domingo, 25 de dezembro de 2022

O NATAL NA VISÃO DOS POETAS


Por Francisco José dos Santos Braga
 

 
I. INTRODUÇÃO 
 
 
O Natal é uma das datas mais importantes para os cristãos. Ao lado da Páscoa, a celebração tem Jesus como ponto central. Se na Páscoa celebra-se a ressurreição de Cristo, no Natal a memória é em relação ao seu nascimento. "Do ponto de vista bíblico o nascimento de Jesus significa a entrada de Deus na essência humana. A expressão clássica é: 'o verbo se fez carne'. Ao manifestar-se em carne humana para que os homens o compreendessem melhor, Jesus não abdicou de sua condição divina, mas a expandiu orientando-a para a sua criação, assumindo a condição humana em toda a sua plenitude. 
 
Portanto, o Natal não é a celebração do aniversário de Jesus, mas onde os cristãos são chamados a refletir sobre a encarnação de Jesus e a importância disso para cada homem e cada mulher em particular. 
 
Lê-se na homilia de Natal de São Josemaría Escrivá de Balaguer: “Deus humilha-se para que possamos aproximar-nos d’Ele, para que possamos corresponder ao seu amor com o nosso amor, para que a nossa liberdade se renda, não só ante o espetáculo do seu poder, como também ante a maravilha da sua humildade”, porque “Jesus continua ainda hoje a buscar pousada no nosso coração. Temos que lhe pedir perdão pela nossa cegueira pessoal, pela nossa ingratidão. Temos que lhe pedir a graça de nunca mais lhe fecharmos a porta de nossas almas”. 
 
Na véspera de Natal e durante o período natalino, crianças gregas, principalmente meninos, costumam sair cantando 'kálanda' (canções de natal) pelas ruas.

 
 
II. POEMAS SELECIONADOS PARA COMEMORAR O NATAL 
 
 
1) DAVID MOURÃO-FERREIRA 
 
De seu "Cancioneiro de Natal" (1971), seleciono dois: o de nº 18 e o de nº 4, respectivamente. Com Cancioneiro do Natal (1971) David Mourão-Ferreira recebeu o Prêmio Nacional de Poesia. 
 
VOTO DE NATAL 
Por David Mourão-Ferreira 
 
Acenda-se de novo o Presépio no Mundo! 
Acenda-se Jesus nos olhos dos meninos! 
Como quem na corrida entrega o testemunho, 
passo agora o Natal para as mãos dos meus filhos. 
 
E a corrida que siga, o facho não se apague! 
Eu aperto no peito uma rosa de cinza. 
Dai-me o brando calor da vossa ingenuidade, 
para sentir no peito a rosa reflorida! 
 
Filhos, as vossas mãos! E a solidão estremece, 
como a casca do ovo ao latejar-lhe vida... 
Mas a noite infinita enfrenta a vida breve: 
dentro de mim não sei qual é que se eterniza. 
 
Extinga-se o rumor, dissipem-se os fantasmas! 
O calor destas mãos nos meus dedos tão frios? 
Acende-se de novo o Presépio nas almas. 
Acende-se Jesus nos olhos dos meus filhos.  
 
Link: https://www.youtube.com/watch?v=_AQHKfBWKbc (vídeo - Crédito pela narração: Mundo Dos Poemas) 
 
Meu comentário: A época natalina propicia diferentes motivos a serem apreciados por quantos se impressionam com a perpetuação dos festejos no imaginário popular. Um desses motivos é a tradição passada de geração a geração e traz à tona a importância da família na transmissão oral e gestual do rito e o emprego de diferentes materiais que nos remetem aos primórdios do Cristianismo. Mas o elemento mais importante mesmo é a fé, insubstituível conditio sine qua non para a perpetuação de um rito ao longo do tempo. 
O poeta português David Mourão-Ferreira aqui nos fala claramente sobre a manutenção do Presépio como símbolo natalino a unir as famílias em volta da lareira durante as comemorações no ciclo natalino, que se inicia em 24 de dezembro e se estende até o 6 de janeiro, com a Festa de Reis. Claro que ele utiliza o símbolo natalino do presépio como referência universal do espírito natalino, não se restringindo ao presépio tradicional português em si, onde, ali, naquele cenário doméstico, o presépio costuma ser montado geralmente aos pés da árvore de Natal no início do Advento sem a figura do Menino Jesus que só é colocada na noite de Natal depois da Missa do Galo e desmontado no dia seguinte ao Dia dos Reis, e onde é retratado o nascimento de Jesus Cristo, o salvador da humanidade, segundo a crença cristã. 
Consta que se deve a São Francisco de Assis, lá pelo ano de 1223, a idealização do primeiro presépio da história. Na época, o frade da Igreja queria celebrar o nascimento de Jesus de uma maneira diferente e inovadora. 
Folcloristas brasileiros sempre condenaram as encenações natalinas nas quais o Papai Noel aparece com trajes muito diferentes do Brasil rural. Para eles, o verdadeiro Natal é uma festa da família, onde se comemora o nascimento de Cristo, com a Sua presença como Menino Jesus na manjedoura, com burrinho, vaquinha, ovelha, pastores e anjos anunciando a boa nova com cânticos fundamentados em mensagens de um Cristianismo puro e singelo, prenunciando a chegada dos Reis Magos.
No Brasil, por ter sua cultura miscigenada de elementos indígenas, africanos e portugueses, há, além do símbolo natalino do presépio, muitas outras manifestações, principalmente nas regiões afastadas dos grandes centros, possibilitando um Natal mais adequado à nossa cultura popular e às condições brasileiras. Nessas regiões mais distantes dos grandes centros, observa-se que as populações ficam mais imunes à parafernália dos símbolos natalinos europeus (neve, Papai Noel vestido com grossas roupas de lã, capuz e todo respingado de neve, de botas, descendo de uma chaminé ou sentado em um trenó, rena e pinheiro). Geralmente, o nosso homem do campo desconhece as comemorações do Natal à maneira como hoje são usuais nas cidades grandes, enfeitadas com o fetiche de gigantescas árvores de neve e de presentes ansiosamente aguardados, mais envolvidas pelas fantasias de luzes e cores (principalmente a vermelha) e pela ambição do comércio, sedento de grandes lucros. No caso brasileiro mais autóctone, essas cerimônias rituais e manifestações coletivas, também conhecidas como folguedos da cultura popular brasileira, ainda são encenadas por todo o país, sempre com peculiaridades locais, podendo-se citar as seguintes: reisado, guerreiro, bumba-meu-boi (típico folguedo da região Nordeste), pastorinhas ¹, folia de reis ou santos reis (os "ternos de reis" para os gaúchos). 
 
¹ Sob influência portuguesa, o auto do pastoril (ou pastorinhas) proliferou por todo o Brasil, mas de modo especial no Nordeste. 
 
LADAINHA DOS PÓSTUMOS NATAIS 
Por David Mourão-Ferreira 
 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que se veja à mesa o meu lugar vazio 
 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido 
 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que só uma voz me evoque a sós consigo 
 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que não viva já ninguém meu conhecido 
 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que nem vivo esteja um verso deste livro 
 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que terei de novo o Nada a sós comigo 
 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que nem o Natal terá qualquer sentido 
 
Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que o Nada retome a cor do Infinito 
 
 
Comentário por Catarina Costa Augusto do Blog Espalha-Factos: "David Mourão-Ferreira reflete, neste poema, sobre a passagem do tempo. O poeta afirma que chegará o dia em que ele morrerá e deixará de estar presente no Natal, em que todos os seus conhecidos desaparecerão e tudo cairá no esquecimento. Numa época em que todas as famílias se reúnem, à volta de uma mesa e ao redor de uma lareira, a ausência dos que já partiram é recordada. Para o poeta, o Natal perde o seu sentido, quando já não existem memórias vivas para recordar alguém que por cá passou."
 
2) JOSÉ CARLOS GENTILI 
 
NATAL
Por José Carlos Gentili
 
Deixe-me pensar 
Num presente diferente 
De outros natais. 
Darei uma nuvem? 
Darei uma pluma? 
Uma pluma de éter? 
Não! Os natais passam, 
As idades aumentam, 
As ideias mudam 
No Natal os presentes. 
Ah! Farei um poema, 
Um poema de letras. 
De letras simétricas 
Como são os natais. 
Um poema com neve, 
Pinheiros e sinos. 
Sinos que tangem 
Na neve que cai, 
Que cai nas folhas 
Dos pinheiros do Céu. 
 
Meu comentário: O eu poético se imagina ofertando "um presente diferente de outros natais", já que faz a constatação de que tudo muda, inclusive nós mesmos e o Natal. 
Em Soneto de Natal, Machado de Assis nos narra que um poeta, desejoso de transpor para a noite de Natal "as sensações de sua idade antiga", mas achando-se pouco inspirado na ânsia de produzir um soneto sobre o Natal, só consegue concluir um verso do soneto planejado: "Mudaria o Natal ou mudei eu?" 
Deonísio da Silva, em concordância com Gentili, cravou: "mudamos todos nós e mudou o Natal também". 
Na estrutura da composição, o poeta observa portanto duas partes bastante distintas no plano do poema, compondo-se de 10 versos cada parte. Na primeira parte do poema, Gentili constata a impossibilidade de atinar com o presente ideal diante da situação conflituosa de que tudo passa. Na segunda parte, devido a essa inconstância, propõe uma saída: o seu presente será um poema com determinadas características típicas de sua fantasia do que seja um Natal: mais permanente, mas nem por isso, estático. 
 
 
III. BIBLIOGRAFIA 
 
 
AUGUSTO, Catarina Costa: O Natal aos olhos dos poetas (2018) 
 
BALAGUER, São Josemaría Escrivá: É Cristo que passa - Homilias, pp. 18-19. 
 
BRAGA, F. J. Santos: A Porfia das Flores, opereta de Antônio Américo da Costa
 
PEREIRA, Moacir: Quem mudou? Ou Natal ou nós? (2020) 
 
PERES, Paulo: O maravilhoso Natal no folclore brasileiro (2013) 
 
WIKIPÉDIA, no verbete Presépio e, em especial, o presépio tradicional português 

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

ODE À MÚSICA


Por DAVID MOURÃO-FERREIRA
 
O gerente do Blog de São João del-Rei dedica o presente trabalho ao empreendedor EDÉCIO OLÍVIO DO VALE, proprietário da loja MANIA DE CULTURA, localizada no centro histórico de São Paulo, à Rua Rodrigo Silva, 34, onde se encontra o livro abaixo com a Ode à Música, acompanhada do texto Quanto a esta Ode, ambos de David Mourão-Ferreira. A Mania de Cultura é referência em todas as áreas do conhecimento, inclusive com itens esgotados e raros, merecendo destaque especial seu acervo de obras jurídicas. 


