terça-feira, 14 de junho de 2022

DARCY RIBEIRO E O FARDÃO DA ABL

 

Por ROGÉRIO MEDEIROS GARCIA DE LIMA *
Posse de DARCY RIBEIRO como imortal da ABL em 15/04/1993

(...) Enquanto assistia à posse de José Paulo Cavalcanti Filho na Academia Brasileira de Letras em 10/06/2022, recordava uma marcante decisão por mim proferida em novembro de 1994. 
Eu era juiz de direito em Montes Claros/MG, terra natal do então senador, antropólogo e acadêmico Darcy Ribeiro. 
Eleito para a Casa de Machado de Assis em 1992, a terra natal doou o fardão do novo imortal. 
Fora aprovada lei municipal para tanto. 
Todavia, alguém ingressou em juízo com uma ação popular, para anular a doação. Fui o juiz da causa e julguei improcedente o pedido. 
Releio agora a sentença do jovem magistrado de 33 anos de idade. 
Trabalhava muito na movimentada comarca do norte de Minas Gerais. Não tinha assessores. Despachos e sentenças eram datilografados ou manuscritos por mim mesmo. Já possuía, então, uma razoável biblioteca. 
Sem falsa modéstia, aquela sentença foi uma das melhores que proferi. Repasso alguns trechos:  
“No caso vertente, os pressupostos da ilegalidade e da lesividade ao patrimônio público não se fazem presentes. O ato da Administração Pública não é nulo e nem anulável. (...) 
“Indague-se: homenagear o eminente montesclarense Darcy Ribeiro é algo juridicamente imoral? Definitivamente não, tratando-se de um vulto respeitado nacional e internacionalmente. (...) 
“Em 1992, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, tronando-se imortal. 
Montes Claros, então, passava a ser um rincão interiorano com dois filhos acadêmicos. Cyro dos Anjos, falecido recentemente, autor do primoroso romance ‘O Amanuense Belmiro’, e Darcy Ribeiro. (...) 
“Nélson Hungria, notável jurista pátrio, já alertava (in ‘Revista Forense’, vol. 99, pag. 573): 
‘A autêntica justiça é o sentimento em face da realidade, é ciência da vida, é função da alma voltada para o mundo, jamais um direito cerebrino e inumano ou de lógica pura’. 
“Também vem à baila a oportuna assertiva de Carlos Maximiliano (in ‘Hermenêutica e Aplicação do Direito’, Forense, 10ª ed., pag. 158): 
‘Cumpre ao magistrado ter em mira um ideal superior de justiça, condicionado por todos os elementos que informam a vida do homem em comunidade (François Geny, ‘Science et Tecnique en Droit Privé Positif’, 1914, vol. I, pag. 30)”. (...) 
“Pelo exposto, julgo IMPROCEDENTE o pedido do autor. (...)”. 
A sentença foi publicada pela revista da Faculdade de Direito da UNIMONTES, em 1997; eu já era juiz em Belo Horizonte, promovido em 1995. 
Meu Deus, tanto tempo passou! 
Vamos em frente.  
 
* Dr. Rogério é escritor, desembargador do TJMG e cidadão são-joanense.
 
CÓPIA INTEGRAL DA SENTENÇA EM ANEXO
 
Processo nº 3.165/92 da Secretaria 
5ª Vara Cível 
Comarca de Montes Claros - MG. 
 
Vistos etc. 
 
