sábado, 19 de agosto de 2023

Minha mãe e seu conto humorístico


Por Francisco José dos Santos Braga
Estação Ferroviária de César de Pina (1923-2023)

Foi reinaugurada no dia 1º de julho p.p. a Estação Ferroviária de César de Pina, que no passado foi uma parada obrigatória do trem de bitola estreita da E.F.O.M., designado com o apelido carinhoso de "Trenzinho das Águas Santas", que partia de São João del-Rei, passava sobre o (primeiro, ainda existente) pontilhão do Ribeirão Água Limpa e seguia para Estação Chagas Dória no bairro de Matosinhos; daí tomava a linha do ramal das Águas Santas, passando sobre o (segundo, demolido) pontilhão do Rio das Mortes, ramal este inaugurado em 21 de agosto de 1911 e desativado juntamente com a Estação de César de Pina em 1966. 
 
Pontilhão sobre o Ribeirão Água Limpa no Km 96 em Matosinhos- Crédito: https://i.ytimg.com/vi/JxUEBZGRMlc/maxresdefault.jpg

Trem turístico atravessando o Pontilhão do Ribeirão Água Limpa - Crédito: Renan Carvalhais



Pontilhão sobre o Rio das Mortes (sem corrimão para proteção lateral) - Crédito: Águas Santas, memórias em nossos corações, por Maria do Carmo Lopes de Oliveira Braga, 2019, p. 91


Base que restou do pontilhão demolido sobre o Rio das Mortes - Crédito: Carlos Fernando dos Santos Braga
 
A inauguração dessa Estação, com o nome popular de "Chacrinha", se deu em 1923; após inaugurada, recebeu o nome oficial de "César de Pina", em homenagem ao engenheiro da Rede Ferroviária, Augusto César de Pina.
 
 
Hoje tanto a comunidade de César de Pina quanto o balneário das Águas Santas, apartados do centro de Tiradentes, cidade à qual pertencem, apresentam ainda grande potencial turístico, pois, além da estância hidromineral, dispõem de um artesanato de primeira qualidade, potencial para ecoturismo e turismo rural.
 
No começo do século XX, a E.F.O.M. justificava a construção daquele ramal de 11,8 quilômetros de extensão, pelas seguintes razões: ligar São João del-Rei à entrada do balneário Estação Águas Santas e escoar a produção agrícola local, especialmente impulsionada pela instalação dos imigrantes italianos na Colônia do Marçal, em São João del-Rei. 
 
Esta saudosa linha foi criada especialmente para atender a clientela que buscava o destino final das Águas Santas ou uma de suas nove "paradinhas" de todo o itinerário, a saber: paradas do Portão, do Neves (antes do Pontilhão do Água Limpa), do Cascalho (após o Pontilhão do Rio das Mortes), do Brighenti, do Giarola, do Batista, da "Chacrinha", do João Pio e do Juca Vieira. Com exceção da "Chacrinha", essas paradas eram não obrigatórias e deviam ser solicitadas ao maquinista. Em terminologia geográfica, a locomotiva partia da Estação Ferroviária de São João del-Rei, atravessava o Ribeirão Água Limpa e o Rio das Mortes, percorria toda a Várzea do Marçal até alcançar o Rio Carandaí, no município de Tiradentes, onde percorria todo o bairro das Águas Santas, para chegar a seu destino final, a Estação Ferroviária de Águas Santas.
 
Estação Ferroviária de Águas Santas (foto datada de 1956), inaugurada em 1911, tendo funcionado até 1966 - Crédito: José Antônio de Ávila Sacramento - Link: http://www.oestedeminas.org.br/2010/01/o-trem-das-aguas-efom.html

 
 
Rotunda da Estação das Águas Santas - Crédito: Carlos Fernando dos Santos Braga


Estaçoes Ferroviárias de Águas Santas e Chagas Dória no bairro são-joanense de Matosinhos, respectivamente fim e início da linha do ramal das Águas Santas - Crédito: Carlos Fernando dos Santos Braga

 
Essa cerimônia de reinauguração da Estação de César de Pina foi uma excelente oportunidade de revermos minha esposa Rute Pardini e eu, bem como meu irmão Carlos Fernando e sua esposa Maria do Carmo, a edificação do entorno, onde minha saudosa mãe, Celina dos Santos Braga (⭐︎ 23/01/1928 ✞ 29/05/2014), em 1945 e 1946, recém-formada normalista do Colégio Nossa Senhora das Dores, pôde proporcionar às crianças daquela comunidade rural o letramento e o acesso aos rudimentos das ciências, letras e artes. 
 
