Por Rogério Medeiros Garcia de Lima
Desembargador do TJMG"Ensaio publicado originalmente na revista MagisCultura, Associação dos Magistrados Mineiros, Belo Horizonte, nº 14, setembro de 2015, pp. 16-23"
Nenhuma noite é eterna,
e a aurora é sempre de Liberdade,
ainda que tardia.
(Augusto de Lima Júnior, in História da Inconfidência de Minas Gerais).
Tomás António Gonzaga |
Tomás António Gonzaga nasceu em Miragaia, freguesia da cidade do Porto, Portugal, em 11 de agosto de 1744. Era filho do magistrado brasileiro João Bernardo Gonzaga e da portuguesa Tomásia Isabel Clarque, de ascendência inglesa. Ficou órfão de mãe no primeiro ano de vida. Mudou-se com o pai para Pernambuco, em 1751. Depois se transferiram para a Bahia, onde Tomás estudou no Colégio dos Jesuítas. O jovem estudante voltou para Portugal em 1761, para cursar Direito na Universidade de Coimbra. Graduou-se bacharel em Leis em 1768. Com intenção de ser professor naquela universidade portuguesa, escreveu a tese ‘Tratado de Direito Natural’. Posteriormente, deixou de lado a pretensão de lecionar e abraçou a magistratura. Por ter sido um dos líderes da Inconfidência Mineira, foi degredado para Moçambique, onde se casou com Juliana de Sousa Mascarenhas, filha de um traficante de escravos e herdeira da fortuna paterna. Tiveram um casal de filhos. Gonzaga morreu em 1810, aos 66 anos, quando exercia o cargo de juiz de alfândega.
Destaque
Tomás Antônio Gonzaga foi poeta, inconfidente e magistrado. Em 19 de novembro de 2010, a Associação dos Magistrados Mineiros homenageou-o durante solenidade realizada no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto-MG, comemorando o bicentenário da sua morte. No evento, foi inaugurada placa alusiva ao poeta e aos valores culturais de Minas Gerais e da magistratura. O então presidente da Amagis, juiz Bruno Terra Dias, discursou:
Resgatamos história, cultura e política em um mesmo ato. Tomás Gonzaga reúne três grandes valores: a justiça, o amor e a liberdade, em três momentos distintos de sua vida: como magistrado, poeta e inconfidente. Devemos lembrar a Inconfidência como símbolo do caráter e do espírito mineiro, aos quais a Amagis rende todas as homenagens em nome da magistratura mineira.
Um juiz independente
Tomás António Gonzaga exerceu o cargo de juiz de fora na cidade de Beja, em Portugal. Retornou ao Brasil em 1782 e foi nomeado Ouvidor dos Defuntos e Ausentes da Comarca de Vila Rica, atual cidade de Ouro Preto. Segundo Kenneth Maxwell, em ‘A devassa da devassa’, quando Luís da Cunha Meneses assumiu o governo das Minas Gerais passou a ter atritos com o ouvidor de Vila Rica:
“O novo governador não poderia contrastar mais com seu antecessor. Luís da Cunha Menezes era um homem de ‘estilo duro’, porém cercava-se de cortesãos servis e parasitas. Era um homem que concebia suas prerrogativas como supremas e não admitia oposição a seus caprichos e autoridade, ou de seus favoritos.” (apud FERREIRA, 1982:12)
Pedro Doria corroborou:
“Para um pombalino cartesiano como Gonzaga, que acreditava na estrutura de governo desenvolvida pelo Marquês (de Pombal) e que prezava por rigor formal, Cunha Menezes era o pior tipo de administrador. Irracional. Um déspota movido apenas por seus desejos. Sem seguir regras. O iluminista Gonzaga tinha horror a esse tipo por filosofia, por princípio, por jeito de ver o mundo. A situação só era piorada pelo fato de o déspota passar por cima das decisões do ouvidor sistematicamente. Ignorava-o. (...)