 

I. ODE À MÚSICA 

Por David Mourão-Ferreira 

 


É como se tivesses mãos ou garras 
milhões de dedos braços infinitos 
É como se tivesses também asas 
libertas do minério dos sentidos 
É como se nos píncaros pairasses 
quando nas nossas veias é que vives 
É como se te abrisses ó terraço 
rodeado de abutres e raízes
sobre o perene pânico dos astros 
sobre a constante insónia dos abismos 
E é como se te abrisses e fechasses 
sobre a antepalavra do Espírito 
É como se morresses quando nasces 
É como se nascesses quando expiras 
 
II 
 
Ó claridade Ó vaga Ó luz Ó vento 
que no sangue desvendas labirintos 
Ó varanda no mar sempre Setembro 
Ó dourada manhã sempre Domingo 
Ó sereia nas dunas irrompendo 
com as dunas e o mar se confundindo 
Ó corpo de desperta adolescente 
já no centro de incógnitos caminhos 
que por fora te aceitas e por dentro 
pões em dúvida o sol do teu fascínio 
Ó dúvida que avanças mas por entre 
volutas de pavor que vais cingindo 
Ó altas labaredas Ó incêndio 
Ó Musa a renascer das próprias cinzas 
 
III 
 
Só tu a cada instante nos declaras 
que renegas a voz de quem divide 
Que a única verdade é haver almas
terrível impostura haver países 
Que tanto tens das aves o desgarre 
como o expectante frémito do tigre 
tanto o céu indiviso que há nas águas 
quanto o múltiplo fogo que há no trigo 
Que és igual e diversa em toda a parte 
Que és do próprio Universo o que o sublima 
Que nasces que te apagas que renasces 
em procura da límpida medida 
Que reges o mais puro e o mais alto 
do que Deus concedeu às nossas vidas 
 
(Crédito pela narração: Mundo dos Poemas) 
 
II. QUANTO A ESTA ODE
 
 
Convidado, pelo meu velho amigo o Maestro Filipe de Sousa, a escrever um texto para as celebrações portuguesas do Dia Mundial da Música de 1980, longe estava eu de prever, quando o convite me foi feito, que esse texto viria a ser em verso e, muito menos ainda, como é óbvio, que ele iria a tomar a forma desta Ode à Música

De entre várias circunstâncias que para isso terão concorrido, nomearei sobretudo a de certo reencontro comigo mesmo, depois de já o "restabelecido" de um período funesto em que por demais me "emprestara" a actividades de carácter público. E nomearei ainda a crescente náusea que me ia despertando, no auge de um belíssimo Verão bem merecedor de melhor sorte, o repugnante espectáculo da utilizaçao da língua portuguesa para os mais baixos fins de insulto pessoal e de comicieira demagogia. 

Donner un sens plus pur aux mots de la tribu? Sem que tão-pouco fosse consciente este propósito, decerto terá sido ele que me orientou em procura da límpida medida para uma tentativa de expressão quanto possível rigorosa e quanto possível alheia à babugem das contingências. 

Deve ter também a ver com isto a reiterada associação, que na Ode se observa, entre o tema da música e os temas da água e do fogo. Já depois de escrita praticamente de um jacto, praticamente na forma como hoje se se apresenta , esses últimos temas continuaram ainda a exigir uma expressão mais desenvolvida. Assim, no dia seguinte àquele em que o poema fora escrito, eis que me surgiu, como desenvolvimento ao tema da água em conexão com o da música, mais esta possível "secção" da Ode (que só a título de curiosidade aqui transcrevo): 

Atlântico Adriático Pacífico 
Volga Guadalquivir Danúbio Reno 
Não há mar não há fonte não há rio 
que não tenhas bebido longamente 
Por isso é todo de água o teu domínio 
todo névoas o teu ensinamento 
E o melhor que deixamos erigido 
(isto ao menos contigo o aprendemos) 
só na água e no vento o construímos 
para de nós ficar ou água ou vento 
Mas com que inexorável disciplina 
buscas os fundamentos disso mesmo 
ó Musa dentre todas a mais fria 
ó Musa todavia a mais ardente 
 
Convenci-me então de que um novo "sector" do poema esse de desenvolvimento ao tema do fogo haveria ainda de fatalmente aparecer. Mas logo a seguir me apercebi de que o trecho acima transcrito já constituía uma excrescência; que ele não apresentava sequer a contenção dos outros; que eu estava, enfim, a laborar num equívoco. 
Boa ou má, a Ode encontrava-se efectivamente completa. Os temas podem "enganar-se" a respeito destas coisas. As formas, não. 
Lisboa, 4 de Outubro de 1980 
Ass. David Mourão-Ferreira
 
  

III. AGRADECIMENTO
 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste ensaio.
 

IV. BIBLIOGRAFIA

 
 
MOURÃO-FERREIRA, David: ODE À MÚSICA, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1980, 23 p.

Colaborador: DAVID MOURÃO-FERREIRA


Por Francisco José dos Santos Braga 
 
DAVID MOURÃO-FERREIRA é um escritor português, jornalista, poeta, tradutor, romancista, crítico literário, ensaísta, dramaturgo, tendo nascido em Lisboa, em 1927 e falecido, também na mesma cidade, em 1996. Licenciou-se em Filologia Românica em Lisboa em 1951, onde mais tarde em 1957 chegou a ser professor catedrático, organizando e ministrando, dentre outras, a cadeira de Teoria da Literatura. 
Embora os seus primeiros poemas datem de meados dos anos 40, a sua atividade poética começou a ganhar relevo quando foi co-diretor, juntamente com António Manuel Couto Viana e Luís de Macedo, da revista Távola Redonda (1950-1954), que, sem apresentar programa ou manifesto, se orientava para uma alternativa poética à poesia social, baseada na "revalorização do lirismo", exigindo do poeta "autenticidade e um mínimo de consciência técnica, a criação em liberdade e, também, a diligência e capacidade de admirar, criticamente, os grandes poetas portugueses de gerações anteriores a 1950. Sem reservas ideológicas ou preconceitos de ordem estética", atributos a que acresciam como exigências a reação contra a "imediatez da inspiração e contra o impuro aproveitamento da poesia para fins sociais", através do equilíbrio "entre os motivos e a técnica, entre os temas e as formas". 
Sua poética constituiu um importante contributo para o surgimento do Novo Fado de Amália Rodrigues, nos anos 60 e 70 do século XX. 
Foi secretário de Estado da Cultura, entre 1976 a janeiro de 1978, e em 1979. 
Para a RTP, foi autor de alguns programas de televisão, cabendo destacar "Imagens da Poesia Europeia". 
Além disso, foi diretor do diário A Capital; diretor do Boletim Cultural do Serviço de Bibliotecas Itinerantes e Fixas da Fundação Calouste Gulbenkian, entre 1984 e 1996; diretor da revista Colóquio/Letras; presidente da Associação Portuguesa de Escritores (1984-86) e vice-Presidente da Association Internationale des Critiques Littéraires. 
Da sua obra poética, cuja poesia se distingue pelo lirismo culto, depurado e sutil, destacam-se os seguintes livros: A Secreta Viagem, Do Tempo ao Coração, Cancioneiro do Natal, Matura Idade e Ode à Música
A obra de David Mourão-Ferreira foi várias vezes reconhecida com prêmios literários, como, por exemplo: Prêmio de Poesia Delfim Guimarães, 1954, por Tempestade de Verão; Prêmio Ricardo Malheiros, 1960, por Gaivotas em Terra; Prêmio Nacional de Poesia, 1971, por Cancioneiro de Natal; Prêmio da Crítica da Associação Internacional dos Críticos Literários por As Quatro Estações; e, por Um Amor Feliz, os prêmios de Narrativa do Pen Clube Português, D. Dinis, de Ficção do Município de Lisboa e o Grande Prêmio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores. Ao autor foi ainda atribuído, em 1996, o Prêmio de Consagração de Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores. 
A ABL-Academia Brasileira de Letras escolheu para ocupar, na categoria de Sócio- Correspondente, a Cadeira número 5, que tem por Patrono Dom Francisco de Sousa (1628-1713). Sua eleição para ocupar como 5º ocupante deu-se em 1981. O atual 6º ocupante é o moçambicano Mia Couto.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

ADRIANO MOREIRA: UM ÍCONE

 

Por JOSÉ CARLOS GENTILI *

ADRIANO MOREIRA (✰ Macedo de Cavaleiros, 06/09/1922 ✞ Lisboa, 23/10/2022)


 

No dia 13 de maio do ano corrente, após a Covid, fui visitá-lo em seu Recanto de Viver, lá no Restelo, às margens do Tejo. 

Entre lágrimas e afagos nos abraçamos, a reviver uma amizade transoceânica, alicerçada por inúmeros e inolvidáveis encontros e celebrações literárias. 

Presente, o Presidente da Academia Internacional da Cultura Portuguesa, Almirante António Carlos Duarte, seu fiel escudeiro vivencial. 

Lisboa, Açores, Belmonte, Bragança (onde ele me designou membro do Conselho Executivo da Biblioteca Nacional de Portugal), marcaram nossas estradas portuguesas, à beira de sua inteligência invulgar. 

Fui seu confrade na Academia das Ciências de Lisboa, em companhia dos acadêmicos Tarcízio Dinoá Medeiros e Deonísio da Silva, integrantes da Academia Real de Ciências de Lisboa, quase tricentenária, fundada pelo Duque de Lafões, presidida por ele e pelos académicos Luís Ayres-Barros, Eduardo Romão Arantes de Oliveira, Artur Anselmo, Jorge Salema e atualmente por Jose Luís Cardoso. 

A convite da Academia de Letras de Brasília, aqui esteve em dois eventos internacionais.

Três livros marcaram sua caminhada: Este é o Tempo, A Nossa Época e a Circunstância do Estado Exíguo. Muitos outros compõem seu acervo literário, naturalmente. 

Finalmente, no dia de seu centenário (6 de setembro de 2022), lá do Restelo, mandou-me o livro ADRIANO MOREIRA-Para Além da Espuma do Tempo, preparado pela Universidade de Lisboa e pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, quando distinguiu-nos com esta dedicatória: 

Nesta transição centenária, recordo os tempos de vésperas, onde destaco o meu preclaro amigo Prof. José Carlos Gentili, acadêmico de enorme prestígio, dentro e fora do Brasil, como aqui em Portugal, e com quem tive o privilégio de privar, juntamente com a sua simpática esposa Marilene, aqui e além-mar. Os melhores votos para vós e vossos familiares, na expectativa de um reencontro algures no tempo e lugar. Lisboa, Restelo, 6 de setembro de 2022. (Adriano Moreira)

 

Assim, viajou um homem de bem! 

