terça-feira, 15 de abril de 2025

JEAN JAURÈS, o socialista


Por STEFAN ZWEIG (1881-1942)
A responsável pelo encontro não foi a vontade, mas a casualidade  designada miticamente como Destino. Viviam em mundos separados, seus países se encontrravam em rota de colisão, nada sugeria pontes, aproximação. Zweig viu-o uma vez na rua, num fim de tarde em Paris, e de outra vez, também na capital francesa, esteve ao seu lado algumas horas numa reunião em casa de amigos comuns (provavelmente o círculo do gravador Leon Bazalgette).
O convívio com o belga Émile Verhaeren convertera o esteta vienense Stefan Zweig num caçador de utopias e aquele tribuno que empolgava as multidões na França encarnava uma delas: o socialismo democrático e humanitário. Antes mesmo de fundar o jornal L'Humanité, Jean Jaurès (1859-1914) destacara-se como dreyfusard, militante do movimento pela reabilitação do capitão judeu Alfred Dreyfus.
Os marxistas ortodoxos entendiam que defender um militar burguês não era prioritário; Jaurès retrucava que Dreyfus fora vítima de uma tremenda injustiça e o papel dos socialistas era lutar contra todas as injustiças.
Quando a guerra parecia inevitável, conclamou os partidos socialistas europeus a colocarem-se a favor da paz porque operários, camponeses e mineiros são os principais fornecedores de carne para os canhões. “Construir escolas significa derrubar os muros das prisões”, proclamava nos comícios.
Contra Jaurès levantaram-se os conservadores, xenófobos, militaristas, monarquistas e clericais. Na noite de 31 de julho de 1914, depois de fechar a edição de L'Humanité, Jaurès foi ao bistrô Le Croissant, em Montmartre, e, enquanto deleitava-se com uma torta de morangos, foi assassinado com dois tiros por um nacionalista que considerava a guerra como a única solução para recuperar a querida Alsácia.
Na véspera do enterro de Jaurès, a Alemanha formalizou as hostilidades contra a França. Começara efetivamente a Grande Guerra (1914-18). Dois anos depois, 6 de agosto de 1916, integralmente comprometido com a causa pacífica, Zweig escreveu este perfil do “inimigo” Jean Jaurès no jornal Neue Freie Presse.                                                                                             Alberto Dines

                                                                                                                    

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Corrigindo: sua primeira passagem pelo Brasil foi em 1936

Faz oito ou nove anos que, na rua St. Lazare, eu o vi pela primeira vez. Eram sete da noite, hora em que a estação negra como aço, com seu relógio brilhante, de um momento para o outro atrai a massa como se fosse um ímã. De uma só vez, as casas, os ateliês, as lojas vertem todos os seus ocupantes na rua, e todos, como um negro rio caudaloso, acorrem aos trens que os levarão para longe da cidade enfumaçada, para o campo. Acompanhado de um amigo, eu avançava devagar através da multidão abafada e pesada quando ele subitamente tocou o meu braço: “Olha, Jaurès!” Levantei os olhos, tarde demais para ver a silhueta do homem que passava. Vi apenas as costas largas como as de um carregador, os ombros enormes, a nuca de touro, curta e robusta, e minha primeira impressão foi a de um vigor camponês inabalável. A pasta sob o braço, o pequeno chapéu redondo na cabeça poderosa, as costas um pouco encurvadas, como o camponês empurrando o seu arado e com a mesma determinação, assim ele ia abrindo seu caminho lenta e inabalavelmente por entre a massa impaciente. Ninguém reconheceu o grande tribuno, jovens rapazes passavam por ele correndo, pessoas apressadas o ultrapassavam, atropelando-o, e seu passo continuava inabalavelmente firme em seu ritmo pesado. A resistência da massa negra que fluía se quebrava como num rochedo nesse homem baixo e forte que andava sozinho arando um campo próprio: a multidão escura e anônima de Paris, o povo que ia ou voltava do trabalho. 
 
Nada mais restou em mim desse encontro fugidio além da sensação de um vigor inflexível, telúrico, determinado. Pouco depois eu o veria mais de perto e compreenderia que essa força era apenas um fragmento de sua complexa personalidade. Amigos haviam me convidado para jantar, éramos quatro ou cinco no espaço apertado, quando ele entrou de repente, e a partir desse instante tudo passou a pertencer a ele  a sala, preenchida por sua voz sonora, e nossa atenção à sua palavra e ao olhar, pois sua cordialidade era tão forte, sua presença tão evidente, tão calorosa em sua vitalidade interior, que cada um se sentia inconscientemente estimulado e elevado. 
Ele acabara de chegar do campo, o rosto largo e aberto com os olhos fundos e pequenos, porém faiscantes, tinha as cores frescas do sol, e seu aperto de mão era o de um homem livre, não polido, mas cordial. Naquele momento, Jaurès pareceu-me especialmente satisfeito, tinha reabastecido o seu sangue com um novo vigor e um frescor vital ao trabalhar com enxada e pá no pequeno jardim, e agora distribuía esse vigor com toda a generosidade de seu ser. Para cada um tinha uma pergunta, uma palavra, uma cordialidade, antes de falar de si próprio, e era maravilhoso perceber como ele inconscientemente começava criando calor e vivacidade à sua volta para poder depois deixar fluir sua própria animação de modo livre e criativo. 
Lembro com nitidez como ele de repente se virou para mim, pois naquele segundo olhei pela primeira vez para dentro de seus olhos. Eram pequenos, mas, apesar de sua bondade, vívidos e penetrantes, agrediam sem machucar, penetravam sem importunar. Perguntou-me por alguns de seus amigos de partido vienenses, fui obrigado a responder, lamentando, que não os conhecia pessoalmente. Em seguida, perguntou-me pela baronesa Suttner, por quem parecia nutrir grande estima, querendo saber se ela tinha uma influência real e palpável em nossa vida literária e política. Eu lhe respondi  e hoje estou mais convicto que nunca de não lhe ter transmitido apenas a minha sensação pessoal, e sim uma verdade  que entre nós poucos compreendiam efetivamente o maravilhoso idealismo dessa senhora nobre e rara. Disse-lhe que a estimavam mas com um leve sorriso de superioridade, que suas convicções eram respeitadas, sem que as pessoas se deixassem convencer no âmago, pois em última instância sua persistência em uma mesma ideia era tida como algo monótono. E não escondi o quanto lamentava o fato de que justo os melhores na nossa literatura e arte sempre a tratavam de um modo algo marginal e indiferente. 
Jaurès sorriu e disse: “Mas é assim mesmo que temos de ser, como ela, obstinados e persistentes no idealismo. As grandes verdades não entram de uma vez no cérebro da humanidade, é preciso martelá-las repetidamente, prego a prego, dia a dia! Trata-se de tarefa monótona e ingrata, mas como é importante!” 
Passamos a outros assuntos e a conversa seguiu animada enquanto ele estava conosco, pois não importava o que ele dissesse, sempre vinha de dentro, caloroso, de um peito aberto, de um coração que batia forte, de uma plenitude de vida amontoada e acumulada, uma maravilhosa mistura de cultura e energia. A grande testa arredondada conferia ao seu rosto seriedade e significado, os olhos livres e alegres davam um ar de bondade a essa seriedade, esse homem poderoso exalava um ar benfazejo de jovialidade quase pequeno-burguesa, fazendo intuir que, na ira ou na paixão, seria capaz de deitar fogo como um vulcão. Sempre achei que, sem fingir, ele guardava dentro de si seu verdadeiro poder, que não havia motivo suficiente para sua total erupção (ainda que ele se entregasse inteiro na conversa), que éramos poucos para estimular toda a sua plenitude e que o espaço era apertado demais para a sua voz. Pois quando ele ria, a sala toda estremecia. Era como uma jaula para esse leão. 
 
