; esqueci-me de dizer-lhe; esse é que não tem lá passado muito bem. 
— Ah! Sim! O que tem ele? Está doente? 
— Não, senhor. 
— Ah! Meteste-me um susto! Um cavalo que me custou 50 libras! — Não, senhor; não está doente. Morreu! 
— Morreu?! 
— Sim, senhor; mas o mais vai sem novidade. 
— Morreu? Mas ele não estava doente... Morreu de algum desastre? — Não, senhor. 
— Qual desastre! Então? 
— Morreu no fogo, que houve lá na cocheira. 
— Quê? Houve fogo na cocheira? 
— Sim, senhor; ardeu toda, e o pobre Janota, que estava lá dentro, foi-se também, coitadinho! 
— Mas como pegou fogo na cocheira? 
— Pegou da casa. 
— Da casa?! 
— Sim, senhor; a casa ardeu toda. 
— A minha casa ardeu toda? 
— Sim, senhor; e, por mais que fizéssemos, não foi possível impedir que o fogo passasse à cocheira. Mas o mais vai sem novidade... 
— Mas como foi que pegou fogo à casa? 
— Foi uma tocha, que caiu do tocheiro. 
— Uma tocha? 
— Sim, senhor; caiu uma tocha em cima do pano do caixão e foi tudo pelos ares. 
— Do caixão? Mas qual caixão? 
— O caixão, onde estava a defunta. 
— Qual defunta?
— A senhora sua mãe. 
— Minha mãe? Pois minha mãe morreu? 
— Morreu, sim senhor; mas o resto vai sem novidade. 
— Mas de que morreu minha mãe? 
— De desgosto, coitadinha! 
— De desgosto de quê? 
— Pela morte de seu pai. 
— Então meu pai morreu também? 
— Não, senhor; não morreu; matou-se. 
— Matou-se?! 
— Sim, senhor; enforcou-se. Mas o resto vai tudo sem novidade... 
— Meu pai enforcou-se?! 
— Sim, senhor. Quando lhe fizeram penhora a todas as fazendas e viu que estava arruinado, que estava a pedir esmola, foi a uma corda e zás! Mas o mais vai sem novidade, graças a Deus...
 
II. NOTA EXPLICATIVA
 
¹  Morgadio ou morgado se referia a um vínculo hereditário de terras, rendas ou outros utensílios, feito por um instituidor. Por extensão, o termo morgado passou a ser usado para designar o seu possuidor, como é o caso aqui neste conto de Gervásio Lobato. Estes bens assim herdados não podiam ser vendidos nem alienados; tampouco podiam ser suscetíveis de partilha, pertencendo apenas ao morgado ou herdeiro universal, geralmente um varão primogênito. 
O morgadio entrou na legislação portuguesa com as Ordenações Filipinas de 1603 e ainda existiram em Portugal até 1910. 
Uma das razões que levou à sua extinção foi o empobrecimento dos filhos não primogênitos. 

 
III. AGRADECIMENTO
 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas nesta crônica.

IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
BRAGA, Francisco José dos Santos: Minha mãe e seu cão chamado Veludo

PASSOS, Najla: Trem de Minas: mesmo atrasada, restauração da Estação César de Pina vai unir passado e futuro em Tiradentes, jornal Estado de Minas, coluna Notícias Gerais, edição de 1º/08/2020

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

A GRANDE REPORTAGEM À VOLTA DO MUNDO


Por ANTÓNIO VALDEMAR *
 
A aventura, nos mares ainda desconhecidos e nas terras ainda ignoradas, de Fernão Mendes Pinto, relatada na Peregrinação, possui a fluência, a agilidade e o imprevisto de uma grande reportagem. (Texto publicado originalmente no Jornal de Letras nº 294, Rio de Janeiro, edição de 2 de agosto, 2023)
Fernão Mendes Pinto (✰ Montemor-o-Velho, c. 1509 ✞ Almada, 1583)

 

 

Foi tudo o que quis ser ou aquilo que as circunstâncias o obrigaram a ser: mercador nos confins do Oriente, “a subir e descer as vias de água” no Mar Amarelo; soldado, cortesão, mendigo e pirata. Ele próprio resumiu as adversidades que sofreu: “treze vezes cativo e dezassete vezes vendido”. Como se tudo isto não bastasse, também foi jesuíta, mas despiu a roupeta quando entendeu e voltou a ser um homem livre. 