Nossas homenagens cósmicas e condolências à família.

* José Carlos Gentili, jornalista e escritor.

 

terça-feira, 27 de setembro de 2022

PIANISTA ENY DA ROCHA: “NA LINHA DO TEMPO”


Por Francisco José dos Santos Braga
 
O gerente do Blog de São João del-Rei dedica o presente trabalho ao empreendedor ANTÔNIO JOSÉ DA LUZ, proprietário do SEBO LIBERDADE, localizado no centro histórico de São Paulo, à Praça Carlos Gomes, 124, onde encontrou o CD abaixo, apresentado nesta matéria. O SEBO LIBERDADE é referência em todas as áreas do conhecimento, inclusive com itens esgotados e raros, merecendo destaque especial seu acervo de obras literárias. 
 
“O pianista é um operário. Ele tem que ter horário muito rígido de trabalho e, ao mesmo tempo, ele tem que ter muita sensibilidade para passar suas emoções através das suas interpretações.”
(em entrevista dada a Maria Luíza Kfouri, quando se apresentou no Piano Maior gravado ao vivo no Auditório Cultura (Teatro Franco Zampari) no primeiro semestre de 1993)
 
 
Eny da Rocha, tendo ao fundo o Museu do Ipiranga: capa do encarte do CD "Na Linha do Tempo" de 2016 / Crédito: Cezar de Aguiar, produtor executivo do CD, e Hamilton Penna, fotógrafo.

 
 
Tributo da artista a seus pais Ari da Rocha e Maria Olga da Rocha (na contracapa do CD): "Minha vida musical começou quando meus pais compraram para mim uma piano novinho em folha! Aquele gesto mudou meu futuro! Este CD é um tributo a sua confiança, esforço, encorajamento e amor... Devido àquele presente precioso e seu significado, eu serei eternamente grata!"

 
 
I. INTRODUÇÃO
 
 
O título desta matéria  – Na linha do tempo – comporta e traduz dois significados bem distintos: em primeiro lugar, com idêntico título, na discografia da grande pianista há um belo CD, gravado em São Paulo e lançado em 2016. Além disso, o título da presente matéria também reflete sua vida artística palmilhada em vários países e pontuada por uma carreira pianística de virtuose. Ambas essas acepções serão objeto desse meu trabalho. 
 
Começo, pois, por um evento indelével que ficou gravado em sua memória infantil e que determinou o seu futuro. A respeito desse evento marcante na sua infância, o CD "Na Linha do Tempo" de 2016, em sua faixa nº 10, inclui um terno depoimento da artista pleno de gratidão a seus pais, nos seguintes termos: 
"Aos 8 anos de idade eu já queria ser pianista, mas não tinha piano. Os meus pais é que acreditaram em mim e juntaram todas as suas economias e fizeram o que os parentes chamaram de "loucura". Um dia eu voltava da escola e, passando pela sala, vi com alegria que meu piano estava lá: um piano lindo, preto, alemão, de marca Gebrüder Baker. Com o meu coração batendo forte, eu abracei minha mãe e agradeci pela maravilhosa surpresa. Aquele gesto desenhou o meu futuro. Ao sacrifício dos meus pais e seu voto de confiança e sinal de amor serei eternamente grata. A próxima peça Serenada Humorística de Francisco Mignone (faixa nº 11) foi gravada nesse piano histórico que eu tenho desde os meus 8 anos. Obrigada a meus saudosos e amados pais."
Observa-se bom gosto e finesse na escolha do repertório pela artista. As peças, que se estendem do barroco ao romantismo, acoplados ao impressionismo francês, primam pela elegância e glamour que exalam, e permitem que a técnica virtuosística sirva à autêntica interpretação, dentro das convenções estilísticas exigidas para tal e com o maior rigor técnico. 
 
Todas as faixas do CD "Na Linha do Tempo" são: 
1) Bach-Saint-Saëns: Ouverture de la 28ème Cantate d'Église [4'43’’]
2) Chopin: Fantaisie-Impromptu op. 66 [4'39’’]
3) Chopin: Berceuse op. 57 [4'23’’]
4) Brahms: Rapsódia op. 79 nº 1 [7'46’’]
5) Debussy: Clair de Lune (Suite Bergamasque) [4'02’’]
6) Debussy: 1ère Arabesque [4'27’’]
7) Debussy: L'isle joyeuse [6'12’’]
8) Ravel: Jeux d'eau [5'51’’]
9) Ravel: Miroirs nº 4, Alborada del Gracioso [6'53’’]
10) Depoimento da Artista (conforme acima transcrita) [1'02’’]
11) Mignone: Serenada Humorística [2'08’’]
 
Sobre a última peça, intitulada Serenada Humorística, cabe tecer alguns comentários. 
[MARTINS, 1990, 89] faz importantes considerações sobre o pianista e compositor Mignone:
"Francisco Mignone poderia ter sido apenas pianista. Destinação clara mostrava-se delineada e o piano, instrumento a que sempre estivera ligado, apresentava-se como decorrência de talento nato. Reflexão metafísica voltada à perpetuação, à imortalidade, fê-lo cedo ampliar os caminhos. É quando sente e compreende a atração pela composição. (...)
Pianismo e composição, paralelamente, percorrem a trajetória de Mignone. A diversidade dos gêneros abordados em organizações instrumentais variadas, assim como para a voz em suas principais destinações musicais, apenas dimensiona a prioridade em escrever para piano. É este o instrumento preferencial, o desaguadouro das múltiplas tensões, homogêneas no seu todo. (...) 
Francisco Mignone foi um dos compositores que melhor escreveram para piano. A "transcendência" pianística, que para muitos compositores se antepõe como obstáculo ou necessidade forçada da demonstração virtuosística à clareza, é para Mignone o discurso natural. Poder-se-ia acrescentar que raros são os compositores que escreveram para piano, na transcendência, de maneira tão adequada e "fácil". 
O transcendente da obra para piano de Mignone origina-se na conditio sine qua non da improvisação. Mignone, improvisador nato, questionado certa vez por este intérprete, não hesitou em considerar a sua criação "o improviso elaborado", pois o fio condutor do criar espontâneo o levava a considerar, quando do verter para o papel, a obra com todos os ingredientes estruturais. (...)"

De acordo com o Catálogo de Obras de Francisco Mignone, organizado em 2016 por Flávio Silva para a Academia Brasileira de Música, são três as situações em que aparece a peça com o título de Serenada Humorística

1) Nº 5.42 do Catálogo 
A partitura original para piano é datada de 1932, editada por Editorial Mangione, dedicada "ao querido e ilustre colega Francisco Braga" e consta de 5 páginas com duração prevista de 2'10. É a utilizada na gravação da faixa nº 11 do CD pela pianista Eny da Rocha. 
Curiosidade: Serenada Humorística pede o andamento "Allegretto saltellante". 
 
Primeiros compassos da Serenada Humorística / Crédito: CASA do CHORO

 
2) Nº 6.31 do Catálogo 
Existe ainda uma transcrição em 2 páginas, feita pelo próprio Mignone em data ignorada. 
 
3) Nº 7.13 do Catálogo 
Transcrição para 4 fagotes datada de 9/12/1983 e dedicada "a Noel Devos e seus discípulos".
 
 
II. ARTISTA DESTAQUE: ENY DA ROCHA ("ARTISTA STEINWAY") 
 
Por Cezar de Aguiar (no encarte do CD) *
 
Quando aquela menina, nascida no Ipiranga ganhou dos pais seu primeiro piano, ninguém poderia imaginar até onde ela chegaria... Aos 8 anos Eny era estudiosa, obediente e compenetrada. A professora contratada, Maria de Freitas, logo percebeu que a alunazinha "tinha jeito", aprendia com facilidade e foi progredindo nos estudos. Foi ela que encaminhou Eny para o Conservatório Dramático e Musical, em São Paulo, que, na época, congregava sábios mestres. 
Quatro anos mais tarde ela estreou como solista da Orquestra Sinfônica da Rádio Gazeta, regida por Armando Belardi. Feito notável! A Gazeta estimulava a boa música e valorizava os jovens artistas. Mas assumir a responsabilidade de solista de sinfônica não era para qualquer músico, especialmente não nesta tenra idade... 
 
Eny da Rocha, Ilza Antunes e Edda Fiore, aguardando uma masterclass de Magdalena Tagliaferro no Teatro Municipal de São Paulo / Crédito: Instituto Piano Brasileiro

 
Como explicar essa carreira vitoriosa, longa e repleta de acontecimentos improváveis? Durante o tempo em que trabalhamos neste projeto convivendo com a grande artista, a razão apareceu com todo o fulgor: foram seus vários mestres, que, ao longo de sua formação musical e artística, a orientaram para o sucesso e a excelência! E não eram mestres quaisquer! Eram expoentes mundialmente conhecidos, exigentes, trabalhando em Escolas e ambientes propícios. 
Somente um deles já teria sido algo extraordinário, João de Souza Lima. Generoso e – bom observador – aconselhou a ida da artista para "aperfeiçoamento" na Europa. Imagino Eny sorrindo, abismada pelo que tinha à sua volta quando lá chegou. Estudar em instrumentos de alta qualidade, vendo talentos e mais talentos no seu entorno, enfrentando competição de alto nível, o mérito garantido e reconhecido somente pelo desempenho e pelo resultado. Ela própria conscientizando-se pelos muitos prêmios e láureas que recebeu – algo impossível se estivesse no Brasil daquela época – e viu que podia fazer ainda mais... 
 
