quinta-feira, 16 de outubro de 2025

EMÍLIO DE MENEZES

Por AMADEU AMARAL *

Artigo originalmente publicado em O Estado de São Paulo, edição de 22/06/1918, p. 10. ¹

Amadeu Amaral (✰ Capivari, 6/11/1875 ✞ São Paulo, 24/10/1929)

Amigos e admiradores de Emílio de Menezes, 
não podemos calar o nosso veemente protesto contra as palavras que foram proferidas pelo cidadão Joaquim Marra, em sessão da Câmara Municipal, a 15 do corrente, sobre o projeto que manda seja dado o nome daquele ilustre homem de letras a uma das ruas desta Capital. 
 
O referido cidadão permitiu-se externar conceitos e apreciações em torno desse justo projeto, com uma tal afetação de desprezo pela pessoa e pela obra do notável poeta brasileiro, e com tais assomos de zombaria cruel e de inexplicável rancor, que todos nós, e conosco todas as pessoas educadas e normais, nos sentimos, naturalmente, presas de sincero espanto. 
 
Tanto maior foi o nosso espanto, quanto o citado cidadão, para exibir o seu insultuoso desdém pelo morto, se estribou, declaradamente, na sua ignorância a respeito dos méritos de Emílio de Menezes. Só mesmo por ignorância se poderia negar ao nosso pranteado poeta o lugar de honra que ele conquistou entre os nomes mais brilhantes das últimas gerações literárias do país. 
 
Mas, se o cidadão vereador ignorava o valor de Emílio de Menezes,  o que bem se concebe, apesar de toda a imprensa nacional ter ensinado, nestes dias, quem era e o que era e o que valia o nosso poeta,  como então se atreveu a negar-lhe direito à pequenina homenagem proposta? Desde quando a ignorância adquiriu foros de fundamento válido aos nossos juízes e aos nossos atos? Desde quando ela passou a ser invocada, legitimamente, como razão de julgamento, como motivo de ação, como base de decisões, e sobretudo como estímulo à profanação de defuntos? 
 
Ignorando os merecimentos inegáveis e valiosíssimos de Emílio de Menezes, o sr. Marra não ignora, contudo, os defeitos e os deslizes atribuídos ao ilustre poeta. Nessa matéria, o vereador é sabido. A sua erudição, aí, parece que é completa. O edil conhece perfeitamente tudo quanto Emílio de Menezes "não" foi, tudo quanto ele "não" fez, tudo quanto ele "não" pretendeu. Tem arquivadas na memória todas as suas insuficiências. 
 
"Sabe" que ele nunca se bateu pelos oprimidos e pelos pequeninos,  como o sr. Marra se tem, apostolicamente, batido, através de lutas e sacrifícios tenazes... por si mesmo. "Sabe" que ele não era um homem virtuoso. "Sabe" que ele não era uma alma grande... O sr. Marra sabe tudo quanto é calúnia e infâmia atirada sobre o nome do ilustre compatriota morto há oito dias. 
 
Não temos a pretensão de elucidá-lo. À glória de Emílio de Menezes nada adianta que o sr. Marra modifique o seu juízo, como nada lhe adiantará que o seu nome fique ou não fique pregado a duas ou três esquinas de uma travessa. As injustiças que lhe forem feitas recairão inteiras, esmagadoramente, sobre aqueles que as praticarem. Há nomes que precisam de tabuletas para que se imortalizem  por alguns anos, assim como há celebridades que precisam de estátuas para que não morram segunda vez com pequeno intervalo. O nome de Emílio de Menezes, queiram ou não queiram, está inscrito na história da nossa literatura. 
 
A imagem moral do homem, essa também há de perdurar enquanto viver algum dos numerosos amigos que ele soube conquistar, da mesma forma que soube vergastar toda a imbecilidade e a malvadez em versos imperecíveis. 
 
Essas amizades, conquistou-as à força de qualidades poucos vulgares. Foi generoso e bom, simples e afetivo, e soube ser honesto, de tal maneira que, numa época em que é moda e recomendação refocilarem-se os homens na mais grosseira materialidade, tendo ele à sua disposição recursos inexauríveis para fazer dinheiro, preferiu desprezar altivamente a simpatia, o auxílio, as aclamações e a cumplicidade dos nulos e dos espertos, semeando despeitos e irritações que bem sabia quanto lhe custariam. 
 
O nosso único fim é lavrar um protesto contra as injúrias atiradas sobre o cadáver ainda quente do pobre poeta, numa iníqua, extemporânea e mesquinha manifestação de amor ao emplacamento da cidade, convertido à última hora  só para o homem de letras que nunca desfrutou poder ou riqueza,  numa espécie de canonização lenta, trabalhosa e difícil, em que a Câmara se converta em Santo Ofício e o sr. Marra em advogado do diabo. 
O nosso protesto aqui fica, e esperemos que fique por aqui. 
 
S. Paulo, 17 de junho de 1918. 
 
Amadeu Amaral 
Dr. Luiz Pereira Barreto 
Valente de Andrade 
Roberto Moreira 
Nestor Rangel Pestana 
Mario Guastini 
Adalgiso Pereira 
Oswald de Andrade 
Jairo de Góes 
J. M. de Toledo Malta 
Moacir de Toledo Piza 
Dagoberto Bittencourt 
Júlio de Mesquita Filho 
Antônio Mendonça 
Álvaro Ramos 
Francisco Mesquita 
Arnaldo Vieira de Carvalho Filho 
João Alberto Salles Filho 
A. Simões Pinto 
Venceslau Arco e Flexa 
Álvaro Freire 
A. M. Oliveira César 
A. Azevedo Ribeiro 
João Silveira 
Júlio Sales Júnior 
Cásper Líbero 
Aristeu Seixas 
Vicente Ráo 
Miguel Arco e Flexa 
Oduvaldo Viana 
Inácio da Costa Ferreira 
Edmundo Amaral 
Monteiro Lobato 
Gelásio Pimenta 
Lamartine F. Mendes 
Lourenço Filho 
Sud Menucci 
Jacomino Define 
Mário Pinto Serva 
Guilherme de Almeida 
Otávio de Lima Castro 
Vicente Ancona 
Jozino Viana 
Raul de Freitas 
José Maria Lisboa Júnior 
Oscar R. Tollens 
Rodrigo Soares Júnior 
J. M. Machado (Zema) 
Luís A. Fuzaro 
Heitor Gonçalves 
Nereu Rangel Pestana 
João Castaldi 
Ângelo de Sílvio 
Sebastião Soares de Faria 
Tito Lívio Brasil 
Ernani Braga
 