Quando um fazendeiro rico e contrabandista conhecido, chamado Basílio de Brito, foi preso e encaminhado para Vila Rica, Cunha Meneses deu ordens para soltá-lo. Tampouco tinha autoridade legal para isso. E o comando de prisão partira de Gonzaga. Autoritário, o governador passava por cima do ouvidor sem pudores.” (DORIA, 2014:71, 72 e 85)
Naqueles idos do século XVIII, ainda não se afirmara o princípio da separação dos poderes. Eram mescladas as funções atribuídas aos magistrados da colônia. Transplantava-se para a América o modelo administrativo e político da metrópole:
“(O juiz) é o bacharel que vem (ou volta) de Coimbra com a preeminência que tinha no reino, a jurisdição transpondo os limites do foro para abranger a ordem do governo municipal e a paz dos negócios, encarnação da lei comum, que traz consigo, nos cartapácios temíveis das ‘Ordenações’.” (CALMON 1959:892-893)
Curioso registro histórico diz respeito ao elevado nível intelectual dos juízes mineiros no Brasil colonial. (GARCIA DE LIMA, Revista da Academia Mineira de Letras, v. LXIX, 2014)
O também jurista e poeta Inácio José de Alvarenga Peixoto era amigo de Tomás Antônio Gonzaga e foi ouvidor na Comarca de São João del-Rei. Alvarenga Peixoto era casado com a são-joanense Bárbara Heliodora Guilhermina da Silveira, heroína da Inconfidência Mineira. Ela demoveu o marido de delatar aliados inconfidentes. Era preferível a morte à desonra da delação. Alvarenga foi preso e degredado para o continente africano. Sobreveio à altiva esposa ruína familiar e financeira. No entanto, a posteridade a entronizou como símbolo da coragem da mulher brasileira. (GARCIA DE LIMA, 2008; VIEGAS, 1969:149-150)
Amores disputados
Tomás António Gonzaga mantinha intensa vida amorosa em Vila Rica. Foi amante de Maria Anselma e esse romance o levou a uma disputa com o governador Luís da Cunha Menezes:
“É impossível saber se o poeta abandonou Maria Anselma grávida, se fugiu ao casamento ou se foi ela quem não quis dar continuidade à relação. Pouco após o nascimento do filho de ambos, Anselma já estava com Cunha Meneses. Talvez fosse apenas uma moça interessada em cargos. Tinha o segundo homem mais importante da capitania. Perante a chance de ter o primeiro, abandonou-o. O governador, diz Gonzaga nas ‘Cartas’, forrou as paredes do quarto de sua amante com seda, pôs um painel de madeira no teto e contratou um bom artista para fazer uma pintura, à moda do tempo.” (DORIA, 2014:65- 66)
O filho de Gonzaga e Maria Anselma foi criado por Pedro Teixeira da Silva Mursa, tesoureiro do Juízo de Ausentes e subordinado de Gonzaga. O rebento recebeu o sobrenome do pai adotivo e se chamava Antônio Silvério da Silva Mursa.
Mas o grande amor de Gonzaga foi Maria Dorotéia Joaquina de Seixas Brandão. Conheceu a moça quando ela tinha apenas 16 anos. Segundo muitos estudiosos, Dorotéia seria a pastora Marília imortalizada na grande obra lírica do poeta (‘Marília de Dirceu’). Pediu a mão da jovem em casamento em 1788, dois anos depois de ter sido promovido a desembargador da Relação da Bahia. Por ser o noivo funcionário público, a família abastada de Maria Dorotéia opunha-se à união matrimonial. Gonzaga não chegou a assumir o cargo em Salvador e nem a consumar o casamento com Maria Dorotéia, por causa do seu envolvimento na Inconfidência Mineira. Acabou degredado para a África.
Um inconfidente líder
João Camilo de Oliveira TÔRRES (1963:38-46) descreve as Minas Gerais no final do século XVIII:
“Nos últimos anos do século XVIII, as Minas Gerais possuíam uma população estável, laboriosa, variada, culta, espalhada por várias vilas e povoados, próximos uns dos outros, com uma verdadeira opinião pública formada nos encontros de intelectuais em suas casas, na frequência às igrejas, e nas conversas que se travavam nas estalagens e nas estradas, opinião já acostumada a discutir problemas de interesses coletivos nas ‘juntas’ do princípio do século e nas eleições para as câmaras municipais, opinião dotada de um agudo sentido dos assuntos oficiais, sociais e políticos. Podemos dizer que já havia ‘povo’ em Minas, povo no sentido de uma população organizada e dividida em grupos e partidos.
