domingo, 29 de outubro de 2023

DISCURSO DOS 62 ANOS DA ADL-ACADEMIA DIVINOPOLITANA DE LETRAS PROFERIDO EM 14/06/2023


Por DR. FERNANDO DE OLIVEIRA TEIXEIRA 
 
Prof. Dr. Fernando de Oliveira Teixeira, membro da nova Diretoria da ADL (1º Secretário) da gestão 2023-2025

 
 

 
 
Autoridades presentes, senhoras e senhores que nos honram com suas visitas, confreiras e confrades, membros da nova Diretoria e Conselho Fiscal da ADL, eu os saúdo, com particular apreço, nesta noite de festa acadêmica. 
 
As instituições literárias não colhem aniversários, mas reassumem, a cada ano de suas existências, o compromisso com a perenidade. Paradoxalmente fixam memórias, embora se concentrem neste sempre acordar de amanhãs. Ocorre isso também com a Academia Divinopolitana de Letras, que, na esteira de sua história, desvenda roteiros, mas sem apagar os rastros. 
 
Com efeito, sessenta e dois anos atrás, numa noite de tertúlias literárias, um quarteto de visionários inaugurava um grêmio literário e convidava mais oito para um jornadear. O acicate para a aventura era apenas a certeza de que os sonhos não são inúteis, porque constróem histórias. 
 
A partir daí, as realizações se tornaram possíveis, desde eventos internos até eventos externos de estímulo no fazer e conhecer literatura. 
 
A descendência dos pioneiros que se desenrolou na alternância da ocupação das cadeiras por oficiais de estilos literários tradicionais ou com novas aventuras no quefazer da escrita não se descuidou de estimular a aspiração de conviver e divulgar as letras  lembrança de fastos pavimentando expectativas. 
 
Foram tantos e muitos que povoaram a casa que habitamos, senhoras e senhores, todos herdeiros do passado e responsáveis pela tessitura de uma história, cujo sinete é a perenidade. Afinal, o lema da ADL  scripta scriptorum maneant semper  resume que os escritos dos que escrevem permaneçam para sempre, que perdurem. Esta manutenção no tempo é depósito desta entidade, um colegiado de escritores, uma confraria de criaturas dispostas a enfrentar as mutações do manejo da escritura, de assumir a mesmice de gostos estéticos de um tempo, aceitando, porém, a renovação de experiências inovadoras, repassando paisagens, sim; acreditando, entretanto, em flores que nascem à margem dos seus roteiros. Na verdade, o tempo é hoje; no entanto, foi outrora. 
 
Logomarca da Academia Divinopolitana de Letras

 
A ADL entendeu e entende sua missão: ser caminhante, pois a perenidade se faz de um caminhar sempre. Vale a pena, na vivência andarilha das metamorfoses das letras e seus artistas em cada época, mesmo que sapatos fiquem rotos pelo andar. Afinal é possível trocá-los na lonjura da viagem. 
 
Juvêncio, um personagem do romance O ESPERADO de Plínio Salgado, febril e solitário, ocupado e preocupado com os destinos do seu país, exclama e interroga: "O Brasil caminha. Para onde?
 
Direi, ao recortar este texto, que caminhamos, confreiras e confrades, no rumo da perenidade, colhida no anseio dos que fincaram o alicerce desta casa, solidificada com a pertinácia dos pósteros para manter-se história, contemporânea e transeunte. Os ventos do tempo e dos tempos impelem este caminhar. 
 
É breve esta fala, senhoras e senhores, que aportaram nesta solenidade, breve talvez porque a serventia dela tenha sido acordar acadêmicas e acadêmicos para a responsabilidade de continuar um ideal dos princípios de uma história: concretizar um sonho de permanência no tempo, posto que, na literatura, o novo surge a cada novo momento ou a cada conquista estética. 
 
Impende continuar, durar. Nem sempre haverá jardins à margem do caminho. O horizonte desejado nunca está perto; é contingência humana. Urge caminhar no seu rumo. Mesmo que os pés doam, vale o caminhar. 
 
A vocação de uma academia é essa, prezado auditório; também esta é a vocação da Academia Divinopolitana de Letras: viver o hoje e renovar-se sempre  ônus e graça da perenidade. 
 
Nas etapas da andança nos encontramos, como neste momento, para partilhar nosso anseio de buscar um horizonte , sempre espera na distância  e convidá-los a entender e conviver este ideal de perenidade no tempo. 
 
São sessenta e dois anos de uma estrada que se desenrola permanentemente. 
 
E parar pode ser morrer. 
 
Caminhemos, pois. 
 

Acervo digital de Rute Pardini em 14/06/2023:
 
Acadêmica Maria Imaculada Batista Silva passa a presidência da ADL ao também Acadêmico Joaquim Medeiros de Oliveira


Presidente e Vice-Presidente para a gestão 2023-2025 da ADL.


Câmara Municipal de Divinópolis concede Moção Congratulatória  ao novo presidente em reconhecimento por sua eleição

Joaquim Medeiros de Oliveira, ocupante da cadeira nº 18, novo presidente eleito da ADL para a gestão 2023-2025.

Acadêmicos Francisco Braga, cadeira nº 11, e Arnaldo Júnior, cadeira nº 27                                                       
                                             
Acadêmico João Carlos Ramos, ocupante da cadeira nº 15, e Rute Pardini


quarta-feira, 25 de outubro de 2023

JUNQUEIRO, a coragem da opinião


Por ANTÓNIO VALDEMAR *
 
O centenário da morte do poeta permite revisitar a sua obra repleta de testemunhos implacáveis acerca de Portugal e do comportamento dos portugueses e sobre a ausência das soluções necessárias para ultrapassar as crises. (Publicado originalmente no jornal As Artes entre As Letras, edição de 25 de Outubro de 2023, pp. 6 e 7)

 

Os grandes acontecimentos nacionais e internacionais que se verificaram no tempo de Guerra Junqueiro (1850-1923), refletiram-se na conduta do homem e na obra do poeta. Basta citar o Finis Patriae (1890) e a Pátria, (1896) dois livros de combate, onde procurou retratar ou caricaturar as tendências dominantes no país real e as singularidades do temperamento e do carácter dos portugueses. 

Espetador e interveniente nas guerras e nas guerrilhas, que agitaram a vida política, social e cultural portuguesas, Junqueiro acompanhou de perto as consequências do Ultimatum de 1890 e da Revolução Republicana do 31 de Janeiro. Os ataques desferidos por ocasião da ditadura de João Franco levaram-no à barra dos Tribunais. Este consulado político, que decorreu entre maio de 1906 e acabou com o Regicídio (1 de fevereiro de 1908), precipitou o fim da Monarquia e abriu caminho para a instauração da República. Junqueiro também seguiu de perto os anos agitados da República: a repetição de erros crassos, desvios graves e as violências sangrentas, ainda assistiu a mais duas ditaduras, a de Pimenta de Castro (28 de janeiro de 1915 a 14 de maio de 1915) e a de Sidónio Pais (9 de maio de 1918 a 14 de dezembro de 1918) que deixaram feridas abertas. A 28 de maio de 1926 – Junqueiro havia falecido a 7 de julho de 1923 – implantava-se ainda mais outra ditadura portuguesa no século XX. A tomada do poder pelos militares, seguida pela ditadura de Salazar que se estendeu por mais de quatro décadas, até ser derrubada pelo 25 de Abril

A publicação de sucessivas edições do Finis Patriae e da Pátria desencadeou uma controvérsia política, enquanto o aparecimento d’A Velhice do Padre Eterno (1885), circunscreveu-se a uma polémica sem precedentes, no âmbito da igreja católica. A ferocidade da sátira envolveu desde as mais altas hierarquias até ao pároco da aldeia. Denunciou a conduta religiosa que, em nome da fé e em nome de Deus, mergulhava nas malhas obscuras da política quotidiana, para favorecer interesses institucionais e materiais e reforçar o poder em todas as instâncias. O panfleto da autoria do Padre Sena Freitas, Autópsia da Velhice do Padre Eterno, atingiu o auge das contestações que se mantiveram depois da morte de Junqueiro. Estabeleceu tamanha confusão que, dificilmente, se poderia concluir que Junqueiro se limitava a combater a superstição, o medo e o terror nas consciências. A existência de Deus e a figura de Cristo, nunca foram postas em causa. Mas o salazarismo – “orgulhosamente só” – ignorou o Concílio Vaticano II promovido por João XXIII e executado por Paulo VI. 