Era natural de Montemor-o-Velho. Pertencia a uma família humilde. Até aos 10 ou 12 anos – confessa na Peregrinação – encontrava-se “na miséria e estreiteza na casa do pai”. O apelo da distância incutiu-lhe o espírito da aventura. Correndo riscos e sobressaltos, quis libertar-se de um ambiente sem futuro. Tinha um primo na Índia. Embarcou numa caravela com destino a Setúbal. A certa altura o barco foi aprisionado por corsários franceses. 

Folha de rosto da obra. Exemplar da Biblioteca Nacional de Portugal.              


Os passageiros, açoitados, roubados e todos nus, conseguiram chegar à praia alentejana de Melides. Esta a primeira grande provação que o atingiu, até que seguiu para a Índia. Tinha 18 anos incompletos e, de março de 1537, até 1557, confrontou-se com as maiores incertezas e os mais diversos imprevistos, quantas vezes em luta frontal com a morte. 

Várias gerações de investigadores, em arquivos e bibliotecas portugueses e estrangeiros, ocuparam-se da autenticidade do texto da Peregrinação, para esclarecer localizações geográficas, fatos históricos, as relações com a Companhia de Jesus, os contatos com São Francisco Xavier. Um fato, porém, é notório: há saltos evidentes no texto, no decurso da sequência da narrativa. 

Até ao fim da vida, – e mesmo depois da morte –, Fernão Mendes Pinto ficou sob a vigilância dos jesuítas. Ao saberem que redigia a Peregrinação, a pretexto de uma consulta, os jesuítas são acusados de retirar do manuscrito do livro inúmeras referências de tudo que diz respeito à Companhia de Jesus. Assim se pronunciaram, em obras, devidamente fundamentados, vários historiadores e ensaístas, entre os quais António José Saraiva, que publicou estudos de consulta obrigatória. 

Regresso a Portugal 

Ao voltar a Portugal, Fernão Mendes Pinto passou pelos Açores, tal como se verificou com Vasco da Gama e Luís de Camões. Esteve, possivelmente, na ilha Terceira. Gaspar Frutuoso, nas Saudades da Terra (livro VI), foi categórico ao afirmar que a Baía de Angra era, em pleno Atlântico, a “universal escala do mar poente e por todo o mundo celebrada”. 

Chegou a Lisboa a 22 de setembro de 1558. Durante quatro anos e meio, procurou retomar a vida. Malograram-se as possibilidades. Casado e com filhos, instalou-se na margem sul do Tejo. Adquiriu uma casa no Pragal, onde escreveu muito do que viu, e do que ouviu e lhe aconteceu do Extremo Oriente: na Abissínia, na Arábia, em Malaca, em Java, no Pegu, em Sião, na China e no Japão, até regressar a Portugal. Contemporâneo de Camões, nasceu antes dele, (c. 1509/1514 - 1583) e faleceu depois de Camões (1524/1525 - 1579/1580). Fernão Mendes Pinto ultrapassou o itinerário de Camões no Oriente e as fatalidades que o atingiram em Goa e em Moçambique. A Peregrinação faz parte das obras indicadas como paradigmas da literatura portuguesa de viagens na expansão marítima que se verificou nos séculos XVI e XVII, desde Os Lusíadas até a História Trágico Marítima.  

“Fascinação Irresistível” 

Entre as obras e escritores portugueses que Teixeira Gomes mais considerava, incluía Camões: “o melhor exemplo de uma repentina e salutar renascença, de pureza de formas e claridade de ideias e de estilo”. Embora o grande público continue a ignorar que “foi e é o maior autor dos tempos modernos”. Mencionava depois Fernão Mendes Pinto: “figura que, no meu espírito, sempre exerceu fascinação irresistível, e pela qual conservo ainda hoje a mesma admiração

“Não é só pelo encanto das suas peregrinações – insistia Teixeira Gomes – mas, sobre tudo, pela graça, e cristalina simplicidade do seu estilo, que parece de agora, e pela riqueza e propriedade dos seus vocábulos. Ele introduziu na nossa língua centenas de preciosos e úteis neologismos, que ficaram”. 

