sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

FELISBERTO CALDEIRA BRANT


Por Luís de Melo Alvarenga



O infortunado contratador de diamante nasceu em São João del-Rei nos primeiros anos do século XVIII, filho mais velho do Mestre de Campo Ambrósio Caldeira Brant e de d. Josefa de Sousa e Silva. 

Ambrósio Caldeira Brant, o pai, foi um dos chefes "emboabas" das lutas que se travaram entre paulistas e forasteiros, em 1709, em São João del-Rei, então Arraial Novo do Rio das Mortes e que na história mineira figura como "Guerra dos Emboabas". Ocupou também, juntamente com Pedro de Morais Rapôso, o cargo de Juiz Ordinário na primeira Câmara eleita, e empossada, em 1713, em presença do Governador Dom Brás Baltasar da Silveira. 

Felisberto passou a mocidade em sua terra natal. 

Espírito alegre e bom, angariava muita simpatia para sua pessoa; era generoso e de grande liberalidade. 

Gênio aventureiro e empreendedor, desde cedo entregou-se à vida ousada de sertanista. 

Em 8 de abril de 1725, demonstrando seu espírito religioso, entrava para a Irmandade do Santíssimo Sacramento. 

Dos tiros disparados, em 1730, no atentado contra o Ouvidor Geral dr. Antônio da Cunha e Silveira, e que o feriram, foram considerados autores Felisberto e seu irmão Joaquim. 

Por essa razão, preso com seu irmão e levado para a cidade da Baía, onde correu sério risco, pois, em 23 de julho de 1731, o Conselho Ultramarino expedia ordem para "sentenciar estes Réos conforme o merecimento de sua culpa... e no caso que os Juízes entendam que estes Réos estejam em pena de morte, lhes mandem pôr as cabeças no Logar do delito". 

Nada ficou provado contra os dois irmãos que continuaram a sua vida aventureira. 

Casou-se, em 1736, no dia 3 de março, na Capela de Nossa Senhora da Conceição existente em casa de seu pai, com D. Branca de Almeida Pires, por procuração enviada a seu irmão (?) Jacinto.

Aquarela de Rugendas, de 1824 - N.B.: A referida Capela de Nossa Senhora da Conceição parece ser a última construção mais à esquerda do quadro

Secções ampliadas da aquarela acima, mostrando a capela

Tem esse casamento a singularidade de ter sido efetuado em casa e terra do noivo e por procuração enviada pela noiva. 

Comumente, nos casamentos assim realizados, a procuração é passada pelo noivo e o casamento se faz em casa e terra da noiva. Nesse nosso caso foi justamente ao contrário o que se deu, conforme se pode ler na certidão extraída do livro de casamento correspondente aos anos de 1729 a 1742 e que é do teor seguinte: 
"Aos trez de Marso de settecentos e trinta e seys na Capella do Mestre de Campo Ambrosio Caldeyra Brant pellas quatro horas da tarde feytas as diligencias, q' ordena o Sagrado Concilio Tridentino; em minha prezensa, e das testemunhas o Sargento Mor José Matol e Cappitão mor Feliciano Pinto de Vasconsellos; por procuração, q' mandou Branca de Almeyda Pires a Jacynto Caldeyra Brant se receberam in facie Ecclesiae Felisberto Caldeyra Brant com a ditta Branca de Almeida Pires de que fis assento..." (ilegíveis as duas últimas linhas). 
Algum tempo depois de casado, sabendo das descobertas de ouro em Goiás, embrenhou-se por êsse sertão de Goiás com sua família e seus irmãos Joaquim, Sebastião e Conrado, que sempre o acompanharam, indo primeiro para Vila Boa. 

Muito feliz nessa sua estada em Goiás, talvez tenha aí começado sua grande fortuna. 

Devido a seu gênio contrário a toda tirania, crueldade e injustiça, principalmente das autoridades, entrou voluntàriamente na rebelião que o povo movia contra os cobradores do fisco. 

Viu-se obrigado, em conseqüência dessa sua atitude, a abandonar Vila Boa com seus irmãos. 

Apesar de ver-se "privado do farto veio em que colhia a fortuna, Felisberto partiu contente, porque, altivo e insubmisso, soubera ter a corajosa energia de se não subordinar às iniqüidades da administração do ouro". 

Seguiu para Paracatu. 

Segundo Rodrigo Otávio, foi êle o descobridor desta região mineira onde chegou guiando-se por uma cópia de um roteiro que lhe deu um padre Jesuíta. 

Dizem as crônicas que o descobridor de Paracatu foi José Rodrigues Fróes, pois em 1744 fêz a comunicação das descobertas ao Governador, mas Rodrigo Otávio mostra como se concilia essa versão e a da família Caldeira Brant. 

Aumentou extraordinàriamente sua fortuna em Paracatu, bastando dizer que cada trabalhador lhe dava, por dia, 17 oitavas de ouro. 

Tendo conhecimento que estava próxima a época da renovação do Contrato dos Diamantes, e ambicionando maior fortuna e poderio, passou, com todos os seus, para o Tijuco onde deu entrada com espalhafato, no correr do ano de 1747, devido a sua já colossal fortuna, em ouro. 

Foi arrematante do 3º Contrato dos Diamantes por quatro anos, de 1748 a 1751 e que, mais tarde, foi prorrogado por mais um ano. 

Grande era sua fortuna e grande seu prestígio no Tijuco apesar do pouco tempo que ali estava morando, que não lhe foi exigida fiança nem caução. 

Os primeiros anos do contrato de Felisberto Caldeira Brant foram de progresso para o lugar, porque, sempre tolerante, generoso e bom, não adotou os processos de seus antecessores de perseguir os garimpeiros e fazia vista gorda aos contrabandos, concorrendo assim para o aumento da população e comércio, do que resultou o bem-estar de muitos e maior riqueza de alguns. 

Modificou, com seu proceder e principal instigador de uma civilização nascente, a vida do florescente arraial do Tijuco, desenvolvendo mesmo o gôsto pelo luxo, que ultrapassou o das grandes vilas, que procuravam imitar à risca os últimos figurinos da Côrte, assim como os usos e costumes. 

Começou para Felisberto o declínio de sua estrela, em 1752, com uma série de funestos acontecimentos. 

A Companhia ia sempre próspera na extração de diamantes, mas naquele ano sofria grande prejuízo por um roubo misterioso praticado no cofre da Intendência, onde estava guardada grande porção de ouro e diamantes pertencentes ao Contrato. 

A mineração de Goiás estava dando prejuízo e assim não foi possível a Felisberto saldar com prontidão seu débito com a Fazenda Real, o que se fazia por meio de saques contra a caixa da Companhia, em Lisboa. 

O novo Intendente, Sancho de Andrade Castro e Lanções, desde sua posse, começou a perseguir o contrato e procurou manter o povo do arraial em constante sobressalto com as devassas semanais, em dias indeterminados, em tôdas as casas, a fim de descobrir contrabandos. 

Agravou mais sua situação um incidente havido por ocasião das festas da Semana Santa de 1752 dando início às perseguições que sofreu. 

O dr. José Pinto de Morais Barcelar, recém-nomeado Ouvidor da Comarca do Serro Frio, tinha chegado há pouco da Europa e resolveu assistir às festividades da Semana Santa no Tijuco, que lá se realizavam com grande pompa. 

Não compareceu às festas com espírito de fé e como crente, pois era livre-pensador e despido de qualquer sentimento religioso, mas só para se divertir e variar um pouco a vida insípida que levava na Vila do Príncipe. 

Domingo de Páscoa, mostrando sua pouca educação e nenhuma cultura religiosa, portou-se, na igreja, de modo inconveniente e desrespeitoso. Seu modo arrogante abalou o bom povo tijucano que não estava acostumado a presenciar atos de autoridades em desacôrdo com a sua posição e educação. 

Uma jovem e bonita môça, parente de Felisberto, atraiu a atenção do enfatuado e pedante Ouvidor que, com leviandade, lhe atirou uma flor ao colo. Grande escândalo provocou êsse gesto, repelido com elegância e dignidade pela môça. 

Felisberto Caldeira Brant, que se achava perto do dr. Barcelar, presenciou o fato e, possuído de grande indignação, segredou-lhe qualquer coisa e foi esperá-lo à porta do templo. 

Quando o Ouvidor se retirou, Caldeira Brant para êle se dirigiu encolerizado, exigindo uma satisfação pública pelo insulto feito à sua parenta. 

Depois de breve discussão, Felisberto, não se contendo, sacou de um punhal e vibrou um golpe que não feriu o adversário, visto ter o mesmo se desvencilhado, mas a punhalada atingiu um botão de sua casaca. 

Neste momento chegava a fôrça do quartel, mandada chamar pelo Intendente, ao ver a atitude do Contratador ao se retirar da igreja. 

O povo, partidário de Felisberto, colocou-se a seu lado, assim como a tropa dos pedestres do contrato e estavam resolvidos a resistir. 

Muito sangue iria correr quando, providencialmente, apareceram Belchior Isidoro Barreto e outras pessoas, com o padre Cambraia à frente e trazendo um crucifixo na mão. 

Com a presença do sacerdote os ânimos se acalmaram, mas ficou entre o povo o germe da discórdia. 

Dividiram-se os habitantes do Tijuco em dois partidos: os dos Caldeiras, a maioria quase absoluta, e os do Intendente e Ouvidor, constituído de dependentes do govêrno e de aduladores. 

Deram parte ao Rei do que tinha ocorrido. O Intendente continuava a perseguir por todos os meios a Felisberto, ora pondo empecilhos aos trabalhos de sua mineração com excessivas exigências, ora movendo-lhe processos injustos. 

Os inimigos dos Caldeiras, principalmente o Ouvidor e o Intendente, não cessavam de fazer queixas e dar parte contra o Contratador a El-Rei, exagerando, invertendo os fatos e inventando o que não existia. 

Começaram as intrigas e denúncias: - que trabalhava com maior número de escravos; contrabandeava diamantes; mandava para a Côrte só diamantes pequenos guardando para si os maiores; que dava agasalho a criminosos; que tinha um lapidário vindo da Holanda e finalmente eram os Caldeiras muito poderosos, que o povo lhes obedecia cegamente e queria tornar o Tijuco independente. 

Por êsse tempo já estava no poder o futuro Marquês de Pombal e, com a entrada dêsse ministro de D. José I, caiu o prestígio de Felisberto junto à Côrte. Os cortesões, com habilidade conquistados com boas graças, aos poucos perdiam influência junto ao rei, e iam sendo substituídos por outros, amigos do govêrno. 

Sebastião José de Carvalho, poderoso ministro de D. José I, acreditou em muitas das acusações feitas aos Caldeiras e principalmente a de querer a independência do Distrito Diamantino, repartir as lavras com o povo e que mandava para a Côrte só os diamantes pequenos, ficando com os maiores. 

Em 20 de fevereiro de 1753 El-Rei mandou uma ordem ao Ouvidor da Comarca de Serro Frio, da qual resultou a prisão do infortunado contratador e sequestro de seus bens. 

O Governador José Antônio Freire de Andrade também recebeu instruções para se dirigir ao arraial do Tijuco, devendo levar em sua companhia o Ouvidor Barcelar a fim de fazer o sequestro de Felisberto e prendê-lo. 

Em 31 de agôsto de 1753, Felisberto Caldeira Brant, sabendo que devia chegar, neste dia, o Governador interino José Antônio Freire de Andrade, a fim de inspecionar o Distrito Diamantino, saiu com uma comitiva, pela madrugada, para saudá-lo a meio caminho. 