 

PÁTRIA E PIA 

 

Já o Finis Patriae e a Pátria constituem um ataque implacável à dinastia de Bragança concentrada, fundamentalmente, no rei D. Carlos, na corte que o cercava, nos partidos que se alternavam nos Governos e nas instituições comprometidas numa permuta de malabarismos movidos através dos caciques nacionais e locais. Se ambos os poemas são escaldantes, encontra-se um texto muito mais explosivo integrado como apêndice da Pátria. Ultrapassou a crítica vigorosa de Ramalho, em numerosos volumes, as Farpas; a ironia penetrante de Eça, nas suas grandes obras e nas crónicas ocasionais. Assemelhava-se à fúria bravia que percorre os Gatos de Fialho. 

Perante a sociedade que o rodeava, Junqueiro não hesitava em alertar numa comparação com o episódio da ressurreição descrito na Bíblia: «se Cristo, entre ladrões, fosse crucificado, em Portugal, ao terceiro dia, em vez do Justo, ressuscitariam os bandidos. Ao terceiro dia? Que digo eu! Em 24 horas andavam na rua, sãos como perros, de farda agaloada e a Grã Cruz de Cristo». E quais os motivos que davam lugar a esta situação degradante? Junqueiro – e optamos por transcrever as suas próprias palavras – responsabilizava os partidos que alternavam no exercício da governação, (o Partido Progressista e o Partido Regenerador) permaneciam «sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes na hora do desastre, de sacrificar uma gota de sangue, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e perverso, análogos nas palavras, idênticos nos atos, iguais um ao outro». 

Perante esta e outras evidências, Junqueiro não resistia a advertir: «Da mera comuna de estômagos não resulta uma Pátria, resulta uma Pia». Assim deplorou a influência nefasta de «uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até a medula», «sem palavras, sem vergonha, sem carácter»; «pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos (...)». 

A sociedade encontrava-se em manifesto declínio: a «parasitagem burocrática», a «advogalhada de São Bento», misturadas com «traficâncias», «corrupção visceral, glorificações mercenárias, apoteoses aviltantes revestidas de ironia céptica, galhofa cínica, humor sibarita e riso canalha». Eis porque – escrevia Junqueiro – abundavam «os quadrilheiros que infestam Lisboa e os sub-quadrilheiros que infestam as províncias». Reclamava soluções cáusticas: «anulá-los, esmagá-los num dia, numa hora, sem pena e sem remorso, vazando-os logo – atascadeiro de baixezas, lodo de malandros – pelo buraco infecto duma comua. Depois pregar a tampa. Um colector in pace, um cano de esgoto jazigo de família** A justiça ficava «ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara a ponto de fazer dela um saca-rolhas».

 

MUDANÇA RADICAL 

 

O homem português em face da crise, caracterizava-se, sem margem para equívocos:

«Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia de um coice, pois que nem já com orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai (...)».
Predomina «um pessimismo canceroso e corrosivo, minando as almas, cristalizado já em fórmulas banais e populares – tão bons são uns como os outros, corja de pantomineiros, cambada de ladrões, tudo uma choldra». «O português, apático e fatalista, ajusta-se pela maleabilidade da indolência a qualquer estado ou condição. Capaz de heroísmo, capaz de cobardia, toiro ou burro, leão ou porco, segundo o governante. (...) Povo messiânico, mas que não gera o Messias. Não o pariu ainda. Em vez de traduzir o ideal em carne, vai-o dissolvendo em lágrimas. Sonha a quimera, não a realiza». 

Se atacava ferozmente a classe dominante e a indiferença do povo, Junqueiro também se mostrava bastante incrédulo, em relação à maioria da juventude: «Deparava uma geração nova das escolas, entusiasta, irreverente, revolucionária, destinada, porém, como as anteriores, viva maré dum instante, a refluir anódina e apática ao charco das conveniências e dos interesses». A reforma na área da justiça impunha-se mas preconizava a urgência de uma transformação radical no domínio da educação e do ensino, desde a família à escola e à Universidade, a fim de preparar outra geração com a dimensão moral, política e cultural para realizar um projeto de futuro. «Os homens que há muito dirigem os destinos da nação» – insistia Junqueiro – «quase sempre democratas vazios aos vinte anos, e cínicos redondos aos quarenta, são incapazes de um plano de Governo. Eles, francamente, visam, apenas, salvar o seu interesse, o seu egoísmo e as suas lantejoulas de medíocre». Assim resumia a «fatalidade inexorável que, em momentos cruciais, se torna indisfarçável no comportamento individual e na relação colectiva do homem português, dentro do seu próprio País.». 

 

«A ÁGUIA BAIXOU A MILHAFRE» 

 

O consumo de aspas, nesta visão retrospetiva, terá sido excessivo. Perdia-se, contudo, o cunho pessoal e intransmissível de Junqueiro. Em matéria tão polémica e tão delicada, podemos ainda lembrar que, perante a conjuntura que se vivia, na altura, «a águia baixou a milhafre». «O milhafre é útil, depura e limpa» – concluía. «Os Gatos foram, em parte, uma obra de justiça, por vezes de cólera. Mas o rancor dos bons denota ainda bondade. Só os grandes idealistas desceram a grandes satíricos. Cristo dava chicotadas». 

Cem anos depois da morte de Junqueiro – que foi, de imediato, consagrado no Panteão Nacional – não parece possível recuperar a sua obra literária. A geração de Fernando Pessoa que se afirma a partir de 1915 na revista Orpheu elegeu entre os poetas do passado próximo Cesário Verde, Gomes Leal, Camilo Pessanha e Antero. Um dos principais representantes da Seara Nova que não se identificava com o modernismo e as vanguardas – trata-se, concretamente, de Raul Proença – classificava a obra de Junqueiro, em especial as interpelações que se multiplicam nos seus livros mais contundentes de «trovoada de lata». Seja como for, o que não resta dúvida é que perdura na criação literária de Junqueiro a veemência do protesto e a coragem da opinião, sempre que nos confrontamos com a efervescência política e a degradação social e que se tem repetido e acentuado nestes dias de angústia e de perplexidade que estamos a viver. 

* Jornalista, investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências. 

 

** Nota do gerente do Blog: Ainda sobre o poder legislativo português da época, Junqueiro, no mesmo trecho de Pátria (1896), chama-o de «esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País (...)»

domingo, 15 de outubro de 2023

O PROFESSOR


Por JOSÉ CIMINO *
 
Poema extraído do livro INFINITO INSTANTE (2001), pp. 81-2.

 

Homenagem especial ao corpo docente do Grupo Escolar João dos Santos, São João del-Rei (1958, ano do Cinquentenário do educandário) / Crédito: IBRAM-Museu Regional de São João del-Rei / Da esq. p/ direita: No alto: Zilda Natalina Gonçalves Gomes, Sofia Bassil, Lígia Ventura, D. Bolia, D. Quiquinha, Dulce Mendes, Beatriz Leite de Andrade, Bertha Leite de Andrade. Embaixo: Arlete Ávila, Luzia Prado, Maria Luísa Carneiro Rodrigues, Beatriz Christófaro, Marise Eva Ventura Guimarães, Beatriz Felicetti Resende e Maria Aparecida Paiva. Sinto falta das minhas queridas professoras na foto: D. Eneida Simões Alves, D. Beatriz Maria de Resende Silva e D. Yvane Leite de Andrade, respectivamente na 1ª, 4ª  e 3ª séries. Também, lamento a ausência, na equipe da foto, da pianista "D. Cecê" (Mercedes Passarini de Resende Ferreira, da "Pensão Resende") e Odete Dângelo.

 
O  PROFESSOR
 
Eis o professor:
criador de melodias 
que não cantará, 
mas que ecoarão 
no espaço da existência 
por ondas além do tempo. 
 
As estradas, pelas quais caminha, 
conduzem a ideais sublimes, 
levam a todas as nações e raças. 
Percorrem as muitas culturas 
de hoje, de ontem e de amanhã 
e deixam os povos sem fronteiras. 
 
Os segredos do conhecimento 
ele os distribui 
como quem semeia o trigo 
na imponderável seara das inteligências. 
Ilumina as vidas, 
como que espargindo estrelas 
no escuro da humana consciência. 
 
Com suas mãos, 
vai fazendo o homem que ele não será. 
Há nele, 
para além da minúscula região do seu espírito, 
uma razão de ser, 
um ímpeto, 
que as mentes embotadas pelo lucro 
ainda não conseguiram aniquilar. 
 
Professor é o irmão de todos, 
para os quais dispensa o próprio saber. 
Irmão na vasta integração dos valores, 
que sabe o sublime arrolamento dos contrários, 
onde a rotina se supera com a diuturna renovação 
e a dedicação se frustra 
com a carência do pronto agradecimento. 
 
