quarta-feira, 2 de agosto de 2023

A GRANDE REPORTAGEM À VOLTA DO MUNDO


Por ANTÓNIO VALDEMAR *
 
A aventura, nos mares ainda desconhecidos e nas terras ainda ignoradas, de Fernão Mendes Pinto, relatada na Peregrinação, possui a fluência, a agilidade e o imprevisto de uma grande reportagem. (Texto publicado originalmente no Jornal de Letras nº 294, Rio de Janeiro, edição de 2 de agosto, 2023)
Fernão Mendes Pinto (✰ Montemor-o-Velho, c. 1509 ✞ Almada, 1583)

 

 

Foi tudo o que quis ser ou aquilo que as circunstâncias o obrigaram a ser: mercador nos confins do Oriente, “a subir e descer as vias de água” no Mar Amarelo; soldado, cortesão, mendigo e pirata. Ele próprio resumiu as adversidades que sofreu: “treze vezes cativo e dezassete vezes vendido”. Como se tudo isto não bastasse, também foi jesuíta, mas despiu a roupeta quando entendeu e voltou a ser um homem livre. 

Era natural de Montemor-o-Velho. Pertencia a uma família humilde. Até aos 10 ou 12 anos – confessa na Peregrinação – encontrava-se “na miséria e estreiteza na casa do pai”. O apelo da distância incutiu-lhe o espírito da aventura. Correndo riscos e sobressaltos, quis libertar-se de um ambiente sem futuro. Tinha um primo na Índia. Embarcou numa caravela com destino a Setúbal. A certa altura o barco foi aprisionado por corsários franceses. 

Folha de rosto da obra. Exemplar da Biblioteca Nacional de Portugal.              


Os passageiros, açoitados, roubados e todos nus, conseguiram chegar à praia alentejana de Melides. Esta a primeira grande provação que o atingiu, até que seguiu para a Índia. Tinha 18 anos incompletos e, de março de 1537, até 1557, confrontou-se com as maiores incertezas e os mais diversos imprevistos, quantas vezes em luta frontal com a morte. 

Várias gerações de investigadores, em arquivos e bibliotecas portugueses e estrangeiros, ocuparam-se da autenticidade do texto da Peregrinação, para esclarecer localizações geográficas, fatos históricos, as relações com a Companhia de Jesus, os contatos com São Francisco Xavier. Um fato, porém, é notório: há saltos evidentes no texto, no decurso da sequência da narrativa. 

Até ao fim da vida, – e mesmo depois da morte –, Fernão Mendes Pinto ficou sob a vigilância dos jesuítas. Ao saberem que redigia a Peregrinação, a pretexto de uma consulta, os jesuítas são acusados de retirar do manuscrito do livro inúmeras referências de tudo que diz respeito à Companhia de Jesus. Assim se pronunciaram, em obras, devidamente fundamentados, vários historiadores e ensaístas, entre os quais António José Saraiva, que publicou estudos de consulta obrigatória. 

Regresso a Portugal 

Ao voltar a Portugal, Fernão Mendes Pinto passou pelos Açores, tal como se verificou com Vasco da Gama e Luís de Camões. Esteve, possivelmente, na ilha Terceira. Gaspar Frutuoso, nas Saudades da Terra (livro VI), foi categórico ao afirmar que a Baía de Angra era, em pleno Atlântico, a “universal escala do mar poente e por todo o mundo celebrada”. 

Chegou a Lisboa a 22 de setembro de 1558. Durante quatro anos e meio, procurou retomar a vida. Malograram-se as possibilidades. Casado e com filhos, instalou-se na margem sul do Tejo. Adquiriu uma casa no Pragal, onde escreveu muito do que viu, e do que ouviu e lhe aconteceu do Extremo Oriente: na Abissínia, na Arábia, em Malaca, em Java, no Pegu, em Sião, na China e no Japão, até regressar a Portugal. Contemporâneo de Camões, nasceu antes dele, (c. 1509/1514 - 1583) e faleceu depois de Camões (1524/1525 - 1579/1580). Fernão Mendes Pinto ultrapassou o itinerário de Camões no Oriente e as fatalidades que o atingiram em Goa e em Moçambique. A Peregrinação faz parte das obras indicadas como paradigmas da literatura portuguesa de viagens na expansão marítima que se verificou nos séculos XVI e XVII, desde Os Lusíadas até a História Trágico Marítima.  