Agora eu já o vira de perto, conhecia seus livros  que, compactos e pesados, assemelhavam-se um pouco ao seu corpo –, lera muitos de seus artigos que me permitiram intuir o ímpeto de sua fala, e tudo isso apenas aumentava o meu desejo de vê-lo e escutá-lo um dia também no seu mundo, no seu elemento, enquanto agitador e tribuno. A ocasião não tardaria a acontecer. 
Eram dias pesados na política, as relações entre a França e a Alemanha estavam carregadas de eletricidade. Algum incidente tinha ocorrido, a superfície de fósforo da suscetibilidade francesa se inflamara novamente em algum incidente fugidio, não sei mais se foi o caso do navio Panther em Agadir, o zepelim na Lorena, o episódio de Nancy; o fato é que havia eletricidade no ar. Em Paris, nessa atmosfera de eterna efervescência, esses sinais meteorológicos eram percebidos então muito mais intensamente do que sob o céu azul político idealista da Alemanha. Os vendedores de jornal dividiam as multidões nas avenidas com seus gritos agudos, os jornais atiçavam com palavras ardentes e manchetes fanáticas, exacerbavam a agitação com ameaças e palavras de persuasão. Embora os manifestos fraternais dos socialistas alemães e franceses estivessem grudados nos muros, não ficavam ali mais de um dia, pois à noite os “camelots du roi” os arrancavam ou sujavam com palavras de escárnio. Nesses dias agitados vi anunciado que Jaurès faria um discurso: nos momentos de perigo ele estava sempre presente. 
O Trocadéro, maior salão de Paris, haveria de servir-lhe de tribuna. Esse prédio absurdo, esse “nonsense” em estilo oriental-europeu, resto da antiga Exposição Universal, que com seus dois minaretes saúda na outra margem do Sena o outro vestígio histórico, a torre Eiffel, oferece em seu interior um espaço vazio, sóbrio e frio. Em geral serve a eventos musicais e raramente à palavra falada, pois o ambiente vazio absorve quase todos os sons. Só um gigante de voz, um Mounet-Sully, conseguia projetar suas palavras da tribuna até o alto das galerias, como quem lança uma corda por sobre um precipício. Era ali que Jaurès falaria, e a sala gigantesca cedo começou a encher. Já não lembro se era um domingo, mas todos vieram vestindo trajes de dia de festa, eles que normalmente fazem seu trabalho em camisas azuis nas caldeiras e fábricas, os trabalhadores de Belleville, de Passy, de Montrouge e Clichy, para ouvir seu tribuno, seu líder. O enorme salão estava negro de gente que se acotovelava já muito antes da hora, sem aqueles sons impacientes como nos teatros da moda, sem aqueles gritos reivindicatórios, rítmicos, pedindo que as cortinas logo se abrissem. A massa apenas ondulava, poderosa e agitada, cheia de expectativa, mas também de disciplina  imagem que por si só já era inesquecível e profética. Então surgiu um orador, uma faixa atravessada no peito, para anunciar Jaurès; mal se conseguia ouvi-lo, mas imediatamente fez-se o silêncio, um imenso silêncio que respirava. E ele entrou. 
Com os passos pesados e firmes que eu já conhecia nele, Jaurès subiu à tribuna, subiu do silêncio absoluto para um trovão extático e tonitruante de boas-vindas. A sala inteira ficara de pé e as aclamações eram mais do que vozes humanas: eram a ansiosa gratidão acumulada, o amor e a espe- rança de um mundo que geralmente se encontra dividido e disseminado, individualizado em silêncio e gemidos. Jaurès precisou esperar minutos e mais minutos antes de conseguir fazer sua voz se distinguir dos milhares de gritos que o rodeavam. Teve de esperar e esperava sério, persistente, consciente do momento, sem o sorriso amigável, sem a falsa resistência que os comediantes nesses momentos costumam colocar em seus gestos. Só começou a falar quando a onda se apaziguou. 
Sua voz não era a mesma daquela vez, uma voz que misturava amigavelmente brincadeiras e palavras significantes. Era outra voz, forte, lacônica, entrecortada pela respiração, uma voz metálica como minério. Nada havia nela de melódico, nada daquela maleabilidade vocal que tanto seduz no caso de Briand, seu perigoso companheiro e rival; a voz não era polida e não agradava os sentidos. Só se percebia nela acuidade  acuidade e determinação. Às vezes, arrancava uma única palavra da fornalha fogosa de sua fala como se fosse uma espada e a enfiava de um só golpe na multidão que gritava, atingida no fundo do coração. Não havia modulação nesse pathos, talvez lhe faltasse o pescoço flexível para amenizar a melodia do órgão vocal, parecia que sua garganta ficava no peito  mas por isso mesmo percebia-se tão intensamente que a sua palavra vinha de dentro, forte e excitada, diretamente de um coração forte e excitado, muitas vezes ainda arfando de ira, vibrando como a batida do coração em seu peito largo e forte. E essa vibração passava da sua palavra para todo o seu ser, quase o fazia perder o equilíbrio, ele caminhava de um lado para o outro, erguia o punho cerrado contra um inimigo invisível e o deixava cair sobre a mesa, como se fosse destruí-la. Toda a máquina a vapor de seu ser trabalhava com cada vez mais força nesse sobe e desce de touro enfurecido, e involuntariamente esse poderoso ritmo de uma excitação obstinada contagiava a multidão. Os gritos respondiam a seu chamado com uma força crescente, e sempre que ele cerrava o punho muitos o acompanhavam. 
De repente, a sala fria, ampla e vazia estava repleta da excitação trazida por esse homem único, forte, que sua própria força fazia tremer, e sempre aquela voz aguda passava de novo por cima dos regimentos escuros de trabalhadores, qual um trompete, conclamando seus corações para o ataque. Eu mal conseguia escutar o que ele dizia, apenas percebia para além do sentido o poder dessa vontade e sentia que também me aquecia, por mais estranhos que fossem a mim, o estranho, tanto o ensejo quanto a hora. Mas eu percebia o homem de maneira tão forte como jamais percebera alguém, sentia-o, e sentia o imenso poder que dele exalava. Pois por trás desses poucos milhares que agora estavam enfeitiçados por ele, sujeitos à sua paixão, havia ainda milhares e milhares que sentiam o seu poder de longe, transmitido pela eletricidade da vontade contínua, da magia da palavra  as incontáveis legiões do proletariado francês e mais ainda seus companheiros além das fronteiras, os trabalhadores de Whitechapel, de Barcelona e Palermo, de Favoriten e St. Pauli, de todas as direções e cantos da Terra, que confiavam nesse seu tribuno e estavam dispostos a doar a sua vontade a ele a qualquer momento. 
 
Com seus ombros largos, robusto, o corpo compacto, Jaurès podia dar, àqueles que só ligam ao tipo do francês as noções de delicadeza, sensibilidade e maleabilidade, a impressão de não ser da estirpe de um verdadeiro gaulês. Mas só se pode compreendê-lo enquanto francês, em sua terra, só no contexto, só como representante, último de uma estirpe. A França é o país das tradições, raras vezes um grande fenômeno ou uma pessoa importante é inteiramente novo; todos são resultado de coisas já intuídas e vividas, cada acontecimento tem a sua analogia (e não é difícil identificar analogias entre o atual fanatismo, esse sangrar por uma única ideia, e 1793). Eis o grande divisor de águas em relação à Alemanha. A França está constantemente se reproduzindo, e nisso reside o segredo da manutenção de sua tradição, por isso Paris é uma unidade, sua literatura um círculo fechado, sua história interna uma repetição rítmica de maré alta e baixa, de revolução e reação. Já a Alemanha evolui e se modifica constantemente, e esse é o segredo do constante aumento de seu vigor. Na França, é possível explicar tudo com analogias, sem se tornar violento, na Alemanha nada, pois nenhum estado psíquico ali se assemelha ao outro, entre 1807, 1813, 1848, 1870 e 1914 há enormes transformações que modificaram a essência de sua arte, sua arquitetura, suas camadas. Mesmo suas personalidades são únicas e novas – não há precedentes na história alemã para Bismarck, Moltke, Nietzsche ou Wagner. E os homens desta guerra, por sua vez, são o começo de um novo tipo organizatório, e não repetições de um passado. 
Na França, o homem importante raramente é único, e esse também é o caso de Jaurès. E por isso mesmo ele é genuinamente francês, cria de uma estirpe intelectual que remete à revolução e que tem um repre- sentante em todas as artes. Sempre houve lá em meio à maioria delicada, frágil e de bom gosto esse tipo vigoroso com nuca de touro, ombros largos, sangue pesado, esses maciços netos de camponeses. Eles também têm nervos, mas seus nervos parecem ser envoltos por músculos; também são sensíveis, mas sua vitalidade é mais forte que a sensibilidade. Mirabeau e Danton são os primeiros intempestivos desse tipo, Balzac e Flaubert são seus filhos, Jaurès e Rodin, os netos. Em todos eles, surpreende a estatura larga, a robusteza do ser e da vontade. Quando Danton sobe à guilhotina, a armação de madeira estremece; quando querem baixar o gigantesco ataúde de Flaubert ao túmulo, este se revela pequeno demais; a poltrona de Balzac foi feita para o dobro do peso, e quem atravessa o ateliê de Rodin não consegue conceber que essa floresta de pedras foi criada por duas mãos terrenas. Trabalhadores titânicos, é o que todos eles são; honestos e sinceros, unidos no destino de serem empurrados para o lado pelos maleáveis, os astuciosos, os de bom gosto. O gigantesco trabalho da vida de Jaurès também foi frustrado: Poincaré foi mais forte do que ele, o mais forte, graças à sua maleabilidade. 
Mas esse francês de velha cepa, como era Jaurès, indubitavelmente, era impregnado pela filosofia, a ciência, o espírito da Alemanha. Nada autoriza as futuras gerações a afirmar que ele amava a Alemanha, mas uma coisa é certa: ele conhecia a Alemanha, e isso já é muito na França. Conhecia pessoas alemãs, cidades alemãs, livros alemães, conhecia o povo alemão e, um dos poucos no estrangeiro, o seu vigor. Por isso, pouco a pouco, a ideia de evitar a guerra entre essas duas potências tornara-se a ideia mestra de sua vida, seu temor, e tudo o que fez nos últimos anos foi apenas pensando em evitar esse momento. Não se preocupou com humilhações, deixou que o chamassem de “deputado de Berlim”, emissário do imperador Guilherme, permitiu que os chamados patriotas o ironizassem e atacou impiedosamente os que atiçavam e incitavam à guerra. Desconhecia a ambição do advogado socialista Millerand de exibir honrarias no peito; desconhecia a ambição de seu antigo camarada Briand, que passou de agitador a ditador; nunca quis enfiar seu peito largo em um fraque  sua ambição continuava sendo a de proteger o proletariado, que confiava nele, e todo o mundo da catástrofe, cujas minas e cujos túneis ele já escutava sendo escavados sob seus próprios pés em seu próprio país. Enquanto ele se lançava, com todo o dinamismo de Mirabeau, com o ardor de Danton, contra os que incitavam e inflamavam, ao mesmo tempo precisava barrar o zelo exacerbado dos antimilitaristas em seu próprio partido, sobretudo Hervé, que então conclamava aos brados para a revolta como hoje grita diariamente pela “vitória definitiva”. Jaurès pairava acima deles, não queria nenhuma revolução, porque ela também precisava ser conquistada com sangue, e ele tinha horror ao sangue. Discípulo de Hegel, acreditava na razão, na evolução sensata através da constância e do trabalho, o sangue lhe era sagrado e a paz entre os povos, a sua profissão de fé. Trabalhador vigoroso e incansável que era, assumira o mais pesado compromisso, o de continuar sendo sensato em um país passional, e mal a paz foi ameaçada, ele continuava ereto como um posto pronto para tocar o alarme no perigo. O grito que deveria conclamar o povo da França já estava em sua garganta quando eles o derrubaram, eles que já o conheciam em sua força inabalável, e cujas intenções e aventuras ele conhecia. Enquanto ele permanecesse vigilante, a fronteira estava segura. Eles sabiam disso. E só por sobre o seu cadáver a guerra foi detonada, e os sete exércitos alemães invadiram a França.
 