* Foi um poeta, folclorista, filólogo e ensaísta brasileiro. Autodidata, surpreendeu a todos por sua extraordinária erudição, num tempo em que não havia, em São Paulo, os estudos acadêmicos e os cursos especializados que se especializariam pouco depois. Dedicou-se paralelamente à poesia, aos estudos folclóricos e, sobretudo, à dialectologia. No Brasil, foi o primeiro a estudar cientificamente um dialeto regional. O Dialeto Caipira, publicado em 1920, escrito à luz da linguística, estuda o linguajar do caipira paulista da área do vale do rio Paraíba, analisando suas formas e esmiuçando-lhe sistematicamente o vocabulário. Esta obra é considerada como sua melhor contribuição às Letras. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras, tornando-se segundo ocupante da Cadeira 15, eleito em 7 de agosto de 1919, na sucessão de Olavo Bilac e recebido pelo Acadêmico Carlos Magalhães de Azeredo em 14 de novembro 1919.
 
 
II. NOTA EXPLICATIVA
 
¹ Este texto foi reproduzido por Raimundo de Menezes no seu livro Emílio de Menezes: O último boêmio (1ª edição, 1946), tendo sido antecedido pelo seguinte trecho:
“Em 22 de junho, "O Estado de S. Paulo", na seção "A Pedidos", estampava veemente protesto, assinado por figuras de destaque na sociedade paulistana, contra o discurso desrespeitoso de Joaquim Marra.
Ecoava de maneira desfavorável, no seio de todas as camadas sociais, a oração infeliz do vereador, que, não se contendo em seu despeito íntimo, viera a público insurgir-se contra uma homenagem que São Paulo queria prestar ao nome do glorioso poeta.
Eis o expressivo protesto em seu inteiro teor: [...]

E, após o protesto de Amadeu Amaral, apoiado por todos aqueles nomes declinados, Raimundo de Menezes, no seu citado livro, acresceu dois parágrafos de sua lavra:
“No mesmo dia, o vereador Joaquim Marra, valentemente escorraçado por este pugilo destemido de paulistas de escol, voltava à tribuna da Câmara para defender-se e justificar-se, em comprida lenga-lenga, da desastrada oração que pronunciara contra o poeta Emílio de Menezes.
No discurso de defesa entrou em longas explanações inúteis. Desfez-se em desculpas esfarrapadas e inócuas. Leiamos tal peça oratória digna de pitoresco exame: [...]
 
Por fugir ao escopo do presente trabalho, deixamos de apresentar a réplica do dito vereador, recomendando aos interessados no discurso do vereador Joaquim Marra, que leiam as páginas 228-231 da 2ª edição do citado livro de Raimundo de Menezes, referenciado na Bibliografia.

III. AGRADECIMENTO

 

O gerente do blog manifesta seu agradecimento ao Acervo do Estadão, graças ao qual foi possível a transcrição da presente relíquia literária.

 

IV. BIBLIOGRAFIA


MENEZES, Raimundo de: Emílio de Menezes: O último boêmio, São Paulo: Edição Saraiva, 2ª edição refundida, 1949, Coleção Saraiva nº 13, 244 p.

WIKIPÉDIA: verbete Amadeu Amaral

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

CURIOSIDADES BIOGRÁFICAS: EMÍLIO DE MENEZES

Por RAIMUNDO DE MENEZES *

Artigo originalmente publicado em O Estado de São Paulo, edição de 23/01/1946, p. 5.

 

Emílio de Menezes (✰ Curitiba, 4/07/1866 ✞ Rio de Janeiro, 6/06/1918)

Emílio de Menezes, poeta e boêmio, nascido em Curitiba, descendente de um casal pobre, cujo chefe, funcionário provincial, versejava nas horas vagas, surgiu como uma exceção, numa fila de seis irmãos, revelando-se um caçula dos mais desabusados e levados da breca. 
Ainda meninote, ajudado por um cunhado farmacêutico, passou a praticar no balcão modesto de sua botica, familiarizando-se com drogas e panaceias, e manuseando, numa curiosidade insatisfeita, as páginas coloridas do "Chernoviz". 
O convívio dos venenos havia de, fatalmente, envenenar-lhe a ironia", acentua Humberto de Campos. 
Com 18 anos, magro, magríssimo, exibindo roupas bizarras, cuja gravata, em borboleta, era um escândalo, que o chapéu de feltro, de abas largas, aplaudia e completava, tornara-se a nota espetacular da pequena capital provinciana. Incompatibilizado, em pouco tempo, com meio-mundo, em consequência das suas piadas perversas e malignas, com que acicatava os que lhe chegavam ao alcance, o jovem Emílio, fatigado da Província, que já há muito o entediava, resolveu emigrar para a Corte. Amigos generosos cotizaram-se e pagaram-lhe a passagem. De posse de cartas de apresentação, entre as quais figurava uma para o prof. Coruja, rumou para o Rio de Janeiro. Ali em breve se enamorou de uma das filhas do velho latinista. Em 1890, tornava a Paranaguá, agora casado e com um emprego federal. Pouco demorou. Tinha as vistas voltadas para a rua do Ouvidor. 
No seu regresso, a febre do Encilhamento entontecia todas as cabeças. Afundou-se no delírio das negociatas fáceis, foi feliz e teve vida nababesca. Começou a engordar por encanto. A prosperidade econômica fizera-se acompanhar da prosperidade das banhas. E quando a primeira fugiu, a segunda, mais leal, mais persistente, mais firme, não abandonou o boêmio. Ficou pobre, mas estava gordo
Com a figura popularíssima de gigante feliz, carão redondo e vermelho, papada vasta derramando-se sobre o colarinho, chapelão de mosqueteiro descuidado, grande bengala com que gesticulava, passou a distribuir perversidade a torto e a direito, contra tudo e contra todos, tendo a coroar-lhe as maldades beliscantes as gargalhadas ruidosas do seu próprio criador, que era quem mais ria e gozava as suas criações. 
Poeta parnasiano dos mais primorosos e poeta satírico dos mais ferinos, deixou uma obra que lhe ensejou a eleição para uma vaga na Academia Brasileira de Letras e uma derramada consagração popular que se perpetuou até nossos dias. No Silogeu não chegou a tomar posse porque, temperamento altivo e independente, se insurgiu contra a censura que quiseram impor ao seu discurso oficial. 
E assim transitou pela vida, sem qualquer preocupação pelo dia seguinte e, quando veio a despertar da longa caminhada, com a saúde corroída pelo álcool, estava só, não tendo ninguém a segui-lo, havendo deixado para trás a companheirada alegre, uns casados, outros integrados na vida séria, e muitos tombados pela morte  enquanto ele era o único, o último boêmio de toda uma geração que fizera época
 