Era com grande orgulho que ela enchia o peito para dizer: "Durante meu curso de normalista, fui aluna do Prof. Domingos Horta, em Língua, Literatura Portuguesa e História, que, além de professor, foi paraninfo de minha turma de 1944. Também integrei o coral do Maestro Ten. João Cavalcante, meu professor de Música. Sob a sua regência, cantei o Glória de Vivaldi."
 
Durante sua atividade docente na comunidade de César de Pina, fez grande amizade com os Longatti, residentes nas proximidades da Estação, que lhe eram tão simpáticos a ponto de  convidá-la para ser madrinha de Amélia Longatti, uma menina daquela família de imigrantes italianos.
 
Sua experiência de professora rural de crianças foi muito curta, porque, no início do ano de 1947, se casou com meu pai, Roque da Fonseca Braga (⭐︎ 15/04/1918 ✞ 26/09/1984), o que a levou a abandonar o emprego para dedicar-se a educar sua própria prole de oito filhos, o que fez com muito carinho, sensibilidade e conhecimento de causa como educadora.
 
Ela, como já tratei em outra memória, costumava reunir a seu redor sua turminha para lhe ler alguma página imortal. 
 
Certa feita, folheando as páginas da antologia intitulada "Maravilhas do conto humorístico", publicado pela Editora Cultrix em 1959, localizou para ler-nos o conto indigitado com o título "Tudo vai sem novidade", da autoria do autor lisbonense Gervásio Lobato, que nasceu em Lisboa em 1850, tendo também aí falecido em 1895. Romancista, dramaturgo, jornalista, contista, tradutor e professor de declamação, ele teve como obra mais emblemática a novela “Lisboa em Camisa”, levada às telas de cinema em 1960 por Herlander Peyroteo.
 
Nós, seus filhos, escutávamos atentos, em silêncio, nossa mãe, embora nos escapasse às vezes o sentido de alguma palavra ainda desconhecida.
 
Hoje, decorridos mais de sessenta anos, não me é difícil sonhar que a ouço ainda fazendo aquela leitura, e penso quão ditosa foi minha infância por ter a mãe prendada que tive, senhora de uma educação esmerada e amorosa com todos os seus oito filhos. 
 
Eis a sua leitura bem humorada da célebre página do autor lusitano:
 
Tudo vai sem novidade
Por Gervásio Lobato
 
Os interlocutores são um morgado ¹ do Alentejo, que estava a gozar os rendimentos em Lisboa e um criado lá da sua herdade de Alter do Chão. O morgado, que já há tempo não tinha carta da terra nem notícias de seus pais, encontrou, uma manhã, na Praça do Comércio, embasbacado a ver render a guarda, o seu criado. 
 
— Olá! Tu por aqui, Tibúrcio? 
— Ah! O meu patrão! 
— Então vens a Lisboa e não me procuras? Não vens logo a minha casa? 
— Ora essa!... Então não havia de lá ir? 
— Pois sim, mas não foste. 
— Ia já lá... 
— Chegaste agora mesmo? 
— Não, senhor; cheguei ontem e, desde que cheguei que estou para ir lá já... 
— Então como está tudo por lá? 
— Tudo bom, muito obrigado. 
— Meu pai, minha mãe, a casa? 
— Tudo bem, sem novidade. 
— E o meu cavalo ruço... o Janota? 
— Ah! É verdade; esqueci-me de dizer-lhe; esse é que não tem lá passado muito bem. 
— Ah! Sim! O que tem ele? Está doente? 
— Não, senhor. 
— Ah! Meteste-me um susto! Um cavalo que me custou 50 libras! — Não, senhor; não está doente. Morreu! 
— Morreu?! 
— Sim, senhor; mas o mais vai sem novidade. 
— Morreu? Mas ele não estava doente... Morreu de algum desastre? — Não, senhor. 
— Qual desastre! Então? 
— Morreu no fogo, que houve lá na cocheira. 
— Quê? Houve fogo na cocheira? 
— Sim, senhor; ardeu toda, e o pobre Janota, que estava lá dentro, foi-se também, coitadinho! 
— Mas como pegou fogo na cocheira? 
— Pegou da casa. 
— Da casa?! 
— Sim, senhor; a casa ardeu toda. 
— A minha casa ardeu toda? 
— Sim, senhor; e, por mais que fizéssemos, não foi possível impedir que o fogo passasse à cocheira. Mas o mais vai sem novidade... 
— Mas como foi que pegou fogo à casa? 
— Foi uma tocha, que caiu do tocheiro. 
— Uma tocha? 
— Sim, senhor; caiu uma tocha em cima do pano do caixão e foi tudo pelos ares. 
— Do caixão? Mas qual caixão? 
— O caixão, onde estava a defunta. 
— Qual defunta?
— A senhora sua mãe. 
— Minha mãe? Pois minha mãe morreu? 
— Morreu, sim senhor; mas o resto vai sem novidade. 
— Mas de que morreu minha mãe? 
— De desgosto, coitadinha! 
— De desgosto de quê? 
— Pela morte de seu pai. 
— Então meu pai morreu também? 
— Não, senhor; não morreu; matou-se. 
— Matou-se?! 
— Sim, senhor; enforcou-se. Mas o resto vai tudo sem novidade... 
— Meu pai enforcou-se?! 
— Sim, senhor. Quando lhe fizeram penhora a todas as fazendas e viu que estava arruinado, que estava a pedir esmola, foi a uma corda e zás! Mas o mais vai sem novidade, graças a Deus...
 
