Por Luiz Antônio Teixeira Rodrigues
Dele "ouvia falar", desde o início de minha juventude, lá pelas então realidades desta cidade, ainda pequena, ao som da primeira cascata do Córrego do Lenheiro, entre a Ponte do Rosário, onde era mão dupla e se tinha cortesia e educação para esperar o oposto passar, e a ponte frente ao Grupo João dos Santos. Nessa época, quando muitos menos ocupavam esta terra, era fácil sempre ouvirmos algo sobre membros destacados de nossa cidade.
"Pessoa de grande capacidade e muito respeitável professor e musicista."
E, por uma dessas oportunidades que a vida nos oferece, tenho o privilégio de conviver com ele, sendo seu colega em estudos. E pude então constatar todo aquele burburinho.
Em época correlata a essa convivência, sempre interessado em ler sobre nossa história e sociedade são-joanense, foi-me apresentado, e passei a ler assiduamente, o "Jornal da ASAP", que publica crônicas excelentes de escritores do quilate de Antônio Gaio Sobrinho, Helio da Conceição Silva, Tarcísio José de Souza e do mestre Abgar.
Nessas leituras, surgiam tantas histórias, revelações, homenagens, constatações sobre nossa São João del-Rei, que eu passei a guardar os jornais, pois considerava um pecado que tal cultura se perdesse com o passar do tempo. Mas guardar era pouco. Passei a considerar que era necessário disponibilizá-la para que outros são-joanenses a elas pudessem ter acesso. Tenho certeza que nossos filhos e seus filhos só terão enriquecimento ao terem ao seu alcance estas saborosas crônicas que só catapultam nossa cultura e abrem espaço para tomarmos ciência de tanto e tantos que estruturaram nossos caminhos. Por isto tive a audácia de propor-lhe ser tão importante reuni-las em livro.
Aceito nossa finitude e por certo não "votaria" para uma "suprapermanência" nesta vida, mas sinto profunda impotência em não podermos conservar mentes brilhantes, com tantos conhecimentos desenvolvidos. Mas a verdade é que "nada se perde, tudo se transforma." Pois não é patente o quanto os esforços, atos e pensamentos construtivos alicerçam ambientes e pessoas à volta daqueles que atingem um grau mais elevado de ciência, inteligência, conhecimentos e gestos bons?
Ouvi algumas vezes a pergunta: qual o sentido da vida? Penso podermos encontrar a resposta medindo o que fazemos, o quanto contribuímos para a sociedade, a natureza, os homens, para a vida.
Permitam-me "pensar" as contribuições do professor Abgar.
A dimensão do que se ganha com sua afinada elaboração musical. O seu trabalho por muitos anos desenvolvido no Conservatório de Música. A dedicação e conhecimento nas liturgias: Semana Santa, Ofício de Trevas, músicas sacras, nossas orquestras, músicos. Seu incomparável testemunho do que foi e nos enriqueceu o Colégio Santo Antônio e os freis. Seu depoimento sobre muitos dos são-joanenses que contribuíram firmemente para nosso amadurecimento e desenvolvimento. Sua capacidade de manter vivo o Latim, praticando-o e ensinando-o. Sua empatia com nossas crianças. Seu profundo conhecimento da história do homem e da Bíblia. Sua defesa intransigente do professor, da educação e, se me permitem o deslize, de não concordar com o tal "dever para casa muito extenso".
Ah, sim! Não é difícil ver qual o sentido da vida. Pelo menos no que concerne ao professor Abgar. Em contraponto ao que muitos deixam de fazer ou destroem, ele tanto faz que nos deixa no crédito. É ele dessas pessoas que, com a vida e o testemunho, dão magnificência ao nome e à profissão. Minhas mais sincera reverência a este que dignifica "ser homem, músico e professor."
Boa leitura e deleite-se com suas sapientes crônicas!
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II. Duas crônicas do livro
Padre Frei Geraldo de Reuver
Por Abgar Campos Tirado
Esta coluna, primordialmente voltada para a música, focaliza hoje um notável musicista que viveu em nossa cidade e que foi antes de tudo piedoso e virtuoso sacerdote franciscano, além de abnegado educador e mestre de extraordinária cultura.
