domingo, 25 de setembro de 2016

O FUNDADOR DE SÃO JOÃO DEL-REI


Por Campomizzi Filho *



São João del-Rei é cidade tradicionalmente culta, todos os nossos movimentos artísticos e literários ecoando nas suas fronteiras e interessando à sua gente. Já no início do século passado ali se instalava uma biblioteca pública, com volumes preciosos que ilustraram gerações e que constituem hoje expressivas raridades. As coleções não ficaram estanques. Pelo contrário, renovaram-se com aquisições contínuas, constituindo hoje um acervo de imensa valia. Seus jornais fizeram época, orientando a opinião pública, agitando idéias e divulgando trabalhos que são fontes magníficas para um melhor conhecimento da vida mineira de um século a esta parte. Teria existido por lá, em tempos idos, uma arcádia congregando cidadãos, que, amantes das belas letras, reuniam-se periòdicamente para a leitura recíproca dos versos. E hoje, no panorama destas Minas Gerais, o município se destaca ainda, com os seus centros de cultura, com suas escolinhas de arte e com um grupo liderando iniciativas de maior repercussão. A história da terra, temo-la em capítulos que revelam pesquisa demorada e preocupação de fazer justiça aos forjadores daquela civilização.

Augusto Viegas e Basílio de Magalhães, Melo Alvarenga e Oliveira Cintra, Gentil Palhares e Fábio N. Guimarães andaram pelos arquivos e nos oferecem páginas decisivas para a compreensão da vida sanjoanense desde a primeira presença do branco naquelas paragens. Por lá andou o taubateano Tomé Portes del-Rei, que lançou os fundamentos do arraial de Santo Antônio, a hoje histórica e simpática cidade de Tiradentes. Na qualidade de guarda-mor, cobrava impostos e exercia ação policial. Instalou-se às margens do rio das Mortes com família e agregados, num processo de povoamento que tomou vales e montanhas. O genro Antônio Garcia da Cunha foi seu sucessor na função pública. Coube-lhe repartir as terras ocupadas nas proximidades, no pequeno núcleo sob a invocação de Nossa Senhora do Pilar. O reinol Manoel José Barcelos descobriu ouro na montanha. A faiscação que se procedia nos pequenos cursos d'água foi mudada para as grupiaras. Um frei Pedro do Rosário, chefiando a nova corrida que encheu de casas as encostas onde a cidade de hoje se derrama nas ruas bem cuidadas, nas veneráveis catedrais de pedra sabão e nos edifícios que o tempo valoriza. 

Quando surgiu o arraial de Nossa Senhora do Pilar, que Brás Baltazar da Silveira elevou à condição de vila a oito de dezembro de setencentos e treze, já Tomé Portes havia falecido. É essa a conclusão que, à luz dos documentos, recentemente compulsados, chegou o jovem historiador Fábio N. Guimarães. O português José Matol, em carta ao padre Diogo Soares, informava em setecentos e quarenta que o taubateano não mais existia quando o núcleo urbano se iniciou. Fica, assim, desfeita a afirmação um tanto apressada de que o fundador de São João del-Rei teria sido mesmo Tomé Portes, a quem cabe a honra, indiscutível, de ter sido o primeiro branco a fixar-se nas redondezas e o responsável pela criação da atual Tiradentes. É de se ler o opúsculo agora editado na inauguração da série "Cadernos Sanjoanenses" sob o título "Antônio Garcia da Cunha, o fundador de São João del-Rei". Nessas páginas, Fábio N. Guimarães prossegue a sua carreira vitoriosa iniciada há um lustre, quando nos deu o seu primeiro livro sobre as origens históricas de sua cidade. Já estava ali, patentes, as credenciais do môço que não vinha em busca do sucesso fácil, mas que alicerçava cada conclusão nos documentos que é preciso ler, compreender, interpretar e amar.