FonteZWEIG, Stefan: O mundo insone e outros ensaios, tradução de Kristina Michahelles; organização e textos adicionais de Alberto Dines, Rio de Janeiro: Zahar, 2013, pp. 175-184.

terça-feira, 11 de março de 2025

POR QUE O BRASIL NÃO TEM UM ÚNICO PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA?


Por JOSÉ CARLOS GENTILI *
O HOMEM TEM A DIMENSÃO DO SEU PENSAMENTO.
                                                                        José Carlos Gentili
Transcrevemos com a devida vênia do Blogue Comunidades (que atualmente se encontra descontinuado) a parte final da mensagem enviada pelo autor, intitulada Presente para Brasília no dia de seu aniversário e publicada em 29 de abril de 2018.

XXVII Congresso Internacional de Antropologia Ibero-Americana

(...) Por que o Brasil não tem um único Prêmio Nobel de Literatura? – indaga-me o ávido e ilustre leitor destas reflexões, neste momento. 

Quiçá a resposta se encontre nas profundezas ignotas dos meandros político-sociológicos, onde o destino repousa nos braços do acaso, sob as vistas das oportunidades, que regem o universo dos acontecimentos. 

Anos passados, por estes acontecimentos do destino, fui privilegiado por ter sido recebido na Svenska Akademien, na Suécia, pelo ilustre Odd Zschiedrich, que ofereceu o tradicional “chá das cinco” em inesquecível e fidalga visita. Hoje, o norueguês Odd, que me honra com fidalguia e distinção, é o poderoso Mestre de Cerimônias da Casa Real, em Estocolmo. 

A seguir, passei a conhecer esta notável instituição, a qual dediquei o livro de poesias, Universo do Verso, que elenca os poetas agraciados com Prêmio Nobel; obra, também, com edição espanhola, prefaciada pela dirigente da Universidade de Salamanca, a doutora – professora Ascención Rivas Hernández. 

O único escritor da língua portuguesa a ser agraciado com o laurel foi o português José Saramago, literato de indiscutível valor e nomeada, que mereceu apoio e incentivo literário do saudoso Primeiro-Ministro português – Mário Soares, ambos participantes do movimento socialista. 

José Saramago, sempre polêmico, foi lapidar e categórico a respeito das nuances e tênues divergências lexicais e semânticas dos falantes e seus falares no mundo da Língua de Camões: 

“Não existe a língua portuguesa. Existem línguas em português”. 

Seria maravilhoso e emulativo para a cultura brasileira, se um escritor brasileiro viesse a receber o galardão, mormente por tratar-se da maior população de língua portuguesa do mundo. 

Trago à baila afirmativa de Saramago, encontradiça na obra Ensaio sobre a Cegueira, que nos remete ao universo do incognoscível: 

“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. 

Vejam todos! Reparem todos! 

Inúmeros e extraordinários literatos do Brasil reúnem inigualáveis condições de serem agraciados, pois têm visibilidade internacional e um conjunto de obras com dimensão de notável meritocracia. São muitos, velhos e novos escritores, cuja nominação seria um ato imperdoável e insano, face à viabilidade de omissões ocasionais. 

Costumo afirmar que o tempo é o senhor das ações e o tempo dirá! 

Açores, em 29/04/2018 

 * Gentili é pioneiro da Capital da Esperança, autor de quase 50 obras literárias, Presidente de Honra Perpétuo da Academia de Letras de Brasília, fundador e primeiro presidente da Academia Maçônica de Letras do Distrito Federal e um dos 20 brasileiros membros da Academia de Ciências de Lisboa, dos Institutos Históricos e Geográficos do DF e do Rio Grande do Norte, além de componente do Conselho Executivo do Museu da Língua Portuguesa, em Bragança/Portugal. Único brasiliense a receber um prêmio nacional de literatura, outorgado pela Academia Brasileira de Filologia, da qual, atualmente, é Membro Correspondente Nacional, em face do lançamento de "A Infernização do Hífen", considerado referência no mundo lusófono.

 

Link do Presente para Brasília no dia de seu aniversário: https://acores.rtp.pt/comunidades/presente-para-brasilia-no-dia-de-seu-aniversario-por-jose-carlos-gentilipresente-para-brasilia-no-dia-de-seu-aniversario-por-jose-carlos-gentili/

domingo, 16 de fevereiro de 2025

O MUNDO INSONE


Por STEFAN ZWEIG (1881-1942)
Quando em 28 de junho de 1914 soube do assassinato do arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do Império austro-húngaro, e sua mulher, Stefan Zweig passava uma espécie de lua de mel rural com Friderike von Winternitz, sua primeira mulher, nos arredores de Viena. O otimismo europeísta não permitiu que interrompesse a rotina anual de visitar o mestre Verhaeren. Um mês depois, conseguia tomar um dos últimos trens que deixaram a Bélgica antes que os alemães a invadissem.
Nos primeiros dias do conflito vibrou com a vibração dos austríacos e alemães, mas logo começou a duvidar, dividido, inquieto  mergulhara na primeira crise existencial. Saiu dela amparado pela força de Friderike, pelas cartas de Romain Rolland e transformado num pacifista integral.
Para diminuir a ansiedade começou a escrever com mais frequência no folhetim do Neue Freie Presse. Um mostruário de cinco artigos (praticamente um a cada ano de conflito) foi incluído no primeiro livro de ensaios, enfeixados com o título "Durante a Primeira Guerra Mundial" (estava certo de que logo haveria outra guerra).
Zweig apresenta o conjunto com breves linhas: “A publicação na íntegra [destes textos] comprova que mesmo em meio à guerra era possível tomar uma atitude independente contra a maior das catástrofes europeias, não obstante a rigorosa censura.”
O mundo insone”, o primeiro dos textos, foi publicado no dia 18 de agosto de 1914, três semanas depois de iniciado o conflito. O instigante título um clássico zweiguiano tem sido utilizado com frequência nas coletâneas de ensaios publicados no pós-guerra.                                                                                             Alberto Dines

                                                                                                                    

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Corrigindo: sua primeira passagem pelo Brasil foi em 1936

Há menos sono no mundo agora, as noites são mais longas e mais longos os dias.
Em cada país da infinita Europa, em cada cidade, cada ruela, cada casa, cada aposento, a respiração tranquila do sono tornou-se curta e febril, e o tempo ardente abrasa as noites e confunde os sentidos, tal qual uma noite de verão abafada e sufocante. Quantas pessoas, aqui e ali, que normalmente deslizavam da noite para o dia no negro barco do sono, embandeirado de sonhos coloridos e palpitantes, escutam agora os relógios andando, andando e andando todo o terrível caminho entre o claro e o claro, sentindo por dentro as preocupações e os pensamentos a corroer-lhes o coração, até este ficar ferido e doente! Toda uma humanidade arde agora em febre, noite e dia, uma vigília terrível e poderosa cintila pelos sentidos agitados de milhões de pessoas, o destino penetra, invisível, por milhares de janelas e portas e espanta de cada leito o sono, espanta o esquecimento. Há menos sono no mundo agora, as noites são mais longas e mais longos os dias. 
 