Frágil no modo de ser, 
sem ele o homem regride. 
Condição para todas as profissões, 
um dia, após a cultura 
e os valores éticos 
terem chegado ao fundo do abismo, 
haverão de convocá-lo para a reconstrução 
de tudo que, sem ele, ruiu 
e, em fim, recolocá-lo no pedestal 
do qual os insanos o arrancaram.
 
* Escritor com vários livros publicados, professor de filosofia no ensino superior, principalmente na Faculdade Dom Bosco de São João del-Rei e na Fundação de Ensino Superior de Rio Verde (Fesurv), Goiás, com rápida passagem pela Universidade Presidente Antônio Carlos (Unipac) de Barbacena. Admitido no Serviço Público Federal, por concurso, foi Assessor para Assuntos Educacionais do MEC, Diretor da Escola Agrotécnica Federal de Rio Verde, onde recebeu o título de Cidadão Honorário Rioverdense.  
 
II. BIBLIOGRAFIA
 
 
CIMINO, José: INFINITO INSTANTE. Belo Horizonte: Edições AMEF, 2001, 158 p.
 
____________: Na luz do ser: investigações de ontoantropologia, Ubá: Gráfica Multimpresso, 2021, 576 p. 

____________: Poemas seletos de "Infinito Instante", Blog de São João del-Rei, post de 21/04/2019.

____________: Ouvindo música e lendo poesia, Blog de São João del-Rei, post de 22/03/2023  👈
 
BRAGA, Francisco José dos Santos:  Colaborador: JOSÉ CIMINO, Blog de São João del-Rei, post de 21/04/2019.
 
____________________: O CINQUENTENÁRIO DO GRUPO ESCOLAR JOÃO DOS SANTOS (26/7/1908-26/7/1958), Blog de São João del-Rei, post de 7/10/2016.

terça-feira, 10 de outubro de 2023

DESCOMPASSO


Por HILMA RANAURO *
 

 
Me querem mãe 
e me querem fêmea, 
me querem líder 
e me fazem submissa, 
me fazem omissa 
e me cobram participação, 
me impedem de ir 
e me cobram a busca, 
me prendem nas prendas do lar 
e me cobram conscientização, 
me tolhem os movimentos 
e me querem ágil, 
me castram os desejos 
e me querem em cio, 
me inibem o canto 
e me querem música, 
me apertam o cinto 
e me cobram liberalidade. 
 
Me impõem modelos 
gestos 
atitudes 
e comportamentos.
 
E me querem única.
 
Me castram 
podam 
falam 
e decidem por mim. 
 
E me querem plena...
 
* Escritora com vários livros publicados, poeta, cronista, ensaísta e jornalista, membro da ABRAFIL-Academia Brasileira de Filologia, biógrafa do filólogo Sílvio Elia.
 
Da esq. p/ dir.: Ricardo Cavaliere, Evanildo Bechara e Hilma Ranauro na ABRAFIL

 
II. Análise literária do poema por Francisco José dos Santos Braga 
 
 
No ano passado, Hilma Ranauro fez interessante estudo, onde propôs as bases para uma poiésis como reduto de contestação em que a forma empregada pelo escritor deve possibilitar que o leitor perceba, aprecie e julgue o universo criado e reaja diante dele. Ao escritor cabe fazer a análise e síntese da realidade psicossocial. Se a escrita for uma forma de resistência à opressão, o escritor precisa desenhar o cenário em que a opressão toma corpo, ou seja, precisa igualmente compreender os mecanismos de poder que produzem essa força violenta e desumanizadora, contra a qual o eu poético deve se opor, superar-se, (re)existir. A resistência pode perfeitamente dar-se num espaço temporal em que as contradições do mundo sejam vistas pelo eu poético através de uma perspectiva sócio-histórica e que suscitem, na forma empregada, o jogo de paradoxos, a riqueza metafórica e a interpelação simbólica. Até aqui, temos tratado da forma de expressão do poema. 
 
Quanto ao conteúdo, há duas interpretações possíveis diante da forma empregada. Embora no contexto do poema em primeira pessoa, numa ótica de gênero, seja possível generalizar, atribuindo-lhe o sentido de que "as mulheres carregam nos ombros o peso do mundo", cabe também outra interpretação: a de que, dada a indeterminação do sujeito, como é o caso, o sujeito indeterminado empregado reiteradamente ao longo do poema não deve ser visto de uma perspectiva unicamente feminista, subentendendo-se  que seja "o mundo", metaforicamente considerado como "o sistema", algo maior, apenas sentido e impossível de ser claramente verbalizado. Neste caso, "o mundo", dentro do poema, é simbolizado pelo coletivo, jamais enunciado explicitamente: é o sistema que impõe, constringe e obriga o eu poético a ser de uma maneira não desejada, embora não consiga extirpar-lhe inteiramente a utopia que está presente/subjacente em cada dístico do poema. Ainda que os dois últimos (dísticos) aparentemente se distingam dos anteriores na apresentação, ambos continuam a ter a mesma coesão interna e conotação, ou seja: (Me impõem modelos, gestos, atitudes e comportamentos/ E me querem única e Me castram, podam, falam e decidem por mim/ E me querem plena...) 
 
Neste sentido, a revolta do eu poético é contra o mundo: é irrelevante se chamam a artista de poeta ou poetisa; o importante para ela é "poetizar o mundo".
 

III. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
 
 
RANAURO, Hilma: DESCOMPASSO, Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro,  1ª ed., 1985; Ed. Tagore, 2ª ed., 1989.

__________: A arte literária como reduto de contestação ou confirmação do poder, revista Confluência. Rio de Janeiro: Liceu Literário Português, nº 63, p. 128-137, jul./dez. 2022.

sábado, 7 de outubro de 2023

NATÁLIA, ENTRE DOIS EXTREMOS


Por ANTÓNIO VALDEMAR *
 
A criação literária de Natália Correia possui duas componentes fundamentais: o pendor lírico, ao aprofundar os sentimentos mais íntimos, e a sátira escaldante e corrosiva para ajuste de contas com poetas, escritores, artistas, políticos e outras pessoas que detestava. (Texto publicado originalmente na revista TEMPO LIVRE edição de 4 de Outubro, 2023, Lisboa.)
Natália Correia numa interpretação de Álvaro Carrilho

 

 

NATÁLIA CORREIA pertenceu ao reduzido número de mulheres que basta só dizer um nome para as identificar na amplitude da sua criação literária e artística e na singularidade da sua dimensão humana – Natália, Sophia, Vieira (da Silva), Agustina, Amália. Nasceu nos Açores na ilha de São Miguel, na Fajã de Baixo, uma freguesia do interior, próximo de Ponta Delgada. Pai e mãe entraram em rutura quando Natália tinha alguns meses. O pai emigrou para o Brasil. 

A mãe de Natália, a professora primária Maria José Oliveira formara-se no ideário cívico e cultural da I República, adotando princípios laicos e tendências libertárias, o que era raro na época e, ainda, muito mais raro nos Açores. Além do exercício do magistério, colaborou em jornais e revistas. Mas, desde sempre, preocupou-se com a educação das filhas, incutindo-lhes os valores da democracia e a aproximação com a modernidade. Radicou-se, em 1934, definitivamente, em Lisboa. Quis dar às filhas – para triunfarem na vida – as oportunidades que não existiam nos Açores. 

Natália ganhou notoriedade nos anos 40. Conciliou o jornalismo, a literatura e a política. Aderiu à oposição democrática; teve programas no Rádio Clube Português, escreveu em jornais e revistas. Assinou, em 1945, as listas do MUD. Todavia, ao contrário da maioria dos jovens intelectuais e políticos da sua geração – caso Mário Soares, Salgado Zenha – não ingressou no MUD Juvenil, dominado pelo Partido Comunista. 

Os primórdios literários de Natália Correia refletem aspetos genéricos do neorrealismo. O romance Anoiteceu no Bairro e o livro de versos Rio de Nuvens são dois exemplos. Demarcou-se, todavia, deste movimento literário e político, nos anos 50. Seguiu outro caminho que prosseguiu, com variantes óbvias. Passou a ficar próxima do surrealismo. 

Manteve relações pessoais e literárias com Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Alexandre O’Neill, Manuel de Lima e Mário Henrique Leiria. Acrescente-se Luís Pacheco, editor dos surrealistas e de livros de poesia de Natália, desta segunda fase: Dimensão Encontrada (1957), Passaporte (1958) e Comunicação (1959). É um documento humano repleto de inquietações e de perplexidades. Já o Canto do País Emerso (1961) constitui a transição para o combate político. 