*
Emílio de Menezes logrou derramada popularidade entre os rapazes da Faculdade de Direito de São Paulo, no último quartel de sua vida. Assim é que, a 15 de maio de 1915, esteve nesta Capital, de passagem para Poços de Caldas, à procura de melhoras para a sua saúde. Os moços acadêmicos foram buscá-lo no hotel. Trouxeram-no em farândola ¹ até o velho casarão do Largo de São Francisco, e improvisaram, às 13 horas, uma sessão literária em sua homenagem. Presidiu à reunião, no salão nobre, o bacharelando Moacir Piza. Saudou-o, em nome da classe, o bacharelando Dolor de Brito. Emílio de Menezes improvisou um soneto em agradecimento, que declamou com o seu vozeirão sonoro: 
 
Vossa gloriosa mocidade inspira, 
Neste consolo aos meus cabelos brancos, 
A derradeira corda desta lira. 
Quero que estale em vossos braços francos. 
 
          Deixai que o cisne o canto aqui desfira 
          Nalguns versos insípidos e mancos. 
          É o gemido que sobe em tênue espira, 
          De uma musa nos últimos arrancos. 
 
Vós sois a vida em toda a plenitude. 
Sois a ilusão, o anseio, o sonho, a ideia. 
Eu sou quem já não sonha, nem se ilude. 
 
          Por isso, aqui na amada Pauliceia, 
          Ouvis de um poeta, na decrepitude, 
          Um mau soneto em vez de uma epopeia. 
 
Ao final, foi um escachoar de aplausos que se derramou pelos corredores afora. Outros sonetos foram recitados, inclusive o Envelhecendo, um dos mais primorosos do poeta. 
Depois de visitar a Faculdade, Emílio de Menezes, saudado pelos "vivas" entusiásticos dos acadêmicos, retirou-se seguido de uma comissão de rapazes, que o acompanhou até o "Hotel Rebecchino" ², onde estava hospedado. Antes, porém, se deixou fotografar, em meio da mocidade, sob as tradicionais Arcadas. 
 
*
A 9 de setembro de 1915, Emílio de Menezes, estando novamente em São Paulo, recebeu uma homenagem dos intelectuais paulistanos, que realizaram um "pic-nic" no Bosque da Saúde, em que tomaram parte: Amadeu Amaral, Monteiro Lobato, Roberto Moreira, Júlio de Mesquita Filho, Plínio Barreto, Madeira de Freitas, Sinésio Rocha, Dolor de Brito, Oswald de Andrade, Antônio Define, Raul de Freitas, Simões Pinto, Jacomino Define e Artur Mendes. 
Durante o convescote, foi o grupo "fotografado", e depois disputaram partidas de "bocce" ³, sendo digna de nota a que jogaram Amadeu Amaral e Emílio de Menezes. 
O escritor Monteiro Lobato, em carta de 21/9/1915, dirigida a Godofredo Rangel, dá a sua impressão dessa festa: 
A minha estada aqui, graças à popularidade que O Estado deu ao meu nome, foi fértil em conhecimentos novos, entre os quais Emílio de Menezes, o viperino. Estive numa comilança a céu aberto a ele oferecida pelos 30 de Gedeão  das letras paulistanas, lá no Bosque da Saúde  sub tegmine fagi , como disse o Juó Bananère . Emílio tem fama do homem de mais espírito deste país. E é o motu-contínuo da graça. Ri-me tanto, que voltei para casa com os músculos faciais doloridos e talvez inchados. Emílio é ator de incomparável máscara e senhor de todos os truques psicológicos que desmandibulam os homens mais sisudos
Poucos dias antes de morrer, recebeu Emílio de Menezes a visita do poeta Alberto de Oliveira que, em carta, descreveu depois a seu irmão Bernardo esse encontro: 
Coitado do Emílio, é um caso perdido. Acertei bem com a casa. Bati. Abriram-me. Fizeram-me entrar para o quarto. Emílio reconheceu-me logo: Alberto! Estava deitado. Dei-lhe um beijo na testa: 
Então, querido amigo, disseram-me que estavas pior do que me parece; estás até com uma boa fisionomia... 
Achas? Pois olha, Alberto, quando chegaste eu estava a rir-me sozinho, pensando no logro que vou pregar nos bandidos dos vermes. 
Qual é o logro, Emílio? 
É que eles estão a esperar-me, contando que vou dar-lhes um banquete de banhas, daquelas minhas banhas tradicionais. Mas terão de contentar-se é com um banquete de ossos, Alberto. 
E Emílio que estava deitado, coberto de alto a baixo com uma colcha azul, puxou esta para baixo até a cintura e disse: 
Estás vendo, Alberto? É só osso. As banhas foram-se. 
E era isso mesmo
 
 *
 A morte de Emílio de Menezes dá-nos a impressão estranha que deve ser semelhante à de um grego antigo ao ouvir a nova da morte de um deus...
Foi com esta frase que "O Estado de S. Paulo", através da pena brilhante de Amadeu Amaral, anunciou aos seus leitores o desaparecimento do poeta e boêmio paranaense. 
 