A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, que se lê com a fluência, a agilidade e o imprevisto que deparamos numa grande reportagem – é, sem dúvida, uma das obras mais notáveis da literatura portuguesa e da literatura universal. Encontra-se traduzida nas principais línguas europeias. Revela o homem em toda a sua dimensão e em todas as circunstâncias. Transmite-nos, com “a simplicidade sempre tão difícil de conseguir” o que lhe aconteceu ver no contato direto com o mundo. 

A ausência do Brasil 

Fez parte de uma das primeiras expedições portuguesas que logrou alcançar o Japão em 1542. A chegada de portugueses ao Japão foi muito celebrada e perdura ainda na memória cultural japonesa, também porque permitiu a introdução das armas de fogo naquele país. O próprio Fernão Mendes Pinto descreveu o espanto e o interesse das autoridades locais, quando viram um dos seus companheiros disparar uma arma enquanto caçava. 

Ainda pequeno, um tio trouxe-o para Lisboa, onde o pôs ao serviço da casa de D. Jorge de Lencastre, duque de Aveiro, filho bastardo do rei D. João II. Manteve-se aqui durante cerca de cinco anos, dois dos quais como moço de câmara do próprio D. Jorge. 

Em 1537, partiu para a Índia, ao encontro dos seus dois irmãos. De acordo com o que relatou na sua obra Peregrinação, foi durante uma expedição ao mar Vermelho – em 1538 – que participou num combate naval com os otomanos, tendo sido feito prisioneiro e vendido a um grego. Este vendeu-o por sua vez a um judeu, que o levou para Ormuz, onde foi resgatado por portugueses. 

Acompanhou Pedro de Faria a Malaca, de onde fez o ponto de partida para as suas aventuras, tendo percorrido, durante 21 acidentados anos, as costas da Birmânia, Sião, arquipélago de Sunda, Molucas, China e Japão, grande parte desse tempo ao lado do pirata António de Faria. Numa das suas viagens, conheceu São Francisco Xavier e, influenciado pela sua personalidade, decidiu entrar para a Companhia de Jesus e promover uma missão jesuíta no Japão. 

Em 1554, depois de libertar os seus escravos, foi para o Japão como noviço da Companhia de Jesus e como embaixador do vice-rei D. Afonso de Noronha. Esta viagem constituiu um desencanto para ele. Desgostoso, abandonou o noviciado e regressou a Portugal. 

Com a ajuda do ex-governador da Índia Francisco Barreto, conseguiu arranjar documentos comprovativos dos feitos realizados pela pátria, que lhe deram direito a uma tença, que nunca recebeu. Desiludido, foi para a Quinta de Palença, em Almada, onde se manteve até à morte e onde escreveu, entre 1569 e 1578, a obra que nos legou, a Peregrinação. Esta só viria a ser publicada cerca de 30 anos após a sua morte, receando-se que o original tenha sofrido alterações, às quais não seriam alheios os jesuítas. O livro (de 700 páginas) passou também o crivo da Inquisição. 

Deixou-nos um relato tão extraordinário que, durante muito tempo, não se acreditou na sua veracidade. De tal modo, que até se fazia um jocoso jogo de palavras com o seu nome: “Fernão Mendes Minto” ou então “Fernão, mentes? Minto!”. A Peregrinação, porém, tornou-se um sucesso, tendo rapidamente dezenove edições em seis línguas. 

Na atualidade, Fernão Mendes Pinto é considerado um dos maiores escritores da literatura portuguesa e mundial. Ele contribuiu, ao lado de Luís de Camões, para enriquecer e fazer evoluir a língua portuguesa. A sua vida e obra têm sido tema regular para estudos universitários, um pouco por todo o mundo, nas áreas de História, Antropologia, Geografia, Sociologia, Semântica e Literatura. 

Existem ruas com o seu nome em Lisboa, Porto, Montemor-o-Velho, Guimarães, Portimão, Ovar, Freixo de Espada à Cinta e Loures, em Portugal; no Rio de Janeiro e São Paulo, no Brasil; em Luanda (Angola), no Maputo (Moçambique) e na China.