Maestro Souza Lima, "príncipe dos pianistas brasileiros" (1898-1982), dedicou a Eny da Rocha seu Prelúdio nº 5-Link: https://www.youtube.com/watch?v=6mCoQCqgd00

 
Dessas honrarias há uma que vai permanecer para a Posteridade: Eny se torna uma Steinway Artist. Em 150 anos de história um número realmente muito pequeno de pianistas recebeu tal comenda. 
Os grandes compositores e intérpretes dos séculos 19 e os gênios da música do século 20, compõem um elenco de uns 1.000 artistas imortais. Para os mortais, sobram cerca de 500 artistas laureados em toda a Humanidade desde a instituição do prêmio. Os brasileiros são menos de 20. 
Eny, além de intérprete impecável e em plena atividade na cena internacional, é também uma educadora de jovens. Promove Master Classes, estimula os mais promissores. Agora está encantada porque a netinha anunciou que quer tocar harpa... o neto já toca violão! E ambos passam horas "improvisando" no Steinway da vovó...
* Produtor Executivo do CD "Na Linha do Tempo"
 
 
 
III. ENY DA ROCHA: A INTÉRPRETE POR ELA PRÓPRIA (no encarte do CD)
 
 
(...) Ao completar meus estudos no Brasil, fui à Europa, com bolsa do Itamaraty, aperfeiçoar meus estudos, com as insignes mestras Marguerite Long e Lucette Descaves, recebendo diploma de curso efetuado na École Long. Nessa época, participei de inúmeros concursos internacionais como o Concurso Marguerite Long-Jacques Thibaud, recebendo menções honrosas e a oportunidade de dar concertos pela Europa. 
Após dois anos em Paris, retornei ao Brasil, mas logo voltei novamente para a Europa, desta feita, para Viena, onde permaneci dois anos, formando-me pela Academia de Viena - Akademie für Musik und Darstellende Kunst, na classe de Hans Graf e com aulas particulares com o grande mestre Bruno Seidlhofer, além de um curso em Salzburg sob sua orientação. Dei concertos em Viena, com excelentes críticas e fui convidada a permanecer lá para uma carreira internacional. 
Porém, voltei ao Brasil, meu país amado, onde sonhei construir minha vida artística. Toquei em vários países como França, Espanha, Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Portugal, Itália, República Tcheca, Argentina, Estados Unidos (Washington, Los Angeles, Salt Lake City e outras cidades). No Brasil, onde vivo, criei uma Escola de Música e realizo Master Classes tanto no Brasil, como nos EUA, Itália, etc. Tenho um conjunto de câmara para apresentações no Brasil e me orgulho de ter dado inúmeros concertos em benefício, pelas Escolas do Chile, em L'Aquila e Mantova, pelas vítimas do terremoto, em São Paulo, pela Fundação Dorina Nowill para Cegos, Recanto da Vovó, por várias vezes, em benefício de idosos, Creches como a Catarina Labouré e Operários de São José, Associação Padre Pedro Bach, para crianças pobres e tantos outros. Sou também voluntária da ONG Soroptimist Internacional de São Paulo, por 23 anos, trabalhando pela comunidade carente. 
Através da Música, conheci pessoas extraordinárias, como o grande compositor russo Dimitri Shostakovich, o Maestro Herbert von Karajan, nosso amado Villa-Lobos e inúmeros outros. Graças à Música, tenho amigos muito queridos em todos os países por onde passei e especialmente aqui no Brasil, em minha cidade, São Paulo. Graças a Deus, são eles que conduzem minha carreira e me levam adiante com fé e determinação. 
 
Foto de Eny da Rocha tirada nos jardins do Museu do Ipiranga / Crédito: Hamilton Penna

 
Agradeço a você, Cezar de Aguiar, a dedicação e esmero ao produzir este meu novo CD "Na linha do tempo", cuja capa traz uma foto minha, tirada pelo amigo Hamilton Penna, nos jardins do Museu do Ipiranga, bairro onde nasci e passei minha infância e juventude. A todos minha eterna gratidão! 
Em todos os tempos a Música teve um papel preponderante na Civilização. Sua presença se faz sentir desde o nascimento e em todas as ocasiões de nossa vida. A Música é uma forma de oração, elevando o pensamento a Deus! 


IV. AGRADECIMENTO
 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste ensaio.
 

V. BIBLIOGRAFIA

 
 
 
MARTINS, José Eduardo: A Pianística Multifacetada de Francisco Mignone, Revista Música, São Paulo (2):89-113, nov. 1990.

ROCHA, Eny da: Contemporary Digital Arts - CDA-20150505-CD "Na Linha do Tempo" de 2016

LINKS CONSULTADOS
 
 
 
 
 
 
 
 

sábado, 10 de setembro de 2022

D. PEDRO, REI, IMPERADOR E MÚSICO


Por MANUEL IVO (Soares Cardoso) CRUZ *
 
O gerente do Blog de São João del-Rei dedica o presente trabalho ao empreendedor EDÉCIO OLÍVIO DO VALE, proprietário da loja MANIA DE CULTURA, localizada no centro histórico de São Paulo, à Rua Rodrigo Silva, 34, onde se encontra o livro abaixo com o ensaio do Maestro Manuel Ivo Cruz, da página 42 a 59. A Mania de Cultura é referência em todas as áreas do conhecimento, inclusive com itens esgotados e raros, merecendo destaque especial seu acervo de obras jurídicas. 
 
Livro comemorativo da Exposição "D. Pedro d'Alcântara de Bragança, Imperador do Brasil, Rei de Portugal", inaugurada no Palácio de Queluz e transladada para o Paço Imperial da Cidade do Rio de Janeiro (1987)

 
"Querido Papá! Envio-vos nesta ocasião uma Missa de Neukomm que, como súbdito austríaco e discípulo de Haydn, merecerá sem dúvida o vosso bom acolhimento e além disso contém duas fugas que, todos sabemos, tanto vos agradam. O meu Marido é também compositor e faz-vos presente da Sinfonia e Te Deus de sua autoria; falando verdade é um tanto teatral, que é defeito de meu Marido. Mas posso garantir que é escrito por ele mesmo sem auxílio de ninguém." ¹
Tal é o teor de uma carta enviada do Rio de Janeiro em 19 de Fevereiro de 1821 a Francisco I da Áustria, por sua filha D. Leopoldina de Habsburg, primeira mulher de D. Pedro, futuro rei de Portugal e imperador do Brasil. 
Este Te Deum é certamente a obra mais marcante do régio e imperial compositor; por outro lado, a ele se encontra associada a Sinfonia que D. Leopoldina envia a seu pai. Vejamos pois a história destas obras, como eixo da vida musical de D. Pedro de Bragança. 
 
O Te Deum 
Notifica a Gazeta do Rio de Janeiro em 27 de Março de 1821: ²
"Baptizado do Principe da Beira D. João Carlos, filho do Principe Regente D. Pedro... Depois entoou o mesmo Excelentíssimo Bispo o hymno Te Deum, que foi cantado pelos músicos da Real Câmara e Capella com música composta por um génio transcendente, tão amado das Musas como dos portugueses, dirigida pelo célebre Marcos Portugal, Mestre de S.S.A.A.R.R. Durante a augusta cerimónia se tocaram muitas agradáveis symphonias." 
O "génio transcendente" era evidentemente D. Pedro; nem nunca Marcos Portugal acederia a dirigir, numa cerimónia tão importante, obra que não fosse de sua lavra, se o autor não tivesse outros títulos que justificassem tal pretensão! Por outro lado podemos ter a certeza que se tratou da primeira audição do Te Deum, pois a Gazeta do Rio de Janeiro não deixaria de mencionar tão importante acontecimento, e é esta a primeira vez que o faz. 
Numa das minhas recentes viagens profissionais ao Brasil, já preocupado com a faceta musical de D. Pedro, procurei o notável compositor monsenhor Guilherme Schubert, a quem está confiado o arquivo musical do cabido da Sé Catedral do Rio de Janeiro; muito amavelmente patenteou-me as várias riquezas desse arquivo, entre as quais algumas das obras religiosas mais importantes de Marcos Portugal; lá se encontra também um manuscrito com a seguinte identificação na folha de rosto: "Te Deum Laudamus a 4 vozes e grande orquestra oferecido a El-Rei D. João 6 por seu filho o Principe Real D. Pedro d'Alcantara Duque de Bragança que o compôs para o nascimento [falta o resto da frase]. Original no Rio de Janeiro a 20 de Dezembro de 1820." *
Monsenhor Schubert, conhecedor profundo das obras de D. Pedro, garantiu-me ser uma partitura autógrafa. 
Trata-se, com certeza, do mesmo Te Deum que D. Leopoldina enviou para seu pai e obviamente o que serviu na cerimónia do baptizado do pequeno João Carlos; compreende-se que D. Pedro, que já tinha uma filha, D. Maria da Glória, e tivera um filho que faleceu poucas horas depois de nascer (D. Miguel, em 24 de Março de 1820), esperasse com impaciência o nascimento de um filho varão; tanto o desejava que na impossibilidade de prometer a construção de um novo Convento de Mafra como o fizera seu real trisavô, terá composto o Te Deum Laudamus, talvez em cumprimento de secreto voto pela satisfação de uma das suas mais caras aspirações, mas certamente também para celebrar com brilho pessoal esse tão ansiado fausto. 
E por isso mesmo, por ser uma obra para uma criança que estava para nascer, na dedicatória a seu Augusto Pai o nome do nascituro ficou em branco, para se preencher oportunamente conjectura que bem pode coincidir com a verdade íntima dos acontecimentos. 
De qualquer modo a cronologia do Te Deum deve ser estabelecido da seguinte maneira: composto no Rio de Janeiro para o descendente que haveria de nascer e oferecido a D. João VI austríaco em 19 de Fevereiro de 1821; nascimento de D. João Carlos, príncipe da Beira, a 6 de Março de 1821; baptizado do príncipe e primeira audição da obra, a 27 de Março do mesmo ano. 
O mesmo Te Deum terá sido cantado certamente muitas vezes no Brasil; nomeadamente encontra-se uma referência expressa na carta de D. Pedro a seu pai, de 26 de Agosto de 1821, em que lhe relata as acções de regozijo pela notícia da boa chegada dos reis e familiares a Lisboa: ³
"... Em o dia 24 houverão as salvas do costume dos dias de Galla Grande e tão bem galla Grande, houve Missa e Te Deum de ma. composição, em atenção a nossa Regeneração Política: pregou o cónego Francisco o sermão mais constitucional q. se pode pregar, em huma palavra parecia um Anjo q. pregava, e não um pecador; depois fui dár o Beija mão pela feliz chegada de V. Magestade..." (sic). 

Sobre este sermão, Metternich recebeu de seu indignado embaixador o seguinte relato: 

"o Te Deum foi precedido de um sermão onde se pregou a soberania do povo em vez da moral de Jesus Cristo".
Também no baptizado do príncipe D. Pedro, que veio a ser o segundo imperador do Brasil (nascido a 2 de Dezembro de 1825, no Rio de Janeiro), a obra maior de D. Pedro de Bragança voltou a fazer-se ouvir, pelos artistas da Real Câmara, e muito apropriadamente. Em Portugal, o Te Deum foi pelo menos executado nas cerimónias religiosas do baptizado de dois netos do régio compositor, filho de D. Maria II e de D. Fernando: no do infeliz príncipe que tão breve e saudosamente reinou com o nome de D. Pedro V, e no de seu irmão infante D. João. 
Tive recentemente a grata oportunidade de consultar o manuscrito do Te Deum que existe no arquivo da Casa Palmela, que, segundo a informação dada por D. Manuel de Sousa e Holstein Beck, conde da Póvoa, foi oferecido ao seu antepassado segundo duque de Palmela pela viúva de D. Pedro IV, a imperatriz D. Amélia de Leuchtenberg, pouco antes da morte, ocorrida em Lisboa no ano de 1873. 
Esta partitura ostenta na primeira página a seguinte legenda: "Santissimo in Domine/ Patri / Leone Duodécimo Hymnus / Te Deum Laudamus / a / D. Pedro Primus Brasilia Imperatore Constitutionale / nec non Perpetuo Defensori / Compositus / Et in Signum Filiater Reverentiae Oblatus.
Trata-se da mesma obra musical que eu examinara no cabido da Sé do Rio de Janeiro, donde se conclui curiosamente que D. Pedro dedicou o seu Te Deum ao papa Leão XII e a seu pai; pelo menos, pois não sabemos ainda que dedicatória levava o exemplar enviado a seu sogro e que se deve encontrar numa das bem organizadas bibliotecas de Viena. 
 