A carta de Matol é secundada pelo que escreveu José Álvares de Oliveira. O burgo sanjoanense, nascido sob a invocação de Nossa Senhora do Pilar, orago que preside os destinos de tantos de nossas comunas e que é uma lembrança feliz dos tempos da união das coroas ibéricas, as casas humildes que compunham o primeiro aglomerado, tudo isso apareceu quando o taubateano já não mais se contava no número dos vivos. E como ao guarda-mor competia a entrega dos lotes, decerto que foi a seu genro e sucessor Antônio Garcia da Cunha quem fundou a hoje "princesa do oeste". Mas não é de se esquecer a atuação do frei Pedro do Rosário, talvez um dêsses religiosos ausentes de seus conventos em busca de riqueza fácil, que levou para a montanha a chusma dos faiscadores. É que a notícia correu célere atraindo aventureiros. Para êle deve haver também um lugar na história.

Recebemos o volumezinho de Fábio N. Guimarães e cumprimentamos o autor pelo esfôrço a que se lança, fazendo luzes por sôbre o passado ilustre de sua terra que é, sem dúvida alguma, uma ilha de cultura no ambiente destas gerais. 

Fonte: jornal "Folha do Povo", em Ubá-MG, edição provável de 1968, embora venha anotado o ano de 1966.
Crédito: historiador Fábio Nelson Guimarães (matéria selecionada pelo historiador e colada na página 47-verso do seu caderno preto)

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* JOSÉ CAMPOMIZZI FILHO nasceu na Cidade de Ubá, em 14 de dezembro de 1923. Graduou-se em Direito em 1950 e tornou-se Bacharel em Geografia e História pela Faculdade de Filosofia e Letras de Juiz de Fora. Foi escritor, crítico literário e professor, contribuindo com trabalhos para os jornais Folha de Minas e Estado de Minas.

Ingressou na carreira do Ministério Público em 3 de outubro de 1956. Exímio orador, foi, por diversas vezes, convidado a conferenciar em distintas e ilustres instituições, tais como o Colégio Sacré Coeur de Marie, em Ubá (28/8/1966), a Escola Superior de Agricultura de Viçosa (1º/9/1971) e o Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei (3/9/1972).

Foi indicado personalidade do ano em 1974, na cidade de Ubá, tendo sido, ainda, condecorado, em maio de 1977, com a Medalha da Inconfidência, distinção noticiada pelos jornais O Imparcial, da Cidade de Rio Pomba, e Jornal do Povo, da cidade de Ponte Nova, os quais ressaltaram suas qualidades como Promotor de Justiça. Em 1º de janeiro de 1949, assumiu oficialmente o cargo de redator da Folha do Povo em Ubá.

Foi promovido, por merecimento, a Procurador de Justiça em 1978. No ano de 1984, foi designado para exercer as funções de Diretor do então denominado Centro de Aperfeiçoamento Cultural e Profissional do Ministério Público, preparando já a Instituição, que receberia, décadas após, seu filho, o Procurador de Justiça Jacson Campomizzi, como Diretor do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional.

Sua renomada erudição e seu refinado gosto, atestados pelo escritor Orígenes Lessa, no livro Presença do Português no Papiamento, e pelo professor Doutor Silvio Meira, autor do romance Os náufragos do Carnapijó, não o tornaram avesso às intempéries do cotidiano. Pelo contrário, preocupava-se incessantemente com o bem-estar geral, tendo recebido, em 28 de janeiro de 1967, por seus relevantes e numerosos serviços prestados à comunidade, o título de cidadão honorário da cidade de Senador Firmino, onde foi agraciado com várias homenagens.

Exemplo cabal de sua total dedicação ao bem público e de seu notável senso de humanidade e justiça verifica-se na atitude pioneira, numa época em que as preocupações com o meio ambiente não se mostravam tão intensas, de chefiar um movimento em prol do reflorestamento na cidade de Senador Firmino.

O legado de José Campomizzi Filho, falecido em 14 de setembro de 1987, transcende o aspecto jurídico e suas atribuições funcionais, as quais, consoante se depreende de inúmeros depoimentos, eram executadas com esmero e dedicação.
 