*  Raimundo de Menezes (✰ Fortaleza, 1903 ✞ São Paulo, 1984) foi, além de escritor, jornalista de "O Estado de S. Paulo", advogado, dicionarista e enciclopedista. Em 1969, sucedeu Guilherme de Almeida em sua cadeira 22 da Academia Paulista de Letras (APL). Além de ter publicado pela Editora Saraiva o monumental Dicionário Literário Brasileiro, foi um líder dos escritores brasileiros, escrevendo-lhes biografias, muitas delas premiadas, e homenageando vários mestres de nossas Letras, ainda em vida. Recebeu prêmios da Academia Brasileira de Letras, do Ministério da Educação e Cultura, da Câmara Brasileira do Livro e do Pen-Clube de São Paulo por suas obras. Foi diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo (hoje Secretaria Municipal de Cultura). Publicou, dentre outras obras: Escritores na intimidade, Aconteceu na velha São Paulo, Coisas que o tempo levou e Emílio de Menezes: O último boêmio.
 
II. NOTAS EXPLICATIVAS pelo gerente do Blog
 
 
¹ Dança em cadeia animada, popular na Provença (França) e Catalunha (Espanha), executada em fila, que se caracteriza por ser comunitária, em que os dançarinos formam uma corrente, geralmente dando-se as mãos; estes, seguindo os passos apresentados pelo líder da linha, serpenteiam pelas ruas ao acompanhamento de gaitas de fole e tambores. Outro significado para o termo é "grupo de pessoas que dançam juntas em uma festa ou celebração". 
 
²  Edifício construído em 1903 e projetado pelo arquiteto Ramos de Azevedo, é um dos mais luxuosos da região do Largo São Bento, situado na esquina da rua Cásper Líbero com a rua Mauá. Nos últimos tempos, teve seu nome alterado para Hotel Queluz. 
 
³  Também conhecido por jogo de bocha (bola), é um esporte jogado entre duas equipes, cada qual tendo direito a seis bochas (bolas) na modalidade trio, quatro bochas na modalidade de duplas — duas para cada atleta —, e quatro também na modalidade individual. O jogo de bocha é de origem italiana e seu surgimento se deu no tempo do Império Romano. 
 
Quanto aos referidos "30 de Gedeão", suponho tratar-se de uma associação literária, embora não tenha encontrado qualquer referência a ela no Google.
É mais conhecida a citação de "Gedeão e os 300" na Bíblia. "Gedeão e os 300" é uma história narrada no livro de Juízes, no Antigo Testamento. Gedeão foi um juiz de Israel que Deus escolheu para libertar seu povo da opressão dos midianitas. A história é conhecida por sua demonstração de fé e obediência, pois Gedeão, inicialmente com um exército de 32.000 homens, foi instruído por Deus a reduzir seu número para apenas 300. O significado desta história reside na ideia de que, com Deus, a vitória não depende de números ou força humana, mas da fé e da obediência a Ele. 
 
Trad. À sombra da faia (expressão que exprime a doçura da vida campestre), extraído de Virgílio: Bucólicas, 1, 1. 
Também é título de famoso poema escrito por Castro Alves que traz como tema central a relação entre o campo e a poesia. Aí o poeta compara o campo a um ninho que abriga a inspiração e favorece a conexão com Deus. Além disso, também explora a ideia de que a alma encontra sua melhor expressão na natureza, em contraste com o ambiente urbano (donde "sobe esta blasfêmia de fumaça das cidades p'ra o céu") e com a tendência humana de buscar trevas e obscuridade. 
 
Pseudônimo usado pelo escritor, poeta e engenheiro brasileiro Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (1892-1933) para criar obras literárias num patoá falado pela expressiva colônia italiana de São Paulo na primeira metade do século XX.
 
 

III. AGRADECIMENTO

 

O gerente do blog manifesta seu agradecimento ao Acervo do Estadão, graças ao qual foi possível a transcrição da presente relíquia literária.

 

IV. BIBLIOGRAFIA


MENEZES, Raimundo de: Emílio de Menezes: O último boêmio, São Paulo: Edição Saraiva, 2ª edição refundida, 1949, Coleção Saraiva nº 13, 244 p.

 

domingo, 12 de outubro de 2025

BILAC CRONISTA

Por LUIS MARTINS *
Artigo originalmente publicado no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, Ano X, nº 459, p. 36, em 18/12/1965, dia em que comemorávamos o Primeiro Centenário do Nascimento de Olavo Bilac.

Em 1854 ¹, José de Alencar, folhetinista do "Correio Mercantil", assim se queixava do ofício: É uma felicidade que não me tenha ainda dado ao trabalho de saber quem foi o inventor deste monstro de Horácio ², deste novo Proteu ³, que chamam  folhetim; senão aproveitaria alguns momentos em que estivesse de candeias às avessas , e escrever-lhe-ia uma biografia que, com as anotações de certos críticos que eu conheço, havia de fazer o tal sujeito ter um inferno no purgatório, onde necessariamente deve estar o inventor de tão desastrada ideia 

De fato, não era tarefa das mais amenas e agradáveis escrever folhetins: Obrigar um homem a percorrer todos os acontecimentos, a passar do gracejo ao assunto sério", a bancar "uma espécie de colibri a esvoaçar em zigue-zague, e a sugar, como o mel das flores, a graça, o sal e o espírito que deve necessariamente descobrir no fato o mais comezinho , bastava para infernizar a vida de um cristão.  