A Abertura 
A grande diferença entre as duas partituras reside no facto de o manuscrito Palmela ostentar uma "Abertura", em mi bemol maior, que não existe na partitura do cabido carioca. 
Verifiquei posteriormente que esta "Abertura" é conhecida no Brasil pelo nome de Independência; encontram-se no arquivo de uma das centenárias orquestras de S. João d'El-Rei as partes cavas desta obra, lendo-se na parte do primeiro clarinete: "Ouverture Composta pelo Senhor D. Pedro I na época da Independência do Brasil." Foi recuperada pelo nosso bom amigo e apreciado maestro Alceo Bocchino que, no Brasil, a deu sob aquele nome, em primeira audição moderna em 1972 e gravou em 1979 na preciosa colecção Monumento da Música Clássica Brasileira, no volume dedicado ao tempo de D. Pedro I. 
Será a mesma Sinfonia ** que D. Leopoldina enviou a seu pai? Tudo leva a crer que sim, pois não se vislumbra que outra obra de D. Pedro pudesse merecer, pela sua importância e acabamento, distinção tão elevada. 
 
O Concerto de Paris 
Esta Sinfonia, ou Abertura do Te Deum ou Ouverture da Independência tem por um lado uma história que interessa relatar. 
Quando, depois de abdicar do trono brasileiro, a caminho de Portugal para a conquista da coroa portuguesa para a filha, D. Pedro atardou-se em Paris de Agosto de 1831 a Janeiro de 1832; foram quase seis meses de grande atividade política e diplomática, em que febrilmente preparou uma das mais espetaculares aventuras militares de todo o século XIX. 
São no entanto constantes as referências da imprensa às deslocações do imperial casal (já estava casado com D. Amélia) a concertos, espectáculos de ópera e comédia, assim como se noticiam numerosas reuniões musicais mais íntimas. Iam frequentemente ao Théâtre des Italiens, ao Théâtre Français, para o camarote do rei Luís Filipe ou, como simples viajantes, para lugares menos em evidência.
Travou então D. Pedro conhecimento com o seu maior ídolo mundial, o compositor mais admirado do seu tempo, o de facto admirável Gioacchino Rossini, mutuamente se ofereceram partituras de suas composições e Rossini, num gesto de profunda elegância, prontificou-se a fazer incluir uma obra de D. Pedro num dos programas do Teatro Italiano. 
O concerto realizou-se na noite de 30 de Outubro de 1831 e um crítico teatral alemão, Ludwig Boerne refere-se-lhe desta antipática maneira: 
"Domingo passado houve no Théâtre des Italiens um concerto a que não assisti. Começou por uma Ouverture à grand Orchestre e calcula o senhor de que compositor? De D. Pedro, imperador do Brasil. É supérfluo dizer que a música era detestável. O Senhor Imperador andaria mais acertado enxotando seu irmão de Portugal e não os pacíficos espectadores do teatro. Falei pelo menos com Alguém que não gostou da música imperial e por causa dela deixou o teatro."
Comenta com muito acerto Octávio Tarquínio de Sousa, que "provavelmente Boerne teria razão, mas opinou por informação de terceira pessoa, visto que não ouviu a 'Ouverture à grand Orchestre'." 
Pois esta obra, tão mal tratada pela crítica (se assim se pode chamar ao infundamentado comentário) é identificada por Alceo Bocchino como a Independência por ele recuperada em São João d'El-Rei; e é por mim positivamente reconhecida como a que abre o Te Deum da casa Palmela. 
A concluir este parágrafo sobre a "Abertura", torna-se indispensável transcrever a carta que Rossini endereçou ao filho do controverso compositor, o sábio e bondoso D. Pedro II do Brasil, assinada de Paris, 3 Avril 1866: 
"Pendant le trop court séjour de sa Magesté l'Empereur Don Pedro à Paris ai fait exécuter au Théâtre Italien une ouverture de sa composition qui était charmante, elle eut grand succès, et comme par discrétion je n'ai pas nommé l'auteur, on m'adressa des compliments croyant peut-être que la susdite overture était composé par moi, erreur qui ne déplaira pas son auguste fills, qui pourrait bien souvenir m'adresser un peu d'un café si célèbre de Vos contrées." (sic) 

Sobre esta partitura resta acrescentar, como informação, que foi dada em primeira audição moderna em Portugal no passado dia 5 de Abril no Teatro Municipal de S. Luiz pela Orquestra Sinfônica da RDP sob a direcção do autor destes apontamentos, utilizando a partitura transcrita por Rosa de Carvalho do original da casa Palmela, amavelmente cedido. 

Um pouco sobre a formação do compositor 
A vida curta e essencialmente agitada de D. Pedro de Bragança não lhe permitiu aprofundar devidamente a sua indiscutível veia musical. Sabemos que foi aluno de três notabilíssimos compositores, que o destino reuniu no Rio de Janeiro, no primeiro quartel do século XIX, o lisboeta Marcos Portugal, o carioca padre José Maurício e o salzburguês Sigismund Neukomm. Por outro lado, a facilidade musical do príncipe era assinalável; assim o diz Adriano Balbi (1782-1846), o geógrafo italiano que tantas informações curiosas nos deixou no seu Essai statistique sur le Royaume de Portugal et d'Algarve... (Paris 1822). A D. Pedro dedica meia dúzia de linhas altamente elucidativas: 
"Sua Alteza Real o Príncipe do Brasil que possui extraordinário talento musical e compõe com tanto gosto quanto facilidade e toca vários instrumentos, entre outros o fagote, trombone, flauta e violino..." 

Comenta Ayres de Andrade com certa acidez, que 

"Balbi faz do príncipe a personificação de uma orquestra. Nem que o agitado e simpático príncipe fosse indivíduo particularmente dado a perder horas do seu precioso tempo com estudos, sobretudo dos instrumentos musicais". 

Mas a verdade é que a correspondência de D. Leopoldina vem corroborar a afirmação do geógrafo; numa carta em francês, escrita do Rio de Janeiro em 24 de Janeiro de 1818 a sua tia D. Luísa Amélia, grã-duquesa da Toscana, a ainda feliz D. Leopoldina afirma: 

"... toute la journée je suis occupée à écrire, lire et faire la musique comme mon Époux joue presque tous les instruments très bien, je l'accompagne avec le Piano et de cette manière j'ai la satisfaction d'être toujours près de la personne chérie" (sic).

Outro testemunho também fidedigno assinala que, nas festas de casamento dos jovens príncipes, houve serenata na Real Quinta da Boa Vista, na noite de 7 de Novembro de 1817, começando na casa da audiência. 

"Deu princípio a esta pomposa solenidade uma sinfonia composta por Inácio de Freitas [músico da Real Câmara]. Dignou-se então o Sereníssimo Senhor Príncipe Real de cantar uma ária, com as formalidades seguidas em semelhantes circunstâncias..."
Além disso, D. Pedro tocava clarinete e também piano, que tinha no seu quarto de solteiro e no qual praticava com os seus professores, não só o próprio instrumento como também os exercícios de composição. Não ficaria completo o quadro das prendas musicais de D. Pedro se não apontar a sua habilidade em tocar viola (ou violão, pelo nome que este instrumento tomou no Brasil muito sensatamente), e como tinha uma bela voz baritonal, cantava modinhas acompanhando-se à viola. ¹⁰
Quanto ao ambiente musical em que formou a sua personalidade e gosto, é fácil de definir: em Lisboa, onde habitou até aos 9 anos, o jovem D. Pedro certamente frequentava já o S. Carlos ou pelo menos dele apanhava as emanações; a intensa vida musical ligada ao culto religioso era outra componente ¹¹ e completa-se o quadro com a actividade caseira, digamos, os serões musicais em que a modinha era muito praticada. ¹²
O S. Carlos inaugurou-se a 30 de Junho de 1793 com La Ballarina Amante de Cimarosa; desde 1800 até à data da partida da família real para o Brasil (1807) o seu repertório inclui sobretudo óperas de Marcos Portugal, Nasolini, Anchiozzi, Gluck (Orfeo, 1801), Fioravanti, Martini, Cimarosa, Mayer, Mosca, Farinelli, David Perez, Giordanetto Gnecco, Mozart (La Clemenza di Tito, 1806), António José do Rego, Gretry Guglielmi, Paer e Gianella; ¹³ durante este tempo o director artístico do teatro foi Marcos Portugal, que procurou manter a programação dentro de uma sã modernidade, sem no entanto excluir alguns compositores mais representativos do próximo passado, sendo de assinalar também a presença de óperas portuguesas de sua autoria e do compositor António José do Rego, maestro nos teatros da Rua dos Condes, Salitre e no próprio S. Carlos. 
No Rio de Janeiro, a presença lírica italiana continuou: ¹ entre 1800 e 1830 representaram-se no Rio de Janeiro óperas dos compositores Pe. José Maurício, Marcos Portugal, Salieri, Puccita, Brasil, Paer, Nicolini, Generali, Mozart (Don Juan 1821), Gnecco, Mosca, Caruso, Coccia, Donizetti e Rossini. Deixamos para o fim este compositor, pois a sua presença nos teatros cariocas no tempo de D. Pedro foi enorme. Averiguadas por Ayres de Andrade, foram catorze as óperas rossinianas encenadas em dez anos, contados desde a sua primeira aparição com o drama lírico Aureliano em Palmira, estreado no Real Teatro de S. João em 25 de Abril de 1820, até ao ano limite que escolhi por comodidade: essas catorze óperas (onde se inclui O Barbeiro de Sevilha, levado à cena pela primeira vez no mesmo teatro em 21 de Julho de 1821), tiveram centenas e centenas de récitas. 
Não admira portanto que o melómano D. Pedro, nos seus breves e tão ocupados meses em Paris, frequentasse assíduo os teatros e o meio musical em que Rossini indiscutivelmente reinava, e podemos adivinhar o seu entusiasmo pela convivência que se veio a estabelecer entre os dois grandes homens indiscutível e igualmente grandes, mas cada um no seu campo, claro está... 
 