Apesar de não conhecer o motivo principal dessa visita, ia apreensivo, pois tinha conhecimento das intrigas e difamações que lhe eram assacadas. 

Poucas horas haviam andado quando avistaram a comitiva governamental, tendo à frente o Governador e o Ouvidor. 

Os Caldeiras apressaram-se a fim de cumprimentar o Governador, mas êsse os recebeu com desdém e mandou que se colocassem atrás de tôda a comitiva. 

A uma pergunta de Felisberto mandou que fôsse prêso e a um movimento rápido dos dragões, foi cercado e isolado de seus companheiros, que estavam desarmados. 

A recepção ao Governador, que estava sendo aparelhada com grandes preparativos, tornou-se fria e sem entusiasmo pelo povo, porque um companheiro de Felisberto voltou, a tôda brida, ao arraial para comunicar o que se havia passado. 

Nesse mesmo dia, logo após a chegada ao arraial, o Ouvidor mandou fazer o sequestro de todos os bens do Contratador, e selar as portas de sua casa, obrigando sua família a pedir agasalho em casa de amigos. 

O pretêxto para a prisão e sequestro foi a falta de pagamento pelas caixas da Sociedade, em Lisboa, de 79 letras, no valor total de 232.760$223, sacadas pelo contratador em favor da Fazenda Real, prometendo-lhes remeter os diamantes na primeira ocasião, pois já estavam extraídos. Não quiseram aceitá-los e devolveram. 

No dia seguinte à sua prisão foram abertas as portas de sua casa e começado o sequestro de seus bens. 

Apesar de feitas avaliações por preços muito baixos ainda foi encontrada uma quantia muito superior ao que devia à Fazenda Real. 

Foram encontradas no cofre da Intendência 33.773 quilates de diamante. 

Diz cronista antigo, citado por Joaquim Felício dos Santos: 
"De que porém servia tôda essa riqueza se o que se queria era perder o contratador, cujo poderio em Tijuco o marquês de Pombal temia e procurava aniquilar?
O ouvidor José Pinto de Morais Barcelar, seu acérrimo perseguidor e inimigo mortal, era quem estava encarregado de executar a ordem de El-Rei, e não se podia encontrar outro melhor executor em tão inqualificável ato de arbitrariedade, tendo êle também por sua parte de saciar-se da baixa vingança, de que tinha alma sedenta: é o que sucede aos espíritos covardes e pusilânimes. Todos os caixeiros, guarda-livros e mais empregados do contrato foram forçados a jurar se tinham em seu poder bens pertencentes ao contratador, ou se tinham notícia de alguém que os possuía. Nada escapou às pesquisas do vingativo ouvidor, e a família de Felisberto ficou literalmente reduzida à miséria". 
Para garantia do pagamento foram sequestrados bens no valor de mais de dois milhões de cruzeiros e diz Rodrigo Otávio: "para compensação dos 200 contos (200 mil cruzeiros) de letras pagas pela Casa da Moeda, na original aritmética da Côrte se achou que não bastavam os dois mil contos (2 milhões de cruzeiros) de diamantes encontrados no cofre.

Remetido prêso à Vila Rica, ficou recolhido à cadeia local durante um ano, juntamente com seu procurador Alberto Luís Pereira. Em fins de 1754 foi transferido, por ordem do Marquês de Pombal, de 3 de agôsto dêste mesmo ano, para os Segredos do Limoeiro. 

Felisberto sucumbiu quando atacado pela intriga e calúnia, pois sempre triunfou quando a luta era feita com lealdade. 

A primeiro de novembro de 1755 terrível terremoto abalou a capital de Portugal, destruindo-a. 

Passados os primeiros momentos de pânico, e quando todos os presos do Limoeiro e outros cárceres aproveitaram a ocasião para fugirem, Felisberto Caldeira Brant apresentou-se ao Marquês de Pombal, pedindo-lhe que lhe indicasse onde devia se recolher, e também a liqüidação de suas contas. 

Admirado dêste nobre proceder e pela interferência dos brasileiros João Pereira Ramos, do Bispo de Coimbra e do General Godinho, que demonstraram sua inocência e a intriga que foi vítima, Sebastião José de Carvalho - Marquês de Pombal - deu-lhe a liberdade e prometeu mais tarde despachar seu processo, fazendo o levantamento do sequestro e devolução de seus bens, o que nunca foi feito. 

Pôsto em liberdade, foi tratar de sua saúde abalada em Caldas da Rainha. Faleceu três meses depois, sem poder voltar à sua querida pátria. 

Fonte: Separata da Revista Vozes de Petrópolis, Ano 52, outubro de 1958, p. 755-761.












AGRADECIMENTO

A Rute Pardini Braga pelas fotos que tirou e editou para os fins desta matéria.


BIBLIOGRAFIA  CONSULTADA


MENESES, Rodrigo Octavio de Langaard: Felisberto Caldeira - Chronica dos tempos coloniaes, ed. Laemmert & Cia, 1900, 2ª edição, Lisboa: Aillaud & Cia., 1921

SANTOS, Joaquim Felício:  Memórias do districto diamantino da Comarca do Serro Frio, Rio de Janeiro: Typ. Americana, 1868, 438 p.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

CAMPANHA CÍVICA DE OLAVO BILAC


Por Francisco José dos Santos Braga


OLAVO BILAC (⭐︎ Rio de Janeiro, 16/12/1865-✞ 28/12/1918)

I. INTRODUÇÃO

Quando tomei a decisão de comemorar o Centenário do Príncipe dos Poetas Brasileiros, Olavo Bilac, um mês antes do seu centenário de falecimento, em 28/11/2018, recebi um comentário do confrade Ten Cel Adalberto Guimarães Menezes, sócio correspondente do IHG de São João del-Rei e autor do livro "Parque Histórico Nacional Tiradentes: Berço da Pátria", entre outros, lembrando-me que Olavo Bilac "é o Patrono do Serviço Militar, tanto assim que o dia 16 de dezembro é para nós chamado de Dia do Reservista. Ele nasceu no dia 16 (de dezembro); daí a escolha dessa data para lembrarmos os nossos reservistas, porque ele foi talvez o maior propagandista do Serviço Militar."

Incentivado por tal lembrança e motivado pela observação do ilustre confrade, decidi-me a incluir um trabalho sobre a Campanha Cívica de Olavo Bilac, na homenagem que o Blog de São João del-Rei está prestando ao maior poeta parnasiano, que se despediu deste mundo em 28 de dezembro de 1918.

II. O PROSELITISMO DE OLAVO BILAC


Numa pesquisa exploratória, consultando "As Efemérides de São João del-Rei" do historiador Sebastião de Oliveira Cintra (1918-2003), localizei na efeméride referente a 23/07/1916, dois trechos de uma carta de Olavo Bilac endereçada ao poeta BENTO ERNESTO JÚNIOR, natural de Itapecerica, porém são-joanense adotivo, convidando este poeta a agregar-se à sua campanha de propagação em Minas Gerais do escotismo e solicitando sua adesão. Lembro que na ocasião Bento Ernesto Júnior tinha grande prestígio na cidade: ocupava um importante cargo na Administração estadual: era inspetor regional de ensino; além disso, era membro efetivo da Academia Mineira de Letras, poeta e colaborador para os três jornais de grande circulação em S. João del-Rei: Reforma, Acção Social e A Tribuna.

Com vistas a publicar o inteiro teor dessa missiva tão importante, busquei nos referidos periódicos a sua publicação. Inutilmente tentei localizar a carta registrada por Cintra, cuja publicação não existe nos referidos jornais, desde fins de julho até dezembro de 1916. Assim sendo, tive que ficar com apenas dois trechos da carta, em registro de Cintra. Teria ele a posse da carta de Olavo Bilac dirigida a Bento Ernesto Júnior?

Vejamos inicialmente, portanto, os dois trechos da correspondência de Olavo Bilac endereçada a Bento Ernesto Júnior em 23/07/1916, conforme registrado em [CINTRA, 1982: 307]: 

“Meu caro poeta.
Peço-lhe que ponha o seu cérebro e o seu coração ao serviço da ideia da Defesa Nacional, e, especialmente, ao serviço da criação dos Escoteiros de Minas.
Outro trecho da carta do grande estimulador do escotismo no Brasil:
“Você, em S. João del-Rei, deve ser a alma criadora do Batalhão Sanjoanense. É preciso que Minas tenha a sua sagrada legião de pequenos heróis. Escreva artigos, faça conferências, fale a todos os seus amigos, e dê a todos os jovens da sua terra coragem, crença, esperança no futuro do Brasil.
De Belo Horizonte o acadêmico FRANKLIN DE MAGALHÃES, irmanado na patriótica campanha de Bilac e Coelho Neto, escreve ao conterrâneo e poeta GIL PEREIRA COELHO, então residente em S. João del-Rei, solicitando-lhe apoio ao movimento fundado por Baden-Powell. 
Nessa busca pela referida carta na íntegra, acabei achando outra carta de Olavo Bilac endereçada a outro poeta, MENDES DE OLIVEIRA do "Diário de Minas", datada de 21/07/1916, ou seja, dois dias antes da carta para Bento Ernesto Júnior, e publicada quinze dias depois pelo jornal são-joanense A Tribuna, na edição de 06/08/1916. A vantagem dessa carta publicada é que ela vinha precedida por um texto justificando o conteúdo da carta, tudo encimado por um título convidativo: Escoteiros. Ei-la. 

ESCOTEIROS 

     Pela pátria-terra em que nascemos, ar que respiramos, céos constellados e azues mais bellos que os de outras plagas, mares sem fim de ondas encrespadas, serras em cujas escarpas batem os doirados raios do sol dos tropicos, gottas de orvalho, veios de chrystallinas aguas, rios caudalosos, crepusculos e arvoradas; 
     pela pátria-sociedade em que vivemos, fallando a mesma lingua, ligados pelos mesmos costumes e pelos mesmos estreitos interesses, communidade protegida pelas mesmas leis e gozando dos mesmos direitos buscando sob o influxo da mesma bandeira o progresso material e moral; 
     pela patria-familia, sanctuario de tudo quanto é nobre e bello, pequeno mundo onde se guardam as tradições de todo um povo, refugio sagrado pelas cinzas dos nossos antepassados, casa em que dia a dia, hora a hora, mais a ella nos achamos presos pelo amor de nossos paes; 
    pela patria-tradição ligando o passado ao futuro - trabalha, a musa clara e suave, cantante e expressiva de Olavo Bilac. Quer o príncipe dos nossos poetas que formemos batalhões e batalhões de escoteiros por ser o escotismo uma escola de energia e de honestidade, de cavalheirismo, de lealdade e de altivez. 

Bilac quer que cada brasileiro seja um bom escoteiro, isto é, um homem util à sua patria, à sociedade em que vive, porque a sua educação o torna incapaz de um acto de pilhagem ou selvageria, faz o homem respeitar as pessoas com quem convive, acceitando toda responsabilidade dos seus actos pautados sempre pelo respeito à lei. 

Esses são os homens que Olavo Bilac deseja que a nossa patria possua, tendo nesse sentido endereçado cartas a varios homens de letras para tomarem a iniciativa da creação de batalhões de escoteiros no nosso Estado. 

Pela patria - trabalhemos, formando homens dignos della. 

Pela patria - levantemos o caracter da nossa gente... 