“Fascinação Irresistível” 

Entre as obras e escritores portugueses que Teixeira Gomes mais considerava, incluía Camões: “o melhor exemplo de uma repentina e salutar renascença, de pureza de formas e claridade de ideias e de estilo”. Embora o grande público continue a ignorar que “foi e é o maior autor dos tempos modernos”. Mencionava depois Fernão Mendes Pinto: “figura que, no meu espírito, sempre exerceu fascinação irresistível, e pela qual conservo ainda hoje a mesma admiração

“Não é só pelo encanto das suas peregrinações – insistia Teixeira Gomes – mas, sobre tudo, pela graça, e cristalina simplicidade do seu estilo, que parece de agora, e pela riqueza e propriedade dos seus vocábulos. Ele introduziu na nossa língua centenas de preciosos e úteis neologismos, que ficaram”. 

A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, que se lê com a fluência, a agilidade e o imprevisto que deparamos numa grande reportagem – é, sem dúvida, uma das obras mais notáveis da literatura portuguesa e da literatura universal. Encontra-se traduzida nas principais línguas europeias. Revela o homem em toda a sua dimensão e em todas as circunstâncias. Transmite-nos, com “a simplicidade sempre tão difícil de conseguir” o que lhe aconteceu ver no contato direto com o mundo. 

A ausência do Brasil 

Fez parte de uma das primeiras expedições portuguesas que logrou alcançar o Japão em 1542. A chegada de portugueses ao Japão foi muito celebrada e perdura ainda na memória cultural japonesa, também porque permitiu a introdução das armas de fogo naquele país. O próprio Fernão Mendes Pinto descreveu o espanto e o interesse das autoridades locais, quando viram um dos seus companheiros disparar uma arma enquanto caçava. 

Ainda pequeno, um tio trouxe-o para Lisboa, onde o pôs ao serviço da casa de D. Jorge de Lencastre, duque de Aveiro, filho bastardo do rei D. João II. Manteve-se aqui durante cerca de cinco anos, dois dos quais como moço de câmara do próprio D. Jorge. 

Em 1537, partiu para a Índia, ao encontro dos seus dois irmãos. De acordo com o que relatou na sua obra Peregrinação, foi durante uma expedição ao mar Vermelho – em 1538 – que participou num combate naval com os otomanos, tendo sido feito prisioneiro e vendido a um grego. Este vendeu-o por sua vez a um judeu, que o levou para Ormuz, onde foi resgatado por portugueses. 

Acompanhou Pedro de Faria a Malaca, de onde fez o ponto de partida para as suas aventuras, tendo percorrido, durante 21 acidentados anos, as costas da Birmânia, Sião, arquipélago de Sunda, Molucas, China e Japão, grande parte desse tempo ao lado do pirata António de Faria. Numa das suas viagens, conheceu São Francisco Xavier e, influenciado pela sua personalidade, decidiu entrar para a Companhia de Jesus e promover uma missão jesuíta no Japão. 

Em 1554, depois de libertar os seus escravos, foi para o Japão como noviço da Companhia de Jesus e como embaixador do vice-rei D. Afonso de Noronha. Esta viagem constituiu um desencanto para ele. Desgostoso, abandonou o noviciado e regressou a Portugal. 

Com a ajuda do ex-governador da Índia Francisco Barreto, conseguiu arranjar documentos comprovativos dos feitos realizados pela pátria, que lhe deram direito a uma tença, que nunca recebeu. Desiludido, foi para a Quinta de Palença, em Almada, onde se manteve até à morte e onde escreveu, entre 1569 e 1578, a obra que nos legou, a Peregrinação. Esta só viria a ser publicada cerca de 30 anos após a sua morte, receando-se que o original tenha sofrido alterações, às quais não seriam alheios os jesuítas. O livro (de 700 páginas) passou também o crivo da Inquisição. 

Deixou-nos um relato tão extraordinário que, durante muito tempo, não se acreditou na sua veracidade. De tal modo, que até se fazia um jocoso jogo de palavras com o seu nome: “Fernão Mendes Minto” ou então “Fernão, mentes? Minto!”. A Peregrinação, porém, tornou-se um sucesso, tendo rapidamente dezenove edições em seis línguas. 

Na atualidade, Fernão Mendes Pinto é considerado um dos maiores escritores da literatura portuguesa e mundial. Ele contribuiu, ao lado de Luís de Camões, para enriquecer e fazer evoluir a língua portuguesa. A sua vida e obra têm sido tema regular para estudos universitários, um pouco por todo o mundo, nas áreas de História, Antropologia, Geografia, Sociologia, Semântica e Literatura. 

Existem ruas com o seu nome em Lisboa, Porto, Montemor-o-Velho, Guimarães, Portimão, Ovar, Freixo de Espada à Cinta e Loures, em Portugal; no Rio de Janeiro e São Paulo, no Brasil; em Luanda (Angola), no Maputo (Moçambique) e na China.