Treze anos depois, em 1867, no mesmo "Correio Mercantil", França Júnior batia na tecla do seu ilustre antecessor, e suspirava: Triste quadra para quem escreve folhetins! Por toda a parte se espreguiça a indiferença sob milhares de formas. Já lá vão esses tempos em que o folhetinista vinha contar aos leitores as novidades da semana, quando não reduzia à expressão do romance uma intriga amorosa do baile da véspera

Bem. Isto era a infância da arte. Depois, naturalmente, a técnica jornalística progrediu. Alguns jornais estruturaram-se em empresas relativamente estáveis, amparadas por consideráveis capitais. Passou-se a dar mais importância à colaboração literária. Na introdução do "Ironia e Piedade", Olavo Bilac, enaltecendo o papel desempenhado por Ferreira de Araújo e a "Gazeta de Notícias", vangloriava-se dessa transformação: A minha geração, se não teve outro mérito, teve este, que não foi pequeno: desbravou o caminho, fez da imprensa literária uma profissão remunerada, impôs o trabalho. Antes de nós, Alencar, Macedo, e todos os que traziam a literatura para o jornalismo, eram apenas tolerados: só o comércio e a política tinham consideração e virtude

A modernização do jornal implicou em diversas inovações de ordem técnica, com a inevitável supressão de certas características obsoletas e a criação de feições novas. O folhetim desapareceu, passando a chamar-se crônica. Machado de Assis já é um cronista. Como o próprio Olavo Bilac. Mas este, para não contrariar a tradição, seguia a esteira de seus predecessores Alencar e França Júnior, queixando-se, em 1897, na própria "Gazeta de Notícias", tão amargamente da crônica, quanto aqueles se tinham queixado do folhetim. Em dia de falta de assunto, mal crônico de todos os cronistas, imaginava uma conversa com o diabo:

Já o diabo se levantara e estava sungando as calças, para desmanchar as joelheiras. O cronista, timidamente, perguntou que recompensa teria, se cumprisse as ordens de S. Exª. S. Exª pensou um pouco e respondeu com uma gargalhada: Para te recompensar, condeno-te a escrever coisas para as folhas durante toda a vida, tenhas ou não tenhas assunto! estejas ou não estejas doente! queiras ou não queiras escrever!
O que logo evoca, ao leitor familiar de André Gide, aquela observação do "Journal" (1942): 
C'est le grand méfait du journalisme: de vous forcer à écrire, lorsque parfois l'on n'en a nulle envie.

Ou, aos fiéis de Eça de Queiroz, a grandiosa história do Bei de Túnis... ¹ A chamada "falta de assunto", em última análise, é isto: é se ter de escrever à força, lorsque parfois l'on n'en a nulle envie. Efetivamente, uma invenção diabólica. (Eu que o diga). 

Olavo Bilac, durante muitos anos, na mocidade, viveu da imprensa, exercendo assídua atividade de cronista. Chegou, mesmo, a publicar dois volumes de crônicas selecionadas. 

O prosador foi prejudicado pela fama do poeta. Bilac escrevia muito bem, num estilo escorreito e limpo, mas sem aquela vivacidade, aquela agilidade, aquela graça farfalhante, brilhante e meio superficial que constituem, a par do instinto do verdadeiro jornalista, capaz de extrair do cotidiano a reportagem sensacional ou pitoresca, e o comentário justo, um dos segredos do êxito espetacular de João do Rio, como cronista. 

O verso era a sua forma natural de expressão. Tinha uma extraordinária facilidade em versejar. Se a crônica é o comentário gracioso, humorístico e malicioso do cotidiano, do acontecimento do dia, suas melhores crônicas eram metrificadas e rimadas. Chegou mesmo a ser um temível panfletário político... em versos. 

Isto não quer dizer, entretanto, que Bilac não fosse um bom cronista, embora ofuscado pela glória do poeta. Ocupa, mesmo, posição definida e de realce na história da crônica carioca, que é a própria história da cidade do Rio de Janeiro, em sua lenta transformação de costumes, hábitos, modas, gostos, divertimentos, paixões políticas, da fisionomia urbana e social, condicionada pelo progresso e o desenvolvimento demográfico  de França Júnior a Rubem Braga, de José de Alencar a Fernando Sabino, de Machado de Assis a Lêdo Ivo. 

Para se conhecer o roteiro da vida cotidiana do carioca do princípio do século, nos belos tempos do soneto parnasiano e da boemia literária na Colombo e na Pascoal, é preciso ler os cronistas da época  e Bilac é dos mais bem informados e idôneos. Curioso, por exemplo, é ler-se a sua crônica sobre a desvalorização da Apólice, escrita em 1909  e confrontá-la com a de Machado de Assis, sobre o mesmo tema, publicada em 1894, na época do Encilhamento. 