Olavo Bilac é um enthusiasta da organização dos escoteiros em Minas, como se vê pela carta que o glorioso poeta dirigiu ao nosso illustre confrade do "Diario de Minas", o grande poeta Mendes de Oliveira: 
Rio de Janeiro, 21 de julho de 1916 - 35, rua Barão do Itamby, Botafogo.
Meu caro poeta.
Venho lembrar e pedir à sua formosa alma de poeta e de brasileiro este grande serviço: a creação, em Minas, de batalhões de escoteiros. Em S. Paulo, já temos 8.000 escoteiros; no Rio Grande do Sul, 2.000; na Bahia, no Paraná, em Pernambuco, em Santa Catharina a organização já foi encetada.
A terra de Minas, que foi feita pelos bandeirantes do seculo XVII, deve dar um contingente admiravel à legião dos novos bandeirantes do Brasil futuro. Com o seu coração, com a sua lyra, com a sua penna, levante ahi a idéa, sustente-a, e realize-a! Fala ao Aurelio Pires, ao Alphonsus, aos bellos rapazes da "Vida de Minas"; escreva aos seus amigos da imprensa e das lettras de Juiz de Fóra, de S. João d'El-Rey, de todo Estado, e seja o apostolo da fundação dos batalhões dos pequenos heróes de Baden-Powell na terra de Tiradentes!
Acolha e nutra no seu espirito este sonho, que alimento: d'aqui a 6 annos, celebraremos o centenario da independência do Brasil... imagine este espectaculo: a parada de cem mil escoteiros brasileiros, de todos os Estados, no Rio, em 7 de Setembro de 1922!
Quem desde já lhe agradece o esplendido serviço não sou eu: é o Brasil. Abraço do seu admirador
Olavo Bilac.


Correspondência de Olavo ao poeta Mendes de Oliveira datada de 21/07/1916


Fonte: jornal A TRIBUNA, Anno III, nº 109, S. João del-Rei, edição de 6 de agosto de 1916.

III. O PATRIOTISMO DE OLAVO BILAC


Bilac era, acima de tudo, um patriota consciente do momento histórico, um combatente pelo civismo, ao qual não hesitava em devotar-se, por inteiro. O autor da letra do Hino à Bandeira e da grandiosa "Oração à Bandeira", empenhou-se, ainda, na ação educacional cívica, buscando a promoção dos mais puros ideais da nacionalidade. Em 1915 e 1916, empreendeu peregrinação pelo País, conscientizando os brasileiros da necessidade do Serviço Militar Obrigatório, pregando a verdadeira cidadania. Sua missão, iniciada em São Paulo, e ressonante no Rio de Janeiro, tornou-se alvo de destacada homenagem no Clube Militar. Prosseguiu rumo a Minas Gerais e ao Rio Grande do Sul, defendendo, com ardor, a associação de todos os brasileiros à sua causa. Embora com sacrifício da saúde, Bilac alimentava o firme desejo de levar sua pregação ao Norte e ao Nordeste do Brasil, seguindo o itinerário que já havia traçado, durante suas viagens para a campanha de defesa do Serviço Militar. Mas no apagar de 1918, por todo o Brasil correram sentidas lágrimas pela notícia da morte do querido poeta, interrompendo infelizmente seus sonhos. Em 26 de dezembro de 1939, com o Decreto Lei nº 1.908, o então Presidente da República, Getúlio Vargas, resolveu instituir o “Dia do Reservista”, comemorado anualmente em 16 de dezembro, data do nascimento do poeta e grande patriota Olavo Bilac, inspirador da Lei do Serviço Militar, que nos anos de 1915 e 1916, em notável campanha por todo País, pregou a necessidade do Serviço Militar como preito de amor a Pátria, mostrando o Quartel como escola de civismo. 

O serviço militar era concebido pelos seus defensores como um instrumento capaz de apagar as fronteiras entre civis e militares, através da disseminação da “consciência civil” nos quartéis. O “cidadão-soldado”, fruto desse processo de amálgama que desembocaria na identificação Exército-nação, constituiria uma “força nacional real”, de grande importância para a solução dos problemas do país. 

A criação da Liga da Defesa Nacional (LDN) foi um desdobramento da campanha cívica, promovida pelo poeta Olavo Bilac em prol da implantação do serviço militar obrigatório no Brasil. A defesa do serviço militar obrigatório instituído em outubro de 1916 inseria-se no quadro maior de uma campanha nacionalista em grande escala, centrada no tema do patriotismo e do culto às tradições brasileiras. Essa cruzada de civismo produziu, além da LDN, a Liga Nacionalista de São Paulo, fundada em dezembro de 1916 por estudantes da Faculdade de Direito. Fundada na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, a LDN incorporou o nome da mais importante publicação militar da época, A Defesa Nacional (lançada em 1913), procurando atestar com isso a identidade de interesses de civis e militares. Integrada por elementos desses dois setores, a Liga restringiu inicialmente suas atividades ao nacionalismo e ao serviço militar: as conferências e os debates sobre o nacionalismo eram de responsabilidade dos civis, ao passo que aos oficiais (sobretudo do Exército) cabia a parte prática do serviço militar. 

Sob essa inspiração, fundou a Liga de Defesa Nacional, em 1916, para lutar pela preservação de nossos valores maiores ao longo do tempo. Deixou estabelecido que os dois principais pontos do programa da Liga eram o serviço militar obrigatório e a educação cívica. 

CPDOC: LIGA DA DEFESA NACIONAL (LDN)
https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/LIGA%20DA%20DEFESA%20NACIONAL%20(LDN).pdf



IV. A CRISE DA SEGURANÇA PÚBLICA NA CAPITAL FEDERAL DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA (1899-1930)

Em 2012, a pós-graduada Ana Vasconcelos Ottoni defendeu na Universidade Federal Fluminense, dentro do programa de pós-gradução em História Social, a tese intitulada "O Paraíso dos Ladrões": Crime e Criminosos nas reportagens policiais da imprensa (Rio de Janeiro, 1900-1920). Inicialmente, Ottoni constata que "os estudos sobre imprensa e crime, ao se debruçarem quase que somente na justificativa da 'ociosidade do pobre', acabaram por ver o jornalidsmo como um instrumento meramente de controle e dominação social, na medida em que parecem ainda muito influenciados pela historiografia da década de 80 que pensa o crime, como vimos, a partir principalmente do controle social/dominação (e resistência). Ao trabalharmos a imprensa não somente por esta perspectiva do controle social, procuramos levantar como hipótese central do estudo a ideia de que as reportagens policiais e os jornalistas produziam concepções mais alargadas da criminalidade, evidenciando outros debates e desafios, que não somente se restringiam à pobreza e à ociosidade. (...) Para desenvolvermos a hipótese central do estudo, optamos por utilizar as reportagens policiais publicadas no Jornal do Brasil, na Gazeta de Notícias e no Correio da Manhã. (...)" A atenção dela se voltou para as notícias de crimes cometidos por ladrões e cabos eleitorais/capangas de políticos divulgadas pelos três maiores jornais cariocas da época - Jornal do Brasil, Correio da Manhã e Gazeta de Notícias. "O paraíso dos ladrões" (Jornal do Brasil, 6/06/1915, 10) é como era repetidamente tratada a cidade do Rio de Janeiro nas reportagens policiais nas duas primeiras décadas do século XX. "Os crimes perpetrados por ladrões eram veiculados no noticiário policial em uma época de crescente expansão econômica, durante a qual os jornais registravam uma variedade de delitos na cidade, desde os furtos de galinhas aos roubos de jóias e dinheiro. Os crimes contra a propriedade cometidos pelos gatunos poucas vezes vieram acompanhados de agressões às vítimas. (...)

Na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro Ottoni pesquisou interessantes reportagens que tratam do universo político-eleitoral da época em articulação muitas vezes com questões relativas à criminalidade. (...) Em relação aos cabos eleitorais/capangas de políticos, eles eram geralmente considerados valentes, egressos dos presídios e temidos pela população pelo modo violento como cometiam seus crimes."

Vou permitir-me retirar alguns trechos da tese de Ottoni, que irão permitir ao leitor do Blog de São João del-Rei perceber a conjuntura social da Capital Federal que forneceu os elementos a Olavo Bilac para sonhar uma nova sociedade através do seu "insight" de construção de uma nova ordem social baseada na criação do serviço militar obrigatório e na educação cívica.

O papel dos repórteres policiais na sociedade era tido como importante no desvendamento dos crimes. Numa reportagem intitulada "Polícia dos Vadios", Olavo Bilac assinalava que eles eram um "substituto da própria polícia":
Aqui os jornais fazem reportagens, os repórteres trabalham como Sherlocks, apanham circunstâncias excepcionais, defendem o fio da meada, denunciam probabilidades tais e tais e a polícia permanece insensível e encobre - regra geral - a sua incompetência, a sua preguiça, o seu desleixo com uns inquéritos em segredo de justiça, força ignóbil que lhe evita trabalho e a dispensa de prestar esclarecimentos à opinião pública. (Gazeta de Notícias, 12/07/1917, p. 1.)
Os repórteres também teriam o papel de fiscalizar os comportamentos “inadequados” do público – como os dos homens que não trabalhavam e/ou que viviam nos chamados espaços viciosos da cidade (botequins, prostíbulos, casas de jogos). Para tanto, pediam ou cobravam à polícia para que vigiasse tais comportamentos, uma vez que os consideravam como atos preparatórios para o crime. Quando insistiam em dizer que o Rio de Janeiro, capital da República, era "o paraíso dos ladrões", alegando que os criminosos transitavam livre e impunemente pela cidade, a imprensa e seus jornalistas teriam a função de combater a criminalidade em favor da coletividade. Eles se colocavam como o único poder instituído, capaz de intermediar os apelos e cobranças da população às autoridades policiais e governamentais no sentido de conter e reprimir a criminalidade na cidade. Os jornalistas pareciam ver, assim, o jornal como uma "tribuna do direito e da justiça", já que a maioria deles eram egressos dos cursos de Direito e acreditavam que a função social da prática do Direito seria a responsável pelo caminho que retiraria o país da barbárie e o encaminharia para a civilização. 

Nas notícias sobre crimes, o Rio de Janeiro era mostrado "como lugar onde se cometiam crimes não só na 'calada da noite' e em lugares ermos e nos subúrbios, mas também nas ruas mais movimentadas da área central da cidade, em plena luz do dia." Matérias como essas eram publicadas na imprensa, ao mesmo tempo que, por outro lado, o Rio de Janeiro era considerado uma cidade moderna, o principal centro produtor e consumidor de cultura e a principal sede industrial, comercial e bancária do país. Segundo Lená Medeiros de Menezes, in Os estrangeiros e o comércio do prazer nas ruas do Rio (1890-1930), a paisagem do Rio de Janeiro se transformava completamente com as aberturas de avenidas, o alargamento de ruas, entre outras mudanças, sobretudo aquelas implementadas pelas reformas urbanas empreendidas pelo prefeito Pereira Passos (1903-1906). O Centro era, a partir da reforma de Passos, entregue às grandes companhias, aos bancos, redações de jornais, hotéis, cafés de luxo e repartições públicas; e a Zona Sul era ocupada pelas novas casas da elite, com sua infraestrutura de serviços e abastecimento. Os jornalistas definiam o subúrbio pela ausência: ausência da polícia, da ordem e do direito à cidadania no que diz respeito à segurança pública. 

