Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO P2, na coluna CRÓNICA, matéria publicada na edição de domingo, 14/07/2024, p. 24.
A proscrição de separar a arte do artista parte de um impulso punitivo, tentando atingir a única coisa (no caso de artistas mortos) que ainda pode ser atingida: a reputação póstuma.
Alice Munro (✰ 10/07/1931, Wingham, Ontario ✞ 13/05/2024, Port Hope, Ontario) - Crédito pela foto: https://en.wikipedia.org/wiki/Alice_Munro |
Há um conto de Alice Munro chamado The Office que começa com uma mulher a pousar o ferro de engomar e a anunciar ao marido que encontrou uma “solução” para a sua vida: “Acho que vou arranjar um escritório”. O conto é curto, cómico, e mantém um diálogo explícito com o ensaio mais célebre de Virginia Woolf, procurando dramatizar na prática as suas sugestões teóricas. É um tema ao qual Munro regressou repetidamente: as escolhas que uma mulher escritora tem de fazer para conciliar o “quarto só seu” com as exigências de uma vida doméstica feita de interrupções e inconveniências. A sua carreira começou com uma dessas escolhas. Aos 21 anos, depois de perder uma bolsa universitária, decidiu casar com o primeiro namorado por motivos que mais tarde reconheceu serem candidamente económicos: a segurança financeira permitiu-lhe escrever, e evitar a alternativa, que era regressar a casa e cuidar da mãe doente. A sua obra está repleta de mães ambivalentes, mulheres que decidem satisfazer ambições pessoais em detrimento de relações familiares e vivem sem saber se a decisão foi a melhor. É o tipo de decisão que muitos artistas fazem, mas também qualquer pessoa que se dedique a uma carreira, e disposta a pagar o preço que ela exige, mesmo que esse preço seja distribuído por terceiros. A devoção total ao “quarto só seu” implica necessariamente reduzir a atenção prestada ao que se passa nos outros quartos.
O mundo soube esta semana que algo terrível aconteceu num dos quartos de Alice Munro. Num artigo publicado no Toronto Star, a sua filha mais nova, Andrea Skinner, relatou o abuso sexual que sofreu às mãos do padrasto (segundo marido de Munro), quando tinha nove anos, em 1978. Na altura, Andrea contou o sucedido ao pai, que decidiu não partilhar a informação com a ex-mulher e permitiu que a filha continuasse a visitar regularmente o casal, sofrendo mais abusos. Quando, 16 anos depois, Andrea contou à mãe, Munro abandonou brevemente o marido, mas acabou por se reconciliar, tendo ficado com ele o resto da vida, mesmo depois de o caso ir a tribunal em 2005 (o padrasto foi condenado a dois anos de pena suspensa).
A cobertura mediática das revelações decompôs-se nas categorias habituais. Declarações de choque, queixas de “traição” por parte de leitores, nervosas reconsiderações do legado (“o que fazemos agora com Alice Munro?”), a quadrigentésima recapitulação da razoabilidade de “separar a arte do artista”.
Separar a arte do artista, na verdade, é um processo comum, contínuo, e geralmente inadvertido. Acontece, por exemplo, nas homenagens póstumas, quando pessoa e obra são desacopladas de circunstâncias biográficas ou estéticas e obrigadas a representar posturas culturais ou a ocupar pedestais convenientes (“a maior figura do Canadá”, “um ícone feminista”, “Alice Munro ensinou-nos como viver”, etc.).
A proscrição de separar a arte do artista, nos termos em que se costuma empregar o cliché, parte de um impulso punitivo, tentando atingir a única coisa (no caso de artistas mortos) que ainda pode ser atingida: a reputação póstuma. O discurso dominante tende a enquadrar o impulso como uma espécie de reparação histórica, descentrando o culpado e recentrando a vítima. Mas é difícil, nesta como noutras ocasiões, afastar a suspeita de que o que está a ser verdadeiramente centrado é quem reage: o leitor "traído", predisposto a recentrar não a vítima, mas o escândalo em si, e a sua mágoa com a revelação do segredo, que lhe permite assumir delicadamente o estatuto de co-vítima.
O facto do "segredo" gerou outros curiosos raciocínios de rabo na boca. Mais do que um artigo criticou a revelação tardia, lamentando a cumplicidade da imprensa canadiana e do meio literário na manutenção do silêncio, para supostamente proteger a reputação de uma marca com utilidade para todos. Mas a mesma reputação é o único motivo para o caso ser notícia global. Episódios de abuso sexual familiar no Canadá não são noticiados todos os dias — não porque não aconteçam todos os dias, mas porque nenhum outro envolve a família de alguém com um prémio Nobel. Reputações com a dimensão de Munro despromovem toda a gente na sua órbita a meros satélites. Aqui, relegou para segundo plano até o autor dos abusos, Gerald Fremlin, um geógrafo com obra publicada (e editor do Atlas Nacional do Canadá) cujo nome não aparece sequer no título de nenhuma das notícias sobre o caso; e também o pai da vítima, Jim Munro, que soube dos abusos 16 anos antes de Alice, enquanto podia ter tomado medidas para os impedir.