7 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

O que se lerá abaixo é um texto de José Campomizzi Filho, jornalista da cidade de Ubá-MG, que aqui faz uma apreciação crítica do livro do historiador são-joanense Fábio Nelson Guimarães, intitulado "Antônio Garcia da Cunha, o Fundador de São João del-Rei", cuja edição inaugurou a série "Cadernos Sanjoanenses".
Neste livro, Fábio Nelson Guimarães contesta uma versão geralmente aceita de que o guarda-mor Tomé Portes del Rei teria sido o fundador tanto do Arraial Novo do rio das Mortes (que deu origem à atual São João del-Rei) quanto do Arraial Velho do rio das Mortes ( que deu origem à São José del-Rei, atual Tiradentes). Reconhece Fábio que Tomé Portes del Rei foi realmente o fundador de Tiradentes, da Ponta do Morro e do Porto Real da Passagem, mas demonstra que Tomé já tinha falecido quando teve início o núcleo urbano que povoou São João del-Rei. Essa tarefa ficou a cargo de seu genro e sucessor, Antônio Garcia da Cunha, pois o núcleo urbano do Arraial Novo foi povoado em 1704, quando Tomé já tinha falecido no ano de 1702.

Essa questão é abordada de forma clara e objetiva por Campomizzi Filho na sua apreciação abaixo transcrita.

Paulo Roberto de Sousa Lima disse...

Preclaro Francisco Braga, parabéns pela divulgação desta bela peça literária e histórica. Alias queria cumprimentá-lo pelo fato de que, pavimentando o espaço reflexivo para a minha exposição sobre o "Papel do Portugues e Emboaba José Matol nas Origens de São João Del-Rei" vc oportunamente divulgou neste Blog textos de elevado interesse histórico. Especialmente aqueles escritos por Bernardo Guimarães e Basilio de Magalhães e agora este competente texto do José Campomizzi Filho, em que se faz referência à missiva do Capitão José Matol ao Padre Diogo Soares, de 1.740. Interessante que me lembrei do Dr. Jader Campomizzi, médico sanitarista e competente gestor do SUS em BH. Acredito, pela coincidência do sobrenome, que sejam parentes.

Paulo Roberto Souza Lima (escritor, gestor cultural e membro do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei) disse...

Prezado Francisco Braga,boa noite. Meus parabéns pela publicação deste belo e oportuno texto do José Campomizzi Filho bem como aqueles escritos por Bernardo Guimarães e Basilio de Magalhães, todos propondo reflexões pertinentes ao conteúdo da minha exposição sobre José Matol, Patrono da Cadeira 02, do IHG.
Abraços na Rute

Prof. Ulisses Passarelli (odontólogo, professor universitário, pesquisador, historiador, membro da Academia de Letras de São João del-Rei e gerente do Blog Tradições Populares das Vertentes) disse...

Agradeço o envio. Agora estou na correria, sem tempo para ler. O assunto é de meu mais elevado interesse. Vou ler em breve.

Antes da leitura manifesto meu posicionamento: leio e releio tudo que diz respeito à nossa história primitiva, raízes, fundação... Respeito em profundidade a obra de Fábio Nelson Guimarães mas sou absoluta e radicalmente contra a tese por ele levantada de Antônio Garcia da Cunha como fundador e já escrevi algo a respeito. Aguardo uma melhor oportunidade para expor os motivos.

Aliás, tempo desses, o José Cláudio Henriques idealizou um seminário ou algo semelhante no IHG focado nesse assunto e me convidou para falar. Me dispus com prontidão. Mas o evento foi adiado. Caso seja remarcado vou expor minha argumentação. Se não se concretizar, vou pensar noutra possibilidade.

É isto. Excelente seu blog abordar este assunto.

Grande abraço desse entusiasta admirador,
UP.

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (desembargador, palestrante, conferencista, escritor e membro correspondente da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Excelente.
Quando entrei no Ministério Público, em 1986, assisti palestra do Dr. Campomizzi. Grande figura.
Ele era Procurador de Justiça (promotor da 2ª instância) aposentado.
Será que Betânia, viúva do Fábio, conhece esse texto?
Ela vai gostar.
Abs.

Prof. Fernando Teixeira (professor universitário, escritor, poeta e Secretário Geral da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Uma preciosa documentação histórica, Braga. Abraço para você e esposa.

Ozório Couto (jornalista, editor da revista Leitura, publicação da Associação dos Lojistas de BH, escritor e membro do IHGMG) disse...

Prezado Francisco, gostei muito. Compomizzi Filho é pai de um grande amigo meu, Dr. Jackson, que foi meu contemporâneo na PUC Minas, jogamos futebol (eu como jogador, uma lástima), foi promotor em Luz, minha terra natal, e hoje está aqui em BH, e é nosso confrade no IHGMG. Um abraço do Ozório Couto