domingo, 20 de abril de 2025

Stefan Zweig e o país que não chegou ao futuro


Por Paulo Roberto de Almeida *
Antes que, por livre vontade e na plena possessão de meus sentidos, eu abandone a vida, me sinto obrigado a cumprir um último dever: agradecer, desde o meu mais íntimo, a este maravilhoso país, Brasil, que nos ofereceu a mim e a minha obra um lugar tão magnífico e acolhedor. Cada dia passado aqui contribuiu a querer ainda mais a este país, em nenhum outro lugar teria desejado reconstruir a vida novamente, depois que o mundo de meu próprio idioma se derrubou e que o meu lar espiritual, a Europa, se autodestruiu. Mas, depois de cumprir sessenta anos, fazem falta forças para começar totalmente de novo. E as minhas estão esgotadas, depois de tantos anos a errar sem pátria. Por isso considero melhor cerrar em seu devido tempo e com uma alta atitude uma vida que o trabalho intelectual e a liberdade pessoal me deram as maiores alegrias e me parecem o mais elevado bem desta terra. Saúdo a todos os meus amigos. Oxalá cheguem a ver a aurora depois desta larga noite. Eu, excessivamente impaciente, me adianto a todos eles. “Declaração”, STEFAN ZWEIG (Petrópolis, 22/02/1942)
 
 
O autor é um dos colaboradores deste livro sob a coordenação da Casa Stefan Zweig e do Laboratório de Estudos Judaicos da Universidade Federal de Uberlândia, Rio de Janeiro: Passaredo Edições, 2024,  294 p.