Publicou, com êxito, muitos outros livros de poesia, de ficção, de teatro, de ensaio e de crónicas ocasionais. Se a identificação de Natália Correia com Lisboa foi muito intensa, o vínculo com os Açores foi igualmente profundo. Não Percas a Rosa, um dos seus livros mais famosos, regista as reminiscências visuais, auditivas e gustativas que remontavam à infância e ao começo da adolescência, na ilha de São Miguel. 

Na linhagem das Cantigas de Escárnio e Maldizer, concebeu as Cantigas de Risadilha. Para enfrentar todos os poderes e todos os convencionalismos. Ficaram célebres os versos para arrasar o deputado do CDS, João Morgado quando se pronunciou, na Assembleia da República, acerca da legislação sobre o aborto. Morgado disse categoricamente: «o ato sexual é para fazer filhos». Natália, deputada do PSD, não se conteve e fez, de um jato, um poema que saiu na íntegra no dia seguinte, no Diário de Lisboa

Natália declamou com a maior ênfase: «Já que o coito – diz Morgado –/ tem como fim cristalino,/ preciso e imaculado/ fazer menina ou menino;/ e cada vez que o varão/ sexual petisco manduca,/ temos na procriação/ prova de que houve truca-truca./ Sendo pai só de um rebento, / lógica é a conclusão/ de que o viril instrumento/só usou–parca ração!–/uma vez. E se a função/ faz o órgão – diz o ditado –/ consumada essa exceção,/ ficou capado o Morgado!» 

Lisboa era a sua cidade adotiva. Juntamente com o marido Alfredo Machado e com a escultora Isabel Meyrelles criou, em 1971, uma sociedade para instalar um bar, restaurante/café-concerto, no largo da Graça, no rés-do-chão da Vila Souza, um edifício histórico do bairro. Ficou a chamar-se o Botequim. Evocava a tradição literária, política e boémia, que remontava aos primeiros cafés de Lisboa, do século XVIII, ao tempo de Bocage e aos antecedentes da revolução liberal e da independência do Brasil. 

Encontrava-se Natália envolvida, em 1971, em controvérsias políticas e literárias que deram brado em todo o País. Desencadeara no consulado de Salazar e na «primavera marcelista» duas ruidosas polémicas que a levaram à barra do Tribunal Plenário de Lisboa. O primeiro processo motivado pela introdução e coordenação da Antologia da Poesia Erótica e Satírica (1965). O segundo processo devido à responsabilidade editorial das Novas Cartas Portuguesas (1972) da autoria de Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. Ambos os livros foram objeto do alarme da Censura e da imediata apreensão da PIDE. Foi julgada e condenada, ao cabo de nove anos de guerrilhas judiciais. O 25 de Abril determinou o ponto final. 

Em torno de Natália, o Botequim concentrou todas as noites, poetas, escritores e artistas das mais variadas tendências. Políticos de todos os quadrantes. Deputados, ministros (alguns futuros presidentes da República). Diplomatas portugueses e estrangeiros. Espiões nacionais e internacionais para se inteirarem dos bastidores do processo revolucionário e contrarrevolucionário. Representantes da FLAD, o movimento da independência dos Açores. 

Durante mais de 20 anos a irradiação magnética de Natália proporcionou essa atmosfera irrepetível que Fernando Dacosta recriou no seu livro O Botequim da Liberdade (2013). Outra obra de referência obrigatória é a Fotobiografia de Natália (2006) da autoria de Ana Paula Costa. Recentemente, surgiu a biografia romanceada por Filipa Martins e com o título expressivo O Dever de Deslumbrar

Trinta anos depois da morte e ao comemorar-se a 13 de setembro o centenário do nascimento, o legado cultural de Natália Correia perdura. Celebrou a vida como expressão de euforia, de afirmação de coragem pessoal e cívica, de rebeldia aparatosa, de inconformismo colérico. A sua poesia é sempre dominada por dois extremos: a confidência lírica e o sarcasmo feroz: a riqueza metafórica, o jogo dos paradoxos, o luxo ornamental, a exuberância do barroco e a interpelação simbólica. Uma Natália ávida de todas as experiências visíveis e invisíveis, em partilha contínua do profano com o sagrado. 

* Jornalista, carteira profissional numero UM; sócio efetivo da Academia das Ciências. 

 

II. AGRADECIMENTO

 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição da foto utilizada neste ensaio.
 
 
III. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
 
 
VALDEMAR, António: CEM ANOS DE NATÁLIA CORREIA: a criação literária e a intervenção política de uma mulher única 

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL


Por RODRIGO MELO FRANCO DE ANDRADE *


Texto da conferência intitulada "PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL" proferida em 21/11/1961 no curso de extensão cultural "Arte Antiga no Brasil" e publicado originalmente na brochura homônima em 1961, pelo IHGGB-Instituto Histórico e Geográfico Guarujá-Bertioga.
Rodrigo Melo Franco de Andrade (✰ BH, 17 de agosto de 1898 — ✞ Rio, 11 de maio de 1969) / Foto: Marcel Gautherot (Acervo IPHAN)



 
O que constituiu e constitui o Brasil não é apenas seu território, cuja configuração no mapa do hemisfério sul do continente americano se fixou em nossa memória, desde a infância, nem esse território acrescido da população nacional, que o tem ocupado através dos tempos. Somente a extensão territorial, com seus acidentes e riquezas naturais, somada ao povo que a habita, não configura de fato o Brasil, nem corresponde a sua realidade. Há que computar também, na área imensa povoada e despovoada, as realizações subsistentes dos que a ocuparam e legaram às gerações atuais: a produção material e espiritual duradoura ocorrida do norte ao sul e de leste a oeste do país, constituindo as edificações urbanas e rurais, a literatura, a música, assim como tudo mais que ficou em nossas paragens, com traços de caráter nacional, do desenvolvimento histórico do povo brasileiro. 
 
O acervo dessas produções da sucessão já longa de nossos predecessores é que, ligando os brasileiros de hoje às populações que os antecederam, originárias da própria terra ou provindas de outros continentes, em verdade autentica e afirma a existência nacional.
 
O que se denomina patrimônio histórico e artístico nacional representa parte muito relevante e expressiva do acervo aludido, por ser o espólio dos bens materiais móveis e imóveis aqui produzidos por nossos antepassados, com valor de obras de arte erudita e popular, ou vinculados a personagens e fatos memoráveis da história do país. São documentos de identidade da nação brasileira. A subsistência deles é que comprova, melhor que qualquer outra coisa, nosso direito de propriedade sobre o território que habitamos. 
 
Não há meio tão eficaz para incutir-nos a convicção da unidade e da perenidade da pátria quanto um balanço, ainda que sumário, dos monumentos herdados de nossos maiores, ao longo de toda a superfície do Brasil. 
 
Da decisão e da capacidade de nosso povo assegurar a defesa da integridade nacional, as provas mais convincentes e emocionantes são as fortificações que, no decorrer dos séculos da formação e do desenvolvimento do Estado brasileiro, foram edificadas e se conservam nos limites mediterrâneos e marítimos de nosso território. Do ideal e do fervor religioso, que inspiraram nossas antigas populações, contribuindo notavelmente para firmar o sentimento de solidariedade entre os habitantes deste imenso país, as igrejas levantadas nos sítios mais diversos e distantes, em número prodigioso, perduram como testemunhos sublimados. As formas de governo e as instituições políticas e administrativas estabelecidas no Brasil através dos tempos, ficaram bem definidas e assinaladas para a posteridade nos palácios reais e imperiais, bem como nas residências de vice-reis e governadores ou capitães generais e, ainda, nos prédios de intendências e alfândegas e nas casas de câmara e cadeias das cidades e vilas brasileiras. As modalidades da produção econômica que condicionaram os ciclos sucessivos do desenvolvimento nacional,  o ciclo do açúcar, o da mineração e o do café , com as intercorrências da produção pastoril e siderúrgica, ressurgem dramaticamente assim nas velhas sedes de engenhos e fazendas, como nos remanescentes das lavras e das fábricas primitivas, nas regiões em que ocorreram. O regime patriarcal, latifundiário e escravocrata que caracterizou a formação da sociedade em nosso país e as transformações que nesta se operaram, em consequência das vicissitudes econômicas e outras circunstâncias peculiares, estão simbolizadas expressivamente nas antigas casas-grandes e senzalas rurais, nos velhos sobrados e cortiços urbanos, além de em certos espécimes de construções destinadas a lojas, oficinas e armazéns. O sistema de abastecimento de água adotado em nossos centros populosos e o de assistência à saúde pública deparam-se-nos, com a feição que os distinguia, nos aquedutos vetustos, nas fontes e nos chafarizes coloniais e imperiais, assim como em tantos nobres edifícios das Misericórdias multicentenárias. 
 