Mais proveitosa e interessante ainda, para o historiador dos costumes cariocas, é sem dúvida a que escreveu em 1900, sobre o "Café-Cantante" ¹¹. Começa o cronista:

Nestes últimos dez anos, quantas manias temos visto desabrochar, viçar e morrer, nesta versátil e inconsequente cidade! Passageiras, precárias manias...
E passa a enumerá-las: as corridas de cavalos, o jogo da péla (frontão), o jogo da bola (boliche), o ciclismo...
Por fim, chegou o bicho e matou tudo. Tem sido essa a mania de mais pertinácia no viver. E provavelmente não será vencida pela mais recente, pela de agora, pela do café-cantante.
No que Bilac demonstrava muita perspicácia e instinto profético, pois o "bicho" chegou até nós e o café-cantante há muito morreu. 
Mas em 1900 estava em pleno apogeu e era a atração principal da vida noturna carioca.
Não há rua, por mais esconsa, por menos frequentada, que não possua atualmente o seu café-cantante.
Onde na véspera era uma loja de secos e molhados, uma charutaria ou uma papelaria, surge da noite para o dia um café-cantante. Bilac previne o leitor:
Entras. E, em lugar do teu charuteiro ou do teu merceeiro, encontras uma rapariga que te oferece um chope. A tua loja é uma cervejaria! Ao fundo, com um estrado velho, improvisou-se um palco. À beira dele, um piano inválido desmancha-se em lundus e em tangos. E eis ali surge, de saias curtas, uma cantora a chalrar...
E a crônica termina com uma interrogação lançada ao futuro:
Ai! vamos ver quanto há de durar a nova mania! E, depois desta, que outra virá?
Hoje estamos em condições de informar que a mania do café-cantante não durou muito. E podemos fazê-lo, graças a outro cronista. De fato, em 1908, João do Rio, em crônica, movimentada e pitoresca, (está no "Cinematógrafo" ¹²), lamentava A decadência dos chopes, que outra coisa não eram senão os mesmos cafés-cantantes de oito anos antes  mania efêmera da cidade, logo substituída por outras, que também passaram, como tudo passa sobre a terra, no dizer de um folhetinista... 
 
* LUIS MARTINS (Rio de Janeiro 1907 – São Paulo, 1981), foi um escritor, jornalista, crítico, memorialista e poeta brasileiro. Como escritor, fez sua estreia traçando um retrato sombrio do grande reduto boêmio do Rio de Janeiro em seu romance Lapa, de 1936; na época, o livro foi censurado. Mais tarde, Martins revisitaria a zona boêmia de sua juventude em Noturno da Lapa, livro de memórias publicado em 1964, com o qual recebeu o prêmio Jabuti. Foi cronista do jornal O Estado de S. Paulo por 36 anos, assinando como L.M.
 
 
II. NOTAS EXPLICATIVAS pelo Gerente deste blog 
 
¹ Trecho da crônica de 24 de setembro de 1854 constante do livro "Ao correr da pena" (1874) de José de Alencar, consistindo este de uma série de crônicas publicadas no Correio Mercantil e no Diário do Rio de Janeiro, em coluna de idêntico título. Na ocasião, ele tinha 25 anos, em início de carreira. A atividade jornalística do autor cearense, a propósito, teve influência decisiva em seu trabalho de ficcionista, refletindo nos seus primeiros romances Cinco Minutos (1856) e A Viuvinha (1857), cuja fonte se encontra exatamente nas referidas crônicas. Essa atividade jornalística permitiu ao autor desempenhar o papel de literato, fabulista, poeta, crítico teatral, dramaturgo, político, polemista, flâneur e pensador com posicionamentos polêmicos. 
Link para ler o e-book de "Ao correr da pena" (em domínio público): https://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1838 

² Figura grotesca imaginada pelo escritor latino Horácio. Tal figura conjugava partes de diferentes animais. 

³ Deus marinho, que podia assumir diferentes formas, associado a rios e corpos oceânicos de água, filho de Poseidon e Fenícia. Considerado o deus da "mudança elusiva do mar", sugere a constante mudança da natureza do mar e a qualidade líquida da água. 

De mau humor. 

Alencar está se referindo ao inventor do folhetim. 

Alencar faz uso de imagem metafórica, ao comparar o folhetinista a um "colibri" que busca extrair "graça, sal e espírito" de fatos triviais. 

O texto de Alencar reflete características de um viés jornalístico, com leveza e humor. 

Crônica de 18 de abril de 1897 para a Gazeta de Notícias, constante de BILAC, O JORNALISTA, em publicação de Antônio Dimas das Crônicas-volume 1, pp.  229-232.

Trad. Esse é o grande erro do jornalismo: forçar você a escrever, quando às vezes você não tem vontade de fazê-lo. 

¹ O Bei de Túnis era o nome do governador otomano da Tunísia, instituído no século XVI. Eça de Queiroz escolheu-o como figura de referência em algumas das suas crônicas para a "Gazeta de Notícias", do Rio de Janeiro, quando não tinha assunto ou quando queria apontar alguém como culpado pelas malfeitorias da política caseira. Eça "desancava" o Bei de Túnis  sinônimo erudito para "bode expiatório" , personalidade que, por essa razão, é, ainda hoje, recorrentemente citada na literatura e na escrita jornalística no Brasil. 
Também Machado de Assis, numa das crônicas da série Bons dias! (1888-89),  mais exatamente a de 19 de julho de 1888 , recorre ao alto funcionário otomano para denunciar o mau hábito de se acreditar naquilo que não é entendido. Na crônica, Boas noites chega a lamentar não ser o bei de Túnis".  
Para [BETELLA, 2004, 17-18]segundo nos faz entender, uma das grandes vantagens de se viver em Túnis seria a cordialidade estabelecida, graças ao fato de não se entender o que dizem os habitantes de lá, e vice-versa. O Rio de Janeiro estaria presente, pois Boas  noites  assinaria  jornais  e  leria  todos  os  artigos,  das  contendas  aos  debates parlamentares  e  manifestos  políticos.  Assim,  algumas  “pérolas”  brasileiras  não perderiam o valor naquela terra distante, mesmo o que viesse dito ou escrito “em dialeto barbaresco”, pois o colégio de intérpretes trataria de verter o conteúdo dos jornais. Denunciando o mau hábito de acreditar naquilo que não é entendido, Boas noites também define a situação imaginária do tunisiano, o qual não entenderia ninguém, nem os outros o entenderiam, e daí surgiram as relações mais cordiais, assim como surgira a amizade entre Von Stein e os índios do Xingu." (Cf. BETELLA, Gabriela Kvacek. Machado de Assis enfrenta tragédias e farsas na crônica: a reflexão crítica de Bons Dias!, Curitiba: Editora UFPR, Revista Letras, nº 62, pp. 17-18, jan/abr 2004)

¹¹ Crônica de 11 de março de 1900 para a Gazeta de Notícias, constante de BILAC, O JORNALISTA, em publicação de Antônio Dimas das Crônicas-volume 1, pp. 338-341.