A temática da pobreza na Primeira República tem sido objeto de estudo de vários trabalhos acadêmicos. Estes estudos defendem a hipótese de que os diferentes campos de saber existentes na época (imprensa, literatura, judiciário, medicina, entre outros) retratavam as classes pobres tão-somente como "classes perigosas". De fato, muitas reportagens policiais que Ottoni consultou criminalizavam os pobres urbanos. Nas reportagens do período, a criminalidade infantil chamava mais a atenção da imprensa do que as notícias sobre vadiagem, furtos domésticos e crimes nos morros. Esses ladrões não eram apenas as crianças e adolescentes negros/mulatos e/ou nacionais. Também os jovens brancos e/ou estrangeiros apareciam no noticiário como criminosos. 

A desorganização da família e os desajustes emocionais/psicológicos, acoplados à miséria eram vistos como as grandes causas do menor abandonado e da vadiagem, e consequentemente da criminalidade infantil. Mas, principalmente, os jornalistas apontavam um outro motivo da criminalidade infantil: a rua. Costumavam dizer que "a rua é a escola do crime", onde as más companhias dos ladrões mais velhos, que transitavam com frequência na via pública, induziam os meninos à criminalidade infantil. 

Como cronista da cidade, Olavo Bilac também, semelhantemente ao noticiário policial, associava a pobreza à vadiagem. Em "Metrópole dos desocupados" (Gazeta de Notícias, 21/06/1903), Bilac tirou proveito do pedido de um jornal para dilatar o prazo concedido aos proprietários de prédios para pintarem suas fachadas por "não haver mão-de obra suficiente na cidade", ao mesmo tempo que considerava que o trabalho, retratado como “contraponto à ociosidade do pobre”, era o remédio mais eficaz contra os “pequenos crimes – alcoolismo, roubo e assassinato”; delitos estes vistos como “comuns nos bairros pobres, nas zonas da cidade que servem de residência à rude gente de trabalho”.

Havia também quem associasse a vadiagem à raça e à imoralidade dos sujeitos que frequentavam espaços viciosos da cidade (prostíbulos, casas de jogos e botequins). Entre as visões positivas e mais tolerantes sobre a pobreza, evitando a criminalização da pobreza, pode-se citar a de Orestes Barbosa e de Lima Barreto. No caso de Lima Barreto, o escritor questionava a associação entre classes pobres e classes perigosas, produzida e veiculada pela ideologia dominante. Ele pretendeu "fazer de sua literatura um instrumento de transformação social, denunciando as desigualdades raciais e de classe que caracterizavam a sociedade em que viveu, bem como as arbitrariedades dos primeiros governos republicanos." 

O surgimento e a consolidação das favelas no tecido urbano remontam à Primeira República. Nesse período, a questão da habitação popular se tornou central na discussão sobre o futuro da capital da República, sustentada fortemente por um discurso médico-higienista endossado também pelos engenheiros. Contudo, as favelas tendiam a ser vistas no jornalismo como um entrave à civilização e ao progresso da sociedade, pois eram retratadas pela grande maioria das reportagens policiais. Alguns repórteres policiais associavam o morro ao crime a partir da alegação de que as manifestações culturais aí presentes eram criminosas ou violentas. De novo, Orestes Barbosa buscava enaltecer a modinha e o samba da favela, vendo superioridade no maxixe em relação ao fox-trot. Em 23,3% das matérias consultadas (ou sete de um total de 30 matérias sobre crime e morro), os jornalistas expressavam visões mais tolerantes ou positivas sobre as favelas. 

A preocupação mais expressiva das reportagens policiais (e artigos de jornais) para com a referida problemática na década de 1910 se deveu muito possivelmente ao impacto produzido pela Primeira Guerra Mundial, que deu vazão às múltiplas expressões de nacionalismo. Nesse contexto, o problema da criminalidade infantil era cada vez mais considerado como um obstáculo à construção da Nação, já que os jovens infratores, como anteriormente assinalado, não se tornariam socialmente produtivos ao país. Não é à toa que, por nossa amostra, foi possível perceber que o número das reportagens sobre a criminalidade infantil cresceu consideravelmente a partir da década de 1910. Ainda dentro da perspectiva de se considerar a criminalidade infantil como uma questão social, via-se também que o problema era decorrente da falta de educação escolar para os jovens pobres, perspectiva esta compartilhada, por exemplo, por Orestes Barbosa, para quem a prisão não era um espaço de regeneração para o menor infrator, mas sim um espaço de aperfeiçoamento do crime. 

Quanto às associações entre cor/raça e crime nas reportagens criminais, Ottoni começa por citar Raquel Rolnik, in "Territórios negros nas cidades brasileiras (etnicidade e cidade em São Paulo e no Rio de Janeiro", onde esta afirma que, após a abolição da escravidão, o Rio de Janeiro continuou sendo a área de maior concentração de negros do Sudeste, pois essa região teve a menor entrada de imigrantes, além de ter sido intensa a migração de libertos da zona rural para a urbana, em função da decadência da cafeicultura na província fluminense de fins do século XIX. Constata, em seguida, que as reportagens e jornalistas policiais, ao relatarem os casos de roubos e furtos perpetrados por negros na cidade carioca, não discutiam como possivelmente tais desigualdades e práticas discriminatórias e racistas existentes na sociedade brasileira poderiam ter provocado a inserção desses populares no crime. Afinal, veicular notícias que apontassem a existência de tais problemas na sociedade brasileira, sobretudo no Rio de Janeiro, capital da República, seria de uma certa forma reconhecer que a cidade – que se queria “moderna” e “civilizada” – era uma capital com fortes tensões raciais e desigualdades de classe e de raça. 

No início do século XX, os ladrões “de cor” apareciam nas reportagens policiais através dos seguintes termos: “preto”, “pardo”, “crioulo”, “mulato” e “negro”. Além disso, os repórteres veiculavam a ideia ainda de que os negros e mulatos ingressavam na vida criminosa por serem “vadios” e “preguiçosos”, ou seja, avessos ao trabalho honesto e duro, numa associação entre negritude, vadiagem e preguiça. 

Ottoni constatou nessas reportagens policiais que havia um silêncio absoluto sobre o passado escravista. E perguntou: Mas por que as reportagens policiais silenciavam sobre esse passado, se só havia apenas uma década que a escravidão tinha terminado? Para responder a essa sua pergunta, ela recorre a Humberto Machado inImprensa e identidade do pós-escravo no contexto do pós-abolição”, o qual salientou que desde a segunda metade dos Oitocentos, especialmente a partir de 1880, com a campanha abolicionista, as elites intelectuais veiculavam na imprensa ideias que exaltavam o “progresso”, a “civilização” e a necessidade de eliminar a escravidão , responsável pelo “atraso” do Império, assim como os resquícios da “sociedade colonial”. Possivelmente os repórteres policiais considerassem que falar da escravidão em associação ao crime era reconhecer que a sociedade ainda estava fortemente influenciada pelo passado escravista; passado este que se queria apagar, já que ele era visto como a antítese do progresso e da civilização da Nação. 

Em relação às práticas mágico-religiosas, a feitiçaria era vista como uma “prática ativa da vida dos morros” da cidade, espaços estes onde, segundo os repórteres de crimes, se escondiam ladrões e quadrilhas de gatunos negros de origem africana. Os jornalistas alegavam que tais criminosos se utilizavam de objetos usados na feitiçaria – chamados pejorativamente de “bugigangas africanas” – para tentar enganar suas vítimas e roubá-las. Mas os jornalistas não só associavam a feitiçaria à criminalidade, como também o faziam com outras manifestações culturais e religiosas dos populares negros e afrodescendentes – como o samba, batuques e candomblés – associando-as a práticas criminosas. A associação dessas manifestações culturais e religiosas à desordem também se fazia presente nas reportagens policiais da época. 

Quanto ao que se passava em São Paulo na mesma época, Ottoni cita Ana Porto in "Crime em letra de forma", ao analisar as publicações de notícias de crimes no jornal Estado de São Paulo. Esta autora assinala que, se por um lado, as mensagens veiculadas na imprensa sugeriam que uma das maiores virtudes da nova sociedade idealizada naquelas páginas era o trabalho, por outro lado a opção pelo crime acabava aparecendo aí como uma boa solução de forma de aquisição de dinheiro fácil, já que a riqueza era valorizada mas o trabalho não. 

No capítulo dedicado aos ladrões estrangeiros no Rio de Janeiro, a autora dá atenção a novas práticas de crimes de roubo e furto, como os assaltos a cofres públicos e a bancos, furtos de jóias e assaltos a mão armada, que faziam parte de um Rio de Janeiro transformado em metrópole capitalista. Para a imprensa, havia também uma diversidade dos tipos de ladrões que circulavam pela cidade que iam desde os “punguistas (batedores de carteiras) da pobreza” até os ladrões chics. Na época em que os repórteres estavam publicando tais matérias, muitas reformas na lei criminal foram feitas a partir do novo Código Penal de 1890, proliferando-se a discussão sobre o problema criminal, suas causas e a forma de lidar com ele, como diz Marcos Bretas in "O crime na historiografia brasileira". As inovações da Antropologia criminal europeia e a abordagem legal positivista também causaram muitas transformações na lei criminal, aumentando a preocupação com o criminoso. Isso provocou, segundo Bretas, o desenvolvimento de sistemas de identificação – por fichas criminais, carteiras de identidade e impressões digitais – que, em um certo período de tempo, se tornaram um requisito geral. Mas Ottoni acha que para os repórteres policiais essas mudanças na lei criminal não garantiram que o problema criminal no Rio de Janeiro (e no Brasil) fosse resolvido, pois em suas perspectivas elas só teriam feito com que os referidos criminosos modificassem “as artes e os processos” de ladroagem. Segundo os jornalistas, os obstáculos que a “civilização” impunha às suas ações criminais os teria obrigado a modificá-los. 

No que se refere às representações do crime como um meio de enriquecimento, os jornais estampavam nos próprios títulos de suas matérias as médias ou altas quantias de dinheiro furtadas ou os “capitalistas” e estabelecimentos comerciais e bancos roubados. De fato, os ladrões eram retratados como criminosos que cresciam em número e astúcia, pois arquitetavam os seus crimes de forma engenhosa e inteligente. Os jornalistas tentavam mostrar que não só as formas criminais na sociedade haviam mudado nos novos tempos modernos, mas também os modos de vestir dos ladrões, e seus modos de se conectar com o mundo moderno. Alegavam que de rústicos, mal vestidos e provincianos passavam a ser criminosos elegantes e cosmopolitas. Essa imagem do criminoso “chic” parecia ser vista como uma decorrência do próprio aperfeiçoamento do crime, já que com isso o malandro podia ter mais condições materiais para se vestir melhor. 

As reportagens que associavam crime e civilização eram relativamente expressivas na imprensa carioca. Elas convergiam em veicular a ideia de que a criminalidade e sua expansão na cidade se devia a três fatores decorrentes do avanço do progresso na sociedade: a influência da literatura policial, o progresso urbano e o crescimento da imigração estrangeira na cidade. Como já mencionado, a imigração estrangeira no Rio de Janeiro, sobretudo a europeia, era apontada pelas reportagens policiais como um dos motivos do aumento da criminalidade na cidade. Na perspectiva dos repórteres, os larápios de origem estrangeira eram criminosos que já chegavam ao Rio como “gatunos profissionais” e com uma “audácia inacreditável”. Mas por que muitas vezes os jornalistas criminalizavam os estrangeiros? Para explicar esta questão, é preciso dizer antes que desde o fim do século XIX os imigrantes europeus foram apresentados como força de trabalho alternativa para substituir os escravos preguiçosos. Como lembra Marcos Luiz Bretas in "O crime na historiografia brasileira: uma revisão na pesquisa recente", os imigrantes europeus começaram a chegar nos anos 1870, vindos de Portugal, Espanha e Itália, para trabalhar nas fazendas de café. Esses imigrantes, porém, não preencheram as expectativas de parte da elite que desejava uma “europeização” do trabalhador brasileiro. Dentre os trabalhadores imigrantes eles encontraram a escória da sociedade europeia, membros das “classes perigosas” e anarquistas atraídos pelas possibilidades da nova nação. Esses estrangeiros eram vistos nestes momentos como “agitadores” e “anarquistas”, pois teriam “pretensas idéias libertárias” que contribuíam no aumento dos crimes contra a propriedade. Era também em plena implementação da Lei de 1907, que decretava a expulsão dos estrangeiros do Brasil, que as reportagens e jornalistas policiais estabeleciam uma associação (implícita ou explícita) entre anarquismo e criminalidade/gatunagem estrangeira. 