 
Nas memórias que começou a conceber desde sua saída apressada da Áustria, depois que Hitler alcançou o poder na Alemanha, mas que só foram terminadas por ocasião de sua vinda definitiva para o Brasil, Stefan Zweig descreve seus sentimentos ao atravessar o Atlântico em 1936, a partir da Inglaterra, onde se encontrava exilado desde 1934:
Era apenas com o meu corpo, e não com toda a minha alma, que eu vivia na Inglaterra naqueles anos. E foi justamente a preocupação que me causava a Europa, essa angústia que pesava dolorosamente sobre os nervos, que me fez viajar bastante, e mesmo atravessar duas vezes o oceano, durante os anos que se estendem da tomada do poder por Hitler e o começo da Segunda Guerra Mundial. Eu estava impulsionado talvez pelo pressentimento de que era necessário me abastecer de impressões e de experiências, tantas quanto o coração poderia conter, enquanto o mundo permanecia aberto e que ainda era permitido aos barcos navegar tranquilamente pelos mares, talvez mesmo pela suspeita ainda muito vaga de que o nosso futuro, o meu em especial, estava além dos limites da Europa. Uma sequência de conferências nos Estados Unidos me ofereceu a oportunidade desejada de ver, de leste a oeste, de norte a sul, esse grande país em toda a sua diversidade, combinada, entretanto, a uma profunda unidade. Mas, talvez ainda mais forte foi a impressão que me deu a América do Sul, na qual aceitei de boa vontade participar de um congresso convidado pelo P.E.N.-Club Internacional: nunca antes me pareceu tão importante quanto esse momento de fortificar o sentimento da solidariedade espiritual acima das fronteiras dos países e das línguas (1993, p. 461).”
Sua primeira estada na América do Sul, com uma curta passagem pelo Rio de Janeiro, entre o final de agosto e o início de setembro, foi relatada numa coleção de impressões de viagem que o próprio Zweig publicou separadamente ao retornar à Inglaterra no outono de 1936. Zweig concebeu escrever um livro sobre o Brasil logo depois dessa primeira passagem pelo país, a caminho de Buenos Aires. Elas foram reunidas em 1937 e publicadas numa editora vienense com vários outros textos do autor: Begegnungen mit Menschen, Büchern, Städten (Encontros com homens, livros, cidades). Em 1981, foram novamente reunidas na coletânea Länder, Städte, Landschaften (Países, cidades, paisagens). 
Zweig já estava, então, planejando escrever um livro mais alentado sobre o Brasil e por isso recusou, no final de 1937, uma proposta de seu editor brasileiro, Abraão Koogan, para publicar uma edição traduzida, o que não se realizou de imediato. Ainda assim, Koogan juntou os relatos a outros textos do livro Begegnungen e publicou-a em 1938, numa edição uniforme de sua obra, sob um título similar: Encontros com homens, livros e países. Apenas oitenta anos depois de sua primeira viagem ao Brasil, os textos foram novamente publicados sob o título de Kleine Reise nach Brasilien, traduzido e publicado como Pequena viagem ao Brasil (2016). Vários trechos da Pequena viagem foram de fato incorporados ao País do futuro, que se beneficiou, assim, daquele projeto inicial necessariamente sintético, dada a brevidade de sua passagem em 1936, numa travessia atlântica durante a qual também começou a escrever a biografia de Fernão de Magalhães, na epopeia da primeira volta ao mundo (obra terminada e publicada em 1937). 
A primeira estada de Zweig no Brasil se dá, portanto, sob o governo constitucional de Getúlio Vargas – eleito em 1934 pela Assembleia Constituinte –, mas já depois da Intentona Comunista de novembro de 1935, sob a vigência da Lei de Segurança Nacional, e dois anos antes das eleições previstas para 1938, quando deveria ser eleito, por voto direto e secreto (pela primeira vez), o próximo presidente. Zweig certamente tomou conhecimento do golpe do Estado Novo, em novembro de 1937, por acaso o mesmo nome já adotado pela ditadura portuguesa quase dez anos antes, na esteira de diversos outros regimes autoritários, geralmente de direita, que estavam se multiplicando na Europa e na América Latina. Já estabelecido na Inglaterra desde 1934, quando fugiu apressadamente de Salzburg, Zweig teve o “privilégio” de ter os seus livros queimados pelos nazifascistas duas vezes: em 1933, em Berlim, e novamente na Áustria em 1938, depois do Anschluss, a anexação ao Terceiro Reich. 
Terrivelmente angustiado desde a traição de Munique, em setembro daquele ano, quando Chamberlain “entrega” a Boêmia tchecoslovaca à Alemanha, Zweig providencia sua naturalização britânica e se casa com sua secretária Charlotte, para dar a ela, igualmente, a proteção da nova cidadania. Com o início da guerra, ele é assimilado a um alien enemy na Inglaterra, e obrigado a apresentar-se regularmente à polícia. Com a invasão da Bélgica e da França, em 1940, o casal decide rapidamente mudar-se para o Brasil, depois de uma curta passagem pelos Estados Unidos, onde Zweig se encontra com sua primeira mulher, Friderike, e termina sua prometida obra sobre o Brasil, lançada em diversas línguas em 1941. Os manuscritos de uma biografia não terminada de Balzac, em alemão, ainda ficam retidos na alfândega britânica, para possível inspeção de segurança (ele só os receberia bem mais tarde). A estada na pequena casa alugada em Petrópolis foi extremamente breve, de setembro de 1941 a fevereiro de 1942, quando ele decide dar cabo da vida, no que é seguido por Lotte, ambos por meio de barbitúricos. 
 
A emergência do livro sobre o “país do futuro” 
 