Quanto à memória de fatos e personagens culminantes da história do Brasil, conservam-na, mais comoventemente que qualquer compêndio, o templo votivo erigido, na elevação dominante do campo das batalhas dos Guararapes, pelo comandante vitorioso das refregas finais contra o invasor estrangeiro; a lápide que recobre os despojos do bravo Estácio de Sá; a cela humilde onde expirou o Padre José de Anchieta; a casa brasonada em que nasceu o poeta Gregório de Matos; aquela onde morreu Castro Alves; a Casa de Ruy Barbosa; e tantas e tantas outras. 
 
Compenetrados da obrigação cívica e cultural de preservar esses valores, os autores das sucessivas constituições adotadas no Brasil deste 1934 incluíram, invariavelmente, entre seus preceitos fundamentais, o da defesa do acervo de arte e de interesse histórico e paisagístico do país. Assim é que a Constituição Federal vigente determina, no artigo 175, que "as obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem como os monumentos naturais, as paisagens e os locais de particular beleza ficam sob a proteção do poder público". Entretanto, a lei especial promulgada com o objetivo de organizar essa proteção estabeleceu que os bens aludidos "só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional depois de inscritos, separada ou agrupadamente, num dos quatro Livros do Tombo" instituídos pelo mesmo diploma legal. 
 
Foi em obediência a tal norma que se procedeu à inscrição ou tombamento dos bens cuja preservação se julgou de interesse público. Mas, por motivo da enorme extensão do território brasileiro e, bem assim, pelas circunstâncias que dificultam o inventário sistemático dos bens móveis de valor histórico e artístico existentes em nosso país, sobretudo os de propriedade particular de pessoas naturais, o acervo inscrito nos Livros do Tombo está ainda muito longe de se tornar satisfatório para o efeito determinado. 
 
Não obstante, se quisermos ajuizar, ainda que sumariamente, à vista dos bens tombados até agora, da contribuição do povo de cada área geográfica de nosso país para a formação e o enriquecimento do patrimônio artístico do Brasil ou, pelo menos, dar um golpe de vista breve nas obras inscritas nos Livros do Tombo nas diversas regiões do território nacional, não ficaremos decepcionados com a herança que os maiores nos deixaram. 
 
No extremo norte, além dos restos das culturas indígenas da Amazônia, recolhidos no Museu Paraense Emílio Goeldi, entre os quais se destacam os espécimes das cerâmicas de Santarém e Marajó, encontramos os monumentos jesuíticos de Belém e de Vigia, cujos traços de possante originalidade, de sabor regional, contrastam sem inferioridade com o apurado desenho neo-clássico dos monumentos religiosos e civis levantados na capital do Pará sob o risco de Francisco José Landi. No Maranhão, o retábulo seiscentista da Sé de São Luís e a igreja do Carmo de Alcântara, conquanto representem exemplares preciosos de nossa arte sacra tradicional, são menos expressivos que os belos sobrados das duas cidades, revestidos de azulejos de variegados padrões nas frontarias, com grades de esmerada serralheria nas sacadas e também caracterizados pelas gelosias pitorescas de suas fachadas posteriores e de seus pátios internos. Há que salientar, porém, que, em São Luís, as obras mais antigas dos chafarizes públicos do Ribeirão e das Pedras, este último injustificavelmente alienado a particular e murado, excedem, em proporções monumentais, às das construções da mesma espécie em todo o país. 
 
No Piauí, o acervo arquitetônico ponderável compreende as igrejas matrizes de Oeiras e Piracuruca, que sobressaem entre as construções urbanas e rurais da região, mas têm menor interesse arquitetônico que as singelas casas de fazenda ali existentes, com longos alpendres acolhedores. 
 
Relativamente aos Estados do Nordeste, deparamos apenas poucos monumentos preservados no Ceará, tais como a casa de José de Alencar em Macejana e certas edificações civis e religiosas mais arcaicas, em Icó e Aracati, às quais deve ser acrescentado o caso singular da igreja de Almofala, envolvida no areal como num manto. O Rio Grande do Norte conserva apenas, de relevo excepcional, a preciosidade do Forte dos Santos Reis Magos, construído primeiramente em 1598, com outra forma, sob desenho do arquiteto militar jesuíta Gaspar de Sampères, mas, por ser de taipa, estacada e areia solta, foi edificado com sua forma atual sob a traçar do Engenheiro Mor Francisco Frias da Mesquita, de 1614 a 1619. No Estado de Alagoas as obras de arquitetura antiga escasseiam, em consequência dos malefícios do tempo e dos homens, hoje consistindo no belo convento franciscano e nos templos de Penedo e da antiga capital, ora denominada Marechal Deodoro, onde perdura também uma simples parede da casa natal do fundador da República. Em compensação, a Paraíba e Pernambuco se podem orgulhar de possuir parcela das mais ricas e significativas do patrimônio histórico e artístico do país. Nessa área se destacam, a par da relíquia quinhentista que é a igreja jesuítica da Graça, em Olinda, exemplares insignes das construções levantadas pelos franciscanos, beneditinos e carmelitas no Brasil, competindo com o altíssimo padrão de outras obras de arquitetura religiosa da qualidade das igrejas de São Pedro dos Clérigos, da Conceição dos Militares e da Capela da Jaqueira, no Recife, das igrejas de Nazaré, no Cabo de Santo Agostinho e da de São Cosme e São Damião, em Iguaraçu, da capela do Engenho Bonito, da igreja da Guia e da capela de N. Sra. do Patrocínio situadas em zonas rurais dos municípios de Nazaré da Mata e de Santa Rita. A tais monumentos pouco se inferiorizam, em virtude da raridade de suas características, os pequenos sobrados residenciais seiscentistas, da Praça João Alfredo, nº 7 e da rua do Amparo, nº 28, em Olinda, assim como a casa-grande do Engenho Poço Comprido, no município de Vicência e também, apesar de muito maltratada e prejudicada pela proximidade aviltante de novas edificações utilitárias, a fortaleza de Santa Catarina, em Cabedelo. 
 
O exíguo território de Sergipe resguarda um conjunto arquitetônico notável na cidade de São Cristóvão, acrescido em outros municípios de templos que se distinguem por elementos genuínos de relevantíssimo teor, quais a igreja de Nossa Senhora do Socorro de Tomar, em Geru, a matriz de Santo Amaro, a capela rural de Comendaroba e a igreja da Divina Pastora, para mencionar somente a parte mais sugestiva do patrimônio artístico sergipano. 
 
Quanto à Bahia, se quase todos os brasileiros de cultura média lhe conhecem bem, de vista ou por fotografias, monumentos famosos como a igreja do Convento e a da Ordem Terceira de São Francisco, a igreja da Companhia, hoje Sé-Catedral, ou o Paço do Saldanha, na cidade do Salvador, ignoram ou têm notícia insuficiente de outros de valor extraordinário na própria capital e diversos pontos do Estado. Entre estes, localizados na capital, bastará assinalar as casas nobres do Arcebispado, dos 7 Candieiros, do Berquó, de São Dâmaso, do Conde dos Arcos e da Associação Comercial; as igrejas da Conceição da Praia, do Pilar e Monte Serrat; o convento e igreja de Santa Teresa, convertido em Museu de Arte Sacra; a Santa Casa de Misericórdia com sua igreja anexa; as fortalezas de S. Antônio, de Santa Maria, de Monte Serrat e de S. Marcelo. Em cidades diversas, avulta o acervo impressionante de Cachoeira, onde ressaltam a igreja da Ordem Terceira do Carmo e a Matriz, o paço municipal e a casa nobre da praça da Aclamação, nº 4; as casas de Câmara e Cadeia de Jaguaripe, Santo Amaro e Maragogipe; nas zonas rurais a capela quinhentista e os remanescentes da Casa da Torre de Garcia d'Ávila; a capela do Engenho Velho do rio Paraguaçu; as casas dos Engenhos Freguezia, Matoim e Embiara; a igreja do desaparecido Seminário de Belém da Cachoeira e a capela de São José de Genipapo, no município de Castro Alves. Importa observar, porém, que vários trechos de velhos logradouros urbanos de nossa primitiva Capital têm interesse equivalente às de monumentos valiosos, considerados em si mesmos. De outra parte, não se deve omitir que na Bahia se acham as produções de nível mais alto de alguns de nossos maiores mestres de ofício, como os arquitetos Frei Macário de São João e Gabriel Ribeiro; escultores como Frei Agostinho da Piedade, Francisco das Chagas, o Cabra, e Manoel Inácio da Costa; pintores como José Joaquim da Rocha e José Teófilo de Jesus; além da obra de qualidade por vezes ainda superior de artistas mais antigos ou contemporâneos desses, cujos nomes permanecem infelizmente mal conhecidos ou ignorados. 
 