Ottoni cita a historiadora Gladys Ribeiro para dizer que, ao analisar os processos da Justiça Federal e do Supremo Tribunal Federal durante a Primeira República, chama atenção que o processo de repressão aos elementos estrangeiros ignorava os limites impostos pela lei e expulsava sem formação de culpa ou sem mandado de prisão. “E a expulsão acabava sendo praticada contra estrangeiros já residentes há anos no país, muitos com famílias constituídas, ultrapassando as garantias constitucionais que anulariam a sua retirada do território nacional (...)", conclui Gladys Ribeiro. 

Ottoni cita outra historiadora, Lená Menezes, para mostrar que ela assinalou, em seu estudo intitulado “Os indesejáveis”, que em 1906 os estrangeiros atingiram 210.515 indivíduos, contra um conjunto de 600.928 nacionais, numa população que alcançava 811.443 habitantes. “Representavam, portanto, cerca de 25 % dos habitantes da cidade. Ottoni cita ainda o historiador Marcos Bretas, ao se debruçar sobre uma notícia do Jornal do Commercio em 1917, sobre a questão da imigração europeia no Rio durante a Guerra, assinalou que, de acordo com a notícia, o fluxo de imigrantes europeus que entravam no Rio continuou até a Primeira Guerra Mundial. Segundo tal jornal, entre 1907 e 1917 o número de imigrantes que entraram pelo porto do Rio chegou a 452.000. Os números anuais caíram de 78.208 em 1913 para 33.913 em 1914; 16.180 em 1915; e 10.997 em 1916. 

Essa baixa no volume imigratório para o Rio durante este período da Guerra estava fortemente relacionada, como assinalou Juliana Gomes Dornelas, às dificuldades de locomoção durante os conflitos e também à adoção de políticas restritivas contra aqueles considerados nocivos à sociedade: como os anarquistas, que passaram a ser perseguidos a partir de 1917, e os comunistas. 

Os jornalistas alegavam que os referidos criminosos por terem tais características na arte de se apoderar do bem alheio, conseguiam engendrar facilmente os roubos na cidade, seja praticando-os individualmente ou em grupo por quadrilhas especialistas em roubar o alheio. Tais quadrilhas eram caracterizadas pelos arrombadores de cofres das casas comerciais com instrumentos aperfeiçoados (como a serra circular), o que demonstrava maior habilidade técnica e conhecimento de mecânica utilizado no processo desses crimes. Embora os jornais considerassem os ladrões estrangeiros inteligentes na arte de se apropriar do bem alheio, não veiculavam que esse grupo de gatunos cometesse crimes de estelionato, delitos esses considerados mais sofisticados e modernos naquela sociedade de início do século XX. Em todo caso, registravam em maior número os furtos/roubos de objetos valiosos perpetrados pelos estrangeiros, no caso jóias e dinheiro em médias ou grandes proporções. 

Na imprensa, os ladrões sul-americanos que aqui chegavam eram retratados de uma forma semelhante aos europeus. Ou seja, eram representados como criminosos ágeis, astutos e inteligentes. Segundo os repórteres policiais, as cidades de onde os criminosos sul- americanos especialmente procediam eram Buenos Aires e Montevidéu, tidas – juntamente com a Europa – como os grandes centros da criminalidade moderna. Um dado marcante que aparece na documentação era o circuito Buenos Aires/Montevidéu/Rio de Janeiro, que evidencia o intercâmbio permanente que se processava no Cone Sul. Eles se caracterizavam também por serem criminosos que não tinham residência fixa e que viajavam sempre depois dos crimes, quer de uma cidade a outra, quer dentro ou fora do país, munidos de um arsenal de nomes falsos. Todos eram criminosos internacionais perseguidos pela polícia de diferentes países. A imprensa salientava também que os rapinantes internacionais emigravam para o Rio porque encontrariam na cidade um campo vasto para agir, pois não corriam o risco de cair “nas garras da polícia”, já que o serviço de vigilância (e de investigação) da capital era “pessimamente feito”. Os jornais também salientavam que os ladrões internacionais tinham sua entrada facilitada no Rio devido à má fiscalização da polícia marítima. Ottoni lembra que a imprensa não mencionava que o grande problema do policiamento do porto do Rio era que na época não havia uma força policial nacional para controlar as fronteiras. Se um imigrante impedido de ingressar no país se dirigisse a outro porto, a exemplo de Santos, como assinalou Marcos Bretas, a responsabilidade pelo controle de imigração passava por outra jurisdição policial. 

Independentemente desse problema, a imigração desses delinquentes para a capital era, na perspectiva dos jornalistas policiais, inevitável de acontecer, devido aos fatores anteriormente mencionados. Por tudo isso, alegavam tais jornalistas, havia uma "abundância dessa gente no Rio de Janeiro, transformando-o no paraíso dos ladrões". 

Ottoni cita ainda o historiador Diego Galeano que observa que, devido à problemática dos delinquentes viajantes, as polícias do cone sul passaram a realizar conferências sul-americanas, com a finalidade de gestar uma rede de intercâmbios. Esse programa só adquiriu força a partir de uma série de reuniões realizadas em Buenos Aires no início do século XX. Mas não se tratava apenas de uma experiência de "cooperação policial internacional", mas da formação de uma rede policial interurbana, ou seja, "uma rede que significava um salto do nível urbano ao nível regional". 

No último capítulo de sua tese, intitulado "Política, eleições e criminalidade", Ottoni buscou examinar as representações construídas nas notícias sobre a relação entre a expansão da criminalidade no Rio de Janeiro do início do século XX e o suposto relacionamento dos políticos com os criminosos e a polícia, em meio às fraudes eleitorais da época. Segundo Ottoni, na memória do jornalista e escritor Bastos Tigre, as eleições do Rio de Janeiro no início do século XX eram marcadas pela presença de criminosos que, a serviço de chefes políticos, provocavam inúmeros conflitos, crimes, assassinatos e roubos de urnas em assalto às seções eleitorais. Esses crimes também estavam presentes nas reportagens policiais (e artigos de jornais) de início do século XX. Em tais publicações, passava-se a ideia de que as eleições no Rio de Janeiro eram marcadas pela violação sistemática do direito constitucional da liberdade do voto. Os jornalistas alegavam que os bandidos da cidade obrigavam os cidadãos – por intimidação ou violências físicas – a votar nos políticos que os contratavam para praticar crimes e fraudes nas eleições. Mas vale notar que, apesar das reportagens denunciarem o suposto envolvimento dos políticos nesses episódios, raramente os chamavam de criminosos ou ladrões, ao contrário do que acontece hoje em dia, em que o político é visto como sinônimo de ladrão. De todo modo se, com relação aos políticos, havia uma tendência das notícias em não informar seus nomes, no que se refere aos seus cabos eleitorais/capangas, estes tinham seus nomes claramente estampados nas páginas policiais da imprensa. Segundo os jornalistas, eram indivíduos temidos pela população, pois cometiam sobretudo crimes violentos. Por isso, a imprensa os chamava de bambas/bambambãs/capadócios/malandros, denominações estas que significavam indivíduos valentes, bons de briga. 

Os jornalistas policiais consideravam, num sentido similar, que a República era um regime que instalara no Brasil os princípios democráticos, depois de “um longo período de degenerescência” do período monárquico, mas que tinha se distanciado do interesse público e dos seus princípios democráticos. Nessas publicações, veiculava-se a ideia de que em toda parte no Brasil o “famoso sistema representativo” era “viciado e adulterado”, e que no país, principalmente na capital federal, ele era ostensivamente escandaloso com os episódios de mortes, assaltos às urnas e conflitos. Diante das críticas ao cerceamento à liberdade do voto no Brasil, atacava-se com veemência a falta de punição no país em relação aos políticos e criminosos que fraudavam as eleições. A imprensa, ao salientar a proteção da polícia aos cabos eleitorais/capangas de políticos, alegava que tais criminosos tinham grande poderio nos locais onde moravam. Embora os repórteres admitissem que por vezes a polícia tentava perseguir e prender os cabos eleitorais/capangas de políticos da cidade, o mais comum nessas reportagens sobre criminalidade e eleições era enfatizar o envolvimento da polícia na política, e de como isso repercutia no aumento da criminalidade em geral no Rio. Ottoni cita o historiador Marcos Bretas, que, in "Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro: 1907-1930", comentou: "A nomeação para o cargo de chefe de polícia da capital proporcionava a oportunidade de trabalhar em contato íntimo com a elite política, oferecendo grandes oportunidades para obter vantagens e benefícios profissionais. O objetivo maior era a nomeação para o Supremo Tribunal Federal." 

Os repórteres acusavam a polícia de trabalhar em função da presença do "filhotismo". Ottoni cita o historiador Otair Fernandes de Oliveira, que in "O municipalismo e a cultura política brasileira", esclareceu que "o filhotismo reside no favoritismo em relação aos amigos do governo, com fechamento dos olhos para as mazelas de seus apadrinhados políticos, contribuindo, assim, para a desorganização da administração municipal, sob a “vista grossa” dos governos estaduais, ainda mais quando se considera o despreparo técnico dos parentes e amigos e a utilização do dinheiro, dos bens e dos serviços do governo municipal nas campanhas eleitorais, entendidas como verdadeiras “batalhas eleitorais””. 

Ottoni cita a historiadora Vera Borges, in "A dramaticidade da eleição presidencial (1909-1910)", para afirmar que, durante o segundo semestre de 1909, os jornais cariocas estampavam em suas páginas as adesões e os distanciamentos em relação às duas candidaturas que disputavam a Presidência da República: Rui Barbosa e o Marechal Hermes da Fonseca. Segundo Nelson Sodré, a imprensa havia se dividido, desde o momento em que, enfrentando o poderio das forças dominantes, Rui Barbosa se decidiu a desencadear a campanha civilista. Na eleição de março de 1910, Hermes da Fonseca foi apoiado pelo então presidente da República, Nilo Peçanha. Na época, os dois grandes estados de Minas Gerais e São Paulo tinham-se desentendido. Segundo José Murilo de Carvalho: "o candidato da oposição, Rui Barbosa, apoiado por São Paulo, levou a cabo a primeira campanha eleitoral dirigida à população." 