Entre 1936, quando decidiu escrever um livro sobre o Brasil – talvez já imaginando um futuro segundo exílio, dadas as ameaças crescentes de guerra na Europa –, Zweig teve tempo de ler bastante sobre o país de seu derradeiro refúgio. Tomou o seu tempo para se informar um pouco mais sobre a terra que ele imaginava livre das “deformações” das velhas civilizações europeias, contaminadas cada vez mais pelo bacilo da intolerância e do autoritarismo, duas novas pestes negras que ele temia ainda mais do que a terrível experiência da Grande Guerra, quando a maior parte dos contendores entraram quase “alegremente” num conflito que imaginavam de curta duração, todos eles empurrados por um outro bacilo que ele julgava detestável, o do nacionalismo extremado. Aliás, foi na sua nova curta estada, definitiva, no Brasil, que ele terminou suas memórias, voltadas em grande parte para o ambiente da Europa pré-Grande Guerra, que ele intitulou O Mundo de ontem (Die Welt von Gestern, 1944). 
O Estado Novo varguista já tinha revelado todo o seu furor anticomunista, aliás com fortes tinturas fascistas, quando ele se instalou não no Rio de Janeiro, mas na pacata Petrópolis, provavelmente para se evadir do assédio da imprensa e poder se dedicar às suas biografias, Balzac e Montaigne. Zweig preferiu não adentrar na política doméstica, o que seria, de toda forma, um percurso na corda bamba, tantas eram as informações contraditórias que ele recebia de seus editores e amigos brasileiros sobre a “direitização” que se operava no cenário político doméstico, com candidatos nas eleições anuladas de 1938 forçados a um exílio indesejado e uma censura cada vez mais onipresente, sob a tutela do poderoso DIP varguista, o Departamento de Imprensa e Propaganda (não exatamente uma reprodução da máquina de Goebbels, mas vinculado ao mesmo espírito repressivo). Daí que Brasilien, ein Land der Zukunft fosse uma obra desigual e diferente de toda a sua produção anterior: nem um livro de viagem, como as crônicas de 1936 – embora essa parte “turística” também figurasse na nova obra –, nem uma obra de ficção, no estilo das muitas novelas e biografias romanceadas que ele havia elaborado abundantemente ao longo dos anos 1920 e 1930, nem uma obra analítica ou de história dessa nação relativamente jovem, comparada às velhas civilizações europeias, várias delas decadentes, ou já entradas no retrocesso forçado dos autoritarismos do entreguerras. O Brasil do Estado Novo lhe parecia uma versão mais benevolente, colorida e tolerante, do que os sombrios regimes que proliferavam na Europa central, especialmente na sua pátria e na Alemanha nazista. 
Alberto Dines, biógrafo insuperável, autor da biografia Morte no paraíso (1981), considerou essa obra a “biografia de uma nação”, como ele escreveu no seu ensaio analítico, que introduziu o seminário realizado pelo Fórum Nacional, comemorativo dos 65 anos de sua primeira publicação, coordenado por João Paulo dos Reis Velloso e Roberto Cavalcanti de Albuquerque: Brasil, um país do futuro? (2006, p. 13). Esse ensaio de Dines é muito rico em arguições e argumentos sobre esse livro “diferente” do escritor austríaco, mais citado do que lido pelos brasileiros e pelos estrangeiros que conhecem sua obra literária e biográfica. 