Ninguém mais está a sós com o seu destino, todos espreitam ao longe. À noite, hora em que se está sozinho e acordado na casa protegida e trancada, os pensamentos voam até os amigos e os que estão distantes. Quem sabe a essa mesma hora se cumpre alguma parte do nosso destino, uma invasão em uma aldeia da Galícia, um ataque em alto-mar, tudo o que acontece nesse mesmo segundo a milhares e milhares de milhas de distância está relacionado com nossas vidas. E a alma sabe disso, ela se expande e, em seu pressentimento, em seu anseio, quer captar algo disso, o ar queima de desejos e rezas que agora vão e voltam voando de um lado do mundo para o outro. Milhares de pensamentos se movimentam, inquietos, das cidades silentes até as fogueiras de campanha, do solitário sentinela de volta à pátria; entre os que estão próximos e os distantes flutuam fios invisíveis de amor e de preocupação, um tecido do sentimento, infinito, encobre agora o mundo, de noite e de dia. Quantas palavras são sussurradas, quantas orações ditas ao espaço impassível, quanto amor saudoso flutua através de cada hora da noite! A atmosfera estremece continuamente em ondas misteriosas cujos nomes a ciência desconhece e cujas oscilações nenhum sismógrafo é capaz de registrar: mas quem poderia dizer se esses desejos são impotentes, se esse incomensurável querer, que irrompe ardente a partir das camadas mais profundas da alma, também não percorre distâncias como a vibração dos sons e o estremecimento elétrico? Onde antes havia sono, repouso imaterial, agora há o afã imaginativo: a alma não cessa de ver, através da escuridão, os ausentes que lhe são caros, e na imaginação cada um deles vive múltiplos destinos. Milhares de pensamentos escavam o sono, cuja construção oscilante desmorona sempre, e por cima do homem solitário ergue-se vazia a escuridão povoada de imagens. Mais vigilantes à noite, as pessoas também se tornam mais vigilantes de dia: nas pessoas mais simples que encontramos está vivo nessas horas algo do poder do orador, do poeta, do profeta, é como se o que há de mais misterioso nos homens tivesse sido vertido para fora pela incomensurável pressão dos fatos, cada pessoa potencializada em sua vitalidade. Assim como lá no campo, nos simples camponeses, que a vida toda aravam sua lavoura quietos e pacíficos, nessa hora inquieta subitamente se inflama o heróico, assim se inflama em pessoas normalmente opacas e torpes a capacidade da visão; todos vivenciam dentro de si uma visão que transcende a esfera normal de sua existência, e quem antes só tinha olhos para o seu trabalho diário vê agora realidade e imagens animadas em cada notícia. As pessoas revolvem constantemente com preocupações e visões a gleba árida da noite, e quando enfim se rendem ao sono, têm sonhos estranhos. Porque o sangue circula mais quente em suas veias, e nesse calor florescem plantas tropicais de terror e preocupação, sonhos dos quais é uma bênção acordar e sentir que não passaram de pesadelos inúteis e que só aquele mais terrível sonho da humanidade é uma verdade aterradora: a guerra de todos contra todos. 
 
Os mais pacíficos sonham agora com batalhas, colunas se precipitam e atravessam o sono, o sangue ruge, escuro, com o tronar dos canhões. Acordando num sobressalto, ouvimos ainda o estrondo dos carros que passam, o bater dos cascos. Escutamos atentamente, inclinado-nos da janela  e, de fato, ali embaixo passam as longas fileiras de carros e cavalos pelas ruas desertas. Alguns soldados levam um bando de cavalos no cabresto; pacientes, eles trotam com seus passos pesados e sonoros pelo calçamento ruidoso. Também eles, os animais que normalmente descansam à noite do trabalho, quietos em seus estábulos quentes, foram privados do sono habitual, as parelhas pacíficas foram separadas, as fraternais também. Nas estações [de trem] escutam-se as vacas mugindo mansas nos vagões; retiradas de seus pastos cálidos e macios de verão para o desconhecido, até elas, as apáticas, tiveram o sono perturbado. E os trens partem para a natureza adormecida, que também se sobressalta com a agitação das pessoas. Tropas da cavalaria galopam à noite cruzando campos que desde a eternidade descansavam no escuro, por sobre a negra superfície do mar faíscam em milhares de pontos os faróis, mais claros que a luz da lua e mais ofuscantes que o sol, até mesmo lá no fundo a treva das águas está perturbada pelos submarinos à caça de presas. Disparos soam e ressoam através das montanhas caladas, acordando os pássaros, tontos, em seus ninhos; em nenhum lugar o sono é seguro, e mesmo o éter, desde sempre intocado, é atravessado pela pressa assassina dos aeroplanos, os fatídicos cometas do nosso tempo. Nada, nada mais pode ter sossego e descanso nesses dias: a humanidade arrastou animais e natureza em sua batalha assassina. Há menos sono no mundo agora, as noites são mais longas e mais longos os dias. 
 
Mas pensemos e repensemos, mais uma vez, a amplitude do tempo e que isso que acontece agora não tem precedente na história. Vale ficar insone, sempre vigilante. Nunca o mundo, desde que é mundo, esteve tão agitado em sua totalidade, nunca tão excitado em sua comunidade. Uma guerra, até agora, nunca passou de uma inflamação no imenso organismo da humanidade, um membro purulento e que era cauterizado para sarar enquanto todos os outros ficavam desimpedidos e livres em suas funções vitais. Sempre houve pessoas que não participavam, em algum lugar ainda havia aldeias às quais não chegavam notícias daquela agitação e que dividiam calmamente sua vida em dia e noite, em trabalho e repouso. Em algum lugar ainda havia o sono e o silêncio, gente que acordava cedo, risonha, e que dormia sem sonhar. Mas a humanidade, quanto mais conquistou a Terra, mais unida ficou: uma febre sacode agora todo o seu organismo, um terror sacode o cosmo inteiro. Não existe nenhuma oficina na Europa, nenhuma granja solitária, nenhum casario de bosque de onde não tenham arrancado um homem para participar dessa luta, e cada um desses homens, por sua vez, está unido a outros através de vínculos de sentimento. Até o mais humilde emana tanto calor que, quando desaparece, tudo se torna mais frio, mais solitário, mais vazio. Cada destino forma outros destinos a partir de si, pequenos círculos que se dilatam em ondas no mar das emoções e se ampliam; em enorme união e mútua determinação da experiência, ninguém se precipita no vazio ao morrer: cada um arrasta algo dos demais consigo. Cada um é acompanhado de olhares, e esse olhar e ansiar, multiplicado por milhões e entrelaçado com o destino de nações inteiras, cria a inquietação de um mundo inteiro. Toda a humanidade escuta, e através do milagre da técnica recebe simultaneamente a mesma resposta. Os navios transmitem mensagens uns aos outros através de incontáveis ondas, das torres de telégrafos de Nauen e Paris uma mensagem é transmitida em questão de minutos para as colônias da África Ocidental e para o lago Chade, os hindus da Índia leem as decisões em suas folhas de cânhamo e de tela à mesma hora que os chineses em seus papéis de seda  a excitação se propaga até as últimas terminações nervosas da humanidade e afugenta a letargia. Cada qual espia pela janela dos seus sentidos em busca de notícias, sugando tranquilidade das palavras dos corajosos e terror e dúvida das dos desesperados. Os profetas, verdadeiros e falsos, voltaram a ter ascendência sobre a massa que agora escuta e escuta, caminhando e repousando no delírio da febre, dia e noite, os longos dias e as noites infinitas desse tempo digno de ser vivido na vigília. 
 