Essa disputa eleitoral, como assinalou Eliana Dutra, foi marcada pelo questionamento do sistema oligárquico, então em vigor, e da sua forma eleitoral. Durante a campanha, os diferentes jornais cariocas se posicionaram de formas distintas em relação à eleição, de acordo com os seus interesses econômicos – era comum na época a compra da opinião de parte da imprensa pelos governos constituídos – ideológicos, políticos, entre outros. Assim, o Jornal do Brasil optou por apoiar a candidatura de Hermes da Fonseca, e a Gazeta de Notícias e o Correio da Manhã a candidatura de Rui Barbosa. Foi neste contexto particular de nossa política, na qual os diferentes jornais fizeram verdadeiras campanhas em prol da candidatura civil ou militar, que os repórteres policiais usaram suas notícias de crimes como instrumentos de ação partidária para apoiar ou atacar Rui Barbosa ou Hermes da Fonseca, de acordo com os posicionamentos dos jornais em relação a tais candidaturas. De qualquer forma, os jornais não apenas utilizavam as notícias policiais com o intento de apoiar ou atacar Rui Barbosa ou Hermes da Fonseca, como também os artigos de crimes. Contudo, nas matérias que tratavam do assunto, o jornal tendia a associar a questão da criminalidade no Rio de Janeiro com a candidatura de Hermes da Fonseca de forma implícita, sem mencionar os nomes dele e de Nilo Peçanha. 

Os repórteres da Gazeta de Notícias atacavam o então chefe de polícia, Leoni Ramos, como uma forma indireta de atingir a candidatura militar apoiada pelo presidente da República, Nilo Peçanha, já que quem nomeava o chefe de polícia da época era o presidente. Os repórteres do jornal diziam que a polícia, por estar envolvida na campanha política da época, negligenciava a segurança pública, deixando a cidade entregue aos assaltos e roubos. 

No que diz respeito ao Correio da Manhã, como apoiava Rui Barbosa, recorreu às temáticas criminais para atacar diretamente a candidatura de Hermes da Fonseca e o governo de Nilo Peçanha, além de ter sido o jornal que mais intensamente tratou da temática da criminalidade em associação ao suposto relacionamento dos políticos com os criminosos e a polícia na eleição. 

“Um pleito de sangue: as eleições de ontem: três assassinatos: balbúrdia eleitoral”. “As eleições municipais: cenas vergonhosas”. “A eleição de ontem: o movimento nas seções: conflitos e mortes”. Esses foram os títulos das matérias, publicados em corpos expressivos e em negrito, sobre as eleições municipais de outubro de 1909, que, segundo os jornais, foram marcadas por conflitos, assassinatos e diversos crimes.

OTTONI, Ana Vasconcelos:  "O Paraíso dos Ladrões": Crime e Criminosos nas reportagens policiais da imprensa (Rio de Janeiro, 1900-1920), tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito para a obtenção do título de Doutor, área de concentração: História Social,  2012, 326 p.
http://www.historia.uff.br/stricto/td/1433.pdf
 

domingo, 6 de janeiro de 2019

Colaborador: ANTÔNIO RODRIGUES DE MELLO


Por José Maurício de Carvalho 

Academia de Letras de São João del-Rei - MG 

DEFESA DO PATRONO 
Antônio Rodrigues de Mello - cadeira n. 5 
Por José Maurício de Carvalho

Outubro de 2001
revisado em 30 de outubro de 2016

INTRODUÇÃO

Comecemos com uma advertência, é difícil avaliar com exatidão a obra deixada pelo Professor Antônio Rodrigues de Mello em face da pequena parcela preservada. Infelizmente pouco há da sua criação literária entre seus familiares, no Clube Artur Azevedo, na Biblioteca Nacional, na UFSJ e na Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (RJ). Essa defesa está organizada em seis partes: a família e a origem, a formação, o trabalho como professor, a obra literária as ideias e, finalmente, a contribuição.

I. A família e a origem 

Antônio Rodrigues de Mello é da oitava geração de Manuel da Silveira e Máxima Nunes de Oliveira, que viveram em Lisboa no século XVII. O casal teve, entre os filhos, Manuel Amaro da Silveira, nascido na capital portuguesa, em 1685. Militar de profissão serviu no Rio de Janeiro onde se casou com Máxima Barbosa Pinta. Dentre seus filhos Antônia Barbosa da Silveira se mudou para São João del-Rei e aqui faleceu em 1792. Entre os filhos de Antônia está Teodora Barbosa de Magalhães, que faleceu em 9 de março de 1806 e que se casou com o Cirurgião Mor Jerônimo de Paiva e teve por filha Teresa Fidélis da Silveira. Esta jovem, por sua vez, se casou com o Tomás Carlos de Souza e tiveram por filha Gertrudes Claudina da Silveira, que se casou com o Capitão Antônio Rodrigues de Mello e tiveram como filha Francisca Gertrudes de Mello. 

Antônio Rodrigues de Mello, patrono da cadeira n. 5 desta Arcádia, nasceu em São João del-Rei em 1837 ¹ , filho de José Felipe de Castro Vianna e de Francisca Gertrudes de Mello, a filha do Capitão Antônio Rodrigues de Mello. José Felipe e Francisca, os pais do homenageado, casaram-se na Matriz de Nossa Senhora do Pilar em 24 de setembro de 1826. Antônio Rodrigues de Mello foi batizado com o nome do avô materno e teve três irmãos: José Felipe de Castro Viana Júnior, que morreu solteiro em 24 de abril de 1877, Francisco Eulálio de Castro e João Rodrigues de Mello (avô materno do historiador Luís de Mello Alvarenga). 

Antônio Rodrigues de Mello é da oitava geração de Manuel da Silveira e Máxima Nunes de Oliveira, que viveram em Lisboa no século XVII. O casal teve, entre os filhos, Manuel Amaro da Silveira, nascido na capital portuguesa, em 1685. Militar de profissão serviu no Rio de Janeiro onde se casou com Máxima Barbosa Pinta. Dentre seus filhos Antônia Barbosa da Silveira se mudou para São João del-Rei e aqui faleceu em 1792. Entre os filhos de Antônia está Teodora Barbosa de Magalhães, que faleceu em 9 de março de 1806 e que se casou com o Cirurgião Mor Jerônimo de Paiva e teve por filha Teresa Fidélis da Silveira. Esta jovem, por sua vez, se casou com Tomás Carlos de Souza e tiveram por filha Gertrudes Claudina da Silveira, que se casou com o Capitão Antônio Rodrigues de Mello e tiveram como filha Francisca Gertrudes de Mello. 

Por sua vez, nosso homenageado Antônio Rodrigues de Mello, deixou quatro filhos ²: Antônio Rodrigues de Melo Júnior, Maria Clara de Melo, Francisca Geraldina de Melo e Adeodata de Melo. Uma de suas filhas Maria Clara de Melo, casando-se com Olivério de Fontes Palhares, foi mãe do Tenente Gentil Palhares

II. A formação 

Antônio Rodrigues de Mello estudou no Colégio Duval, destacando-se pelo domínio da língua portuguesa, do latim e francês. Esse Colégio foi fundado por Ricardo Júlio Duval, inglês de nascimento, que chegou a São João del-Rei acompanhando Carlos Wering, diretor de uma Companhia de Mineração que aqui se instalara. Embora a Companhia tenha ido embora, Ricardo Duval permaneceu em São João até 1865, quando mudou-se para o Rio de Janeiro e transferiu o Colégio para o francês Aleixo Delverd. 

Antônio Gaio Sobrinho reproduz em História da educação em São João del-Rei um texto do Dr. José Ricardo de Sá Rego, Presidente da Providência das Minas Gerais, que, em 1851, relata que no Colégio se ensinavam (2000, p. 73): "as Primeiras Letras, Religião, Latim, Francês, Inglês, Aritmética, Geometria, Filosofia, Geografia, História, Retórica, Desenho e Música vocal e instrumental". 

Depoimentos da época dão conta de que se tratava de um educandário de qualidade, tendo formado expressivo número de alunos. O Colégio era conhecido pela rígida disciplina. O perfil da escola e as disciplinas que ministrava revelam a preocupação com a formação humanística, orientada segundo os padrões da cultura européia da época. Esse foi o ambiente intelectual em que se formou Rodrigues de Mello. 

III. O trabalho como professor 

Depois de formado, Rodrigues de Melo aperfeiçoou-se nas línguas portuguesa, francesa e latina, das quais se tornou professor. Começou a lecionar no Turvo, hoje Andrelândia. Voltou para São João como professor do Externato e da Escola Normal, que funcionaram juntos no mesmo prédio até por volta de 1889, quando o externado foi fechado e a Escola Normal transferida para próximo da Igreja de São Francisco. Rodrigues de Melo lecionou também na Escola João dos Santos. Relatos da época dão conta de que ele sabia de cor clássicos da língua latina e que os recitava em suas aulas para espanto dos alunos. 

Um episódio ocorrido em 27 de setembro de 1883 revela que, naquele momento, Rodrigues de Melo era personagem importante da comunidade. Naquele dia a Lira São-joanense prestou homenagem ao maestro Luiz Batista Lopes, escolhido para Diretor do Coro Musical, cargo antes ocupado pelo Professor Carlos José Alves transferido para Juiz de Fora. Antônio Rodrigues de Melo foi escolhido para fazer um dos discursos de saudação ao novo Diretor. As outras personalidades que, segundo Sebastião Cintra, também saudaram o maestro foram: “Modesto de Paiva, José Lopes Moreira e Antônio Francisco de Assis Teixeira” (cf. Cintra, 1982, p. 406). Mesmo aposentado foi orador em diversas cerimônias públicas. Foi ele quem fez o discurso na inauguração da estátua do Padre José Maria Xavier, em 9 de maio de 1915, do qual preservou-se uma cópia. 

IV. A obra literária 

Antônio Rodrigues de Mello foi, além de professor de línguas amante das artes, notabilizando-se como autor teatral. Suas peças foram encenadas entre 1879 e 1906 com sucesso. Por elas o homenageado expõe sua visão da vida e o compromisso com a educação popular que, segundo ele, o teatro possuía. Neste aspecto não divergia do entendimento da época que atribuía ao teatro “um papel racionalmente civilizador e didático” (Chaves, p. 35). 

Antônio Guerra cita as seguintes obras de Rodrigues de Melo: Um mestre da música, comédia em um ato com música de Cristiano Brasiel, que estreou em 13 de dezembro de 1879; Os vizinhos, comédia em dois atos que estreou em de 25 de setembro de 1881; O ciumento, comédia em dois atos, de 1881 que estreou em 8 de janeiro de 1882; A seca no Ceará, de 1881 drama em cinco atos encenado juntamente com a comédia Uma velha moça, encenada em um ato, nos dias 22 e 29 de janeiro de 1882. Temos então um longo período sem novas peças até Fogueira de São João, comédia em três atos apresentada em 25 de dezembro de 1904; Um cachorrinho, comédia em três atos encenada pela primeira vez em 16 de novembro de 1905; Uma professora de Colégio, comédia em três atos encenada em 6 de fevereiro de 1906; Tio Bernardo e A beleza de uma atriz, ambas comédias em três atos encenadas em 1º de abril de 1906; O cometa biela e A saudade, comédias em dois atos encenadas em 22 de julho de 1906 (Fonte: Pequena história de teatro, circo, música e variedades em São João del-Rei - 1717 a 1967). 

Para conhecer seu pensamento examinaremos as ideias da peça Tio Bernardo, a única que parece foi preservada. 

V. As ideias 

A peça Tio Bernardo (1906) retrata a diferença de valores entre Sílvio, um jovem cheio de vícios, seduzido pelos prazeres da vida, representados, na peça, por uma vida sexual desregrada e gosto pelo carnaval e o seu tio Bernardo, um velho celibatário crítico do modo de vida do sobrinho. 