Aliás, o seu livro de memórias, que ele febrilmente terminou de escrever no Brasil, já previsivelmente programando sua despedida do “mundo de ontem” e antecipando um outra despedida, a do terrível mundo do futuro que se anunciava sombrio – quando Hitler parecia vencer a União Soviética, depois de ter completamente humilhado a França, constitui uma grande obra-testemunho de uma época de preeminência burguesa que ele imaginava já total e definitivamente enterrada sob as botas nazistas, sob o fragor dos tanques, o furor dos canhões e o terror dos bombardeios. Deprimido pelo horror do antissemitismo de Estado, pelo segundo suicídio de sua Europa da belle époque, ele termina de escrever uma “Declaração” final na manhã de Carnaval em que decidiu encerrar sua derradeira estada no “paraíso”. 
Ainda assim, é surpreendente que ele tenha conseguido fazer um livro tão otimista sobre o país que o acolheu generosamente, com todas as homenagens a que tinha direito – mas das quais procurava fugir o máximo possível, ao mesmo tempo em que preenchia as páginas manuscritas de suas recordações sobre a Viena de antes de 1914, seguidas dos registros sobre a ascensão de um nacionalismo ainda mais agressivo da Deutschland über alles dos tempos de Bismarck e de Wagner. Como ele escreveu num dos capítulos de O Mundo de Ontem, os três anos que sucederam ao desaparecimento do Império austríaco, de 1919 a 1921, ele viveu “enterrado em Salzburg, renunciando já, para dizer a verdade, à esperança de jamais rever o mundo” (1993, p. 358). 
Os últimos parágrafos de suas memórias se referem à declaração de guerra da Grã-Bretanha à Alemanha, poucos dias depois da invasão da Polônia, quando ele pressentiu que deveria de novo partir em exílio: “Eu fui ao meu quarto e enfiei minhas coisas numa pequena mala. Se as previsões de um dos meus amigos, que ocupava uma posição elevada, se confirmassem, os austríacos na Inglaterra seriam assimilados aos alemães e deveriam esperar as mesmas restrições de sua liberdade” (p. 504). Tudo pelo que ele tinha lutado estava novamente destruído: “Minha tarefa a mais íntima, à qual eu tinha consagrado durante quarenta anos toda a força de minha convicção, a federação pacífica da Europa, estava liquidada” (p. 505). Terminando suas memórias no Brasil, ele descreve no parágrafo final, seu último passeio na Inglaterra, antes de partir para os Estados Unidos:
O sol brilhava, vivo e inteiro. Ao me retornar, observei repentinamente uma sombra diante de mim, como eu havia visto a sombra de uma outra guerra atrás da guerra atual. Ela não me abandonou desde então, essa sombra da guerra, ela cobriu de luto cada um de meus pensamentos, de dia e de noite; talvez a sua silhueta sombria também apareça nas páginas deste livro. Mas, toda sombra, em última instância, é também filha da luz, e somente aquele que conheceu a claridade e a escuridão, a guerra e a paz, a grandeza e a decadência, viveu verdadeiramente (p. 506)
Naquele mês de setembro de 1939, ele deveria ter ido a Estocolmo, para novo encontro do P.E.N. Club, para o qual tinha recebido um convite, como membro honorário – uma vez que ele já não tinha mais pátria –, e havia inclusive comprado passagem de navio. O roteiro, no entanto, foi bem diferente, do outro lado do Atlântico, primeiro na América do Norte, depois em direção ao Brasil. Ele sabia o que era a guerra, e esperava dela escapar, ao menos fisicamente, viajando para aquela terra que ele imaginava acolhedora e totalmente alheia aos problemas da velha Europa. Terminou de escrever o seu livro sobre o país do futuro em Nova York e o expediu aos seus diversos editores em vários países. Foi assim que surgiu, planejado longamente, mas finalmente improvisado entre duas etapas de viagem, o seu livro “otimista”, que marcou ambiguamente a imagem do Brasil no mundo. O título, a despeito do condicional ein Land, “um” país, e não “o país”, acabou se convertendo numa cruel ironia com a nação que se esforçou, continuamente, por desmentir seu autor, tanto quanto os próprios brasileiros. 
 