Pois esses tempos não aceitam que alguém deixe de participar, e estar distante dos campos de batalha não significa estar de fora. Cada um de nós tem sua existência revolvida, ninguém mais tem o direito de dormir em paz em meio à tremenda exaltação. Nessa transformação das nações e dos povos, nós também nos transformamos, não importa que aprovemos ou não; cada um está enredado nos acontecimentos, ninguém permanece frio na febre de um mundo. Não há como ficar indiferente às realidades transformadas, hoje ninguém mais está a salvo em uma rocha, olhando com um sorriso para as ondas agitadas. Cada qual, querendo ou não, é arrastado pela maré, sem saber para onde está sendo levado. Ninguém pode se isolar, pois com nosso sangue e nosso intelecto giramos na correnteza de uma nação, e cada aceleração nos impulsiona, cada parada em seus pulsos barra o ritmo de nossa própria vida. Quando a febre ceder, tudo terá um novo valor para nós, e justo o igual será diferente. As cidades alemãs: com que sentimento as veremos depois dessa luta! E Paris: como terá se tornado diferente, estranha ao nosso sentimento! Sei desde agora que não poderei ficar na mesma casa hospitaleira em Liège com o mesmo sentimento, com os mesmos amigos, depois que as granadas alemãs caíram sobre a cidadela; entre tanto amigos, de um lado e outro da fronteira, estarão as sombras dos mortos, absorvendo com respiração fria o calor da palavra. Todos teremos que nos reorientar, do ontem para o amanhã, atravessando esse impenetrável hoje, cuja violência apenas percebemos agora, horrorizados, e teremos que chegar a uma nova forma de vida em meio a essa febre que agora torna nossos dias tão abrasadores e nossas noites tão sufocantes. Depois de nós surge uma nova geração cujos sentimentos foram forjados nesse fogo. Eles serão diferentes  eles, que viram vitórias naqueles anos em que nós só vimos retrocesso, lamento e lassidão. Da confusão desses dias surgirá uma nova ordem, e nossa primeira preocupação terá que ser nos sujeitar a ela com força e solidariedade. 
 
Uma nova ordem  pois essa febre insone, a inquietude, a esperança e a expectativa que consomem a tranquilidade dos nossos dias e das nossas noites não podem continuar. Por mais que toda a destruição agora pareça se estender de forma terrível sobre o mundo aniquilado, ela é diminuta em comparação com a energia muito mais impetuosa da vida, que depois de cada tensão sempre consegue um repouso para sair transformada, mais pujante e mais bela. Uma nova paz  oh!, quão distantes brilham ainda suas asas luminosas através da poeira e da fumaça de pólvora  haverá de reerguer a velha ordem da vida, o trabalho de dia e o repouso à noite. O silêncio voltará com o sono reparador aos mil lares que agora estão despertos na excitação e no medo, e estrelas tranquilas voltarão a olhar do alto para uma natureza que respira felicidade. O que agora ainda parece ser horror será então, em sublime transformação, grandeza. Sem lamento, quase com nostalgia, lembraremos essas noites intermináveis, durante as quais, em ampliação maravilhosa, percebíamos no sangue o destino em gestação e a cálida respiração do tempo sobre nossas pálpebras despertas. Só quem viveu a doença conhece a felicidade completa da cura, só o insone conhece a doçura do sono reconquistado. Os que regressaram e aqueles que ficaram em casa estarão mais contentes com sua vida do que os que se foram, saberão apreciar seu valor e sua beleza com mais seriedade e mais justiça, e quase ansiaríamos pela nova conformação se hoje  como nos dias antigos  o chão do templo da paz não estivesse regado com o sangue sacrificado, se esse novo e feliz sono do mundo não fosse comprado à custa da morte de milhões de seus filhos mais nobres.
 
FonteZWEIG, Stefan: O mundo insone e outros ensaios, tradução de Kristina Michahelles; organização e textos adicionais de Alberto Dines, Rio de Janeiro: Zahar, 2013, pp. 197-203.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

PORQUE ESCREVI ESTE LIVRO ¹

Por ROGÉRIO MEDEIROS GARCIA DE LIMA *

 
Sou nascido em Minas Gerais. 
Se concordarmos com Alceu Amoroso Lima, todo mineiro é romancista, contista e piadista de nascença:
Mais do que isso  é contador de histórias, de casos verídicos, de situações pitorescas e estranhas. Com aquele sense of humour, tão típico do mineiro, sabe ele ver sempre o lado cômico ou ridículo das coisas. De modo que, a todo propósito, tem sempre um exemplo a dar, um caso a contar. (...) A naturalidade do mineiro, a sua ausência de pose, o seu desajeitamento, fornecem amplo material para essa antologia natural de contos anônimos, de onde os verdadeiros escritores vão tirar os elementos para suas obras. Os romancistas e contistas mineiros são apenas vocações particulares de uma grande inclinação geral do seu povo.
Ingressei no universo das redes sociais em 2014. 
Primeiro, criei uma conta no Facebook; posteriormente, no Instagram
Foi muito bom reencontrar parentes, amigas e amigos. 
Com alguns, não falava havia anos  inclusive os residentes em estados ou países distantes. 
Percebi, contudo, o volume de postagens fúteis ou agressivas no ambiente virtual. 
A agressividade, especialmente, subiu de tom aos poucos. 
A ponto de promover discursos de ódio no Brasil e mundo afora. 
Eu refletia: em meio a futilidades e ódios, haverá espaço para a leveza? 
As redes sociais comportariam pitadas de literatura? 
Poderiam ser veículos propagadores da cultura e da fraternidade? 
Penso que sim. 
Comecei então a veicular, nas minhas contas, pétalas literárias. 
Em forma de reminiscências, narrativas, gracejos e poesia. 
Prosa e verso. 
Prosa, sobretudo. 
De poeta tenho só boas intenções... 
Uma mini-literatura adequada aos limites espaciais e temporais da web
A internet é o território da concisão e ligeireza. 
Passei a me adestrar na produção de posts concisos e de leitura rápida. 
Todavia, de conteúdo reflexivo  mesmo quando cômicos ou irônicos. 
Textos à moda de Fernando Sabino, um gênio da crônica já citado aqui. Trabalhosos para escrever, mas de simples assimilação. Levam à crença de que foram facilmente escritos. 
Novas tecnologias não dispensam a leitura de obras clássicas, apontou o filósofo francês Roger-Pol Droit. Mesmo os mais eficientes técnicos, empresários ou gestores, precisam ler os clássicos. Ler as tragédias de Sófocles, a moral de Epicuro ou as estratégias da Guerra do Peloponeso, tanto quanto ou mais do que estudam a trigonometria e o cálculo diferencial. 
Um mundo sem romances será incivilizado, bárbaro, órfão de sensibilidade, pobre de palavra e ignorante. 
Um mundo privado do espírito. 
Um mundo composto por uma humanidade resignada de robôs, que abdicaram da liberdade. 
Busco transmitir importante mensagem aos usuários das redes sociais: se bem usadas, elas propagarão a paz, cordialidade, encantamento e cultura. 
Reuni neste livro algumas postagens selecionadas. 
Com o devido burilamento, mas sem alteração essencial dos conteúdos. 
Agradeço aos leitores e leitoras pela paciência de me acompanhar até aqui. 
Vamos em frente: doravante o caminho será menos tortuoso.
 
* Rogério Medeiros Garcia de Lima, natural de São João del-Rei/MG,  é bacharel e doutor em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Magistrado de carreira há 35 anos, é desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais em 2008. Professor, conferencista e escritor. Autor de várias obras de Direito, ocasionalmente publica livros alheios ao mundo jurídico. 

 
NOTAS EXPLICATIVAS


¹  N.T.: O livro de sua autoria a que o autor se refere é Redes Sociais em Prosa e Verso, Belo Horizonte: Del Rey, 2024, 314 p.

² DROIT, Roger-Pol. Voltar a Ler os Clássicos, Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores, tradução de Pedro Vidal, 2011, pp. 19-20
 
³ LLOSA, Mario Vargas. Em defesa do romance, Revista Piauí, edição nº 37, outubro de 2009, Questões Literárias. Disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/materia/em-defesa-do-romance/. Acesso em 06/12/2020.


domingo, 2 de fevereiro de 2025

Da tradução de textos de Marcos e João, pelo helenista Frederico Lourenço


Por Pe. WOLFGANG GRUEN, SDB
O gerente do Blog de São João del-Rei dedica este artigo ao ilustre tradutor e helenista português por sua obra de divulgação de grandes obras escritas em grego. A publicação deste artigo tem por objetivo contribuir para uma próxima e esperada reedição de sua tradução do Novo Testamento que  espero venha contemplar as sugestões do grande e experiente helenista salesiano, sem absolutamente desqualificar a sua atual edição, conforme afinal já o fizeram também outros estudiosos como José Augusto Ramos e Anderson de Oliveira Lima, de conhecimento deste gerente, com vista a um aperfeiçoamento do texto.  

 

Pe. Wolfgang Gruen (1927-2024)

Alguns dos livros da autoria de Wolfgang Gruen

I. Observação preliminar. 

Para traduzir “do grego”, convém verificar primeiro qual o dialeto grego do original: homérico, jônico, dórico, eólico, ático; se for um texto de filósofo, é preciso ter em conta o alcance de seus termos específicos; etc. 