A peça mostra as artimanhas de Silvio para convencer o tio que, no entanto, se mantém fiel a seus valores. O velho Bernardo representa as virtudes da moral católica tradicional, com fortes traços estóicos. Eis o que o velho Bernardo assume como virtudes: o isolamento social, a educação religiosa, a vida parcimoniosa, a sobriedade das atitudes, a modéstia no vestir, o distanciamento da política e a fidalguia do trabalho. Esse último valor foi marca da nobreza pombalina, quando “os ideais da arcádia lusitana, concebeu um projeto teatral com objetivo moralizador” ou civilizador, projeto estudado em Caminhos da moral moderna (Carvalho, 1995, p. 112). O modelo pragmático de moralidade proposto na arcádia lusitana tinha por ideal uma nova fidalguia: meticulosa, trabalhadora, parcimoniosa, discreta, longe dos mexericos da corte, ao contrário da antiga, que era perdulária, preguiçosa, ocupada com a caça e festas, nas quais esbanjava suas poucas riquezas. No entanto, os valores propostos para a nova fidalguia não mudaram rapidamente os antigos hábitos sociais, nem a moral católica tradicional. 

O conflito de valores instaurado na geração pombalina foi tema da peça O Indolente Miserável encenada, em Lisboa, no final do século XVIII. Pois bem, além desses valores herdados do pombalismo: amor ao trabalho, planejamento dos gastos, parcimônia, discrição, Tio Bernardo mantém a condenação à sexualidade e à riqueza, conservando os pilares da moral católica dos seiscentos. Para Bernardo, onde o sexo e a vontade de ser rico imperam nenhuma virtude pode aparecer, no mesmo sentido proposto por Nuno Marques Pereira (1979, p. 30): “onde entra a ambição, impera a soberba, acende-se a ira, existe a gula, governa a inveja, acha-se a preguiça”. Esse projeto moral tem por objetivo a aproximação com Deus pela renúncia do mundo. O abrandamento desse projeto moral pela geração pombalina tinha em vista unicamente o fortalecimento do Estado (cf. os ciclos da filosofia tradicionalista no Brasil, herdeira do contra-reformismo, em Carvalho, 1999, cap. 1). 

A virtude da parcimônia aparece em vários trechos da peça, aqui basta um exemplo. Tio Bernardo diz: “Ainda não pude almoçar! (Tira do bolso um pão e come-o). A minha cozinha é cômoda e barata! Não pago empregadas que furtam...A parcimônia dá saúde e enriquece...” Não se trata de poupar para enriquecer, o que prevalece no tom geral de suas intervenções é a condenação da riqueza, embora não do trabalho e da parcimônia. É o ideal pombalino, combater o desperdício perdulário e a ostentação com vistas ao enriquecimento do Estado. A poupança dos indivíduos era de muitos modos transferida ao Estado. A poupança particular era não apenas sinal de avareza, mas indicativo de sonegação fiscal, misturando o pombalismo pecado grave com delito civil. 

O elogio do celibato e a crítica à sexualidade temas centrais da moral contrarreformista aparecem em muitas passagens da peça. Em um deles diz o tio Bernardo: “O casamento, por si só, quando um homem acerta é belo, é ótimo, não para mim, mas e o resultado?...Sogro, sogra, cunhados, parentes, aderentes, filhos e filhas! Olé! Quando dão para namorar e casar-se com quem muito bem querem, que petisco para o paladar do pai! Por isso, na minha casa, mando eu só, vivo como entendo, gasto o que posso, e mulheres, nem pintadas quero vê-las. São demoinhos de saia”. A descrição do Tio Bernardo mostra que só um milagre leva a um bom casamento. No entanto, a justificativa não é apenas de ordem pragmática, possui motivação metafísica e antropológica, a mulher é responsável pelo mal no mundo, retrocedendo com essa tese para o catolicismo medievo. Tio Bernardo afirma: “Sou celibatário. A mulher na minha opinião é um mal e origem de quase todas as desgraças. Em tudo, o senhor indague, esquadrinhe, vire, mexa e remexa: há de achar a mulher escondida, ou agachada, ou a vista. É o diabo! Muita razão tinha o Mr. Jagal, comissário de polícia em Paris, quando em todos os crimes, fatos ou acontecimentos, dizia: cherher la femme”. Mais adiante o personagem é ainda mais enfático: “Sansão caiu em poder dos filisteus por traição de Dalila. David foi ameaçado pelo profeta Natan com a peste por causa de Bethsabé; Salomão deslustrou sua glória por amor de mulheres. Tróia foi cercada dez anos e incendiada pelos gregos, por causa de Helena. Os tarquínios perderam o trono de Roma por causa de Lucrécia. Camões, para merecer Catarina, marchou para a guerra, a fim de cobrir-se de louros e perdeu um olho. Escreveu os Lusíadas, escapou de um naufrágio, e chegando a Lisboa, encontrou o enterro de sua amada!... A estrela rutilante de Napoleão Primeiro começou a palidejar no horizonte de sua vida gloriosa, desde que amou Maria Luiza, a quem desposou, divorciando-se de Josefina.. Sempre a mulher!” O propósito de uma vida solitária e casta como ideal ético foi repetido por muitas gerações de moralistas. Nuno Marques Pereira o colocou no seu conhecido Compêndio Narrativo do Peregrino da América onde se lê (1979, p. 29): “E assim ficai entendendo que não há maior virtude, nem coisa mais agradável a Deus, que uma alma que guarda a virgindade e é contingente, por se assemelhar com os anjos”. 

Outros elementos desse modelo moral se explicitam noutro trecho da peça. Diz o tio Bernardo: “Fui criado com muito recato e pudor virginal... Longe de más companhias e de conversas indecentes, obscenas”. Todos os males do mundo tinham como inspirador, “el diavolo, qui é venuto de los infernos”. O mal, cuja raiz é metafísico, tem na mulher a causa imediata, mas encontra fundamento transcendente no próprio espírito maligno, que primeiro a seduziu no episódio bíblico do livro do Gênesis. É o diabo, afirma tio Bernardo, o responsável pela perda dos valores verdadeiros. Suas tentações maiores são o sexo e o dinheiro, com eles o príncipe das trevas acaba com a vida virtuosa, o que eqüivalia a dizer inviabiliza a vida social : “Hoje não se respeita nada, diz tio Bernardo, a palavra é vento, a probidade e o patriotismo não têm cotação...A velhice é desprezível..., mas na vossa escavação só encontro lama! Ride..., que rides de vós mesmos...A gangrena progride, invade, contamina tudo. A educação é nula, a instrução superficial. O país está a borda do abismo! A sede de ouro é insaciável e tornou-se o dinheiro, o escopo ingente, o fito único! Os vínculos sagrados da religião afrouxam, quase rebentam. É o quadro negro que se vê. Urge uma reforma radical desde o berço! A vida humana – transformou-se num completo carnaval e o mundo num hospital de loucos”. Para Tio Bernardo por trás de todos os males da nossa sociedade está o demônio. O tio Bernardo permanece firme contra as tentações do maligno, mas a sociedade encontra-se em seus braços. Essa é a conclusão de Rodrigues de Mello quando faz a peça terminar com dois vivas que representam a decadência moral da sociedade mineira e brasileira: Viva o carnaval e viva o belo sexo! A salvação da humanidade e a preservação da civilização brasileira seria resultado da resistência de homens representados por Tio Bernardo. Daí se concluir que Tio Bernardo é a representação do ideal moral assumido por Rodrigues de Mello, no qual o objetivo da vida deixa de ser a felicidade terrena dos gregos e em seu lugar, sintetiza Paim (1994, p. 11): “aparece a bem-aventurança, a felicidade eterna, cujo ápice seria a contemplação de Deus”. 

Como se vê, através desta comédia de costumes, Rodrigues de Mello propõe uma articulada defesa dos valores tradicionais. Para preservar o que considera bons costumes usa seus talentos: o domínio das línguas estrangeiras, francês, inglês e italiano; o conhecimento da literatura clássica, da história universal e bíblica e o uso corretíssimo da língua pátria. 

Esse mesmo modelo moral também aparece no discurso pronunciado na inauguração da Herma do Padre José Maria Xavier em 9 de maio de 1915, ocasião na qual destaca do comportamento do sacerdote o “ser austero e severo, dar frequentes esmolas aos pobres”. (Discurso) O comportamento sério e o dar esmolas eram, segundo esse modelo moral, os principais esteios da vida virtuosa e o modo de vencer as tentações da riqueza e liberalidade sexual. Este comportamento do sacerdote era modelo a ser seguido pela juventude, afirma-o o professor: “Louvemos e aplaudamos este homem sábio, digno de justíssima reverência e imitação, e vós, honestíssimas meninas que me ouvis, jovens que amais esta pátria, senhores do povo, dai-me, às mãos-cheias, belas e perfumadas flores, para que eu as espalhe junto à digna estátua de tão grande homem” e conclui dizendo que as virtudes que tornam o homem admirável conduzem para o céu, estimulam a inteligência para as coisas do mundo e promovem o desenvolvimento da sociedade civil. Eis o que diz: “ó feliz pátria que o gerou, ensinou, educou e elevou ao ápice da glória  e da imortalidade”. (idem) 

Essa construção moral era predominante entre os intelectuais católicos e revela que, para eles, se vivia tempos extraordinariamente difíceis. Essa elite leu as dificuldades daquele início de século, entenda-se a República Positivista, como rompimento com os planos do criador, como resultado da quebra da ordem social, onde era clara a tendência laicizante. O problema era recolocar a história no rumo correto, conforme a tradição. É evidente que essa explicação não resume o que pensavam todos os cristãos, nem mesmo todos os católicos. No entanto, parte dos intelectuais católicos, notadamente os tradicionalistas, tenderam a interpretar as dificuldades históricas como fruto do afastamento da cristandade. Aos homens de hoje caberia voltar ao passado, um retorno àquele arquétipo original no qual se processou a revelação de Deus. A Idade Média, sendo um período onde a ordem sobrenatural prevaleceu é apresentada de forma idealizada, o que não impede de reconhecer seus erros. Tais erros são interpretados como pontos a corrigir numa ordem idealmente boa. A estabilidade política reinante, a ordem social e a econômica, a preocupação com o bem comum e a subordinação da moral à religião, são tomados como exemplos do que havia para ser buscado e resgatado. Para alcançar esta ordem superior e vencer o mal no mundo era preciso retomar as virtudes que Rodrigues de Mello apresentou nestes dois escritos aqui comentados. 

VI. A contribuição de Rodrigues de Mello 

Rodrigues de Mello foi professor e escritor teatral. Ele assumiu o projeto civilizacional cristão e católico como ideal para a sociedade brasileira. Esperava preservar os valores tradicionais e vencer as dificuldades sociais, advindas, conforme o tradicionalismo católico, da perda desses valores. O seu propósito era ensinar a vencer as tentações do mundo como propôs em Tio Bernardo. A peça teatral é um exemplo do ideal de vida que Rodrigues de Mello desejou veicular, superar os males da sociedade e os hábitos herdados da antiga nobreza lusitana, estimulando simultaneamente, contra o positivismo da República, um novo eixo de virtudes pautado: na vida parcimoniosa, na fidalguia do trabalho, no amor à pátria, no cultivo da educação humanista, na seriedade no trato humano, no respeito à velhice, na sobriedade no vestir e no comer, no distanciamento da troca de favores tão comuns em nossa política patrimonial, tudo isto sem afetar o reconhecimento de que a moral é sustentada pela religião e que somente ela é capaz de dar à vida sentido e aos homens a felicidade. Trata-se de um aspecto singular do mundo ibero-americano. Ao contrário dos demais países europeus onde a questão central da meditação ética reside na necessidade de encontrar fundamentos racionais para a moral, os ibéricos não discutiram demoradamente a relação do homem com sua consciência “fora da instância externa representada pela divindade” (Paim, 2001, p. 15). Este projeto esgotou-se no decorrer do século XX, os pensadores católicos e as reformas ocorridas no seio da Igreja Católica o atestam, mas Rodrigues de Mello não tinha como antecipar essa hipótese. 