O contexto da escrita e da publicação do país do futuro 
 
Brasil, um país do futuro é um livro singular no conjunto da obra de Zweig. Pretendeu ser uma apresentação didática sobre o Brasil e ao mesmo tempo uma homenagem sincera ao país que o acolheu tão generosamente, em meio a uma guerra ainda mais catastrófica do que o conflito global precedente, que ele havia presenciado na Europa, mas que ele não quis tratar em profundidade em seu livro de memórias, O mundo de Ontem, que se refere, na verdade aos anos que precederam à Grande Guerra. Zweig, um pacifista visceral e radical, acreditava ter encontrado no Brasil um país profundamente devotado à paz. 
À diferença de suas outras obras, não tanto as novelas, que são textos de pura literatura, mas sobretudo as biografias de personagens famosos, ou angustiados, como ele, o livro que ele dedicou ao Brasil é um trabalho de circunstância, meio relato de viajante, meio interpretação pessoal de uma terra em tudo diferente do que ele havia vivido até então, na “sua” Europa da cultura clássica, dos grandes pensadores, da arte nas suas mais diversas expressões, mas também um continente dividido pelas paixões guerreiras, que tinha se dilacerado a si mesmo em incontáveis batalhas feudais, em conflitos entre as grandes potências da era moderna e contemporânea, em guerras civis e de religião de todas as épocas. 
Zweig realmente gostava do Brasil, e não apenas por ser sua terra de exílio, mas por ser uma realidade que não existia em nenhuma outra parte do mundo, a mistura de cores, de etnias, de religiões, o sincretismo natural de seus habitantes, e aquela flexibilidade de costumes e de modos de vida que ele nunca tinha encontrado na rigidez social da Europa central e nas nítidas sobrevivências das estruturas estamentais do Antigo Regime, ainda bem visíveis na maior parte do velho continente. Por isso, ele lança um olhar simpático aos cenários, paisagens naturais e humanas, aos comportamentos que ele observava no Rio de Janeiro, em São Paulo, nas costas do Nordeste, em todos os lugares por onde andou, não apenas nas casas e prédios elegantes das capitais, mas também nas favelas, nos subúrbios, na pobreza do interior entre uma fazenda e outra de grandes proprietários. Assistiu a muitas festas e folguedos populares, e talvez tenha sido simbólica sua despedida do mundo em pleno Carnaval do Rio de Janeiro, mas em Petrópolis, seu último refúgio de uma vida bem vivida, entre os sucessos da produção literária e as homenagens que recebia, onde quer que ele fosse. 
O livro não se pretendia apenas um retrato do presente, aquele que ele via, e um retorno ao passado, do que ele pôde ler sobre nossa história e desenvolvimento, mas era também uma aposta sobre o futuro, daí o seu título ao mesmo tempo otimista e afirmativo. As traduções do título – Brasilien, ein Land der Zukunft – em português hesitaram durante muito tempo entre o “país de futuro” ou o “país do futuro”, a primeira opção sendo uma promessa, a segunda quase uma certeza. Sim, ele previa um futuro otimista para o Brasil, o fim das favelas, a mescla de raças produzindo uma nação quase sem conflitos sociais, uma quase beleza na pobreza e até na miséria, a alegria dos carnavais escondendo as durezas da vida no resto do ano. Inevitável, ainda que não buscada diretamente, a comparação com os padrões civilizatórios europeus, e até com uma geografia menos castigada, no velho mundo das vastas planícies, na confrontação com a vastidão de ermos desconhecidos no Brasil não atlântico. 
Não é um guia de viagem, embora seja basicamente um livro de um viajante, mas uma obra interpretativa da alma do Brasil, ou pelo menos aquele espírito que ele buscou ver, e acreditou ter encontrado, em todas as pessoas com as quais conversava, burgueses e fidalgos da terra, e até em homens e mulheres do povo, que ele buscou entender a partir de uma postura preventivamente simpática ao povo que o acolheu, no país que foi sua última morada, a fase mais angustiada de sua vida, esperança perdida de ver sua terra natal retornar aos tempos anteriores à Grande Guerra. Oitenta anos depois de ter sido escrito e publicado rapidamente, vale retornar ao Zweig do “país de/do futuro”, para ver que tipo de país emergiu de sua visão generosa para com nossas qualidades e defeitos. 