9 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
PEREGRINAÇÃO de Fernão Mendes Pinto é uma obra-prima publicada em 1614 (30 anos após a morte de seu autor) com sucesso imediato e traduções para as principais línguas europeias. É hoje conhecida como romanesca e autobiográfica, cujo rigor (ou falta dele) continua a ser debatido pelos críticos, mas no século em que foi publicada tratou-se de uma das primeiras referências ao Extremo Oriente, ainda desconhecido dos europeus. No entanto, as histórias mirabolantes e as situações extraordinárias que relata levaram a que alguns leitores mais incrédulos se referissem ao autor como Fernão Mentes? Minto – enfim, como diz o autor, “A gente que viu pouco mundo, como viu pouco também costuma dar pouco crédito ao muito que os outros viram”.
Durante os séculos XVII e XVIII, a obra foi traduzida da versão castelhana e publicada nas principais línguas europeias, tornando-se num dos mais conhecidos livros portugueses no estrangeiro. É inegavelmente o livro de viagens mais exótico e famoso da literatura portuguesa.
Leiamos com atenção o que o jornalista António Valdemar nos tem a contar a respeito da vida plena de peripécias de seu autor.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/08/a-grande-reportagem-volta-do-mundo.html

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Adorei o trocadilho com o nome do suposto mitômano.
Abs

Danilo Gomes (escritor, jornalista e cronista, membro das Academias Mineira de Letras e Brasiliense de Letras) disse...

Prezado amigo mestre Francisco Braga,
muito lhe agradeço sua mensagem sobre PEREGRINAÇÃO, de Fernão Mendes Pinto.
Li o livro e gostei muito. A minha é uma edição portuguesa,em 2 volumes, sem nenhuma ilustração, que estão lá em casa, onde não temos computador. Imprimi sua mensagem, de 2 do corrente.
Eu gostaria de ter o texto do professor António Valdemar, você pode me mandar por e-mail? Quero ter esses escritos (seu e do mestre português) impressos, que colocarei no 1º volume de PEREGRINAÇÃO.
Agradeço sua habitual atenção.
Abraço do confrade e amigo Danilo Gomes.

Danilo Gomes (escritor, jornalista e cronista, membro das Academias Mineira de Letras e Brasiliense de Letras) disse...

Muito grato, mestre Braga.
Vou imprimir a matéria ( artigo/ensaio ) do António Valdemar, no JL. Muito agradeço sua habitual cavalheiresca atenção.
Fernão Mendes Pinto sempre me interessou, foi o Marco Polo português; viajantes estudiosos, como os árabes da Idade Média cristã.
PEREGRINAÇÃO é incrível , até na China o luso Fernão foi parar.
Parece ficção, mas creio que não é. Pode haver alguma fantasia em cima da realidade vivida pelo autor.
Muito grato.
Meu abraço.
Danilo.

Frei Joel Postma o.f.m. (compositor sacro, autor de 5 hinários, cantatas, missas e peças avulsas) disse...

Boa Tarde, Francisco e Rute! Muito obrigado por esta Reportagem de Fernão Mendes Pinto, uma obra tantas vezes publicada no passado!
Cordial Abraço do irmão, f. Joel.

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Este quase mítico autor, assim como Camões, em suas genialidades, ressaltam o tremendo impacto das navegações e de um império que se abria para uma pequena nação. Deram ao mundo por conseguinte uma nova Literatura, a arte expressa por um novo idioma até então restritos aos seus acanhados limites geográficos.
Ironicamente, hoje a cidade de Lisboa e o Pragal de Fernão Mendes Pinto sofrem na pele uma nova epopéia: a da concentração e dos impactos sociais de populações oriundas das antigas colônias, inclusive do Brasil.
Saudações pela publicação que contribui para o interesse ainda maior pela leitura e discussão de tão expressivo autor da nossa língua.
Cupertino

Hilma Pereira Ranauro (escritora, autora de "O Falar do Rio de Janeiro") disse...

Obrigada, Braga e parabéns pelo seu blog.

Um abraço.

Hilma Ranauro

João Alvécio Sossai (escritor, autor de "Um homem chamado Ângelo e outras histórias, ex-salesiano da Faculdade Dom Bosco e ex-professor da UFES (1986-1996)) disse...

Francisco, muito interessante. Fiquei interessado em conseguir o livro, mas fiquei na dúvida, pois, encontrei volumes I e II, preços variando de 10 a quase 200 reais. Será que trata-se realmente do livro comentado por você no blog? Me dê uma luz.

Abraço.

João Carlos Ramos (poeta, escritor, membro e ex-presidente da Academia Divinopolitana de Letras e sócio correspondente da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Lavrense de Letras) disse...

Parabéns! Obrigado!