O Dr. A.A.R.V., advogado militante e eleitor em Montes Claros, ajuizou AÇÃO POPULAR contra o Dr. M.R. e o Dr. P.N., à época, respectivamente, Prefeito e Vice-Prefeito deste Município. 
O autor afirma que os réus doaram ao escritor Darcy Ribeiro o fardão da ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, orçado, então, em Cr$30.000.000,00. 
Aponta o fato de o Prefeito ser irmão do escritor acadêmico e lança suspeita de superfaturamento. 
Segue tecendo críticas à Academia Brasileira de Letras, ao Presidente Getúlio Vargas, ao General Aurélio Lira Tavares e ao Presidente José Sarney. 
Pede, afinal, a condenação dos réus a pagarem aos cofres públicos a quantia gasta com o fardão doado. 
Junta documentos com a inicial. Os réus contestaram às fls. 11/16. 
Preliminarmente, arguiram carência de ação e ilegitimidade passiva. 
No mérito, afirmam que o ato foi praticado em conformidade com a lei, aprovada pela Câmara Municipal, não acarretando, outrossim, lesão ao Erário Municipal. Pedem o julgamento da improcedência do pedido inaugural. 
Documentos instruem a defesa. 
O autor manifestou-se às fls. 21/24. 
Por determinação judicial, foram riscadas expressões injuriosas na contestação e na subsequente impugnação do autor. 
A requerimento do ilustre Representante do Ministério Público, foi determinada a citação do Senador Darcy Ribeiro (fls. 48), o qual, citado, não se manifestou. 
O Parquet emitiu parecer às fls. 65/68, pela extinção do processo sem julgamento de mérito, por ser o autor carecedor da ação. 
O Secretário-Geral da Academia Brasileira de Letras respondeu oficio do Juízo (fls.72), cientes as partes (fls. 73). 
Juntada certidão eleitoral (fls. 76), os autos vieram-me conclusos. 
É o relatório. 
DECIDO. 
A preliminar de carência da ação do autor não subsiste diante da certidão de fls. 76, corroborando ser ele eleitor neste Município e estar em dia com as obrigações eleitorais. As demais preliminares também não merecem acolhida, pois, em tese, o autor imputa aos réus prática de ato ilegal e lesivo ao patrimônio público, insinuando, inclusive, que o Dr. M.R. favorecera o próprio irmão. 
No concernente ao exame de mérito, não há necessidade da produção de provas em audiência, motivo pelo qual cabe o julgamento antecipado da lide. 
Nesse desiderato, é imprescindível a releitura do inciso LXXIII do artigo 5º da Constituição Federal, verbis
“Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio-ambiente e ao patrimônio histórico e cultural (...)”. 
O eminente Ministro Carlos Mário Velloso, do Supremo Tribunal Federal, estudioso do Direito Público, em excelente estudo publicado à “Revista Forense”, vol. 306, pág. 40, disserta
“Ampliou-se, está-se a ver, o objeto da ação popular, que visa também, agora, por expressa recomendação constitucional, à defesa da moralidade administrativa, compreendida em termos amplos. Preocupa-se a Constituição, aliás, sobremaneira, com o princípio da moralidade administrativa, tanto que expressamente fixou, no artigo 37, que a administração pública, direta, indireta ou fundacional de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade (CF, art. 37)”. 
E decidiu o colendo Superior Tribunal de Justiça (REsp. n° 21.923-5 MG, Min. Humberto Gomes de Barros, DJU 13.10.92): 
“É lícito ao Poder Judiciário examinar o ato administrativo sob o aspecto da moralidade e do desvio de poder. Com o princípio inscrito no art. 37, a Constituição Federal cobra do Administrador, além de uma conduta legal, comportamento ético”. 
Dessarte, presentes os requisitos de ILEGALIDADE ou LESIVIDADE ao patrimônio público dos atos a invalidar, 
“a ação popular é o meio idôneo para o cidadão pleitear a invalidação desses atos, em defesa do patrimônio público, desde que ilegais e lesivos de bens corpóreos ou dos valores éticos das entidades estatais, autárquicas e paraestatais, ou a elas equiparadas” (apud Hely Lopes Meirelles, in “Mandado de Segurança e Ação Popular”, Ed. RT, 10ª. ed., pág. 86, grifos do autor). 
Prossegue o saudoso administrativista pátrio (ob. cit., pág. 89): 
“Em última análise, a finalidade da ação popular é a obtenção da correção nos atos administrativos ou nas atividades delegadas ou subvencionadas pelo Poder Público. Se, antes, só competia aos órgãos estatais superiores controlar a atividade governamental, hoje, pela ação popular, cabe também ao povo intervir na administração, para invalidar os atos que lesarem o patrimônio econômico, administrativo, artístico, ambiental ou histórico da comunidade. Reconhece-se, assim, que todo cidadão tem direito subjetivo ao governo honesto”. 