Ao apresentar o livro ao público brasileiro, seis meses antes do suicídio de Zweig e de sua segunda mulher, Lotte, o prefaciador Afrânio Peixoto, membro da Academia Brasileira de Letras desde 1910, reitor da Universidade do Distrito Federal desde 1935, descreveu o escritor austríaco como um “namorado de nossa terra e de nossa gente” (1941, p. 9). Deteve-se no que era bem conhecido: livros editados em seis e mais línguas, alguns em dezoito idiomas: “É o escritor mais impresso, mais adquirido e mais lido do mundo: ensaios, biografias romanceadas, ficção pura.” Enalteceu seu espírito ameno e cativante: “O autor é um encanto de convivência, de conversação, de simplicidade: ternura e poesia.” (p. 9) 
Refere-se, sem mencionar o ano (1936), à sua passagem pelo Rio de Janeiro, a caminho da Argentina, para um congresso internacional do P.E.N. Club:
... aqui esteve, sem ruído, no Brasil. Aqui não foi ao Catete, nem ao Itamaraty [Afrânio se engana; ele foi, sim, ao Itamaraty, convidado pelo chanceler Macedo Soares], nem às embaixadas, nem à Academia, nem ao DIP [Departamento de Imprensa e Propaganda do governo Vargas], nem aos jornais, nem aos rádios, nem aos Hotéis-palaces... Andou, virou, passeou, viajou, viveu. Não quis nada, nem condecorações, nem festas, nem recepções, nem discursos... Não quis nada. A Bahia desejou ser vista por ele e convidou-o. Ficou comovido, mas pôs condição: nem ajuda de custo, nem hospedagem oferecidas, nem recepção, conferência, nada. Gostava do Brasil, gostaria da Bahia, não queria mais. Queria ver, sentir, pensar, escrever, livremente... (p. 10)
Afrânio Peixoto interpreta que foi dessa primeira viagem que saiu o seu único livro dedicado a um país, publicado quando para cá se mudou definitivamente:
De tudo, este livro, este grande livro, livro de amor presente e esperança futura que sai em imensas edições, na América [do Norte], na Inglaterra, na Suécia, na Argentina, em francês e em alemão também – seis de uma vez, a menor, a brasileira... (p. 10)
O acadêmico sintetiza, então, o espírito da obra:
É o mais ‘favorecido’ dos retratos do Brasil. Nunca a propaganda interesseira, nacional ou estrangeira, disse tanto bem do nosso país, e o autor, por ele, não deseja nem um aperto de mão, nem um agradecimento... Amor sem retribuição. Amor de caboclo supercivilizado: a namorada vai saber agora e ficará confusa de tanto bem querer. Ele, porém, já partiu... Deixou apenas esta declaração. Declaração de envaidecer à formosura mais presumida. Os ‘pátria amada’, os ‘ufanistas’ ficarão de cara à banda, pois ninguém até hoje escreveu livro igual sobre o Brasil... O amor faz desses milagres. Se ele fosse político, ou diplomata, ou economista, ficar-se-ia perplexo; a explicação é só esta, Stefan Zweig é poeta: é hoje o maior poeta do mundo, poeta com ou sem versos, mas com poesia, sentida, vivida, escrita pelo mais suave prosador do mundo... (p. 10-11)
Ao encerrar seu prefácio, em julho de 1941, Afrânio Peixoto provavelmente esperava levar Zweig para uma conversa com seus pares escritores na Academia Brasileira de Letras, ele que já tinha sido presidente da Casa de Machado de Assis, em 1923. Não o conseguiu: Zweig refugiou-se em Petrópolis, na casa que é hoje o seu museu, uma casa de cultura, uma homenagem construída por um de seus biógrafos mais brilhantes, Alberto Dines, que dedicou uma obra excepcional ao grande escritor: Morte no Paraíso: a tragédia de Stefan Zweig (1981; 2004). Dines era um garoto de oito anos em meio a dezenas de outros, numa foto feita na escola progressista Sholem Aleichem, da comunidade judaica do Rio de Janeiro, quando da visita de Zweig, no momento em que o escritor pensava justamente em ultimar seu livro dedicado ao Brasil. Seu suicídio deve tê-lo abalado antes da adolescência, a ponto de ter motivado Alberto Dines a escrever, mais tarde, uma das suas melhores biografias. 
 