Frei Geraldo de Reuver, que deixou este mundo no último dia 31 de janeiro, em Santos Dumont, onde ainda ensinava Latim no seminário, nasceu a 26 de setembro de 1920, em Wassenaar, Holanda. Ingressou na Ordem Franciscana a 07 de setembro de 1938, fez sua profissão solene a 08 de setembro de 1942, ordenando-se sacerdote a 11 de março de 1945. Antes de vir para o Brasil em 1948, morou na Bélgica, onde foi professor de Inglês. Chegou a São João del-Rei em 1949, trabalhando no saudoso Colégio Santo Antônio, como competente e dedicadíssimo professor de Francês, Matemática e Canto Orfeônico, chegando a diretor do referido educandário, de 1968 a 1972, ano do encerramento definitivo das atividades do renomado colégio. Frei Geraldo é autor de respeitada Gramática Francesa, publicada pela Edições Melhoramentos. Até o final de sua vida, estava sempre produzindo livros didáticos, tanto de teoria como de exercícios, os quais, além de redigir, ainda os datilografava e encadernava um a um, com supremo capricho, livros esses distribuídos aos alunos, sem ônus para os mesmos. Dignas de destaque suas séries de Música e Latim, aliás sempre renovadas, para que não caíssem em prejudicial rotina. Em todas as aulas, igualmente distribuía folhas mimeografadas de exercícios (posteriormente em xerox), sempre recolhendo os cadernos, corrigindo-os um a um e devolvendo-os na aula seguinte. Que exemplo de dedicação!
Frei Geraldo era geralmente muito tímido e calmo, mas dotado de grande personalidade e imensa determinação. Dava a impressão de não ter pressa em suas ações; todavia, seu dia parecia ter no mínimo 48 horas, pois é difícil conceber como conseguia fazer tanta coisa, incluindo trabalhos manuais, com extraordinária perfeição, além de manter atualizada sua impressionante cultura, tendo ainda tempo de receber carinhosamente seus amigos visitantes e de dedicar-se à silenciosa ação caritativa, sobretudo voltada para os alunos pobres.
Falemos de Frei Geraldo, músico. Era pianista e organista de mérito e competentíssimo regente de coro. Durante todo o meu período de aluno de ginásio, fiz parte do belo coral por ele dirigido e que muito me estimulou musicalmente. Tive a ventura, graças a Deus, de dedicar-lhe, poucos meses antes de seu falecimento, uma composição minha para coral a capella. Trata-se de uma Tota Pulchra, que, segundo fui informado, será apresentada também pelo excelente coral da ASAP.
Como disse no início deste artigo, Frei Geraldo veio para São João del-Rei em 1949 e, com exceção de pequenos períodos em que trabalhou em Santos Dumont, Pará de Minas e Belo Horizonte, viveu em nossa cidade até 1974, quando foi definitivamente para Santos Dumont, onde dirigiu o colégio estadual anexo ao Seminário Seráfico Santo Antônio, neste último trabalhando, embora já muito doente, até seus últimos dias, como professor de Latim, conforme foi dito. Aliás, foi saindo da biblioteca do Seminário, onde preparava material didático da citada matéria, que sofreu a queda que precederia de poucas horas a sua morte.
Não resta dúvida de que marcante foi a passagem de Frei Geraldo por São João del-Rei, bem como nossa cidade terá sido importante para ele, o qual, mesmo depois da extinção do Colégio Santo Antônio, ainda se manteve ligado à Escola Estadual "Cônego Osvaldo Lustosa", onde também foi professor, como o fora do Conservatório Estadual de Música "Padre José Maria Xavier".
Colégio Santo Antônio de São João del-Rei, tendo à sua frente, à esquerda, a capela de Nossa Senhora de Lourdes |
Posso afirmar que Frei Geraldo de Reuver foi uma das pessoas que mais significaram em minha vida e pretendo eu, com o presente registro, prestar-lhe carinhoso preito de amizade, gratidão e de saudade.
Deus o tenha em sua Glória!
(Jornal da ASAP, 01/2000)
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Frei Geraldo de Reuver
Por Abgar Campos Tirado
Seria muito difícil encontrar uma pessoa com tantas qualidades, como frei Geraldo de Reuver. Conheci-o tão logo ingressei no velho Ginásio Santo Antônio. No início, era meu professor de Canto Orfeônico. Com ele aprendíamos interessantes e pitorescas canções. Mal começado o ano letivo, passei a fazer parte do coro por ele dirigido e confesso que foi aquela época um dos mais felizes períodos de minha vida: ensaios na parte da tarde, participação na missa dominical para os externos, na capela, hoje Matriz de Nossa Senhora de Lourdes, e nas missas solenes na igreja de São Francisco, cinema no ginásio nas noites de quarta-feira, piqueniques variados em dias de lazer e outros bons momentos de sadia alegria.
Pouco depois de eu conhecê-lo, passou a frequentar nossa casa, levado por frei Leobino. Frei Geraldo era então, e pouco mudou depois, uma pessoa muito tímida.