Como se isto não fosse suficiente, esta população, este povo, já se sentia radicado em Minas, já se sentia mais brasileiro do que português.”
Nesse ambiente, floresceu a Inconfidência Mineira. Foi uma conspiração separatista ocorrida em Minas Gerais e reprimida pela Coroa Portuguesa em 1789. A insurgência teve como principal motivação a cobrança excessiva de tributos.
Na primeira metade do século XVIII, houve vários motins na capitania de Minas Gerais. Eram motivados por várias causas, como impostos escorchantes, desabastecimento de alimentos e ações abusivas das autoridades.
Um dos mais célebres foi a Revolta de Vila Rica, em 1720. O Conde de Assumar (D. Pedro Miguel de Almeida e Portugal e Vasconcelos), governador à época, reprimiu a rebelião. Felipe dos Santos, líder dos rebelados, foi condenado à morte.
Segundo a lenda, Felipe teve braços e pernas atados a quatro cavalos e os animais o despedaçaram, enquanto disparavam espantados pelas ruas da vila. Mas, segundo alguns historiadores, o líder rebelde foi enforcado e depois amarrado à cauda de um cavalo. O corpo foi despedaçado, ao ser arrastado pelo animal em via pública. (VASCONCELOS, História Antiga de Minas Gerais, p. 201-202)
Luís da Cunha Meneses foi nomeado governador da capitania em 1783. Era violento e arbitrário. Ignorava que o declínio da produção de ouro resultava do esgotamento das jazidas. Atribuía a decadência da extração aurífera ao contrabando. Executou a cobrança compulsória dos impostos devidos, chamada “derrama”, que fora instituída pelo antecessor Visconde de Barbacena (Luís Antônio Furtado de Mendonça).
João de SCANTIMBURGO (1989:104) assinalou a influência, no Brasil, das ideias iluministas impulsionadoras da Independência dos Estados Unidos e da Revolução Francesa:
“A elite iluminista dos doutores de Coimbra (...) formou-se na universidade pombalina, da qual fora excluído o ensino jesuítico, todo ele fundado no aristotélico-tomismo. Eram, portanto, esses doutores, legítimo produto da
filosofia das Luzes, introduzida em Portugal (...) pelo Genovese, e seu fiel discípulo Verney, arcediago de Évora. Todos quantos voltavam de Coimbra para a colônia traziam na bagagem cultural o iluminismo, a filosofia que se contrapusera aos baluartes da Contrarreforma. Esse o fenômeno característico da época. Mais do que uma revolução armada, a revolução cultural – permitam-nos os leitores o anacronismo – precedeu-a, como os batedores dessa arrancada, a plêiade dos iluministas.”
Em Vila Rica, um grupo de poetas mineiros fez parte da conspiração:
“Dos principais escritores deste grupo, só não era brasileiro Tomás Antônio Gonzaga, nascido no Porto, mas foi o cenário e foi o teor da vida brasileira que deram protesto à sua sensibilidade poética; e aos seus confrades de Minas indissoluvelmente se ligou com os riscos e amarguras de conspiração.” (SCANTIMBURGO, 1989:105)
As reuniões dos conspiradores ocorriam em vários locais, inclusive nas casas de Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga. Eram discutidos os planos da sedição e as leis para a nova ordem.
Foi desenhada a bandeira da República a ser instaurada: uma bandeira branca com um triângulo e a expressão latina “Libertas Quae Sera Tamen” – verso do poeta romano Virgílio, cuja tradução é “liberdade ainda que tardia”.
A conspiração foi debelada em 1789, depois da delação de Joaquim Silvério dos Reis, em troca do perdão de suas dívidas com a Coroa.
Os envolvidos no movimento foram detidos e enviados para o Rio de Janeiro. Cláudio Manuel da Costa morreu na prisão, em Vila Rica. Há suspeita de que tenha sido assassinado a mando do governador.
No curso da “Devassa” (inquérito judicial), todos negaram participação no movimento, à exceção do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, que assumiu a responsabilidade pela sedição.
Tiradentes foi condenado à morte por enforcamento. Os demais condenados, civis e militares, foram degredados para colônias portuguesas na África. Os religiosos foram recolhidos em conventos em Portugal.