Brasil, um país que faltou ao futuro? 
 
Em 2006, por ocasião do 125º aniversário do nascimento de Zweig e dos 65 anos da publicação do seu livro, em 1941, Alberto Dines organizou um debate em torno dessa obra, objeto, logo em seguida, da publicação já referida: Brasil, um país do futuro? Zweig teria gostado de assistir ao seminário e talvez concordasse com o artigo indefinido e talvez até com o ponto de interrogação. A primeira edição brasileira tinha modificado o título original – Brasilien, ein Land der Zukunft, não das Land – e o colóquio de 2006 agregou a condicionalidade, refletindo o ceticismo dos examinadores quanto à utopia não realizada. 
No essencial, Zweig provavelmente se alinharia aos argumentos dos seus revisores brasileiros. 
Alberto Dines considerou no debate que Zweig, depois de assinar mais de quarenta biografias de personalidades mundiais, fez a biografia de uma nação, no “inferno do Estado Novo”. Como ele diz, essa obra “tornou-se a crônica mais conhecida e a menos discutida, a mais celebrada e mais negligenciada” do Brasil. Ela foi um dos primeiros lançamentos simultâneos da história editorial mundial: oito edições em seis línguas. 
Bolívar Lamounier e Regis Bonelli examinaram, respectivamente, os avanços políticos e econômicos obtidos pelo Brasil desde que Zweig traçou seu diagnóstico sobre o Brasil do início dos anos 1940. Para Lamounier, o Brasil é um país de “muitos futuros”, mas ele critica as utopias institucionais que frequentemente pretendem revolucionar a participação e as formas de se fazer política no país: a romântico-participativa da democracia direta, a do parlamentarismo clássico que ressurge sempre em momentos de crise e a utopia barroca do presidencialismo plebiscitário. Já Bonelli opera uma “volta para o futuro” ao examinar os elementos de continuidade e de mudança na esfera econômica: o Brasil certamente mudou muito, nesse terreno, mas a propensão a esperar tudo do Estado permanece, assim como uma certa desconfiança dos mercados externos. Algumas mudanças foram na direção errada, como o aumento na tributação, outras permanências são irritantes, como a péssima distribuição de renda e as incertezas jurídicas. 
Boris e Sérgio Fausto acrescentaram um ponto de interrogação ao título de Zweig, temperando o otimismo do autor com certa dose de pessimismo. Não se tratava do niilismo da esquerda, que vê na “dominação imperialista” a razão do nosso atraso. O duplo nó górdio da carga tributária e do gasto público limita as possibilidades de crescimento.
João Luís Fragoso analisa a “equação” de Zweig para o Brasil: concentração de poder + tolerância. Três comentários finais trataram das promessas não cumpridas de um olhar estrangeiro, do futuro que já chegou sob a forma da votação eletrônica e das dificuldades para a retomada de taxas razoáveis e sustentáveis de crescimento. 
Dez anos depois, já ocupando o cargo de diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do Itamaraty, tomei a iniciativa de organizar um evento em sua homenagem, aos 80 anos de sua primeira visita ao Brasil, justamente quando foi publicado no Brasil seu breve relato de viagem: Pequena Viagem ao Brasil. Contatei a Casa Stefan Zweig, de Petrópolis, e sua diretora, a tradutora Kristina Michahelles, ofereceu-me um programa ainda melhor: o lançamento da primeira edição internacional – em diversas línguas – da conferência que Zweig havia feito no Rio de Janeiro em 1936, numa bela edição preparada por Israel Beloch e prefaciada por Celso Lafer: A unidade espiritual do mundo, novamente traduzida a partir do manuscrito sobre a “unidade espiritual da Europa”, que Zweig tinha deixado com o chanceler Macedo Soares, na própria Escola Nacional de Música, onde havia sido feita sua memorável palestra (depois expandida em Buenos Aires em 1940). 
O texto, resgatado de um injusto esquecimento foi publicado em 2017 pela Casa Stefan Zweig e pela editora Memória Brasil, em cinco línguas (alemão, francês, espanhol, inglês e português), com colaborações de Alberto Dines, Klemens Renoldner e Jacques le Rider, e uma belíssima iconografia. Celso Lafer fez uma palestra baseada em grande medida em seu texto constante do livro e a diretora Kristina Michahelles exibiu um excelente documentário sobre o personagem e sua casa brasileira, transformada em museu graças ao grande jornalista que foi Alberto Dines. 
Mas, o que poderia ser dito do destino do “fatídico” livro sobre o “país do futuro”? Pouco apreciado pelos intelectuais engajados na “interpretação científica” do Brasil, caracterizada por rigorosas metodologias de pesquisa empírica, o livrinho de ocasião permaneceu numa espécie de limbo durante largos anos, jamais revisitado, a não ser por referências puramente anedóticas, ou até irônicas. Mais de 80 anos desde sua publicação original e da infausta morte do grande escritor, talvez seja chegada a hora de oferecer novas análises sobre essa obra muito falada, mas hoje praticamente desconhecida. 
Não se trata de render-lhe uma tardia homenagem, mas de avaliar o esforço analítico de alguém que buscou, sinceramente, traçar um panorama simpático do país que lhe aparecia como uma espécie de síntese viva da diversidade racial, da mistura étnica, da conjunção de culturas, da tolerância religiosa e do pacifismo bem resolvido, características que ele não mais encontrava no seu continente de origem, certamente não naquele momento de desespero em face da destruição, das mortes e da aniquilação do seu próprio povo sob as botas, fuzis, metralhadoras e gases dos totalitários doentios. Instalado precariamente neste canto do planeta, ainda em paz naqueles meses, ele certamente esperava muito mais do Brasil em seu futuro imaginado, em termos de realizações sociais e culturais, sobretudo na eliminação da pobreza, na diminuição das desigualdades sociais e regionais, no virtual desaparecimento das favelas, permitindo uma prosperidade ampliada no país que o acolheu definitivamente. 
Talvez seja o caso de nos desculparmos, postumamente, por não termos conseguido materializar, nas décadas posteriores à sua morte, as esperanças do escritor no tocante ao futuro de sua pátria de adoção, ainda que por brevíssimo tempo. Ficou, de toda forma, esse registro de um pensador humanista como possível sugestão ao desenho de um projeto de construção de uma nação integrada, um país mais justo e, sobretudo, mais conforme ao seu ideal racional, expressa na primeira vez em que aqui esteve, com respeito à unidade espiritual do mundo. Valeu Stefan, muito grato a você, por ter dedicado seu empenho intelectual numa interpretação simpática do seu derradeiro país de eleição. 
 
* Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas (1984), Mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia (1977), e diplomata de carreira desde 1977. Foi professor no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília, diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), de 2016 a 2019. De 2004 a 2021 foi professor de Economia Políticaa nos programas de pós-graduação em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). É diretor de Relações Internacionais do Instituto Histórico e Geográfico do Districo Federal. Publicou diversas obras de relações econômicas internacionais, de política externa do Brasil e de história diplomática.
 
 
REFERÊNCIAS 
 
 
Beloch, Israel (org.) (2017). A Unidade Espiritual do Mundo; Petrópolis-Rio de Janeiro: Casa Stefan Zweig; Memória Brasil; prefácio de Celso Lafer. 
 
Dines, Alberto (1981). Morte no Paraíso: a tragédia de Stefan Zweig; Rio de Janeiro: Rocco; 3ª ed.: 2004. 
______ (2006). “A invenção do paraíso no inferno do Estado Novo”, in: Reis Velloso, João Paulo dos; Albuquerque, Roberto Cavalcanti de (2006). Brasil, um país do futuro? Rio de Janeiro: José Olympio, p. 11-25. 
 
Peixoto, Afrânio (1941). Prefácio a Brasil, país do futuro. Rio de Janeiro: Guanabara; tradução Odilon Galloti; edição eletrônica: Ridendo Castigat Mores, 2001. 
 
Reis Velloso, João Paulo dos; Albuquerque, Roberto Cavalcanti de (orgs.) (2006). Brasil, um país do futuro? Rio de Janeiro: José Olympio. 
 
Zweig, Stefan (1941). Brasil, país do futuro. Rio de Janeiro: Guanabara; edição eletrônica: Ridendo Castigat Mores, 2001. 
______ (1981). Brasil, país do futuro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; prefácio de Alberto Dines; tradução de Kristina Michahelles. 
 ______ (1993). Le Monde d’hier: Souvenirs d’un Européen; Paris: Belfond; nova edição francesa por Serge Niémetz, a partir de: Die Welt von Gestern, Estocolmo: Bermann-Fischer, 1944. 
 ______ (2016), Pequena Viagem ao Brasil. Rio de Janeiro: Versal; tradução de Petê Rissatti; organização do projeto: Heike Muranyi.