Uma longa tradição 
O panorama musical brasileiro no tempo do príncipe regente D. João não se esgota no campo da ópera italiana, longe disso. 
Uma longa tradição cultural, que teve como base o terreno preparado pelas Missões dos Jesuítas e como pólo irradiante a mecenática figura de D. João V, fez do Brasil de Setecentos para Oitocentos um verdadeiro alfobre de talentos, em que a fermentação local dos valores idos da metrópole deu origem a manifestações de grande pujança artística e altíssima qualidade, na música religiosa e até no teatro musicado. 
Trabalhos de Francisco Curt Lang, Cléofe Person de Mattos, Regis Duprat e de tantos outros notáveis investigadores, têm revelado nomes e obras de dezenas de óptimos compositores, expoentes desse maravilhoso tecido musical do período áureo da mineração, que acompanhava a grande maioria do imenso território e não só a zona litoral, em directo complemento do esplendor barroco da arquitectura e escultura, mais divulgadas. 
No Rio de Janeiro já existia à chegada da corte um autêntico génio musical José Maurício Nunes Garcia, conhecido pelo afectuoso nome de Padre Mestre. Os génios não se improvisam, são fruto de uma grande criatividade natural, é certo, que, porém, se desenvolve e revela num ambiente próprio, pela utilização de uma técnica sofisticada e aprendida. 
A corte portuguesa encontrou pois um país musicalmente apto e nele enxertou o que levava nas armas e bagagens músicos, cantores, compositores, professores, administração, quadros, etc., mas sobretudo o estímulo das exigências de um príncipe habituado ao gosto europeu. 
 
Os Professores 
Mas não fica por aqui a formação musical de D. Pedro. Não esqueçamos os professores.
 
Pe. José Maurício Nunes Garcia. Óleo sobre tela, realizado por seu filho José Maurício Jr. Biblioteca da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 
O padre José Maurício Nunes Garcia nasceu no Rio de Janeiro em 1767, a 22 de Setembro. Nesta cidade passa toda a sua vida e ascende paulatinamente na carreira músico-eclesiástica que a capital do Brasil tinha então para lhe oferecer: vai-se notabilizando, como compositor e intérprete, entra em 1784 para a Irmandade de Santa Cecília, na de S. Pedro dos Clérigos (1791), canta a primeira missa em 1792 e é nomeado mestre de capela da Sé Catedral do Rio de Janeiro em 2 de Junho de 1798. Em 1808 chega D. João Príncipe Regente ao Rio de Janeiro e logo o nomeia mestre de capela da Real Câmara, condecora-o no ano seguinte com o hábito das Ordem de Cristo e cria-lhe condições materiais e psicológicas para o desenvolvimento da enorme criatividade musical. 
A lista das suas obras é importante, pois no catálogo temático publicado em 1970 pela notável investigadora e musicóloga Cléofe Person de Mattos, atinge o número de duzentas e trinta e cinco composições e um tratado teórico. 
Mas o que é mais impressionante ainda é a qualidade de conjunto de sua obra, não só do ponto de vista formal como do conteúdo estético. É uma obra que merece ser conhecida entre nós, pois situa-se entre o que de melhor e indubitavelmente mais profundo se escreveu na transição do século XVIII para o XIX, entre os compositores da área cultural lusitana. 
A chegada, em 1811, ao Rio de Janeiro do famosíssimo compositor Marcos Portugal, que tinha vencido as barreiras da nacionalidade e ganho o justo título de compositor europeu, veio naturalmente apagar um pouco a preponderância que o Pe. José Maurício tinha na corte, por mérito próprio; mesmo assim, a sua actividade musical continua intensa, talvez até estimulado pela presença do afamado compositor. Sempre acarinhado pelo culto e bondoso Senhor D. João VI, o Padre Mestre diversifica a sua arte para outros campos que não exclusivamente o da música religiosa. Compõe uma ópera (perdida), modinhas, música de câmara, etc., além das obras religiosas que o rei continua a encomendar-lhe para importantes cerimónias oficiais. 
Em Dezembro de 1819 rege a primeira audição no Brasil do Requiem de Mozart, na festa de Santa Cecília, e prepara a audição de obras-primas mais recentes, como a Criação de Haydn, que veio a verificar-se em 1821. Este contacto com a arte mais representativa da Europa é uma característica cultural do Pe. José Maurício, que se reflecte na qualidade de suas composições. Foi também importante pedagogo. 
Morre pobre e bastante isolado no Rio de Janeiro, em 18 de Abril de 1830, como dois meses antes falecera o seu rival Marcos Portugal; note-se que, no progressivo esquecimento e abandono dos últimos anos, estes dois notáveis compositores passaram a conviver quotidianamente, com certeza relembrando os brilhantes dias da intensa actividade musical do Rio de janeiro, cujo declínio se iniciou com a retirada de D. João VI para Lisboa , em 1821. 
 
Marcos Portugal (✰ Lisboa, 1762- ✞ Rio de Janeiro, 1830)
 
Marcos António da Fonseca Portugal foi de facto um cidadão do seu mundo. O notável compositor, nascido em Lisboa a 24 de Março de 1762, logo conquistou posição de relevo com a direcção do Teatro do Salitre; partiu em 1792 para Itália, onde bem cedo as suas óperas começaram a ser cantadas na grande maioria dos teatros italianos e nos mais prestigiosos centros musicais europeus, atingindo milhares as representações que documentalmente se comprovam. 
Em 1800 
"regressou Marcos triumphante a Lisboa, cheio de glória e também de vaidade", 
diz Ernesto Vieira. ¹ É nomeado imediatamente mestre da Capela Real e do Teatro de S. Carlos, onde a sua acção se exerceu em muito bom nível, tanto na escolha do repertório como na contratação dos elencos. 
Retirou-se para o Brasil, onde a partir de 1811 exerceu os cargos mais importantes da vida artística do Rio e, numa actividade muito intensa de maestro e compositor, acorreu aos principais acontecimentos sociais e políticos com vertente musical. De facto, as Missas solenes, Exéquias, Responsórios, Pontificais, Te Deum comemorativos, festas da Coroação e Aclamação do Rei, festas das chegadas e partidas dos Príncipes, Missas anuais por alma deste ou daquele, festas religiosas e programas de casamento dos Príncipes, inaugurações de teatros, serenatas na corte, concertos especiais e ainda a vida normal do Teatro Real e da Sé Catedral, quase tudo era regido pelo nosso Marcos que, na maior parte dos casos, escrevia também "música nova" para as diferentes funções. Não admira pois o grave "insulto apoplético" que teve nos primeiros tempos da sua estada no Rio e que mais tarde se renovou. 
Ilustrando este capítulo da vida de grande cidade musical, em que, no entretanto, se tinha transformado o Rio de Janeiro (de longe a mais importante de todas as Américas), vejamos a notícia de um acontecimento tão relevante para Portugal e que Ayres de Andrade transcreve e comenta desta maneira: ¹
"1819, 5 de Abril com que saborosa linguagem sabia a Gazeta do Rio de Janeiro anunciar aos seus leitores o nascimento de uma princesa, nem mais nem menos do que D. Maria Glória, futura rainha D. Maria II de Portugal! Assim começa o redactor: 
Domingo, 4 do corrente, pelas 5 horas da tarde, os fogos de artifício, as salvas das fortalezas e embarcações de guerra e os repiques dos sinos anunciavam que o céu, em prémio das singulares virtudes de Sua Magestade, El Rei nosso Senhor, concedera a seu Augusto Sucessor as primícias de feliz fecundidade de SAR a Princesa Real do Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves, que naquele afortunado momento, e com o mais próspero sucesso, dera à luz uma princesa." 
E depois: 
"Segunda feira, 5 do corrente, querendo Sua Magestade dár graças ao Omnipotente por haver concedido à sua Real Casa um novo sinal da distinta protecção com que assiduamente tem vigiado pelo seu aumento e prosperidade, pelas sete horas e meia baixou à sua Real Capela, acompanhado de S.S.A.A.R.R. o Príncipe Real e os Sereníssimos Infantes D. Miguel e D. Sebastião, e assistido da sua Corte, e Oficiais-Mores todos em grande gala, e oficiando o Excelentíssimo Bispo Capelão-Mor, cantaram os músicos da Real Capela e Camara o hino Te Deum Laudamus, sendo a música do célebre Marcos Portugal e regida pelo mesmo." 
O próprio peso de uma grande figura da música mundial, transladada para uma cidade em expansão, mas necessariamente ainda mais periférica do que Lisboa, torna-a automaticamente absorvente, o que nem os próprios podem controlar completamente mesmo que o queiram; tal não é porém o caso de Marcos Portugal: nunca pecara pela modéstia, era sabedor da sua projecção internacional, tinha consciência do seu próprio mérito e da eficiência de sua arte. Em resumo, Marcos Portugal sabia quanto valia e tudo em sua volta contribuía para o agigantar ainda mais. É humano, natural, e não se pretenda dos grandes homens que o sejam em todas as facetas, pois raramente isso acontece. Marcos foi traçado pela sua empáfia, já notada em Lisboa; chamavam-lhe à sucapa o "Barão do Alamiré" ¹, o que é engraçado, mas sobrecarregaram a sua memória com antipáticas atitudes de perseguição ao Pe. José Maurício, o que não está demonstrado em parte alguma, longe disso. 
Marcos Portugal morreu brasileiro, pois aderiu à independência e à proclamação do Império: nos últimos anos da sua vida foi, como vimos, no seu colega padre José Maurício que encontrou o carinho da amizade, o consolo da companhia e, talvez, o seu último público atento pois as conversas dos dois velhotes deviam cair frequentemente nas histórias de Marcos Portugal sobre as suas andanças pelos mundos da música, que Maurício talvez nem em imaginação percorrera. 
Marcos Portugal morreu no Rio em 7 de Fevereiro de 1830 e as suas cinzas repousam em Lisboa na Igreja de Santa Isabel, aguardando instalação definitiva no Panteão Nacional. 
 