Da esq. p/ dir.: frei Geraldo, Rubens de Barros e Tancredo de Almeida Neves tomando posse como ministro da Venerável Ordem Terceira de São Francisco de Assis - Crédito: CPDOC/FGV |
Nas séries subsequentes do curso ginasial, frei Geraldo veio a ser meu professor de Francês. Grande autoridade na matéria, o mestre, em aula, era bem diferente daquele frade nos momentos de descontração. Completamente sério, exigente e detentor de absoluta disciplina. Além do Francês, autor de consagrada gramática dessa língua, conhecia bem outras línguas, obviamente incluindo o Latim; lecionou também Matemática e era também uma pessoa de notável habilidade em trabalhos manuais e possuía caligrafia de causar inveja. Mas, a meu ver, mais que tudo, era um músico do mais alto nível, quer como regente, quer como especialista em canto gregoriano, organista e pianista. Lembro-me bem de sua execução, ao harmônio, da Toccata e Fuga em ré menor de Bach. Aliás, era ele seu compositor predileto e foi através do frade amigo que conheci na íntegra a Paixão Segundo São Mateus, do compositor alemão.
Embora desde jovem apresentasse algum problema de saúde, especialmente de estômago, e fosse fumante grande parte de sua vida, possuía em idade menos avançada uma enorme agilidade e resistência física, superando em suas proezas nos piqueniques os jovens alunos, mesmo aqueles considerados bons atletas. Senhor de incrível memória, nunca esquecia os nomes dos alunos e ex-alunos, bem como de todos os familiares de pessoas amigas, como no nosso caso. Na verdade, era tão perfeito em tudo o que fazia que parecia um especialista em cada setor. Realizava tudo lentamente, sem pressa, incluindo a celebração de suas missas, sempre tendo tempo para todas as coisas inclusive para receber, calmamente, suas visitas. Seu dia parecia ter, no mínimo, 48 horas! Como exemplo de seu zelo e capricho, mesmo em seus últimos anos de vida, como professor de Latim em Santos Dumont, ele próprio elaborava as apostilas, digitava-as, imprimia, encadernava e distribuía, tudo sozinho. E mais: de dois em dois anos refazia todos os volumes de exercícios, para evitar que fossem mal utilizados. Isso sem contar outras apostilas por ele preparadas, notadamente de música.
Seminário Seráfico Santo Antônio localizado no km 1 da BR 499 em Santos Dumont-MG |
Seu nome de batismo era Petrus Johannes de Reuver. Nasceu em Wassenaar, Holanda, a 26 de setembro de 1920, recebeu o hábito franciscano a 07/09/1938, sendo ordenado sacerdote a 11/03/1945. Logo após ordenado, trabalhou como professor na Bélgica, vindo para o Brasil e para nossa cidade em 1948. Aqui trabalhou como sacerdote e professor e, exceto por algum tempo, quando teve passagem por Santos Dumont e Pará de Minas, permaneceu em São João del-Rei até o final de 1973. Nesse período também lecionou música, por indicação de nossa parte, no Conservatório Estadual de Música "Padre José Maria Xavier". No ano de 1968, além de professor, assumiu a direção de nosso Colégio Santo Antônio, sendo ele o diretor por ocasião do funesto incêndio de 31 de maio do ano citado, continuando a dirigir o estabelecimento até seu fechamento definitivo em 1972. A partir de 1974, foi transferido para Santos Dumont, trabalhando no seminário como professor e diretor do colégio, onde exerceu com sumo zelo seu apostolado como sacerdote e educador. Em 1998 pude estar presente naquela cidade, onde frei Geraldo, já adoentado e suportando heroicamente dores nas vértebras e falta de ar, comemorou seus 60 anos de entrada na Ordem Franciscana. Poucos meses depois tive o prazer de dedicar a ele, meu primeiro mestre de coro, minha composição para coral a capella, Tota Pulchra, peça essa que muito lhe agradou e que vem sendo apresentada por diversos corais, desta e de outras cidades, incluindo o coral de nossa ASAP.
Frei Geraldo deixou-nos para dar entrada na Eternidade, a 31 de janeiro de 2000, no seminário de Santos Dumont, onde hoje se instala um memorial em sua honra.
Requiescat in pace.
(Jornal da ASAP, 09/2009)
Fonte: TIRADO, Abgar Antonio Campos: Crônicas de Abgar, editor Luiz Antonio Teixeira Rodrigues, 2018, 367 p.
Fonte: TIRADO, Abgar Antonio Campos: Crônicas de Abgar, editor Luiz Antonio Teixeira Rodrigues, 2018, 367 p.