A condenação do ex-ouvidor de Vila Rica, Gonzaga, repercutiria em toda a Capitania de Minas e além:
“O interesse dos Juízes daquele processo era exatamente o de ostentar o seu poder. Não importava se foram obtidas provas ou não contra o condenado. A sentença ao degredo para um lugar tão distante materializava a esmagadora autoridade das leis impostas sobre os súditos da Colônia. Não somente a sangrenta e cruel execução do Alferes Joaquim José, mas também o degredo do desembargador Gonzaga e de outros membros da elite mineira, a proibição de retornarem ao Brasil, sob pena de morte, tudo isto serviria de instrumento para aterrorizar outros súditos brasileiros que pensassem em conspiração
política contra a Coroa.” (ELIAS, 2012:305)
Mais que uma escola – lecionava José Veríssimo – o Arcadismo foi um estilo literário que chegou a Portugal em meados do século XVIII. A reforma das letras lusas principia-se pela fundação da ‘Arcádia Lusitana’ ou ‘Arcádia Ulissiponense’. O nome ‘Arcádia’ é tirado à região grega tida como refúgio dos poetas – propriamente, ‘céu’ de suas almas, na Mitologia.
“Os sócios da nova associação se comprometiam a adotar nomes de pastores celebrados pelos vates gregos e latinos; haviam de periodicamente apresentar trabalhos; cultivavam a Virgem e se apresentavam com um lírio branco, símbolo da Imaculada. A Arcádia, todavia, se embrenhou nos gastos temas gregos e latinos, restringiu a liberdade dos artistas e bem depressa feneceu. Ressurgiu depois com o nome de ‘Nova Arcádia’, para sofrer rude golpe dos ‘dissidentes’, que a desmoralizaram: Nicolau Tolentino, José Agostinho de Macedo, Bocage e outros.” (OLIVEIRA, 1960:119-120).
Em Minas Gerais, conforme Nelson Werneck Sodré, na segunda metade do século XVIII as artes plásticas fixam pela primeira vez algo especificamente nosso. Renovaram velhos modelos metropolitanos, de influência jesuítica quase todos, e geraram uma arte com traços originais, como o barroco brasileiro:
“Nas Minas Gerais, precisamente quando a mineração declina, surgem a torêutica, a escultura e a arquitetura religiosa, que fixarão os nomes de alguns artistas excepcionais, todos eles de origem popular, particularmente dois: Valentim da Fonseca e Silva – o grande Mestre Valentim – desenhista e entalhador; e Antônio Francisco Lisboa – o Aleijadinho – artista plástico de mérito inconfundível. E é ainda nas Minas Gerais que aparece um grupo de poetas que, por ali terem vivido na época e até juntos participado de acontecimentos políticos, deram motivo à qualificação do conjunto como ‘Escola Mineira’. O documento político desses poetas são as ‘Cartas Chilenas’; o documento literário é a ‘Marília de Dirceu’, de Tomás Antônio Gonzaga, o livro de poesia mais lido, em língua portuguesa, exceto ‘Os Lusíadas’.