Na área do Estado do Espírito Santo, o número dos bens efetivamente inscritos nos Livros do Tombo não chega por enquanto a uma dezena, constando de 8 obras de arquitetura religiosa e 1 edificação civil. Mas cumpre advertir que dois dos templos aludidos são monumentos jesuíticos dos mais antigos e valiosos do Brasil,  a igreja de Nossa Senhora da Assunção, em Anchieta (a primitiva Reritiba) e a dos Reis Magos, no sítio denominado Nova Almeida, município de Serra. O retábulo da capela-mor da segunda contém uma notável pintura seiscentista, representando os oragos do templo em adoração ao Menino Jesus. A primeira tem, todavia, maior interesse arquitetônico, por ser uma das poucas igrejas do período colonial em nosso país provida de três naves. E foi numa cela rústica ainda conservada na residência contígua a esta igreja de Nossa Senhora da Assunção que, em 1597, expirou, como já foi recordado, o Padre José de Anchieta. Seu corpo venerável, tornado leve por depauperamento no duro apostolado dos selvícolas, ao longo de 44 anos, a indiada de Reritiba o carregou nos ombros, algumas horas depois da morte, em procissão de cruz alçada, daquela aldeia para Vitória, onde os despojos estiveram sepultados na igreja de Santiago, até que a fama de santidade os tivesse feito remover para a Bahia e dali fossem dispersados como relíquias. Essa dispersão prenunciou, aliás, a demolição inescusável da própria igreja de Santiago, promovida relativamente há poucos anos por um governo estadual. Quando à construção leiga espírito-santense incorporada ao patrimônio artístico nacional, fica nos arredores de Vitória e foi originariamente casa da fazenda Jucutuquara. É obra de arquitetura rural superior, serve hoje de sede ao Museu Capixaba e está ligada a uma das personalidades de relevo da história do Brasil, pois que serviu de menagem ao Padre Diogo Feijó, quando foi desterrado de seu domicílio sorocabano, depois do fracasso da revolução liberal de 1842. 
 
Do patrimônio dos Estados do Rio de Janeiro e da Guanabara deve dizer-se que é dos mais valiosos do país, embora menos afamado. Se tivermos em vista conjuntos urbanos que conservam as características originais, a área fluminense oferece-nos os núcleos de Parati e de Vassouras, aquele com a fisionomia genuína da Vila de Nossa Senhora dos Remédios no século XVIII e este, em seus logradouros principais, com o aspecto autêntico da cidade oitocentista, construída na primeira fase do ciclo do café. No tocante a monumentos de arquitetura religiosa, o Mosteiro e igreja de São Bento, as capelas da Glória do Outeiro, de São Francisco da Penitência e da Ordem Terceira do Carmo, na cidade do Rio de Janeiro, competem com os templos mais formosos do Brasil. Vários outros na mesma cidade e fora, como em Cabo Frio e em Pilar de Iguaçu, se impõem à nossa admiração, especialmente a igreja de Bom Sucesso ou da Misericórdia, no Rio, que abriga, em perfeito estado de conservação, os retábulos quinhentistas retirados do templo dos jesuítas demolido com o morro do Castelo. O que, porém, não pode ser esquecido no território desses Estados é seu acervo de arquitetura civil, do qual os apreciadores estimam a dignidade simples dos palácios imperiais situados na antiga capital e em Petrópolis, mas sobretudo as residências rurais típicas de origem seiscentista e setecentista, da classe dos engenhos do Viegas e do Colubandê, das fazendas da Samambaia, de Santo Antônio e do Padre Correia, para citar somente algumas das mais acessíveis, convindo acrescentar-lhes a casa da fazenda de São Bernardino, no município de Nova Iguaçu, para incluir na lista reduzida um espécime da edificação rural do século XIX. 
 
Com relação aos monumentos de arte e bens de interesse histórico de Minas Gerais, já terão dito o suficiente os distintos conferencistas que me precederam no curso promovido neste recinto ilustre pelo Instituto Histórico Guarujá-Bertioga. Limitar-me-ei a aludir aos edifícios de valor excepcional que a Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional conseguiu incorporar naquele Estado ao domínio da União, reunindo em cada uma coleção significativa de obras de arte antiga, para convertê-los em museus federais, maiores ou menores. Tais são o Museu da Inconfidência, instalado na casa que foi sede do Senado da Câmara e Cadeia da veneranda Vila Rica, onde se encontra o mausoléu dos protagonistas da Conjuração Mineira de 1789; o Museu do Ouro, na antiga Casa da Intendência, em Sabará; o Museu do Diamante, na casa que pertenceu ao Inconfidente Padre Rolim, em Diamantina; os museus regionais de Caeté e São João del-Rei, em sobrados de qualidade arquitetônica extraordinária, adquiridos naquelas cidades; a Casa dos Ottoni, no prédio residencial onde nasceram os grandes brasileiros Teófilo e Cristiano Ottoni, na cidade do Serro; a casa colonial do Inficionado, na vila de Santa Rita Durão, que foi pátria do poeta do Caramuru. Além dessas, adquiriu-se também em Diamantina a edificação que conserva na frontaria a única sacada provida do muxarabi original restante no Brasil: é hoje a sede da Biblioteca Antônio Torres, subordinada à Biblioteca Nacional e contém os livros que pertenceram ao escritor polemista, juntamente com livros de outra origem. 
 
Quanto aos demais monumentos mineiros, matrizes prestigiosas, igrejas em que as ordens terceiras e irmandades se esmeraram por produzir o que de mais belo estava a seu alcance, construções residenciais apalacetadas ou rústicas, pontes e chafarizes projetados e executados por mestre coloniais da mais alta categoria, tudo isso ou grande parte disso espero que já tenha sido assinalado ao brilhante auditório aqui presente, sem lhe ter faltado a exposição das obras individuais dos artistas eminentes do período colonial, desde aqueles a que o cronista de 1790 atribuía gosto bárbaro ou "gótico", segundo a expressão que utilizou, até as realizações mais inspiradas do Aleijadinho e do Ataíde. 
 
Ao acervo arquitetônico paulista escusa fazer agora referência, pois foi objeto da penúltima lição aqui ministrada, a cargo do mais douto especialista na matéria. 
 
Resta, portanto, a computar o patrimônio dos outros Estados do Sul, o de Goiás e Mato Grosso. 
 
No Paraná e Santa Catarina dois edifícios históricos foram também incorporados ao domínio da União e convertidos em museus federais: o antigo colégio dos Jesuítas em Paranaguá, onde principiou a ser instalado o Museu de Arqueologia e Artes Populares, organizado mediante convênio com a Universidade do Paraná, e a Casa de Vítor Meireles, em Florianópolis, que viu nascer o mestre da Primeira Missa no Brasil e que abriga pequena coleção de obras infelizmente, em vias de ser enriquecida graças à cooperação generosa do Museu Nacional de Belas Artes e do Museu de Arte de São Paulo. 
 
Em proveito do território sul-rio-grandense foi que, porém, a Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional tomou a iniciativa de maior alcance em sentido semelhante, criando o Museu das Missões, na localidade de São Miguel, município de Santo Ângelo, com a reconstituição de uma das unidades de habitação dos índios do Povo de São Miguel Arcanjo, integrante dos Sete Povos das Missões Orientais do Uruguai, todos ora situados em território nacional. Ali, sob um alpendrado reconstituído à feição da parte mais característica das habitações originais dos índios no lugar, com utilização de elementos autênticos trazidos de vários sítios missioneiros, recinto esse acrescido da nave da impressionante igreja projetada pelo Jesuíta Primoli, hoje reduzida a ruína imponente da obra hercúlea efetuada pelos Padres da Companhia de Jesus naquela região, será recolhido e exposto à visitação pública o conjunto mais rico e mais representativo de obras de arte das Missões que se poderia reunir em nosso país. 
 
No Mato Grosso só existe, inscrita nos Livros do Tombo, a interessante igreja da Sé de Sant'Ana, na Chapada dos Guimarães, ao passo que, em Goiás, além de dois conjuntos urbanos coloniais, preservados na antiga Vila Boa e em Pilar, há diversas obras de arquitetura religiosa e civil tombadas, localizadas em outros municípios, das quais a de maior porte é a velha matriz de Meia-Ponte, atualmente cidade de Pirenópolis. Na ex-capital do Estado, a mesma antiga Vila Boa, já referida, a Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional obteve também que passasse a próprio nacional a notável edificação, outrora sede da Câmara e Cadeia municipal, feita sob a traça do famoso Governador Luís da Cunha Menezes, que se tornaria famoso como o Fanfarrão Minésio das Cartas Chilenas, quando passou a Governador da Capitania de Minas Gerais. Naquele edifício igualmente, providenciou-se para organizar um museu, o Museu das Bandeiras, onde se reuniram obras de arte tradicional da região e, sobretudo, um arquivo de inestimável valor histórico. 
 