Sintetizou, com precisão, os contornos da referida ação constitucional, o percuciente José Cretella Júnior (inControle Jurisdicional do Ato Administrativo”, Forense, 2ª, ed., pag. 473): 
“A ação popular, no direito brasileiro, apresenta, em síntese, os seguintes característicos: a) Sujeito ativo, a parte legitima para propô-la, a saber, quisque de populo; b) os requisitos para o ajuizamento da ação, a saber que o autor seja brasileiro, no gozo dos direitos cívicos e políticos, e que ocorra ilegalidade ou ilegitimidade do ato, bem como a lesividade do ato ao patrimônio público, em suma, gozo dos direitos políticos, ilegalidade e lesividade; c) a finalidade da ação, que é o controle jurisdicional do ato administrativo ou das atividades delegadas do poder público; d) o objeto, que é o ato ilegal e lesivo ao patrimônio público; e) sujeito passivo, a saber, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, em nome das quais foi praticado o ato a ser anulado e as autoridades que autorizaram, aprovaram, ratificaram ou diretamente praticaram o ato ou celebraram o contrato objeto da impugnação”. 
Compilou, ainda, a jurisprudência (ob. cit., pag. 2): 
“É pressuposto da ação popular a efetiva lesão do patrimônio público” (TASP, em RDA, 63:237). 
“Sem o requisito da lesividade, não pode vingar a ação popular” (TJSP, em RDA, 111:289). 
“A ação popular contra atos lesivos do patrimônio público restringe-se a apurar se eles são nulos ou anuláveis” (STF, em RDA, 63: 164). 
“Somente contra o ato nulo ou anulável é cabível a ação popular” (TASP, em RDA, 63: 222). 
Não discrepa o venerando decisum do eg. Tribunal de Justiça de Minas Gerais (Ap. Civ. nº 84.947/3, Des. Hugo Bengtsson, “Jurisprudência Mineira”, 116/149): 
“A lesividade do ato pressupõe sua ilegalidade e em razão disto a ação popular só é cabível em se tratando de ato nulo ou anulável que, decorrido, cause dano à União, aos Estados-Membros ou aos Municípios”. 
No caso vertente, os pressupostos da ilegalidade e da lesividade ao patrimônio público não se fazem presentes. O ato da Administração Pública não é nulo e nem anulável. 
Com efeito, o ato que se pretende invalidar foi objeto da Lei Municipal n° 2085, de 30 de novembro de 1992 (fls. 19 e 36), a qual, em sua elaboração, observou os trâmites pertinentes. Foi sancionada pelo Vice-Prefeito P. N., em face do impedimento do Prefeito M.R. 
De mais a mais, havia dotação orçamentária específica, para cobrir as despesas decorrentes da aplicação da referida lei (art. 3º, fls. 39). 
Resta o exame da moralidade. Para tanto, valho-me da insuperável lição de Hely Lopes Meirelles (inDireito Administrativo Brasileiro”, Ed. RT, 9ª ed., pag. 62): 
“A moralidade do ato administrativo, juntamente com a sua legalidade e finalidade, constituem pressupostos de validade, sem os quais toda atividade pública será ilegítima. Já disse notável jurista luso - Antônio José Brandão - que a atividade dos administradores, além de traduzir a vontade de obter o máximo de eficiência administrativa, terá ainda de corresponder à vontade constante de viver honestamente, de não prejudicar outrem e de dar a cada um o que lhe pertence - princípios de direito natural já lapidarmente formulados pelos jurisconsultos romanos. À luz dessas ideias, tanto infringe a moralidade administrativa o administrador que, para atuar, foi determinado por fins imorais ou desonestos, como aquele que desprezou a ordem institucional e, embora movido por zelo profissional, invade a esfera reservada a outras funções, ou procura obter mera vantagem para o patrimônio confiado à sua guarda. Em ambos os casos, os seus atos são infiéis à ideia que tinha de servir, pois violam o equilíbrio que deve existir entre todas as funções, ou, embora mantendo ou aumentando o patrimônio gerido, desviam-no do fim institucional, que é o de concorrer para a criação do bem-comum”. 
Indague-se: homenagear o eminente montesclarense Darcy Ribeiro é algo juridicamente imoral? Definitivamente não, tratando-se de um vulto respeitado nacional e internacionalmente. 
Sociólogo, com especialização em Etnologia, fez-se amigo do Marechal Rondon e se embrenhou pelo Pantanal de Mato Grosso, para conviver com os índios. A convivência forneceu-lhe elementos para publicar valiosíssimos estudos científicos sobre os nossos indígenas. 
Some-se a isso a sua fecunda obra literária, concretizada nos romances “Maíra” (1976), “O Mulo” (1981) e “Migo” (1988), e na obra autobiográfica “Testemunho” (1990). 