¹²  João do Rio: Cinematographo: chronicas cariocas, Porto: Livraria Chardron, 1ª edição, 1909, 392 p.-Link: https://pt.wikisource.org/wiki/Cinematographo

 

III. AGRADECIMENTO

 

O gerente do blog manifesta seu agradecimento ao Acervo do Estadão, graças ao qual foi possível a transcrição da presente relíquia literária.

 

IV. BIBLIOGRAFIA 

 

BETELLA, Gabriela Kvacek. Machado de Assis enfrenta tragédias e farsas na crônica: a reflexão crítica de Bons Dias!, Curitiba: Editora UFPR, in Revista Letras, nº 62, pp. 11-25, jan/abr 2004.

COSTA, Francisco Seixas da: O Bei de Túnis, post de 02/04/2013 
 
BILAC, Olavo: BILAC, O JORNALISTA: Crônicas-volume 1. Organização: Antonio Dimas. São Paulo: Edusp/Ed. Unicamp/Imprensa Oficial de SP, 2006, 899 p.

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

UM ILUSTRE BRASILEIRO NA HISTÓRIA DO POVO JUDEU

Por SAMUEL MALAMUD *
Discurso em cerimônia realizada no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, no 25º aniversário da decisão da Partilha da Palestina. Novembro de 1972.
Transcrevemos com a devida vênia da Imago Editora Ltda., artigo da seção SION constante do livro Documentário, publicado em 1992, pp. 312-316.
Oswaldo Aranha (✰ Alegrete-RS, 1884 ✞ Rio de Janeiro-RJ, 1960) - Crédito: Getty Images

Estamos aqui reunidos hoje para comemorar o 25º aniversário da decisão das Nações Unidas que, no dia 29 de novembro de 1947, sob a presidência de Oswaldo Aranha, aprovou por uma maioria de 2/3 o plano de partilha da Palestina. 

Para melhor situar essa data e sua importância na história judaica, basta fazer uma retrospectiva-relâmpago dos últimos vinte séculos de dispersão, período que registra numerosas datas, todas relacionadas com episódios de sofrimento, de perseguição e de instabilidade por que passou a grande maioria das massas judaicas. São datas que lembram éditos de confinamento em guetos, de expulsão em massa, de conversão compulsória, de pogroms

Somente a partir de fins do século passado começou uma nova contagem de tempo no calendário da longa diáspora, que parecia interminável. Foi Theodor Herzl quem revolucionou a marcha da história do povo judeu. Graças à sua ousadia, sua coragem e sua visão profética conseguiu-se dar início a uma nova era na vida judaica ao se instalar, na Basileia, em agosto de 1897, o Primeiro Congresso Sionista. Foi o primeiro passo para uma solução política do problema judeu. 

Depois veio a data de 2 de novembro de 1917, conhecida como a da Declaração de Balfour, a de 29 de novembro de 1947, que ora comemoramos e, finalmente, a de 14 de maio de 1948, em que foi proclamada a independência do Estado de Israel. 

Num discurso proferido em 27 de julho de 1948, declarou David Ben-Gurion que sem as duas datas  a de 2 de novembro de 1917 e de 29 de novembro de 1947  não teríamos chegado ao ponto a que chegamos. 

Deve-se, entretanto, salientar que, enquanto a Declaração de Balfour foi o resultado de 20 anos de ação política sionista, a decisão de 29 de novembro de 1947 representou, na realidade, um ressarcimento, uma reparação das múltiplas injustiças perpetradas contra o povo judeu, especialmente durante a última guerra mundial. 

Somente ao término da Segunda Guerra Mundial a humanidade tomou pleno conhecimento dos atos de barbárie e de vandalismo sem par, levados a efeito contra as massas judaicas na Alemanha e em todos os países ocupados pelas hordas nazistas, e que custaram o alto preço de seis milhões de vidas friamente exterminadas. 

Foi também quando o mundo pôde avaliar o heroísmo com que lutaram os soldados e voluntários judeus nas fileiras das forças aliadas em todas as frentes. 

No fim da Segunda Guerra Mundial, defrontaram-se as nações livres com os numerosos campos de concentração que abrigavam centenas de milhares de sobreviventes judeus alquebrados  física e psiquicamente  e para os quais só havia uma esperança: alcançar a Terra Prometida. 

Mas as portas de Eretz Israel ¹ encontravam-se, devido à política da potência mandatária, hermeticamente fechadas. O bloqueio estabelecido pela Inglaterra era vencido somente na calada da noite pelo movimento de imigração ilegal, que enfrentava corajosamente as armas da guarda britânica. Esse, porém, não podia ser o caminho indicado para resolver o problema. 

Todas as gestões junto ao governo de Sua Majestade, para que fossem admitidos pelo menos 100.000 sobreviventes dos campos de concentração, falharam. 

Eis que a 13 de fevereiro de 1947 resolveu a Inglaterra entregar a solução do problema da Palestina às Nações Unidas, mediante a advertência de que abandonaria, de qualquer forma, o mandato dentro de um prazo determinado. 

Em abril de 1947, com o problema da Palestina na agenda, a Assembleia Geral Extraordinária das Nações Unidas dava início aos seus trabalhos e elegia para presidi-los o chefe das delegação brasileira  o embaixador Oswaldo Aranha. 