Tentei dar, nesse balanço grosseiro e sumaríssimo, uma noção do patrimônio histórico e artístico do Brasil. Mas o relance quase não passou das obras de arquitetura, deixando de alcançar, ou só alcançando de revés, as de pintura e escultura, assim como as das nossas artes menores, algumas das quais, felizmente, foram aqui tratadas com proficiência. Não obstante, a resenha mal feita pelo menos terá servido para mostrar que os bens relacionados merecem ser defendidos zelosamente. O que sucedeu, porém, durante longos anos e o que continua a ocorrer, a despeito de tais valores se acharem sob a proteção formal da Constituição e outras leis federais, causa tristeza e alarme. 
 
Excluindo-se menção de fatos remotos e restringindo-se a recordação a atentados, cujos objetivos utilitários se verificaram irrisoriamente inúteis, podem ser apontados os seguintes: 
Na Bahia, demoliu-se a veneranda Sé, na cidade do Salvador, sob a alegação de necessidades urbanísticas impostergáveis, que acabaram consistindo na ampliação de um logradouro já de vastíssimas proporções, sem vantagem ponderável para o trânsito no local. Excetuando-se as imagens, fragmentos de retábulos e outras poucas peças recolhidas à igreja dos Jesuítas, que se converteu em Catedral, perderam-se os preciosos lavores de Liós das portadas, os dos altares de pedra policromada e tudo mais. 
 
Decorridos poucos anos apenas da consumação, na Bahia, do inútil extermínio da Sé veneranda, os agentes do poder público tomaram a iniciativa da destruição, na cidade do Rio de Janeiro, de outro monumento excepcional pelo valor histórico e arquitetônico,  o edifício construído para sede da Academia Imperial de Belas Artes sob projeto de Grandjean de Montigny e que, ampliado, se convertera em Ministério da Fazenda. Alegou-se haver necessidade urgente de construir nova sede para o aludido Ministério, cujos serviços e instalações não mais se compatibilizavam, de modo algum, com a velha edificação. Sustentou-se então veementemente que não se poderia poupar a obra de arquitetura delineada pelo grande mestre da Missão Artística Francesa de 1816, pois o único terreno adequado à localização do indispensável palácio novo do Tesouro Nacional seria o que o da velha Academia ocupava. Em vão se objetou que a construção condenada merecia ser mantida e, ainda à última hora, a Sociedade Nacional de Geografia representou ao Chefe do Estado no sentido de a ceder à mesma instituição. Tudo em pura perda. A tentativa de salvação não contribuiu senão para o efeito de acelerar as providências destinadas à efetivação do arrasamento, mal permitindo que o Serviço do Patrimônio Artístico, recém-criado, negociasse com a firma empreiteira da demolição a compra dos elementos que compunham o nobilíssimo pórtico desenhado por Grandjean e enriquecido de esculturas em terracota pelos irmãos Ferrez. Entretanto, posta abaixo, em ritmo acelerado, a imponente edificação, os responsáveis passaram a considerar que o lugar era, afinal de contas, impróprio para a nova sede do Ministério da Fazenda e decidiram levantá-lo muito longe dali, na Esplanada do Castelo, sem se dignarem dar desculpa alguma pela inutilidade revoltante da destruição. Mais tarde, com despesa apreciável e muitíssimo trabalho, logrou-se reconstituir o pórtico da Academia, no eixo de uma das alamedas de palmeiras imperiais, no recinto do Jardim Botânico. O local, porém, onde erguia o monumento histórico, continua até hoje terreno baldio, utilizado para estacionamento de automóveis.
 
No Rio de Janeiro, ainda, já depois de vigente a legislação destinada a proteger os monumentos nacionais e apesar de se haver sugerido um traçado substitutivo que pouparia o sacrifício do patrimônio artístico do país, mutilou-se o parque traçado por Glaziou no Campo de Sant'Ana (no trecho de arvoredo mais frondoso) e derrubaram-se barbaramente as igrejas de São Domingos, Bom Jesus do Calvário e de São Pedro. Foi assim, de fato, pela simples e obstinada preocupação de pro-se o eixo da nova Avenida Presidente Vargas em rigoroso alinhamento com o da Avenida do Mangue, que se obteve do Presidente da República cancelar a inscrição daqueles monumentos nos Livros do Tombo, despojando-nos, feita abstração dos outros, da jóia singular de nossa arquitetura sacra, que era a igreja de São Pedro, onde estavam sepultados o Padre José Maurício, o poeta Silva Alvarenga e os historiadores do Rio de Janeiro Luíz Gonçalves dos Santos (o Padre Perereca) e Monsenhor Pizarro e Araújo.
 
Antecedentemente a esse vandalismo imperdoável, arrancou-se do Chefe do Poder Executivo da União o destombamento da igreja do Rosário, em Porto Alegre, invocando-se para justificação do ato o motivo de interesse público previsto no Decreto-Lei nº 3.866, de 29 de novembro de 1941, facilitou não só a crueza cometida contra os monumentos citados no Rio de Janeiro, mas outros prejuízos mais recentes, já consumados ou na iminência de ocorrer. Tais são os casos do edifício da Santa Casa de Misericórdia, em Campos, e do Parque Henrique Laje, ainda no sacrificado Rio de Janeiro, ambos destombados por deliberações mal inspiradas dos últimos titulares da Presidência da República. 
 
Ressalve-se, todavia, que o poder conferido naquele decreto-lei ao Chefe de Estado, no sentido de cancelar tombamento por motivo de interesse público, não é, em si mesmo, inconveniente e indesejável. Há que reconhecer o acerto e a prudência de se reservar ao Presidente da República a atribuição de, na eventualidade de conflito de enterres públicos, entre a necessidade da conservação do patrimônio histórico e artístico do país e a de alguma iniciativa de utilidade coletiva, incompatível com a primeira, verificar qual das duas deverá ser atendida e decidir em definitivo a tal respeito. Não se advoga, pois, a revogação do decreto-lei em causa, inquestionavelmente adequado para dirimir litígios graves entre os órgãos da administração, ou retificar desacertos em que podem incorrer os encarregados da proteção do acervo monumental do Brasil. Urge, porém, a complementação do texto legal discutido, a fim de se assegurar a instrução plenamente satisfatória dos processos de cancelamento da inscrição de bens nos Livros do Tombo, estabelecendo-se outrossim que atos semelhantes do Presidente da República não sejam praticados senão sob a forma de decretos, devida e circunstanciadamente fundamentados, para esclarecer o motivo de interesse público que os tenha determinado.
 
À falta da medida legislativa alvitrada, tenderão a se reproduzir ocorrências desastrosas como as apontadas por último. Na que importou em lesão ao acervo histórico da cidade de Campos, o Presidente deliberou à vista apenas de uma petição de Provedor desavisado da Santa Casa local, que lhe foi encaminhada com uma exposição de motivos do Ministro da Educação, feita sem a mínima audiência da repartição competente e sem o mínimo de ponderaçÃo exigido pelas circunstâncias. O pedido de reconsideração do despacho presidencial não mereceu acolhimento e, logo, para se levantar no sítio um edifício comercial, que poderia ser construído em outro lugar, empreendeu-se açodadamente a demolição da nobre sede da Misericórdia da Vila de São Salvador dos Campos goitacazes, único edifício congênere restante no país a ocupar uma quadra urbana inteira, com sua igreja anexa. Relativamente à resolução tomada em detrimento do patrimônio da cidade do Rio de Janeiro, sofismou-se em torno do conceito de utilidade pública ao ponto de chegar à conclusão espantosa de que o motivo de interesse público, na emergência, não é o de preservar-se para a coletividade um parque precioso como reserva vegetal e como obra de jardinismo vitoriano, constituindo além disso a última ligação desimpedida de uma rua carioca com o sopé e a encosta do Corcovado, mas, sim, o de propiciar uma companhia de comércio imobiliário, que comprou os terrenos a preço reduzido, graças à desvalorização produzida pelo tombamento, ali construir, no centro da área, verdadeira muralha de blocos de apartamentos de 22 andares e, na testada, uma fieira ininterrupta de lojas para negócios de luxo, afora um arruamento interno para lotes de edificações residenciais em número indeterminado. Eis aí o que resultará do destombamento do Parque Henrique Laje, na malsinada ex-capital do país, pretendendo-se que isso seja um meio de preservação-lo muito melhor do que o conseguiriam o Serviço Florestal e a Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
 
No entanto, atribuir-se à imperfeição de determinada lei e a certas transigências presidenciais o que tem perdido o acervo histórico e artístico do Brasil, nos últimos vinte anos, seria errado e estulto. Dois fatos elucidativos, sucedidos com longo intervalo durante esse período, demonstram que, malgrado a proteção legal decorrente do regime de tombamento, atentados da mesma espécie puderam ser perpetrados impunemente. Tais foram a esúpida demolição do Forte do Buraco, o mais belo monumento de arquitetura militar que existia no Recife, e, há pouco, a do edifício colonial da Cadeia de Luziânia, em Goiás, ambas ordenadas por autoridades públicas, sem que se tenha conseguido aplicar sanção penal aos responsáveis pelos atos criminosos. 
 