Sigismund von Neukomm (✰ Salzburg, Áustria, 1778 - ✞ Rio de Janeiro, Paris, 1858)
 
A estas duas grandes figuras vem juntar-se em 1816 o compositor cavaleiro Sigismundo de Neukomm (Salzburg 1778, Paris 1858) que viajou para o Brasil integrado na comitiva do duque de Luxemburgo, embaixador da Áustria na corte de D. João VI. 
Foi nomeado imediatamente mestre de capela, convivendo intensamente com D. Pedro e com o Pe. José Maurício, a quem muito admirava. 
Antes de chegar ao Brasil este bom e estimado aluno do grande Haydn levara já uma vida bastante movimentada: em 1806 vai para a Suécia e torna-se membro da Academia Musical de Estocolmo; em 1808 encontra-se mestre do teatro alemão em S. Petersburgo; um ano depois parte para Paris onde se torna pianista oficial do chanceler príncipe de Talleyrand e ganha a Legião de Honra com o Requiem por Luís XVI. 
No Rio, além de D. Pedro, conta-se entre os seus alunos o importante compositor Francisco Manuel da Silva, futuro autor do Hino Nacional Brasileiro, também educando de José Maurício. 
Um dos aspectos mais relevantes de Neukomm é a sua faceta jornalística; pelas crónicas enviadas do Brasil para o Allgemeine Musikalische Zeitung de Viena, ficou a conhecer-se muito da vida brasileira de então, com especial realce para a personalidade artística e humana de José Maurício; a sua correspondência inclui uma interessante referência à primeira audição no Brasil do Requiem de Mozart que, como vimos, foi dirigido em Dezembro de 1819 na festa da Irmandade de Santa Cecília. 
Escreve Neukomm: ¹
"A corporação dos músicos locais (em português Irmandade), espécie de associação religiosa, celebra todos os anos a festa de Santa Cecília e, alguns dias depois, faz rezar missa em memória dos músicos falecidos durante o ano. Com essa finalidade os membros da corporação mais versados em música sugeriram para a última festa de Santa Cecília o Requiem de Mozart, tendo sido executado na Igreja do Parto por uma orquestra numerosa. A regência foi entregue a José Maurício Nunes Garcia, mestre de música da Capela Real... 
... A execução da obra-prima de Mozart nada deixou a desejar. Todos os executantes se empenharam em receber com dignidade neste novo mundo o desconhecido Mozart. Esta primeira experiência foi tão bem sucedida em todos os seus aspectos que esperamos não seja a última." 
E ainda: ¹
"O zelo com que o Sr. Garcia superou todas as dificuldades para finalmente levar aqui uma obra-prima do nosso imortal Mozart, merece os calorosos agradecimentos dos amantes da arte; da minha parte, vejo-me na obrigação de aproveitar a oportunidade para chamar a atenção do nosso mundo cultural europeu para a figura de um homem que, talvez, unicamente por causa de sua grande modéstia, terá alcançado nessa ocasião, pela primeira vez, a atenção do público do Rio de Janeiro." 
E, noutro texto, Neukomm considera o Pe. José Maurício como "o maior improvisador do mundo". 
Regressa à Europa em 1821, fixando-se primeiro em Lisboa e depois em Paris, viajando sempre pelas diversas cidades por motivos profissionais ou por simples curiosidade turística. 
Neukomm deixou uma obra enorme, hoje completamente adormecida nos arquivos. Importante é porém a incorporação que faz na sua arte, descendente de Haydn e próxima de Beethoven (só lhe falta o génio...), de elementos da vivência sócio-cultural brasileira. Tal é o caso da Fantasia para Flauta e Piano, L'Amoureux, uma bela e interessante peça, digna de figurar nos normais programadas de recital. 
Numa recente viagem a Paris para verificar determinadas partituras de Marcos Portugal que lá se encontram, folheei na Biblioteca Nacional algumas obras de Neukomm muito interessantes para nós: Modinhas Portuguesas, cançonetas como Emília, Miao! e Amor Brasileiro (lundu), Missa para a Capela real de Queluz, Marcha Fúnebre para a morte do Conde da Barca, Hino e Missa para a aclamação de D. João VI e D. Pedro IV, respectivamente, Marcha para o Príncipe Real, etc., além da magnífica Abertura Sinfónica "O Herói", obra profunda e de nobrérrima emoção, que tanto nos revela um verdadeiro perfil psicológico do príncipe, como traduz a amizade e admiração do compositor austríaco pelo seu extraordinário aluno. 
 
Outras obras religiosas de D. Pedro 
Depois desta breve incursão ao elementos que contribuíram decisivamente para a formação do jovem príncipe, vejamos algo mais sobre as obras de sua autoria. 
Da Missa cantada em 5 de Dezembro de 1829 na Capela imperial na cerimónia do seu segundo casamento, com D. Amélia de Leuchtenberg (irmã do príncipe Augusto, efémero primeiro marido de D. Maria II, sua enteada), apenas o Credo chegou a nossos dias. Outrora muito cantado no Brasil sob o nome de Credo do Imperador, a sua primeira audição moderna verificou-se a 1 de Dezembro de 1972, pelo Coro e Orquestra da Rádio MEC sob a direção de Alceo Bocchino, no mesmo local da coroação de D. Pedro como primeiro Imperador do Brasil, a antiga Catedral do Paço, exactamente cento e cinquenta anos antes. Dele existe também uma gravação (Philips St. 6349044), efectuada pelo mesmo conjunto mas com regência de Henrique Morelembaum. 
O seu original encontra-se também no arquivo da Sé Catedral do Rio, juntamente com o já referido Te Deum e ainda um volume encadernado que agrupa o Responsório de S. Pedro de Alcântara com uma pequena obra para coro e orquestra, ocasionalmente descoberta por monsenhor Guilherme Schubert quando procedia ao estudo mais aprofundado do autógrafo do Responsório
Trata-se de uma antífona mariana, Sub Tuum Praesidium que, pela simplicidade dos meios, deve ser uma das primeiras composições do príncipe real. Foi recuperada pelo competente achador e também se encontra gravada em disco, no Brasil. 
 
Presença na música 
Encontram-se, em obras de outros compositores que privaram com D. Pedro, vestígios ou traços da sua influência, o que é natural; tal é o caso da Grande Fantasia e Variações sobre um thema original de S.M.I. o Sr. D. Pedro Duque de Bragança, de Manuel Inocêncio Liberato dos Santos, editado em Lisboa por Lence & Cia; da Fantasia para Grande Orquestra sobre uma pequena valsa de D. Pedro I de S. Neukomm; mas uma autêntica homenagem musical prestou-lhe, como vimos, este notável compositor austríaco, na sua bela e sentida Abertura Sinfônica "O Herói"
Entre as relações mais amistosas de D. Pedro contava-se o importante compositor pianista e pedagogo João Domingos Bontempo, que tão grande influência exerceu no meio musical português; é dedicada a D. Pedro a sua cantata A Paz da Europa, impressa em Londres por Clementi; e na Biblioteca da Ajuda encontra-se o autógrafo do seu Libera Me consacré à la mémoire de D. Pedro Duc de Bragança, obra recentemente editada pelo Ministério da Cultura. 
Também José Avelino Canongia, que conhecera em Paris, o homenageia com uma notável composição, o Deuxième Concerto pour la Clarinette avec Orchestre Composé et Dedié à Sa Magesté Pierre I Empereur du Brasil et Roi du Portugal... publicado na capital francesa pela casa Pacini. 
Também na música menos erudita e popular o Senhor D. Pedro é muitas vezes evocado, numa vasta série de marchas militares, danças e contradanças, polcas e valsas, que lhe são dedicadas pelos mais variados autores. 
A verdade é que a Música constitui o autêntico pano de fundo de toda a breve e irrequieta vida de D. Pedro de Bragança. 
Que teria sido este homem, se a Providência lhe não tem imposto o extraordinário Destino, que cumpriu, com a rapidez do meteoro, a subtil inteligência do melhor momento, a inconsciente facilidade do génio, a alegria pura da realização do acto? 
Teria este homem sido um grande compositor? 
 
PALÁCIO NACIONAL DE QUELUZ, em Queluz, cidade do concelho de Sintra, Portugal. Aí nasceu D. Pedro I do Brasil ou Pedro IV de Portugal em 12/10/1798, onde também faleceu em 24/09/1834.

 
 
Os Hinos 
Voluntariamente deixei para a última parte destas notas uma das mais importantes facetas da vida musical de D. Pedro, à qual deve a sua maior sobrevivência como compositor. 
Na maioria ligados a importantíssimos factos políticos de carácter nacional, quer em Portugal quer no Brasil, os hinos de D. Pedro são verdadeiras marchas vibrantes, em que o real compositor fixava a força dos seus sentimentos, convicções e esperanças. 
Entre estas composições, relativamente numerosas, aponto a curiosidade da existência do Hino da Maçonaria, ainda hoje ocasionalmente executado no Brasil em algumas cerimónias daquela instituição; encontra-se gravado pela banda e coro da Polícia de São Paulo. 
Também como curiosidade, mas esta do destino, transcrevo o essencial dum artigo do grande investigador Curt Lang, publicado em 1977 na Revista de História, de S. Paulo, e que me foi amavelmente comunicado pelo ilustre musicólogo Prof. Vicente Salles, de Brasília. 
Diz Curt Lang, baseado em bibliografia argentina, que, após a batalha de Ituzaingó, travada a 20 de Fevereiro de 1827, em que um batalhão brasileiro foi vencido pelas forças argentino-uruguaias, executou a banda de música dos aliados, a Marcha de Ituzaingó, composição tomada aos brasileiros no campo de batalha. 
E continua: 
"Segue-se agora uma afirmação que possivelmente nunca poderá ser esclarecida embora seja duma lógica absolutamente aceitável pois atribui-se a composição desta Marcha ao próprio Imperador Dom Pedro I, que ele teria entregue à Banda das tropas para que a executassem após a primeira vitória sobre os argentinos. 
Quando o Exército Brasileiro retirou do campo de batalha, ficou abandonado um arcão contendo várias peças de música, dentre estas, a marcha foi selecionada pelos músicos argentinos, ensaiada e baptizada com o nome da batalha que acabara de se travar." 
Lang acrescenta que esta histórica obra 
"ainda se executa no Exército Argentino e foi durante muitos anos a Marcha Presidencial, substituída não faz muito tempo pela Marcha de San Lorenzo." 
Primeiros Sons do Hino da Independência, pintura de Augusto Bracet, Museu Histórico Nacional, Brasil