Ora, o Novo Testamento (NT) foi escrito no grego espalhado e vulgarizado por Alexandre Magno, chamado koiné diálektos, que variava um pouco conforme a região. No caso da Bíblia, era a koiné alexandrina, pois foi em Alexandria do Egito que, nos séculos 3-2 a.C., se fez a primeira tradução completa do Antigo Testamento (AT), para uso dos numerosos judeus da diáspora. Quando os primeiros escritores do NT começaram a escrever para judeus da diáspora e pagãos de língua grega, é compreensível que recorressem em grande parte a essa koiné

No caso de tradutor do NT, não basta que ele seja helenista: tem que ter familiaridade com o vocabulário da koiné alexandrina e particularidades de sua gramática. Muito importante: tem que estar familiarizado com o assunto e seu espírito. Não basta invocar a etimologia de uma palavra para justificar a preferência por determinada tradução: a etimologia não esclarece o significado posterior de um termo: apenas diz seu significado originário, muitas vezes bem diferente do atual. O que esclarece o sentido de um termo ou uma expressão é seu uso pelo povo em determinada época, atual ou passada (cf. WITTGENSTEIN: Investigações Filosóficas). Aliás, uma mesma etimologia pode resultar em sentidos diferentes. Cf. em português: percalço, privar, competente e petulante; candidato, marechal, infantaria, prestígio, escola, idiota, trabalho. Para casos discutíveis, o tradutor terá que consultar um bom dicionário de Grego do NT: recomenda-se o de BAUER/DANKER: Greek-English Lexicon of the New Testament and early Christian literature (1.156 p.). 

II. Vamos aos textos apresentados como amostras.  

Quanto a Mc 1,5: “E eram batizados por ele no rio Jordão, reconhecendo os seus erros”, conforme Frederico Lourenço. As nossas traduções do original grego geralmente dizem confessando seus pecados (Nova Vulgata, CNBB, BJ, TEB, Peregrino, nova tradução das Paulinas; João Ferreira de Almeida (Revista e Atualizada), da Sociedade Bíblica do Brasil. A Tradução do Novo Mundo, das Testemunhas de Jeová, diz: confessando abertamente os seus pecados.)  

Comecemos pelo verbo exomologéo [> exomologoúmenoi]: além de outros sentidos, tem o de admitir, confessar, reconhecer abertamente, professar. O termo hamartía pode ser traduzido por pecado, culpa, falta, erro. À primeira vista, trata-se de sinônimos. Na verdade, sinônimos nunca o são totalmente. No nosso caso, temos uma boa pista: a junção dos dois termos corresponde à expressão confessar os próprios pecados – na oração pública ou particular, e na liturgia. Detalhe: a imersão (em grego: báptisma) na água era muito usada em Qumrân, como em outros lugares, para designar o gesto de confissão dos próprios pecados e seu perdão. O fato de João Batista usar o rito é um dos detalhes pelos quais se costuma afirmar que João Batista, provavelmente, passou uns tempos no ”mosteiro” de Qumrân, logo ali perto. 

Em vez de pecados, convém aceitar a tradução erros? Reconheço que, já bem antes do Vaticano II, principalmente na Igreja católica começou lamentável inflação do termo e do próprio conceito pecado; a inflação teve como resultado, entre outros, a sua desvalorização: “tudo era pecado”. Daí a tão difundida preferência pelo termo mal. Concordo com o saneamento; mas não com a mudança no texto bíblico: isso pertence à interpretação. Em tempos e lugares diferentes, o mesmo texto deverá levar a aplicações e atuações diversas; inclusive, a superar a inflação do conceito pecado: mesmo na área da ética, há males que não são pecados – por falta de conhecimento, de intenção, etc. Posso errar uma citação bíblica e reconhecer o meu erro; mas ele não implica em pecado a ser confessado

Em síntese: não vou dizer que, neste texto, reconhecendo seus erros seja tradução errada; mas ela desconhece importantes conotações dos termos usados no rito do batismo e, com isso, empobrece o que o texto quer dizer. Prefiro o divulgado “confessando seus pecados”. 

Quanto a Jo 1,1. “O Verbo estava em Deus, e Deus era o Verbo.” Algo a questionar nessa tradução? Penso que sim. 

1. “O Verbo estava em Deus?” Se o autor quisesse dizer isso, era só escrever en to Theó . Mas o texto diz prós ton Theón. A preposição prós com acusativo pode significar com Deus, ou junto / perto dele, ou voltado para ele. Note que em Deus dá a impressão de algo fechado, abrigado em. Junto com, perto de, voltado para indica relacionamento e até dinamismo. Em todo caso, na koiné as preposições são mais livres que no grego clássico; por isso, em Deus é aceitável, mas não recomendável. 

2. Deus era o VERBO ou O VERBO era Deus? Em português, dizer que Pedro ama Maria é diferente de Maria ama Pedro: a posição do sujeito da frase faz a diferença. Em latim, tanto faz dizer Petrus amat Mariam como Mariam amat Petrus, Petrus Mariam amat, Mariam Petrus amat. É que o latim e o grego têm sufixos flexionais (desinências) que, acrescentados ao radical da palavra, fornecem seus vários significados gramaticais. Ainda no exemplo acima, o sujeito da frase, Petrus, está no nominativo, enquanto o objeto direto, Mariam, no acusativo; isso basta: a posição na frase é opcional. Em português, nosso sistema de desinências nominais é mais reduzido; não dá certas liberdades, mas em compensação, é mais simples. Até aqui, não há como resolver o problema: o 4º Evangelho diz que Deus era o VERBO, como defende Frederico Lourenço, ou que O Verbo era Deus, de acordo com a grande maioria das traduções? Vejamos. 

3. Tomemos a frase que estamos analisando: o grego é: Theòs en ho Lógos, em latim Deus erat Verbum: temos um sujeito da frase (em grego e latim no caso nominativo), com um verbo de ligação (verbo ser, estar), seguido de um predicativo, também ele no caso nominativo: dois nominativos, um do sujeito, outro do predicativo. (Em latim, há uma “pegadinha” para o iniciante: verbum é neutro, com desinência idêntica no nominativo e no acusativo singular: verbum.) Nessa frase, não temos uma prova de que o sujeito é o VERBO, mas uma probabilidade: quando, numa frase grega, temos um sujeito e um predicativo, ambos no nominativo, mas um com artigo e outro sem, normalmente, aquele que tem artigo é o sujeito. É justamente o caso da frase Theòs en ho Lógos: ho Lógos, sujeito, Theòs, predicativo; a posição na frase não muda o sentido. Estamos na área da probabilidade; mas ainda não dá para resolver o problema. Felizmente, há ainda outros indicadores, que podem ajudar. Vejamos. 

4. Diante das ambiguidades provocadas nos pontos acima, como podemos saber, então, qual o sujeito gramatical, e portanto a tradução correta, de Jo 1,1 “kai Theòs en ho Lógos“: “Deus era o Verbo” ou, “o Verbo era Deus”? O texto grego diz: kaì Theòs en ho logos – literalmente: e Deus era o Verbo. É também a tradução da Nova Vulgata Latina: “et Deus erat Verbum”, ambígua como o original grego, porque, em ambas, a ordem das palavras não altera o sentido da frase. Aliás, a versão latina é mais ambígua, porque o latim não tem artigo definido. Isso já pode acarretar uma diferença. Também em português: Jesus é o filho de Maria é diferente de Jesus é filho de Maria. O grego pode expressar essa diferença num texto, o latim não. 

5. Jo 1,1-5 constitui um monobloco literário e teológico, cujo ponto alto é justamente o final do v.1: kai Theòs en ho Lógos. O actante central desse bloco é o VERBO, citado 10 vezes, embora só 3 com a denominação própria, VERBO. “Ele estava no princípio – ele estava junto de Deus – [ele] era Deus; (resumindo) ele estava no princípio junto de Deus. Tudo foi feito por ele; nada apareceu sem ele. Nele havia vida; esta vida era a luz das pessoas; esta luz brilha (mesmo) nas trevas; as trevas não a venceram.” A denominação VERBO só aparece 3 vezes, sempre com artigo e no nominativo. 

E Theós? De acordo com a tradição judeu-cristã, no NT esse termo é mais usado com artigo – naturalmente no singular. Em Jo 1,1-5, nunca é subentendido; é nomeado 3 vezes, sempre junto do VERBO; nessas 3 vezes, só uma vez é usado sem artigo: no fim do versículo 1, que é o texto que estamos examinando. Que nos diz essa análise linguística? É inegável que o VERBO domina a cena, de ponta a ponta: ele é o sujeito gramatical desse primeiro monobloco. Pede a coerência que se leia assim também esse final do primeiro versículo do Cântico do Verbo. 

Com essa leitura, compreendemos a aparente “exceção” que aparece na frase: Lógos, que domina a cena nesse monobloco, vem sempre acompanhado de artigo, como era de esperar; Theós, que no NT tem preferência pelo artigo (no singular, referindo-se ao Deus único e verdadeiro), se fosse o sujeito da frase, teria mais um motivo para ser acompanhado de artigo; mas, justamente porque não é o sujeito da frase, para evitar o mal-entendido, aqui, e só aqui nesse monobloco, está sem artigo. 