Essas duas criações anunciam extraordinário avanço da expressão literária, ainda não como forma ou mesmo conteúdo – a forma é portuguesa e, quanto ao conteúdo, não traz ainda a marca original, nem a poderia trazer, dadas as condições históricas – mas, pelo menos, como assunto. A terra continuava a aparecer como objeto, cantada nas suas belezas, mas há, na sátira à autoridade local demandada, uma primeira nota de rebeldia que transcende a pessoa visada, como há, nos cantos à jovem noiva, uma primeira nota lírica que rompe com as tradições do arcadismo.” (SODRÉ, 1989:30-31)
Todavia, alguns traços diferenciaram os poetas árcades brasileiros dos portugueses:
“O que decididamente os sobreleva àqueles e os torna mais notáveis e, para nós ao menos, mais interessantes, são as suas novas contribuições à poesia portuguesa, com as quais também entra a nossa a se distinguir dela. Introduzem um novo elemento de emoção, o seu nativismo comovido, o seu patriotismo particular; um novo assunto, a gente e a natureza americana, e com isto, e resultante disto, novos sentimentos e sensações, indefiníveis talvez, mas sensíveis, que o meio novo de que eram, do qual ou no qual cantavam, lhes influía nas almas. Escapando, pelo seu mesmo exotismo ao predomínio absoluto das tradições literárias portuguesas, ao rigor da moda poética então na metrópole vigente, puderam ser e foram mais naturais, mais isentos dos defeitos e vícios em que se desmandava ali essa moda. São, em suma, menos gongóricos que os portugueses, sacrificam muito menos à mitologia e ao trem clássico do que eles.” (VERÍSSIMO, 1954:111)
Também dissertou Alfredo Bosi:
“É sabido que ambientes e figuras bucólicas povoaram os versos dos autores setecentistas. A gênese burguesa dessa temática, ao menos como ela se apresentou na Arcádia, parece hoje a hipótese sociológica mais justa. Nas palavras de um crítico penetrante, Antonio Candido, ela é assim formulada:
‘A poesia pastoral, como tema, talvez esteja vinculada ao desenvolvimento da cultura urbana, que, opondo as linhas artificiais da cidade à paisagem natural, transforma o campo num bem perdido, que encarna facilmente os sentimentos de frustração. Os desajustamentos da convivência social se explicam pela perda da vida anterior, e o campo surge como cenário de uma perdida euforia. A sua evocação equilibra idealmente a angústia de viver, associada à vida presente, dando acesso aos mitos retrospectivos da idade de ouro. Em pleno prestígio da existência citadina, os homens sonham com ele à maneira de uma felicidade passada, forjando a convenção da naturalidade como forma ideal de relação humana. (...)
No Arcadismo brasileiro, os traços pré-românticos são poucos, espaçados, embora às vezes expressivos, como em uma ou outra lira de Gonzaga, em um ou outro rondó de Silva Alvarenga. Em nenhum caso, porém, rompem o quadro geral de um Neoclacissismo mitigado, onde prevalecem temas árcades e cadências rococós. E sem dúvida foram as teses ilustradas, que clandestinamente entraram a formar a bagagem ideológica dos nossos árcades e lhes deram mais de um traço constante: o gosto da clareza e da simplicidade graças ao qual puderam recuperar a pesada maquinaria cultista; os mitos do homem natural, do bom selvagem, do herói pacífico; enfim, certo mordente satírico em relação aos abusos dos tiranetes, dos juízes venais, do clero
fanático, mordente a que se limitou, de resto, a consciência libertária dos intelectuais da Conjuração Mineira.” (BOSI, 1981:64-67, grifos no original)
O poeta romântico e satírico
Para José Veríssimo, o Brasil tornou Tomás Antônio Gonzaga poeta e foi isso que o naturalizou brasileiro:
“Aqui se lhe depararam os motivos do seu poetar, primeiro a mulher que parece ter amado de um grande e terno amor, principal estímulo do seu estro até então adormecido; depois os sucessos que, a despeito da sua inocência, o envolveram na chamada Conjuração Mineira. Despedaçando-lhe a existência, que se lhe antolhava auspiciosamente fagueira, esses sucessos ajuntaram às emoções dolorosas dos seus contrariados amores o abalo cruel de uma calamidade inaudita: a acusação do crime de lesa-majestade, a prisão, os ferros, os maus tratos, a masmorra, um longo e martirizante processo, a perspectiva da forca, em suma o desmoronar súbito e brutal de todas as suas risonhas esperanças de namorado e funcionário, em via de realização. De sua dor fez as formosas canções que o imortalizaram, como um dos bons poetas do amor da nossa língua. A brasileira sua amada era uma jovem matuta, sem outra cultura e espírito que as suas graças naturais. Para ser dela entendido e tocá-la, versejou-lhe naturalmente, simplesmente, com o mínimo de artifícios clássicos possível à poética portuguesa, quase sem arrebiques literários, nem rebuscas de expressão, que ela pudesse desentender. Assim como lhe forneceu o motivo e o estimulo de inspiração, deu-lhe o Brasil também o estilo que o distingue e sobreleva aos seus pares. Como poeta é, pois, Gonzaga um lídimo produto brasileiro.” (VERÍSSIMO, 1954:116-117)
Marília de Dirceu
Tomás Antônio Gonzaga adquiriu fama com a publicação da obra poética ‘Marília de Dirceu’, em 1792. Dirceu era o nome arcádico do poeta:
“São liras de amor, mas também provocadas por sua situação de ‘réu de majestade’: nelas, embora se queixe de que a Fortuna seja ‘má cega’, o poeta confia na Providência e na própria conduta, isenta de mancha. (...)