II. NOTA EXPLICATIVA
 
¹  Morgadio ou morgado se referia a um vínculo hereditário de terras, rendas ou outros utensílios, feito por um instituidor. Por extensão, o termo morgado passou a ser usado para designar o seu possuidor, como é o caso aqui neste conto de Gervásio Lobato. Estes bens assim herdados não podiam ser vendidos nem alienados; tampouco podiam ser suscetíveis de partilha, pertencendo apenas ao morgado ou herdeiro universal, geralmente um varão primogênito. 
O morgadio entrou na legislação portuguesa com as Ordenações Filipinas de 1603 e ainda existiram em Portugal até 1910. 
Uma das razões que levou à sua extinção foi o empobrecimento dos filhos não primogênitos. 

 
III. AGRADECIMENTO
 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas nesta crônica.

IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
BRAGA, Francisco José dos Santos: Minha mãe e seu cão chamado Veludo

PASSOS, Najla: Trem de Minas: mesmo atrasada, restauração da Estação César de Pina vai unir passado e futuro em Tiradentes, jornal Estado de Minas, coluna Notícias Gerais, edição de 1º/08/2020

13 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
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Rafael dos Santos Braga (pesquisador graduado em Filosofia pela UFSJ) disse...

Obrigado 👍

Benjamin Batista (fundador de diversas Academias de Letras na Bahia, presidente da Academia de Cultura da Bahia, showman e barítono de sucesso) disse...

Bravo!

Frei Joel Postma o.f.m. (compositor sacro, autor de 5 hinários, cantatas, missas e peças avulsas) disse...


Boa noite Francisco e Rute. Obrigado pelo e-mail de vocês! Felizes as famílias nas quais a mãe contava histórias para os seus filhos!!!! Paz e Bem!! f. Joel.

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Uma verdadeira bênção a senhora sua mãe na vida de todos vocês.
E interessante, a propósito, o registro literário.
Cumprimentos,
Cupertino

Aluizio Barros disse...

Foi com muito prazer que li o delicioso texto que você compartilha com os amigos. Obrigado.
Aluizio Barros

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Que beleza!
D. Celina e a formação intelectual dos filhos.

Geraldo Reis (poeta, membro da Academia Marianense de Letras e gerente do Blog O Ser Sensível) disse...

Muito obrigado, mestre! Parabéns!

Jota Dangelo (escritor, jornalista, membro da Academia Mineira de Letras e sócio honorário do IHG de São João del-Rei) disse...

Braga: divertidíssimo seu texto relembrando o conto do autor português. E ótimas as recordações da Velha EFOM. Jota Dangelo

Anizabel Nunes Rodrigues de Lucas (flautista, professora de música e regente são-joanense) disse...

Adorei o texto humorístico e também as lembranças referentes à Dona Celina de saudosa memória.

Danilo Gomes (escritor, jornalista e cronista, membro das Academias Mineira de Letras e Brasiliense de Letras) disse...

Mestre Braga, agradeço a leitura do notável conto humorístico de Gervásio Lobato. Agradeço também suas lembranças da senhora sua mãe, D. Celina, que o incentivou a descobrir o fantástico mundo da leitura e da literatura. Continue me honrando com sua amável amizade e suas histórias, em parceria com D. Rute. Abraço do Danilo Gomes.

Edu Oliveira (ex-seminarista salesiano, organizador e facilitador de encontros) disse...

Bom dia amigo.
Quantas saudade.
Era a maior demonstração de coragem atravessar o pontilhão pulando de "batente em batente"; nem sei se aqueles paus eram chamados de batente [rsrsr]. Éramos "corajosos" kkk
Forte abraço.
Edu

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
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