Por outro lado, não há como não enxergar no propósito de Rodrigues de Mello de educar a população e edificar seu caráter, o intento de Aristóteles, expresso na Póetica, de promover a educação do povo pela experiência das emoções, pelo efeito catártico da compaixão, pela identificação do público com o personagem heróico que enfrenta, ainda que com a impossibilidade da vitória, a realidade decaída e corrompida. Trata-se, de uma educação que passa na epopeia e na tragédia pelo espetáculo cênico que "acrescem a intensidade dos prazeres que lhe são próprios" (Aristóteles, 1988, p. 228/229).

Nossa geração não tem o direito de desconhecer, nem de homenagear o trabalho desse mestre que se empenhou para realizar aquilo que toma como o sentido de sua vida: educar as pessoas, inoculando nelas um senso moral com vistas a promover um futuro melhor para o país e para a humanidade. O fato de usar como conteúdo de sua comédia teatral a moral tradicional revela (Chaves, 2000, p. 32): “como a religiosidade estava presente, implícita e explicitamente na vida, na fala, no comportamento dos mineiros dessa região (...) de 1900 a 1950”.

Claudia Braga escrevendo sobre a dramaturgia na República Velha diz que nossos dramaturgos perderam-se tanto mais quanto tentaram ser didáticos e não teatrais. Ao elaborar dramas com os pés na realidade que os cercava, “com propriedade e conhecimento, conseguiam escrever não só dramaturgia como obra séria e de boa qualidade” (Braga, 2001, p. 15). À criação de Rodrigues de Mello não se aplica tal consideração, ele mantém o caráter didático próprio do teatro lusitano do século XVIII, embora não fuja dos problemas de seu tempo. Pela diferença no tema e na forma dos autores consagrados nacionalmente, tenho em vista Coelho Neto e Artur Azevedo, podemos dizer que Rodrigues de Mello é muito mais próximo da tradição da arcádia lusitana do que os expoentes nacionais do seu tempo. Isso significa que a sociedade são-joanense, e provavelmente a mineira, estavam mais fortemente marcadas pelos valores tradicionais do período colonial (Cf. Carvalho, 2001, p. 460-478) do que a de outras partes do Brasil. Observe-se que Tio Bernardo, segundo os relatos da época, como as outras peças de Rodrigues de Mello, foram bem aceitas pela crítica e pelo público local. O propósito de Rodrigues de Mello era não só didático, ensinar certo procedimento, mas ético, justificar costumes. 

Os limites de seu projeto, aliás de parte importante da intelectualidade brasileira de seu tempo, não diminuem sua ampla cultura, o valor de suas preocupações com o destino de nossa sociedade. Não é próprio da vida humana marchar à frente de seu tempo, portanto não se pode pedir de Rodrigues de Mello mais do que era próprio de sua geração. No talento nas letras, no trabalho pedagógico, no amor pela arte, na dedicação ao ensino, no esforço para formar a opinião pública, no desejo de impedir que a sociedade brasileira ficasse sem um esteio moral, em tudo se destacou Rodrigues de Mello, que por tudo isso é credor do povo de São João del-Rei e digno homenageado por esta Academia que o toma entre seus patronos. 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1987 (Os pensadores). 

BRAGA, Claudia. Teatro de Coelho Neto. Tomo II. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2001. 

CARVALHO, José Maurício de. Caminhos da moral moderna. Belo Horizonte: Itatiaia, 1995. 

______. A vida é um mistério. Londrina: EDUEL, 1999. 

______. Contribuição contemporânea à história da filosofia brasileira. 3a edição. Londrina: EDUEL, 2001. 

CHAVES, Teresa Cristina de Resende. A questão da religião no teatro popular dos campos das vertentes na primeira metade do século XX. In: Teatro em Minas Gerais; Campos das Vertentes 1900-1950. (org. por Cláudia Braga). São João del-Rei, FUNREI. 2000. 

CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del-Rei. v. II, – 2. ed. – Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1982, 622 p. 

GUERRA, Antônio. Pequena história de teatro, circo, música e variedades em São João del-Rei - 1717 a 1967. Juiz de Fora: Lar Católico, 1968. 

MELLO, Antônio Rodrigues. Discurso durante a inauguração da Herma do Padre José Maria Xavier pronunciado em latim em 9 de maio de 1915. Ação Social (jornal). 

 ______. O Tio Bernardo. São João del-Rei: FUNREI/GPAC, s.d. 

PAIM, Antônio. Fundamentos da moral moderna. Curitiba: Champagnat, 1994. ______.História das idéias filosóficas no Brasil. Londrina: EDUEL, 1997. 

 ______. A meditação ética portuguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2001. 

SOBRINHO, Antônio Gaio. História da educação em São João del-Rei. S. J. del-Rei: edição do autor, 2000. 

VIEGAS, Augusto. Notícia de São João del-Rei. Belo Horizonte: s. e., 1969.

VÁRIOS. Moralistas do século XVIII. Rio de Janeiro: PUC/Rio, 1979.

ANEXOS: 
1- Discurso de Rodrigues de Mello na inauguração da Herma do Padre José Maria Xavier.
2- Peça O Tio Bernardo, comédia em três atos, de Rodrigues de Mello.
3- Correspondência da Biblioteca Nacional dando conta de que nada tem sobre Rodrigues de Mello.
4- Correspondência do GPAC, FUNREI, listando as obras de Rodrigues de Mello, a saber:
Um mestre de música (música de Cristiano Braziel) - comédia em 1 ato. Estreia em 13/12/1879.
Os vizinhos - comédia em 2 atos. Estreia em 25/09/1881.
O ciumento - comédia em 2 atos. Estreia em 08/01/1882.
A seca no Ceará - drama em 5 atos. Estreia em 22/01/1882.
Uma velha moça - comédia em 1 ato. Estreia em 22/01/1882.
Fogueira de São João - comédia em 3 atos. Estreia em 25/12/1904.
Um cachorrinho - comédia em 3 atos. Estreia em 16/11/1905.
Uma professora de colégio - comédia em 3 atos. Estreia em 06/02/1906.
O Tio Bernardo - comédia em 3 atos. Estreia em 01/04/1906.
A beleza de uma atriz - comédia em 1 ato. Estreia em 01/04/1906.
O cometa Biela - comédia em 3 atos. Estreia em 22/07/1906.
A saudade - comédia em 2 atos. Estreia em 22/07/1906.
5- Levantamento do acervo Antônio Guerra.
6 - Árvore genealógica do homenageado (não incluída neste post).


NOTA EXPLICATIVA (DO GERENTE DO BLOG DE SÃO JOÃO DEL-REI)


¹  É provável que o Prof. José Maurício tenha se deixado guiar pela efeméride do dia 15 de julho de 2015, em que [CINTRA, 1982: 297], como bom genealogista que era, fornece informações sobre a família e a origem de Antônio Rodrigues de Mello. Ocorre que houve um cochilo de Cintra quando diz que "faleceu aos 78 anos de idade o Prof. Antônio Rodrigues de Mello" em 15 de julho de 1915. Portanto, segundo Cintra, o nosso homenageado teria nascido em 1837 e vivido durante 78 anos. 

Efeméride de 15/07/1915, segundo Cintra
Segundo a pesquisa genealógica sobre a ascendência do Tenente Gentil Palhares em desenvolvimento pelo confrade José Passos de Carvalho, natural de Formiga, residente em Lavras-MG e sócio efetivo do IHG de São João del-Rei, apraz-me informar que ele localizou o assento de batismo do são-joanense ANTÔNIO RODRIGUES DE MELLO, comprovando que era avô materno de Gentil Palhares. Segundo o pesquisador formiguense, o professor Antônio Rodrigues de Mello, inocente, branco, filho legítimo de José Felipe de Castro Vianna e de Francisca Gertrudes de Mello, nasceu aos 03 de julho de 1840, e, por já ter sido batizado em casa, somente recebeu os Santos Óleos na Pia Batismal aos 08 de setembro de 1840. Sabe-se que Antônio Rodrigues de Mello morreu em 15 de julho de 2015, com 75 anos completos, dois meses após o discurso em latim proferido junto da herma de Pe. José Maria Xavier. 

Livro de Batismos da Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar de São João del-Rei, volume: 1837/1843, p. 85-verso
Assento do batismo de Antonio, innocente, branco

Transcrição do termo de batismo de Antonio Rodrigues de Mello (avô materno de Gentil de Fontes Palhares):
Antonio, innocente, branco - Aos oito dias do mez de Setembro de mil oito centos e quarenta nesta Igreja e Matriz de São (João) d'El Rei o Reverendo Coadjutor Bernardino de Souza Caldas poz sòmente os Santos Oleos, por já estar baptisado em casa pelo Reverendo João Valeriano Cecilio de Castro, a Antonio, innocente, branco, filho legitimo de Jozé Felipe de Castro Vianna e D. Francisca Gertrudes de Mello, nascido a 03 de julho do mesmo ano. Forão padrinhos: Nossa Senhora do Monte do Carmo e o Sargento Mor Joaquim José de Oliveira Mafra, cazado, e desta Freguesia. E para constar mandei fazer este assento que assignei. Era ut supra.
O Vigário Luiz José Dias Custódio

Ref.: Livro de Batismos da Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar de São João del-Rei, volume: 1837/1843, fls. 85-verso.

²  Obsequiou-me ainda o mesmo confrade José Passos de Carvalho com o ato lavrado do matrimônio celebrado na Matriz de Nossa Senhora do Porto da Eterna Salvação, Freguesia de Turvo (atual Andrelândia), aos 30 de outubro de 1872, às quatro horas da tarde, em casa de Antonio Luiz dos Reis de licença da Vara d’ Aiuruoca, de Antonio Rodrigues de Mello e Candida Augusta dos Reis, sendo testemunhas: Antonio Pereira Gustavo e Theophilo Belfort Ribeiro. Termo lavrado pelo Pe. Miguel Manso de Oliveira, vigário da dita Matriz.

Assento de matrimônio: Antonio Rodrigues de Mello 
c.c. Candida Augusta dos Reis
Transcrição do ato lavrado do matrimônio de Antonio Rodrigues de Mello e Candida Augusta dos Reis:
A trinta de Outubro de mil oito centos e setenta e dois em casa de Antonio Luiz dos Reis de licença da Vara d’ Ayuruoca as quatro da tarde sendo testemunhas Antonio Paula Gustavo, e Theophilo Belfort Ribeiro assisti e dei as bênçãos nupciaes ao matrimonio que contrahio Antonio Rodrigues de Mello filho legitimo de Jose Felipe de Castro Viana, e Francisca Gertrudes de Mello, já falecida, natural de São João d’El-Rei, com Candida Augusta dos Reis, filha legitima de Antonio Luiz dos Reis, e Maria Thereza de Jesus; brancos, aquelle com idade de trinta e trez annos e esta de minor; de que fiz este assento.

O Vigº Miguel Manso de Oliveira

Ref.: Livro de Matrimônios da Matriz de Nossa Senhora do Porto da Eterna Salvação, município de Andrelândia, Minas Gerais. Volume: 1857/1889, fls. 69.
 

AGRADECIMENTO

Agradeço à minha amada esposa Rute Pardini Braga as belas fotos que tirou e editou para os fins desta matéria.