9 comentários:
Acabo de ser presenteado com um exemplar do livro "Crônicas de Abgar", magnificamente ilustrado, com honrosa dedicatória do autor Abgar Antônio Campos Tirado, cujo livro, além das citadas crônicas, produzidas para o "Jornal da ASAP", num total de 123 crônicas, durante o período de maio de 1977 a julho de 2017, também inclui:
1) registro histórico sobre o Teatro Municipal de São João del-Rei, elaborado em 1993 pelo mesmo escritor Abgar, por ocasião do transcurso do 1º centenário da sua construção (p. 326-334 do livro);
2) ensaio intitulado "O pentágono religioso", de Abgar, sem data (p. 335-336 do livro);
3) breve estudo feito por Abgar sobre a conveniente grafia do nome de São João del-Rei e do adjetivo gentílico relativo (p. 337-342 do livro);
4) um trabalho de minha autoria intitulado "Maestro" e Literato Abgar Campos Tirado, glória de São João del-Rei (p. 344 a 350 do livro), o qual aparece resumido mas que pode ser lido na íntegra in http://saojoaodel-rei.blogspot.com/2011/03/maestro-e-literato-abgar-campos-tirado.html;
5) entrevista realizada por Juliana Prado Campos com Abgar, estampada às páginas 359-364 do livro (publicada originalmente no Jornal da ASAP em maio de 2013).
À guisa de prefácio, com o título "Magister Abgar", às páginas 5-6, o editor Luiz Antônio Teixeira Rodrigues apresenta o autor do livro, bem como faz apreciação de seu homenageado como "homem, músico e professor" e a sua contribuição para a cultura são-joanense. Além do "prefácio", Rodrigues é responsável pela seleção das crônicas.
Por outro lado, para comemorar este 4 de outubro, Dia de São Francisco de Assis, selecionei duas crônicas, às páginas 46-48 e 186-188 do livro, nas quais Abgar homenageou, na pessoa de Frei Geraldo de Reuver, todos os freis holandeses que abandonaram seu país de origem para abraçar os destinos da terra são-joanense, consagrando sua vida à educação da juventude são-joanense no saudoso Colégio Santo Antônio.
Texto: Excertos do livro "Crônicas de Abgar"
http://saojoaodel-rei.blogspot.com/2018/10/excertos-do-livro-cronicas-de-abgar.html
Colaborador: Abgar Antônio Campos Tirado
http://saojoaodel-rei.blogspot.com/2009/02/colaborador-abgar-antonio-campos-tirado.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Grata , já vou ler,
Eudóxia.
Caro professor Braga.
Grato pela oportunidade da leitura sobre a personalidade do professor Abgar e de alguns seus trabalhos, entre os quais procura cultuar personalidades que contribuíram naquilo que é fundamental para qualquer sociedade, o seu aperfeiçoamento cultural, o seu aperfeiçoamento humano. Como ele mesmo ressalta, São João del-Rei é pródiga nesse aspecto, embora possa ser algo desprezada, conforme se queixa. Sem dúvida, os esforços convergentes desse professor e do seu próprio, professor Braga, compensam bastante essa possível desconsideração.
Abraço.
ABGAR É 10!!!
ABS.
Francisco,
Agradeço-lhe o envio da matéria. Parabéns. Muito importante pra gente que mantém pesquisa sobre autores são-joanenses.
Grande abraço.
Oi, Francisco ! Que bom para a cultura sanjoanense ! Abgar é um grande literato e uma ótima pessoa ! Muito merecido ! Um bom dia !
Muito grato, caro Braga, pelos textos mostrados. Na verdade, os frades holandeses marcaram com seu apostolado as terras mineiras. De fato, São Francisco de Assis deixou-nos duas diretrizes: viver o Cristo e não apenas com o Cristo e, com Ele, abraçar a criação - coisas, animais e a humanidade - numa fraternidade, que o mesmo Cristo, nosso irmão, nos conquistou. Este o sentido da paz cristã, fruto da fraternidade. Que nosso pai espiritual o abençoe, a você e Rute. Fernando Teixeira
fjbraga
muito bonito essa homenagem ao meu tio.
eric
Francisco, sempre estou lendo suas mensagens
e os informes e crônicas que você nos envia.
Fui por vários anos aluno do Frei Geraldo de
Reuver, porém não conhecia certos detalhses
sobre a vida dele que agora me foram
repassados pelo nosso respeitado e
querido Prof. Abgar, de quem fui aluno.
Foi ótimo você divulgar estas duas
crônicas.
Abraços. Seu anigo e admirador
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