Complementando: dizer que Deus era o VERBO é algo inaudito na Bíblia. Positivamente, temos numerosos comprovantes na Bíblia desse posicionamento: a Palavra de Deus realiza as tarefas: Gn 1, 1-31: Deus disse; Sl 34,6-9; Sb 9,1; Eclo 42,15, etc. Particularmente importante é a comparação desse “Hino ao VERBO” com sua retomada na 1.Jo 1,1-4.5-7. Lembra a nossa profissão de fé, cantada. Poderia ser o motivo pelo qual o autor optou por kaì Theòs en ho Lógos em vez de kaì ho Lógos en en Theõ

Para tudo o que ponderei vale o “salvo melhor juízo”!  

W. Gruen, Belo Horizonte, março 2018. 

 

II. AGRADECIMENTO


O gerente do Blog agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga pela formatação do registro fotográfico utilizado neste trabalho.

 

Colaborador: WOLFGANG GRUEN


Por Francisco José dos Santos Braga
 

Wolfgang Gruen e Dom Bosco
Pe. WOLFGANG GRUEN, SDB, nasceu em 29 de abril de 1927, em Niederfinow, Brandemburgo - Alemanha, filho de Erich Gruen e Herta Gruen, uma família de ascendência judaica. Durante sua infância, a ascensão de Hitler e as políticas antissemitas e totalitárias forçaram a família a buscar refúgio em outros países. Na Itália, a família se converteu à Igreja Católica.
Mas, ao observar a aliança entre Hitler e Mussolini, seu pai optou por transferir a família para a Inglaterra, priorizando a liberdade religiosa. Ainda durante sua permanência na Inglaterra, Wolfgang iniciou sua trajetória na Congregação Salesiana, entrando para o aspirantado em Londres, em 1938. 
Em 1940, depois de obter autorização, a família emigrou para o Brasil, onde se estabeleceu definitivamente. Já no Brasil, fez a primeira profissão religiosa em 31 de janeiro de 1944, em Pindamonhangaba (SP). 
Entre 1944 e 1949, estudou Filosofia no Instituto Salesiano de Pedagogia e Filosofia em Lorena (SP) e, entre 1950 e 1953, completou os seus estudos no Instituto Teológico Pio XI, em São Paulo (SP), onde aprofundou seu interesse pelo ensino religioso e pelas ciências humanas. 
Foi ordenado presbítero a 08 de dezembro de 1953, em São Paulo (SP). Além de sua formação religiosa, Padre Gruen concluiu a Licenciatura Plena em Letras Anglo-Germânicas (1969-1972). 
Em 2006, recebeu o título de Doutor honoris causa em Teologia e Ciências Bíblicas pela Università Pontificia Salesiana de Roma (UPS), em reconhecimento às suas contribuições para o ensino religioso e os estudos bíblicos. 
Ao longo de sua vida, Pe. Gruen construiu uma carreira acadêmica notável. Foi professor da primeira graduação em Ciências da Religião no Brasil, introduzida na década de 1970, na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). 
Sua abordagem inovadora do Ensino Religioso, desvinculada da catequese, tornou-se um marco. Influenciado por pensadores como Hugo Assmann, Rudolf Karl Bultmann, Hubertus Halbfas, Paul Tillich e outros teólogos, ele propôs um modelo de Ensino Religioso com enfoque antropológico, que dava centralidade à busca humana por sentido e se distanciava de uma perspectiva estritamente confessional. 
Essa proposta, voltada à educação básica pública, trazia uma visão aberta e crítica, que considerava as necessidades de uma sociedade plural e secular. 
Além de sua carreira no ensino superior, Padre Gruen exerceu papel relevante no Conselho Estadual de Educação de Minas Gerais, onde contribuiu para a regulamentação do Ensino Religioso no estado. 
Sua atuação ampliou o entendimento da disciplina, promovendo um Ensino Religioso que, em suas palavras, "oferecesse abertura para a diversidade cultural e religiosa". Autor de diversas obras, uma de suas publicações mais conhecidas é "O Tempo Que Se Chama Hoje", em que condensa o Antigo Testamento em uma linguagem acessível e profunda. O livro, destinado ao estudo em grupo, catequese e uso pessoal, convida o leitor a "entrar no espírito do Antigo Testamento", fornecendo esquemas, mapas e pontos para revisão. Seguramente, Padre Gruen compunha a “segunda geração de salesianos: aqueles que, embora não tenham conhecido Dom Bosco, conviveram com salesianos da primeira geração, que, por sua vez, tiveram contato direto com o santo fundador dos Salesianos. 
Ele sempre se recordava com carinho de figuras como o padre Eneias Tozzi, ex-aluno de Dom Bosco e seu primeiro inspetor no Salesian College em Londres, e do padre Frederico Gioia, com quem se confessava semanalmente no colégio Santa Rosa de Niterói. 
Padre Gruen sempre será lembrado por sua coerência na opção preferencialmente pelos mais pobres, tendo se dedicado pastoralmente ao atendimento espiritual e no socorro aos clamores dos mais pequeninos do Reino. Com efeito, sua trajetória, marcada pelo desejo de educar e pela busca incessante pelo entendimento das religiões, deixou um legado duradouro na educação religiosa e na Ciência da Religião, promovendo uma visão que ainda inspira educadores e estudiosos no Brasil e no exterior.
Pe. Wolfgang Gruen, SDB faleceu em 30 de outubro de 2024, aos 97 anos de idade.
 
 
 
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De um artigo intitulado "Padre Wolfgang Gruen: Um Amigo e Educador Dedicado aos Jovens", colheu o gerente do Blog algumas informações sobre Pe. Gruen, escritas por S. Antonio Martins, SDB, à Inspetoria São João Bosco e publicadas no seu site em 04/11/2024, portanto cinco dias após sua páscoa definitiva, que passo a expor: 
Padre Wolfgang Gruen dedicou sua vida ao trabalho incansável em prol dos jovens, refletindo o espírito de Dom Bosco em cada gesto e palavra. Atraído pelo carisma salesiano desde a juventude, ele entendeu que a missão junto aos jovens era não apenas uma vocação, mas um verdadeiro compromisso com o futuro, a educação e a dignidade de cada um deles. (...) Nas escolas e universidades onde lecionou, deixou um marco: um modelo de ensino que valorizava o respeito e a escuta, formando jovens com senso crítico, responsabilidade social e abertura ao diálogo inter-religioso. (...) 
Com uma vida de fidelidade ao sonho salesiano, Padre Gruen foi muito mais que um educador: ele foi um amigo e mentor para os jovens, lembrando a cada um deles que eram amados por Deus e que o conhecimento, a fé e a bondade poderiam transformar o mundo. Sua memória permanece viva em cada jovem que tocou, ecoando ainda hoje como um exemplo de entrega e amor verdadeiro. (...) 
São as importantes contribuições de Padre Gruen para a Catequese no Brasil, membro do Grupo de Reflexão Catequética (Grecat) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), participou ativamente na elaboração de documentos fundamentais, como o “Catequese Renovada”, em 1983, e o atual “Diretório Nacional de Catequese”, de 2007.
 
 
Finalmente, o gerente do Blog deu um passeio pela Internet, onde colheu o seguinte acervo de alguns livros publicados por Pe. Gruen: 
1) Didática do Grego Clássico, livro que foi adotada pelo Ministério da Educação e Cultura dentro da Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (C.A.D.E.S.), Rio de Janeiro: Irmãos Di Giorgio & Cia, 1960, 94 p. 
2) O Tempo que se chama Hoje: Uma introdução ao Antigo Testamento, São Paulo: Edições Paulinas, 6ª edição, 1985, 275 p.
3) Pequeno Vocabulário da Bíblia, São Paulo: Edições Paulinas, 1984, 76 p.
4) A Bíblia na Escola: Subsídio para pais e educadores, São Paulo: Edições Paulinas, 50 p.
5) Nossos irmãos protestantes. Manhumirim: O Lutador, 1965
6) Catecismo Católico, São Paulo: Ed. Herder, 1965, 60 p.
7) O Ensino Religioso na Escola, Petrópolis: Ed. Vozes, 1995, 162 p.
8) O Profeta Elias - Homem de Deus, Homem do Povo, por Carlos Mesters e Wolfgang Gruen, São Paulo: Ed. Paulinas, 1987, 92 p.
9) Bíblia e Catequese. São Paulo: Ed. Sales, 1987 
10) Catecismo da Igreja Católica e a nossa Catequese,  Petrópolis: Ed. Vozes, 1995, 101 p.
11) Uma Igreja que acredita: Evangelho segundo João. São Paulo: Ed. Paulinas, 2000
12) Educação Religiosa e confessionalidade no Colégio Salesiano. Belo Horizonte: ISJB/DEPS, 1995
13)  A história de José, por Gruen & Cantarela - São Paulo: Paulinas, 1980
14)  Carta aberta de Tiago, por Gruen & Cantarela - São Paulo: Paulinas, 1981
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Compacto vinil - Bíblia e Migrações por Pe. Wolfgang Gruen, São Paulo: Edições Paulinas, 1980
 