Numa carta de resposta à filha, já depois de ter regressado a casa e ao marido, Alice Munro afirmou que “só uma cultura de misoginia poderia esperar que ela se sacrificasse pelas suas filhas, ou que tivesse de ser o seu sacrifício a compensar as falhas de homens”. Há algo morbidamente cómico no argumento, e no modo como instrumentaliza o vocabulário do feminismo de segunda vaga (com as suas condenações do papel cultural da “maternidade”, e das expectativas associadas de abnegação e sacrifício). Também isto é tão comum como a reacção de silêncio e negação a casos de abuso familiar: as propostas de doutrinas sistemáticas acabam muitas vezes a alimentar raciocínios de autojustificação ou auto-ilibação para instintos ou actos embaraçosos (que são mais bem sucedidos quando há um fundo de verdade para descaracterizar).
Não sabemos, nem saberemos, como Alice Munro se justificou perante si própria, nem haveria qualquer utilidade em sabê-lo: a única utilidade de qualquer informação adicional sobre este caso específico seria saciar curiosidade sobre uma figura pública, da mesma forma que a única utilidade em ler as suas obras é saciar curiosidade genérica sobre o comportamento humano, ou sobre como se escreve um conto exemplar.
Alice Munro está morta, e nada do que cada leitor decida fazer com os livros vai servir como punição ou restituição; todas essas decisões serão compromissos individuais à procura do nível adequado de conforto, tal como as que ela tomou e mostrou inúmeras personagens a tomar, incluindo numa assinalável quantidade de contos que dedicou à decisão de ignorar um segredo tempo suficiente para a personagem que o guarda se convencer que o segredo não existe, ou que é pouco importante em comparação com o que ajudou a proteger (estabilidade, conforto, conveniência). Estas coisas parecem agora sinistramente pertinentes para o caso da família de Munro, porque também são pertinentes em muitas outras famílias. Não apontam para uma província remota do Canadá, mas para o que é universal. Há vidas inteiras predicadas em fingir com muita força que algo terrível não aconteceu ou não teve importância.
Num conto de 2000 chamado Post and Beam, a fidelidade a um marido paranóico e hostil leva a protagonista a tolerar um acto de estupenda crueldade contra uma familiar. A sua estabilidade é comprometida, mas, como costuma acontecer em quase todos os contos de Munro, o tempo passa e uma nova estabilidade, tão precária como a anterior, ocupa o seu lugar: “O compromisso que assumira exigia que continuasse a viver como sempre vivera. O compromisso já estava a ser cumprido. Aceitar o que tinha acontecido, e ter a clareza para esperar o que ia acontecer. Os dias e os anos a passar, sempre iguais uns aos outros...” Noutro tipo de história, as mesmas palavras podiam descrever alguém a chegar à prisão e a reconciliar-se com a estadia. Nesta história, descrevem a única prisão a que a personagem chega, e a única que o seu delito merece.
• Rogério
Casanova é o pseudónimo de uma personalidade rica, multifacetada e dona
de uma escrita límpida e vibrante. Colabora com a imprensa desde 2008,
com passagens pelo Expresso, Observador, Diário de Notícias e revista LER.
É tradutor dos principais autores de língua inglesa. Lecciona desde
2016 um seminário na pós‑graduação em Artes da Escrita, na Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
4 comentários:
Prezad@,
O Blog de São João del-Rei se alegra de publicar outra crônica do jornalista português ROGÉRIO CASANOVA, além da festejada São Kanté de Paris, publicada neste mesmo espaço em 23/06/2024.
Sobre a escritora canadense ALICE MUNRO, seu trabalho foi descrito como tendo revolucionado a arquitetura do conto, especialmente em sua tendência de avançar e retroceder no tempo, e com ciclos integrados de contos de ficção, nos quais ela exibiu "virtuosismo indiscutível". Seu trabalho é frequentemente comparado ao dos contistas mais aclamados pela crítica. Nos seus contos, como nos de Anton Chekhov, o enredo é secundário e pouco acontece.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/07/separar-alice-do-pais-das-maravilhas.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Caro professor Braga
Uma biografia que envolve questões delicadas, desde a própria mãe até a filha da escritora. Como tais coisas se separam da sua criação literária, eis o problema.
Saudações,
Cupertino
Muito legal!
Intrigante e provocador este artigo republicado por você. Recebo dele também alguns artigos. Este não chegou por aqui. Li-o, e vou fazê-lo novamente, porque este é um tema com o qual poucos se preocupam, aferrados que estão à vida presente. Merece uma reflexão no meio acadêmico, em que, a maioria, ao cultivar Narciso, esquece de projetar sua existência para além dele da memória do esquecimento.
Abraços a você e ao autor do artigo.
Aylê-Salassié
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