Em verdade, só há um meio eficaz de assegurar a defesa permanente do patrimônio de arte e de história do país: é o da educação popular. Ter-se-á de organizar e manter uma campanha ingente, visando a fazer o povo brasileiro compenetrar-se do valor inestimável dos monumentos que nos ficaram do passado. Se não se custou muito a persuadir nossos concidadãos de que o petróleo do país é nosso, incutir-lhes a convicção de que o patrimônio histórico e artístico do Brasil é também deles ou nosso será certamente praticável. Torna-se necessário esclarecer que o empenho de defender o acervo monumental existente no território pátrio não se inspira em sentimentalismo efeminado, nem em tendência romântica desatualizada, mas, ao contrário, em disposição viril e compreensão lúcida do significado e do imenso valor do patrimônio em causa, tanto estimado espiritualmente, quanto considerado do ponto de vista material. 
 
O papel representado pelos monumentos de arte e de história na economia atual das nações civilizadas, com a importância fabulosa apurada em benefício das respectivas receitas orçamentárias, mercê do afluxo de divisas resultante do turismo internacional, está a comprovar que razões relevantes, exatamente de ordem utilitária, recomendam a preservação cuidadosa daqueles bens. O desenvolvimento acelerado do turismo interno, em todos os países, inclusive no Brasil, evidencia que, mesmo na carência de turistas procedentes do exterior, cada região nacional tem interesse manifesto em resguardar seu patrimônio característico. A intensificação operada entre nós no comércio de antiguidades, sem embargo dos preços proibitivos com que se oferecem à venda as mercadorias de qualquer espécie nesse ramo de negócio, elucida por outro lado o valor das coisas antigas brasileiras de menor porte. Quem se decide a aliená-las presentemente não tarda a se arrepender, por se sentir lesado, em face da valorização quase fulminante da cotação de tais artigos. Com efeito, parece que não há, na atualidade, aplicação de capital mais segura e mais lucrativa. 
 
Entretanto, no trato do problema que nos ocupa, não cabe, nem pode caber o primeiro plano ao argumento ou ao fundamento utilitário. Por civismo, acima de todos os demais móveis ou sentimentos, é que nos deveremos empenhar pela defesa do patrimônio histórico e artístico do Brasil. Tal como tenho rememorado em outras circunstâncias, não foi diverso o pensamento do Vice-Rei, Dom André de Melo e Castro, Conde das Galveias, que, já na primeira metade do século XVIII, invocava razões exclusivamente dessa natureza para preservar o Palácio das Torres, no Recife, quando o governador da Capitania de Pernambuco quis tomar iniciativa ameaçadora à sua integridade: "... se se necessitasse" escreveu ele ao governador , "se se necessitasse absolutamente, para defesa dessa Praça, que se demolisse o Palácio, e com ele uma memória tão ilustre, paciência, porque esta mesma desgraça têm experimentado outros edifícios igualmente famosos; mas por nos pouparmos a despesa de dez ou doze mil cruzados, é cousa indigna que se saiba que, por um preço tão vil, nos exponhamos a que se sepulte, na ruína dessas quatro paredes, a glória de toda uma Nação".
 
A lição ministrada pelo Conde das Galveias há mais de dois séculos, se produziu efeito imediato, não aproveitou muito aos governos subsequentes, nem às gerações da população brasileira que sucederam à de seu tempo. Faltaram-nos dirigentes, com a mesma autoridade e a mesma disposição para repetir o ensinamento, até que este penetrasse profundamente na opinião nacional. Mas não é tarde demais para retomar essa obra de educação cívica. Ao contrário. Nunca houve momento tão oportuno quanto o que vivemos para defender-se o acervo de arte e o patrimônio histórico do Brasil, utilizando-se os meios proporcionados da facilidade de comunicações e com o reforço de uma propaganda intensa e permanente, de alcance nacional, organizada na base dos instrumentos disponíveis da imprensa, da rádio-difusão e da crescente rede de televisão. Há que apelar igualmente para a cooperação decidida dos órgão de finalidade educativa. Em particular, impõe-se a todos e a cada um dos agentes do poder público da União, dos Estados e dos municípios ficar compenetrados de que a Constituição Federal colocou sob sua proteção, e não apenas sob a guarda de uma repartição especializada, os bens legados pelas gerações extintas e concedidos pela natureza para enriquecimento cultural e material do Brasil. 
 
Diante das ocorrências características do desenvolvimento atual do país e, especialmente, do impulso dominador adquirido pelo comércio imobiliário e a indústria de construções, que assumiram a importância de uma das atividades principais, exercidas no território brasileiro, já não é apenas a própria integridade dos monumentos que a conjuntura presente põe com frequência em risco. Ameaça ainda maior pesa sobre a moldura inseparável, o ambiente tradicional e a escala apropriada dos edifícios de valor histórico e artístico. Estes, por mais primorosamente que sejam conservados em si mesmos, amesquinham-se na vizinhança próxima de novas construções volumosas, perdem a visibilidade indispensável a seu status e ficam envilecidos na promiscuidade com os produtos da especulação de imóveis. Prejuízos semelhantes equivalem à destruição da obra que se pretende resguardar e seu perigo avulta por não despertar temor suficiente nos espíritos desprevenidos. A consciência da complexidade do risco a que ficaram expostos os monumentos, nos centros urbanos modernos, em consequência de alterações eventuais na sua proximidade, induziu o legislador italiano a confiar a solução das questões suscitadas a esse respeito ao critério exclusivo do órgão técnico-administrativo competente, vedando a apreciação de tais matérias ao próprio Poder Judiciário. Vem, pois, da nação mais experimentada na proteção do respectivo acervo monumental o ensinamento das medidas de precaução extrema. Entre nós, se não podemos adotá-las, por serem inconciliáveis com as instituições brasileiras, que estendem a competência dos tribunais a todo o campo de aplicação das leis, sem restrição de espécie alguma, temos de contar com o esclarecimento do critério da magistratura do país. E, felizmente, o egrégio Supremo Tribunal Federal, em sucessivos arestos, tem firmado e consagrado, memoravelmente, a boa doutrina, ao dirimir os litígios daquela natureza levados a seu alto conhecimento. 
 
No entanto, o anteparo em verdade eficaz, contra os riscos de danos de qualquer origem a que está sujeito o patrimônio histórico e artístico do Brasil, só pode ser levantado com a elucidação progressiva da opinião nacional. A população brasileira precisa adquirir a compreensão viva e atuante do valor inestimável do acervo cultural que possui e de que não se deve deixar despojar. Nenhuma campanha será mais decisiva em favor de qualquer causa de interesse coletivo do que, para a defesa do espólio herdado de nossos maiores, a criação, aqui, de um espírito público iluminado e resoluto. 
 
E, uma vez que se encontra em São Paulo o centro mais evoluído do país, o Brasil tem direito de esperar dos homens e das instituições paulistas o impulso destinado a vencer as maiores resistências opostas à salvação do patrimônio nacional. (grifo nosso)
 
* Diretor do Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1937-1967), advogado, jornalista e escritor.
 
 
II. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
 
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO GUARUJÁ-BERTIOGA: Arte Antiga no Brasil, publicado em 1961 como brochura, edição particular. 
 
____________________________: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Guarujá-Bertioga nº 4, Ano 2, 1971, São Paulo: Editora Cupolo Ltda., 83 p.
Link: https://www.scribd.com/document/669080621/Revista-Do-Instituro-Historico-e-Geografico-Guaruja-Bertioga-N-4-1971  (edição comemorativa da Revista do IHGGB de 1971 contendo 3 conferências com ilustrações)  👈