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COMUNIDADES SALESIANAS EM QUE RESIDIU / TRABALHOU

1954 - 1959 Comunidade São João (São João del-Rei - Colégio Dom Bosco)

1960 - 1961 Comunidade São José (São João del-Rei - Escola Agrícola Pe. Sacramento)

1962 - 1972 Comunidade São João (São João del-Rei - Colégio Dom Bosco e FDB-Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras)

1973 Comunidade São João Bosco (São João del-Rei - Estudantado Filosófico)

1974 Comunidade São João Bosco (Belo Horizonte)

1975 - 2010 Comunidade Santo Tomás de Aquino (Belo Horizonte)

2011 - 2012 Comunidade São Domingos Sávio (Belo Horizonte)

2013 - 2021 Comunidade São José (Belo Horizonte)

2022 Comunidade Beato Miguel Rua (Belo Horizonte)

FORMAÇÃO ACADÊMICA 

1) Graduação em Letras (1969-1972) na Faculdade Dom Bosco-Campus Mercês
2) Graduação em Filosofia (1970-1971) na FDB-Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras
3) Graduação em Teologia (1950-1953) no Instituto Teológico Pio XI
 
Formação Complementar
1946-1946 Extensão Universitária em Biblioteconomia no Instituto Salesiano de Filosofia
1950-1950 O grego da koiné sírio-alexandrina - Instituto Teológico Pio XI
1950-1951 A primitiva literatura greco-cristã - ibidem
1951-1951 Biblioteconomia - ibidem
1967-1967 Didática de línguas - Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras e Campus Mercês
1968-1968 Extensão universitária em O Adolescente, ibidem
1971-1971 Extensão universitária em dinâmica de grupo, ibidem
1984-1986 Língua Hebraica na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PUC Minas 

Atividades
1) Na Universidade Federal de Juiz de Fora: professor de Ciência da Religião: matéria Introdução ao Mundo Bíblico I e II - Nível: pós-graduação
2) Na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais: 
- professor de Cultura Religiosa - Nível: graduação 
- professor de Ensino Religioso: matéria Leitura do Livro Sagrado - Nível: pós-graduação
- professor de Teologia: matéria Introdução ao Antigo Testamento, Exegese Bíblica e Grego Bíblico - Nível: graduação
- membro de Conselhos, Comissões e Consultoria no Núcleo de Estudos em Teologia

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Iconografia do Ginásio Santo Antônio - São João Del Rey, MG - 1936


Por Marcelo Câmara *
 
José Augusto da Câmara Torres - Foto de 1937, de terno e gravata

José Augusto da CÂMARA TORRES (✰ Caicó, RN 22.6.1917 ✞ Niterói, RJ, 21.8.1998), jornalista, educador, advogado e político, quando ainda cursava o quinto ano ginasial do Colégio Salesiano Santa Rosa, em Niterói, participa, de 9 a 11.2.1936, do Congresso Universitário em São João del-Rei, MG, que reunia acadêmicos católicos de vários Estados. José Augusto, com dezessete anos, ainda não era universitário, mas exercia intensa atividade intelectual, como ativista católico e político, e dirigia o jornal A Ordem, Semanário Nacionalista Cristão, na capital fluminense. E foi nessa condição que participou do Congresso, onde conheceu e dialogou com jovens idealistas, que, mais tarde, viriam a ser figuras importantes da vida nacional, em diversas áreas profissionais e latitudes político-ideológicas, da Esquerda e da Direita. Entre outros, estiveram naquele verão em São João del-Rei: Roland Corbisier (filósofo, professor, jornalista e político, fundador e primeiro presidente do ISEB - Instituto Superior de Estudos Brasileiros), Rômulo Almeida (político, economista, escritor e professor, diretor do BNDES), José Garrido Torres (economista e presidente do BNDES), Lauro Escorel (diplomata, embaixador), Carlos Jacyntho de Barros (diplomata, cônsul-geral em Nova Iorque, EUA), Arnóbio Graça (advogado, professor e jornalista), Luiz de Sousa (deputado estadual e Secretário de Estado em Santa Catarina), Abdul Sayol de Sá Peixoto (jurista e professor universitário). 
 
Em dez anos dedicados à elaboração da biografia, Câmara Torres – Vida e Obra, livro digital lançado em 2020 (camaratorresvidaeobra.blogspot.com), nos acervos documentais de meu pai, encontrei um precioso livreto, impresso pela Empresa Graphica “O Cruzeiro” S.A, reunindo doze postais fotográficos, fotos de autor não identificado, de alta qualidade técnica, feitas na década de 1930, do Ginásio Santo Antônio, atual Colégio Santo Antônio, de São João del-Rei. O livreto foi adquirido pelo jovem jornalista Câmara Torres, durante o referido Congresso, realizado em São João del-Rei, naquele fevereiro de 1936. Nos versos dos postais, mensagens com autógrafos de dezenas de universitários presentes ao encontro. 
 
Consciente de que se trata de uma publicação histórica, de inestimável valor cultural para o patrimônio de São João del-Rei, ninguém melhor do que Francisco José dos Santos Braga, ex-aluno do Ginásio Santo Antônio, historiador, erudito intelectual, artista de muitos talentos e fazeres, gerente desse prestigioso blog, para conhecer, interpretar e divulgar esse documento. É com muito gosto e orgulho que promovo a doação virtual do livreto ao dileto amigo Braga, e presenteio os leitores do Blog de São João del-Rei com essas maravilhosas imagens. 
 

 


 
 
 
 
 
1 - Fachada principal
 
2 - Vista do fundo





 




 
3 - Ala direita

 
 
 
 
 
 
 
 
4 - Patio interno

5 - Museu de história natural

 
 
 
 
 
 
 
 
6 - Gabinete de física

 
 
 
 
 
 
 
 
7 - Um dos salões de estudo  


8 - Um dos dormitórios
 
 
 
 
 
 
 
  
9 - Teatro - Vista virada da galeria

 
 
 
 
 
 
 
10 - Um dos corredores

11 - Ginástica no grande pátio
 
 
 
 
 
 
 
 
12 - Campo de futebol
 
Pequeno Perfil biográfico de Câmara Torres 
 
José Augusto da Câmara Torres, jornalista aos onze anos, educador revolucionário, advogado brilhante e grande líder político – foi um notável intelectual cuja vida profissional iniciou-se aos quatorze anos, como orador oficial da mocidade de sua cidade natal, quando inaugura a sua profícua e vitoriosa vida pública. Filho de José Antunes Torres e Maria da Câmara Torres, pertenceu à mesma família do Senador João Câmara (1895-1948), do antropólogo e historiador Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), do Arcebispo Emérito de Olinda e Recife, PE, Dom Hélder Câmara (1909-1999) e do Cardeal do Rio de Janeiro, RJ, Dom Jaime de Barros Câmara (1894-1971). Em 1932, com a transferência do pai telegrafista para Natal, estuda no Colégio Santo Antônio, legendária escola marista. No ano seguinte, a família se muda para Niterói, onde no Colégio Salesiano Santa Rosa, se destaca como orador e jornalista, desenvolvendo fértil carreira como ativista católico e político, fundando e presidindo jornais e instituições culturais. Aos dezenove anos é professor daquela primeira escola salesiana do Brasil, leciona em outras escolas de Niterói, e desenvolve intensa atividade política. Aos vinte e três anos, é Técnico de Educação do Estado do Rio de Janeiro, por concurso público de provas e títulos, onde revoluciona o Ensino Público na Região do Extremo Sul Fluminense, e estreia na Advocacia, área onde atua, ininterruptamente, até o final da vida. De 1954 a 1970, exerce quatro mandatos de Deputado Estadual. Em 1967-8, ocupa a Secretaria de Estado do Interior e Justiça e 1971, a Secretaria de Estado de Serviços Sociais. Aposenta-se do Serviço Público como Consultor Técnico de Educação do RJ. 
 
Publicou Imortais, com Dayl de Almeida (Ed. Getúlio Costa, Rio, RJ, 1940), dezenas de ensaios e conferências nas áreas da Política, História, Sociologia, Educação, Folclore e Literatura, e centenas de artigos na Imprensa fluminense, carioca e potiguar. Foi dirigente da OAB-RJ, titular da Academia Valenciana de Letras (Valença, RJ), fundador do Instituto Histórico e Artístico de Paraty, membro correspondente do Ateneu Angrense de Letras e Artes (Angra dos Reis, RJ), filiado a diversas entidades culturais fluminenses e nacionais e detentor de diversos títulos e láureas. Cidadão Honorário do Estado do Rio de Janeiro e de cinco municípios fluminenses, até o final da vida, mesmo sem cumprir mandatos eletivos, exerceu importante liderança política no Estado, consagrando-se como “O maior líder do Extremo Sul Fluminense no Século XX”. 
 
Fonte: CÂMARA TORRES, VIDA E OBRA, de Marcelo Câmara 
 
* Marcelo Câmara é jornalista, escritor, consultor cultural e empresarial. Site profissional e biográfico: ilhaverde.net