Educador emérito, implantou a Universidade de Brasília. No exílio, após 1964, lecionou em várias universidades estrangeiras. Em 1979, no salão nobre da Sorbonne, recebeu o titulo de Doutor Honoris Causa da Universidade de Paris. Idealizou, no Rio de Janeiro, o Sambódromo e o Programa Especial de Educação (implantação dos famosos CIEPs). 
Político, foi Ministro de Estado e Vice-Governador do Rio de Janeiro. É Senador da República, por aquela unidade federativa, desde 1991. 
Em 1992, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, tronando-se imortal. 
Montes Claros, então, passava a ser um rincão interiorano com dois filhos acadêmicos. Cyro dos Anjos, falecido recentemente, autor do primoroso romance “O Amanuense Belmiro”, e Darcy Ribeiro. 
O Senador fez de si um autorretrato (Darcy Ribeiro, inTestemunho”, Ed. Siciliano, 1990, pag. 211): 
“Vivo e trabalho urgido por um nervo ético, movido por um furor criativo, e ativado por tal ambição de fazimento que não tenho sossego. Esta minha servidão cansa muito, é verdade, mas dá uma satisfação que nenhum lazer supera. 
“Meus defeitos ou qualidades maiores, não sei bem, são esta alegria brincalhona que me tira do sério e uma obsessão irresistível por variar. Tantas peles encarnei na vida que não pude realizar-me plenamente em nenhuma delas. Fui, sou, etnólogo de campo, indigenista militante, antropólogo teórico, educador apaixonado pelo ensino público básico, e também criador e reformador de universidades. Acresce a isto os ofícios de ensaísta crítico e de romancista confessional, além de ex-revolucionário e militante e político reformista. Que mais?”. 
Corroborado pelo poeta Carlos Drummond de Andrade (ob. cit., pag. 253): 
“Darcy é um monstro de entusiasmo que nenhum golpe feroz arrefece, é um ser de esperança e combate. Sete Quedas acabou, mas Darcy é o cara mais Sete Quedas que eu conheço, e este aí engenharia econômica nenhuma ou poder autocrático nenhum podem com ele. Darcy, caudal de vida”. 
E pelo educador Anísio Teixeira (ob. cit., pag. 243): 
“Considero Darcy Ribeiro a inteligência do Terceiro Mundo mais autônoma de que tenho conhecimento. Nunca lhe senti nada da clássica subordinação mental de subdesenvolvimento”. 
Para arrematar, a Academia Brasileira de Letras, respondendo o ofício deste Juízo, pela lavra do eminente jurista e imortal Evaristo de Moraes Filho (fls. 72), informa: 
“Apresso-me, como vem solicitado, em responder ao seu ofício. Realmente, ‘existe a praxe’, nas exatas palavras de V. Exa., de ser o Fardão e demais pertences oferecidos ao Acadêmico eleito por um dos Poderes Executivos, do estado ou cidade onde tenha este nascido. Assim, tanto pode ser oferecido pelo Governador como pelo Prefeito.“Trata-se de mera praxe, segundo os usos e costumes até agora obedecidos. Não há nenhuma norma jurídica que regule a espécie, com direitos do Acadêmico e obrigações do Governo. Contudo, a praxe vem sendo seguida até agora, para honra de ambas as partes, Acadêmico e Governo”. 
A referida prática, realidade da cultura brasileira, não pode ser desconsiderada no deslinde do caso sub judice. Nélson Hungria, notável jurista pátrio, já alertava (inRevista Forense”, vol. 99, pag. 573): 
“A autêntica justiça é o sentimento em face da realidade, é ciência da vida, é função da alma voltada para o mundo, jamais um direito cerebrino e inumano ou de lógica pura”. 
Também vem à baila a oportuna assertiva de Carlos Maximiliano (inHermenêutica e Aplicação do Direito”, Forense, 10ª ed., pag. 158): 
“Cumpre ao magistrado ter em mira um ideal superior de justiça, condicionado por todos os elementos que informam a vida do homem em comunidade (François Geny, “Science et Tecnique en Droit Privé Positif”, 1914, vol. I, pag. 30)”. 
Salientou, por derradeiro, o clássico Vicente Ráo (inO Direito e a Vida dos Direitos”, vol. I, Ed. RT, 3ª ed., pag. 218), discorrendo sobre os usos e costumes como fontes do Direito: 
“A fonte substancial suprema do direito se encontra na consciência comum do povo, manifestando-se inicialmente, sob a forma de costume, que, no dizer de Savigny, é indício exterior do direito positivo, ou melhor, o primeiro indício exterior do direito positivo”. 
E acrescentou (ob. cit., pag. 228): 
“O juiz, de ofício, pode aplicar o costume, em sendo notório ou de seu conhecimento, invocando-o, quando admitido, como qualquer regra de direito”. 
Pelo exposto, julgo IMPROCEDENTE o pedido do autor. 
Não havendo comprovada má-fé, isento-o do pagamento das custas e do ônus da sucumbência (art. 5° LXXIII, CF). 
 
P.R.I.
 
Sentença sujeita a duplo grau de jurisdição. 
 
Montes Claros, 24 de novembro de 1994. 
 
Rogério Medeiros Garcia de Lima 
Juiz de Direito