O drama de amor de Gonzaga, sua prisão, seu desterro, comoveram gerações de enamorados; ‘Marília’ é livro editadíssimo.” (PAES e MASSAUD, 1967:111).
Analisou Alfredo Bosi:
“A figura de Marília, os amores ainda não realizados e mágoa da separação entram apenas como ‘ocasiões’ no cancioneiro de Dirceu. Não se ordenam em um crescendo emotivo. Dispersam-se em liras galantes em que sobreleva o
mito grego, a paisagem bucólica, o vezo do epigrama. Já foi notado, com ingênuo escândalo, que os cabelos de Marília mudam de uma lira para outra e aparecem ora negros, ora dourados:
‘Os seus compridos cabelos, que sobre as costas ondeiam,
são que os de Apolo mais belos,
mas de loura cor não são.
Têm a cor da negra noite;
e com o branco do rosto
fazem, Marília, um composto
da mais formosa união.
....
Os teus olhos espelham luz divina,
a quem a luz do sol em vão se atreve;
papoila ou rosa delicada e fina
te cobre as faces, que são cor da neve.
Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
teu lindo corpo bálsamo vapora.’
“A oscilação entende-se como compromisso árcade entre o real e os padrões de beleza do lirismo petrarquista. A dubiedade atinge, aliás, outras áreas: Dirceu ora é pastor, quando o pede a ficção bucólica, ora é juiz, quando isso lhe dá argumento para mover a admiração de Marília:
‘Eu, Marília, não fui nenhum vaqueiro, fui honrado pastor da tua aldeia...
....
Verás em cima da espaçosa mesa
altos volumes de enredos feitos;
ver-me-ás folhear os grandes livros,
e decidir os pleitos’ ” (BOSI, 1981:80-81).
Cartas Chilenas
As ‘Cartas Chilenas’ são incluídas entre os melhores versos satíricos da língua portuguesa. Reportam-se à corrupção de Luís da Cunha Meneses, governador da Capitania de Minas Gerais entre 1783 e 1788.
Foram escritas anonimamente, porque obras desse teor provocariam dura represália do autoritário governador (SCHNEIDER e MINANI, 2015).
“O nome – ‘Cartas Chilenas’ – (folhetins manuscritos e periódicos que corriam de mão em mão em Vila Rica), provavelmente o adotou em imitação das célebres ‘Lettres Persannes’, de Montesquieu” (JARDIM, 1989:97-98).
Para Luís da Câmara Cascudo, “constituem depoimento precioso para a fixação do ambiente psicológico da capital de Minas Gerais em 1788, ao amanhecer da Inconfidência.” (FERREIRA, 1982:11)
Em excelente monografia sobre essa famosa obra satírica, Delson Gonçalves Ferreira acentuou:
“As ‘Cartas Chilenas’ são um espelho que reflete virtudes e vícios. Principalmente vícios. (...) É o papel da literatura: refletir e iluminar.
As ‘Cartas Chilenas’ são um espelho e uma lâmpada, firmando, para sempre, as imagens de uma cidade, tempo, modo e espaço, e iluminando um caminho de libertação. O facho luminoso se projeta até o fim do caminho onde se encontrará a ‘liberdade ainda que tardia’” . (FERREIRA, 1982:15-16)
E mais:
“As ‘Cartas Chilenas’ (Mineiras) são um libelo, uma sátira contra o Governador Luís da Cunha Meneses, transparente através da máscara caricatural do Fanfarrão Minésio. (...)
As sátiras traduzem, muitas vezes, uma consciência comum, condenatória e denunciam, no caso, fermentações mais profundas contra organizações e governos.
As ‘Cartas Chilenas’, sátira da vida colonial em fins do séc. XVIII, são o próprio espírito e libelo da Inconfidência Mineira. (Tarquínio J. B. de Oliveira, ‘As Cartas Chilenas’) As Sátiras tendem, naturalmente, para a caricatura. E o mínimo que procuram é ridicularizar a vítima. (...)