O Hino da Independência do Brasil foi cantado pela primeira vez no Teatro de S. João, do Rio de Janeiro, em 8 de Março de 1824, de acordo com a opinião de Ayres de Andrade e Vasco Mariz ², baseados em documentação exaustiva severamente analisada; esta datação deita por terra a notícia, geralmente aceite, de que, a 7 de Setembro de 1822, na própria noite do histórico "Grito do Ipiranga", D. Pedro se apresentava da casa da Ópera de São Paulo, para a celebração do transcendente acontecimento dessa tarde, já com o novo hino acabado de compor o que, vendo bem, é bastante inverossímil. 
A referida estreia deste hino no S. João do Rio de Janeiro, foi assim descrita no Diário do Comércio
"... diremos que S.M. o Imperador foi o primeiro a levantar a voz para dar vivas à nossa Constituição. 
Repetindo por cinco vezes estes vivas, os quais foram respondidos pelo numeroso concurso do povo que ali havia, depois disto rompeu a orquestra o hino nacional composto por S.M. o Imperador, findo o qual tornou a levantar de novo S.M. a voz, gritando Viva a nossa Perpétua Independência, que da mesma forma foi correspondido." 
Prova também Ayres de Andrade, citando até o autorizadíssimo testemunho de Francisco Manuel da Silva, que era de Marcos Portugal o primeiro Hino da Independência, a cantar-se no Brasil, com letra de Evaristo da Veiga, extraído do Hino Constitucional Brasileiro
Na colecção de manuscritos musicais que foi de meu pai, e que hoje se encontra nos reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa (CIC), figura um conjunto de três hinos, para piano: Hymno Novo composto por Sua Magestade Imperial o Senhor D. Pedro Duque de Bragança a bordo da Corveta Amélia, Hymno Constitucional de 1820 e o Hymno de S.M.F. a Senhora D. Maria II
Destes, o primeiro é o que D. Pedro (incorrigível melómano mas político muito avisado do efeito da música na movimentação das massas) compôs antes de desembarcar e que utilizou como mais uma arma eficaz para a formidável campanha que acabaria por elevar D. Maria da Glória ao trono português. ²¹
Encontra-se também na Biblioteca Nacional uma antiga edição inglesa, Portuguese Hymn composed by Don Pedro, em fá maior, embora posteriormente, já como Hino da Carta nos apareça sempre em mi bemol maior, talvez para facilitar a tarefa dos cantores. 
É o hino cuja primeira edição, da Imprensa Régia do Rio de Janeiro, se encontra na Biblioteca Nacional Brasileira e ostenta o seguinte cabeçalho e letra: ²² Hino Constitucional. Feito aos 21 de Março de 1821 e oferecido à Nação Portuguesa pelo Príncipe Real seu autor
 
O Hymno da Carta 
Mas a mais importante de todas as composições de D. Pedro IV é, sem dúvida, o Hymno da Carta***, por ter sido, até 19 de Junho de 1911, o Hino Nacional Português. 
Por falecimento de el-rei D. João VI, em 10 de Março de 1826, ficou regente do Reino a infanta D. Isabel Maria, enquanto se aguardava que D. Pedro IV, também imperador do Brasil desde 1822, providenciasse a solução do problema sucessório. 
Encontrada esta, cantou-se repetidamente no Real Teatro de S. Carlos o que ficou para sempre conhecido como o Hymno da Carta, por ter acompanhado a outorga do novo texto constitucional. 
Relata Fonseca Benevides que, no programa são-carlino da noite de 6 de Janeiro de 1827 figurava a ópera Semiramis, de Rossini (sempre Rossini...), com Pauline Sicard, Constância Pietralia, Luigi Ravaglia e Giovanni Maria Cartagenova nos principais papéis. 
Com todo o coro e os solistas no palco, no fim do 1º acto apareceu o retrato de D. Pedro IV e cantou-se o seu Hymno, entre ondas de entusiasmo. 
Estreou-se então a versão orquestral de João Evangelista Pereira da Costa, organista, maestro do Teatro de S. Carlos e, segundo Ernesto Vieira, compositor de talento. 
 
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A primeira vez que ouvi o Hino da Carta foi em 1980 na nova capital do Brasil, em casa de um bom amigo também da mesma corte tão real como espiritual, que previamente me avisou do disco que ia pôr a rodar. 
A audição emocionou-me, não pela obra musical em si mesma, nem pela memória adquirida pessoalmente (que não a podia ter), mas pelas intensas vivências tradicionais que despertou, saudade colectiva e intemporal que acompanha e molda os nossos verdes anos, ajudando-nos depois na terrena peregrinação. 
E lembrei-me então de Eça de Queirós, que insere na redentora maravilha A Catástrofe a mais bela e comovente página que alguma vez se escreveu sobre esta melodia real, transubstanciada em Símbolo Pátrio: 
"E depois, nem tudo são tristezas: também temos as nossas festas! E para festas tudo nos serve: o 1º de Dezembro, a outorga da Carta, o 24 de Julho, qualquer coisa contanto que celebre uma data nacional. Não em público ainda não podemos fazer mas cada um em sua casa, à sua mesa. 
N'esses dias collocam-se mais flores nos vasos, decora-se o lustre com verduras, põe-se em evidência a linda e velha Bandeira, as Quinas de que sorrimos e que hoje nos enternecem e depois, todos em família, cantamos em surdina, para não chamar a attenção dos espias, o velho hymno, O Himno da Carta... E faz-se uma grande saúde a um futuro melhor!"
*  Maestro, musicólogo e membro da Sociedade Brasileira de Musicologia
 
 
II. NOTAS EXPLICATIVAS 
 
 
¹  "Bester Papa! Ich übersende Ihnen durch diese Gelegenheit ein Hochant von Neukomm der als österreichischer Unter tan und Leidnischer Schüler geeis Ihr Wohlgefallen verdienen soll und überdies sind zwei Fugen darin die, wie allen - Ihnen dass Sie senlieben. Mein Gemahl der acua Compositor isto, übersendet Ihnen eis Geschenk Sinphonie und Te Deus von ihm componiert. Aufrichtig gesprochen ist es etwas teatralisch was der Fehler mein Mannes ist. Was ich aber versichen kann ist dass es von iam selbst one Beih verfanst ist." 
Esta transcrição da carta da Imperatriz Leopoldina na revista "Canto Gregoriano", ano XXV, nº 103, Abril-Maio-Junho/1982, inserida no artigo Uma composição Sacra de D. Pedro I, Imperador do Brasil, de monsenhor Schubert, é o único texto em alemão da carta publicada em todas as obras que consultei. 
Encontra-se no conjunto de cópias de trinta cartas, conservado no arquivo do Castelo Eu, como ensina Luís Norton no seu trabalho A Corte de Portugal no Brasil (2ª edição, ENP, Lisboa, s.d.). 
Levanta-se logo aqui um grande problema: todas as versões portuguesas que conheço (Luís Norton, ob. cit.; Vasco Mariz, História da Música no Brasil; Octávio Tarquínio de Sousa, A Vida de D. Pedro IV Compositor, artigo no "Diário de Notícias", 15 de Abril de 1982, são unânimes em citar o comentário crítico de D. Leopoldina como "... na verdade são um tanto teatrais o que é culpa de seu professor..."; a esta uniformidade escapa apenas Vasco Mariz, que em lugar de "tanto", escreve "pouco". 
Como o restante texto da carta é rigorosamente igual, concluo que todos beberam na mesma fonte, isto é, utilizaram a tradução feita por Lucia M. Furquim Lahmeyer, segundo informação do embaixador Luís Norton. 
Enquanto esse problema não fica completamente esclarecido, opto pelo texto alemão transcrito por monsenhor Schubert, por todas as razões facilmente aduzíreis e por mais uma, que é o meu grande apreço por Marcos Portugal. 
Por estranho que pareça, a musicologia romântica e sua derivada encarniçou-se contra Marcos Portugal; e um dos "graves erros" que lhe imputam é o de ser muito teatral, de não ter composto sonatas e quartetos de cordas... Mas o que poderia ser um dos maiores compositores dramáticos do fim do século XVIII e primeiro quartel do XIX, senão um compositor muito teatral? Por que haveria um homem de gosto e formação essencialmente teatrais, compor quartetos e sonatas, que ninguém lhe pedia para compor?
²  Ayres de Andrade, Francisco Manuel da Silva e o seu tempo, Rio de Janeiro, 1967. 
³ Tarquínio Octávio de Sousa, A Vida de D. Pedro I, Rio de janeiro, 1972.
Idem.
Andrade Muricy, Nota do disco SC 10121, Música na Corte Brasileira de D. Pedro I.
**  Sinfonia como sinônimo de Abertura.
Tarquínio Octávio de Sousa, ob. cit.
Andrade Muricy, ob. cit., carta publicada no Daumier de Álvaro Cotrim (Alvarus), MEC, Rio de Janeiro.
Luís Norton, A Corte de Portugal no Brasil, Lisboa, s.d.
Ayres de Andrade, ob. cit., referência à Gazeta do Rio de Jaaneiro
¹⁰ Monsenhor Guilherme Schubert, Uma composição sacra de D. Pedro I Imperador do Brasil, in "Canto Gregoriano", ano XXV, nº 103, Lisboa, 1982. Vasco Mariz, História da Música no Brasil, Rio de Janeiro, 1981.
¹¹ As obras mais tocadas eram de Marcos Portugal, Leal Moreira, Jerónimo Francisco de Lima, Sousa Carvalho, David Perez, Jomelli, etc.
¹² Torna-se muito interessante consultar a este respeito o Diário de William Beckford, no qual surgem personalizados vultos como Policarpo José António da Silva, Jerónimo Francisco de Lima, o célebre modinheiro Domingos Caldas Barbosa, etc., além de nos dar uma impressão muito viva do êxito que a modinha gozava então na sociedade portuguesa.
¹³ Francisco da Fonseca Benevides, O Real Teatro de S. Carlos, Lisboa, 1883.
¹Ayres de Andrade, ob. cit. 
¹ Ernesto Vieira, Diccionário Biographico de Musicos Portugueses, Lisboa, 1900. 
¹ Ayres de Andrade, ob. cit.
¹Carta de Santos Marrocos a seu pai, citada por Jean-Paul Sarrautte, in Marcos Portugal, Ensaios, Lisboa, 1979.
¹Ayres de Andrade, ob. cit.
¹Cléofe Person de Mattos, Catálogo Temático de José Maurício Nunes Garcia, Rio de Janeiro, 1970.
²Obras citadas.
²¹  Octávio Tarquínio de Sousa, ob. cit.
²²  Ayres de Andrade, ob. cit.
***   Letra do Hymno da Carta (estrofes):
I - Ó Pátria, ó Rei, ó Povo / Ama a tua Religião / Observa e guarda sempre / Divinal Constituição.
Estribilho: Viva, viva, viva o Rei / Viva a Santa Religião / Vivam os Lusos Valorosos / E a Feliz Constituição, etc.
II - Ó com quanto desafogo / Na comum agitação, / Dás vigor às almas todas / Divina Constituição!
III - Venturosos nós seremos / Em perfeita união, / Tendo sempre em vista todos, / Divinal Constituição.
IV - A verdade não se ofusca, / O Rei não se engana, não; / Proclamemos Portugueses / Divinal Constituição.
²³  Humberto d'Ávila, artigo no Diário de Notícias, 15 de Abril de 1982.
²Eça de Queirós, A Catástrophe, 3ª edição, Porto, 1926. 


III. AGRADECIMENTO
 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste ensaio.
 

IV. BIBLIOGRAFIA

 

AFONSO, Simonetta Luz (org.): D. PEDRO D'ALCÂNTARA DE BRAGANÇA (1798-1834), IMPERADOR DO BRASIL, REI DE PORTUGAL, Editora Palácio de Queluz, 1987, 211 p.