As ‘Cartas’ (...) são uma ‘Weltanschauung’ de Gonzaga-Critilo, uma janela ampla, pela qual se veem os homens e as coisas do tempo, daquele tempo misterioso e tenso que precedeu a fracassada Inconfidência, pela traição de alguns. Tudo através dos olhos e da sensibilidade, do espírito crítico, da ideologia (iluminismo) do autor. Pelos retratos não ficamos conhecendo apenas o retratado, mas também o retratista.
Critilo é Gonzaga, segundo as melhores opiniões de hoje. E a leitura das ‘Cartas’ revela um conjunto de argumentos importantes e convincentes de que o seu autor é o Ouvidor de Vila Rica.
As ‘Cartas’ revelam, por muitos aspectos, um estado de espírito, aquela fermentação perigosa de revoltas, um desassossego generalizado e uma aparente calma. O Fanfarrão sabia promover festas e distrações para o povo da cidade. A opressão está muito pesada e todos respiram com dificuldade. Um grande poeta podia sentir e exprimir essa consciência coletiva de que alguma coisa havia de acontecer, fora do monótono quotidiano. (...)
Critilo também não perdoa as injustiças e crueldades que se praticam por obra de Fanfarrão, quando ele quer alcançar os seus fins. A grande construção de Cadeia e Câmara custou lágrimas e sangue. Além de muito dinheiro. O jurista
(autor do ‘Tratado de Direito Natural’, futuro legislador do novo país...) não tolera as constantes violações do direito e as permanentes intromissões do Governador, em áreas que escapam de sua competência.” (FERREIRA, 1982:53-59)
Pedro Doria coonesta a autoria dos versos satíricos:
“Foi justamente em 1958 que o professor português Manuel Rodrigues Lapa publicou o estudo definitivo sobre a autoria, corroborado poucos anos depois por Afonso Arinos de Melo Franco. Com a informação acumulada desde então sobre a história da Inconfidência Mineira e a biografia de Tomás Antônio Gonzaga, sequer é possível cogitar outro autor. Os temas que mais perturbam o autor das ‘Cartas’, afinal, são os momentos em que o governador Fanfarrão Minésio se mete nas funções do ouvidor-geral.” (DORIA, 2014:65-66)
Está escrito no prólogo das ‘Cartas Chilenas’:
“Lê, diverte-te e não queiras fazer juízos temerários sobre a pessoa de Fanfarrão. Há muitos fanfarrões no mundo e talvez que tu sejas também um deles...”.
Coligi alguns versos:
“Amigo Doroteu, prezado amigo,
Abre os olhos, boceja, estende os braços
E limpa, das pestanas carregadas,
O pegajoso humor, que o sono ajunta.
Critilo, o teu Critilo é quem te chama;
Ergue a cabeça da engomada fronha
Acorda, se ouvir queres coisas raras.
(...)
Agora, Doreteu, ninguém passeia
todos em casa estão e todos buscam
divertir a tristeza que nos peitos
infunde a tarde mais que a noite feia.
Pretende, Doroteu, o nosso chefe
erguer uma cadeia majestosa
que possa escurecer a velha fama.
Da torre de Babel e mais dos grandes
custosos edifícios que fizeram
para sepulcros seus os reis do Egito.”
Um homem notável
O historiador Márcio Jardim concluiu:
“Em minha opinião, Tomás Gonzaga foi o vulto mais importante do movimento inconfidente de 1789. Chegarei, em capítulo à frente, a tentar demonstrar que teria sido ele o verdadeiro líder da conspiração; o líder moral, intelectual e decisório. Sua estatura intelectual quase não teve par na Capitania, como teve poucos entre seus contemporâneos do Brasil e dos domínios de Portugal no mundo inteiro. Sua estatura moral ressalta-se do conteúdo do processo movido aos inconfidentes, revelando um caráter extremamente leal, firme e equilibrado nos mais difíceis e dolorosos momentos daquela Devassa. À beira da morte, Gonzaga revelou extraordinário senso de equilíbrio psíquico, mantendo viva a capacidade jurídica de argumentação e dedução. Não há nos seus depoimentos nem em seus arrazoados de defesa – que fez incluir desesperadamente entre os articulados emitidos pelo habilidoso advogado dativo – nenhuma palavra de desrespeito ou diminuição a qualquer de seus companheiros de conjura. Tiradentes admirava-o muito. Tinha por ele quase uma veneração. É difícil provar essa afirmação, mas é sentida através da leitura dos Autos. E o Alferes Xavier deveria ter motivos valiosos para nutrir essa admiração: provavelmente teria visto alguma parte da Constituição que Gonzaga estava preparando para a nova República; sabia que, com o sucesso da revolução, Gonzaga seria o primeiro entre os primeiros – seria presidente por três anos –, o fundador da novel República, seu arquiteto legal, seu institucionalizador. Era o período imediatamente anterior à Revolução Francesa (e por isso a célebre Constituição ainda não existia) e Tiradentes sabia que a Constituição de Gonzaga faria dele um líder mundial, assim como acontecera a Jefferson, Franklin, Hamilton.” (JARDIM, 1989:93-94)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Portal Migalhas: Amagis resgata história de Tomás Antônio Gonzaga, disponível em http://www.migalhas.com.br/Quentes/, acesso em 22.11.2010
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CALMON, Pedro. História do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, vol. III, 1959.
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DORIA, Pedro. 1789: a história de Tiradentes e dos contrabandistas, assassinos e poetas que lutaram pela independência do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.
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FERREIRA, Delson Gonçalves. Cartas Chilenas: retrato de uma época. Belo Horizonte: Lemi, 1982.
GARCIA DE LIMA, Rogério Medeiros. Carvalho Mourão e Martins de Oliveira, os próceres, e outras personagens da Comarca de São João del-Rei. Belo Horizonte: Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte, vol. LXIX, 2014, págs. 93-115.
__________. Discurso de posse no Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, 06.04.2008.
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JARDIM, Márcio. A Inconfidência Mineira: uma síntese factual. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1989.
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PAES, José Paulo e MASSAUD, Moisés (organizadores). Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1967.
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VIEGAS, Augusto. Notícia de São João del-Rei. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1969.
4 comentários:
Prezad@,
O Blog de São João del-Rei se sente honrado com a presença ilustre de um novo colaborador, certamente já conhecido do leitor, chamado Dr. ROGÉRIO MEDEIROS GARCIA DE LIMA, são-joanense e desembargador do TJMG-Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Seu rico currículo evidencia sua capacidade múltipla, reflexo de sua ampla gama de conhecimentos adquiridos ao longo de sua formação acadêmica invejável.
O novo colaborador estreia com um ensaio de 2015, publicado na revista MagisCultura, que trata das várias facetas de Tomás Antônio Gonzaga: poeta, inconfidente e magistrado e que reproduzo para deleite do leitor do blog.
Dr. Rogério ficou muito conhecido, quando criticou os defensores dos direitos humanos no Painel do Leitor da Folha de São Paulo, em 10 de janeiro de 2014, sugerindo-lhes levar menores delinquentes para sua casa e a criação de um programa social "ADOTE UM PRESO".
Biografia de Dr. Rogério Garcia de Lima
http://saojoaodel-rei.blogspot.com/2018/06/colaborador-dr-rogerio-medeiros-garcia.html
Texto do ensaio "TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA: POETA, INCONFIDENTE E MAGISTRADO"
http://saojoaodel-rei.blogspot.com/2018/06/tomas-antonio-gonzaga-poeta.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Obrigado pelo envio do texto, realmente de grande valia histórica e literária. Abraço amigo e confraterno do Fernando Teixeira
Francisco
parabéns ao Rogério pela esplêndida escolha dum grande poeta. Como sempre vc antenado.
Eric
A respeito do artigo do Rogério sobre Gonzaga (aliás, muito bom), um grande amigo meu, dramaturgo e diretor de teatro, José Antônio de Souza, mineiro de Januária, formado no Teatro Universitário da UFMG nos anos de 1960 e radicado há anos em São Paulo, acaba de lançar um livro excelente sobre Gonzaga, Marília de Dirceu e as Cartas Chilenas e Critilo. Dangelo
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