Se o sionismo brasileiro já estava desenvolvendo, desde 1946, um trabalho ativo com a cooperação eficiente do Comitê Cristão Pró-Palestina, que tinha na sua presidência o saudoso humanista, professor Inácio de Azevedo Amaral, e na vice-presidência o nobre líder católico senador Hamilton Nogueira, no intuito de mobilizar a opinião pública em favor do estabelecimento de um Estado judeu, a atuação da Organização Sionista do Brasil e do Comitê Pró-Palestina adquiria, a partir de abril de 1947, um sentido mais importante. Presidia a organização mundial que devia decidir os destinos do povo judeu e seu direito à autodeterminação um dos vultos mais preeminentes do cenário político nacional. 

Depois de longos debates foi, a 13 de maio de 1947, nomeada a comissão especial das Nações Unidas que iria estudar o problema da Palestina e apresentar uma proposta de solução concreta para a próxima Assembleia, a reunir-se em setembro daquele ano. 

Das férias do embaixador Aranha, passadas com os seus familiares no Rio de Janeiro, vem-nos à memória um encontro havido em sua residência, à Rua Campo Belo, em julho de 1947, com o Dr. Nahum Goldman, presidente do Congresso Judaico Mundial e membro do Executivo Sionista Mundial. 

No decorrer da entrevista, o problema da Palestina e do estabelecimento do Estado judeu foi debatido em todos os seus aspectos. O dirigente judeu ficou profundamente impressionado com a familiaridade com que o embaixador Aranha discutiu o assunto. Naquela oportunidade, o embaixador Aranha inclinava-se pela ideia que preconizava a criação de um estado binacional e que contava com o apoio de uma parte da liderança árabe, da extrema esquerda sionista e de alguns humanistas judeus ingênuos. 

Embora firme na defesa de seu ponto de vista, o grande estadista e hábil diplomata ouvia atentamente os argumentos expostos pelo Dr. Goldman. Ao despedir-se do embaixador Oswaldo Aranha, o ilustre visitante disse-lhe sentir-se tranquilo e confiante, apesar da divergência de opiniões, porque a presidência da Assembleia Geral das Nações Unidas estava nas mãos de um homem objetivo, sincero e bem intencionado. 

Quando foram reabertos os trabalhos da Assembleia Geral, em setembro de 1947, a Comissão nomeada apresentou o relatório, concluindo pela criação de dois Estados, um judeu e outro árabe. Essa proposta ia ser submetida à discussão e precisava de uma maioria de 2/3 para ser aprovada. O chefe da delegação brasileira, embaixador Oswaldo Aranha, foi confirmado na presidência da ONU por unanimidade. 

A tarefa era muito árdua. Apesar de todos os argumentos expostos no relatório da Comissão, pairavam dúvidas sobre a maioria exigida. Entravam em jogo outros interesses que se sobrepunham ou antepunham aos sentimentos humanitários, aos princípios de justiça, às razões históricas e à necessidade de se darem soluções a problemas prementes e de se reconhecerem direitos incontestáveis. 

Quando os debates em Lake Success ² chegavam ao seu final e a votação se aproximava, o Comitê Político da Organização Sionista Unificada do Brasil, juntamente com o Comitê Pró-Palestina, embora convicto da atitude positiva de nosso país, sempre fiel à sua tradicional política de apoio às reivindicações judias, promoveu a visita de uma comissão de parlamentares, composta de membros de todos os partidos, ao ministro das relações exteriores, Dr. Raul Fernandes, para manifestar-lhe que o povo brasileiro, na pessoa de seus representantes eleitos, estava a favor da criação do Estado Judeu e pedia ao governo que instruísse a delegação junto às Nações Unidas no sentido de votar pela proposta da partilha. 

Ainda às vésperas da votação, a mãe do embaixador Osvaldo Aranha, então com a idade de 80 anos, telegrafou ao seu filho um comovente apelo para que tudo fizesse pela aprovação da proposta. 

Se a habilidade política do embaixador Oswaldo Aranha já era mais do que reconhecida, ele a comprovou sobejamente pela maestria revelada no dia 28 de novembro de 1947, ao conseguir, numa tática magistral, adiar a votação para o dia seguinte. Sabe-se agora que o embaixador Aranha impediu a votação porque sentiu pelo ambiente, cujos segredos lhe eram bem conhecidos, que faltaria um voto para se conseguir a maioria exigida. 

Ao falar pelo telefone internacional com o embaixador Oswaldo Aranha no dia 27 de novembro à tarde, o senador Hamilton Nogueira, seu amigo pessoal e vice-presidente do Comitê Pró-Palestina, perguntara-lhe quais eram os prognósticos e a resposta do experimentado homem público foi de que se sentia desapontado com a atitude de alguns governos latino-americanos, que estavam revendo os seus pontos de vista no momento derradeiro. Ainda guardamos na memória a voz do grande gaúcho, que assim mesmo mostrava-se otimista e assegurou ao senador empenhar-se ao máximo para se alcançar a maioria almejada. 

Está mais do que constatado que foi única e exclusivamente graças à habilidade pessoal do embaixador Osvaldo Aranha que a partilha foi aprovada na memorável Assembleia de 29 de novembro de 1947. Qualquer falha sua, qualquer descuido, a mínima desatenção, a falta de rigor na direção dos trabalhos, e poderia ter ocorrido uma modificação radical na situação, com resultados imprevisíveis. 

Poucos dias depois de encerrada a Assembleia Geral da ONU, ao regressar ao Brasil, coberto de justas glórias, merecedor do reconhecimento e da admiração tanto no meio político nacional como internacional, o embaixador Osvaldo Aranha foi recebido no aeroporto Santos Dumont por uma comissão especial, composta das mais eminentes figuras do nosso mundo político e intelectual, encabeçada pelo representante do presidente da República e também pelo Executivo da Organização Sionista Unificada do Brasil e membros do Comitê Pró-Palestina. Uma enorme massa popular compareceu ao desembarque para ovacioná-lo, e dela faziam parte agremiações judaicas que ostentavam cartazes de boas-vindas e de saudações ao Brasil, ao nosso governo e ao eminente estadista. 

O embaixador Aranha foi nessa ocasião saudado pelo deputado Prado Kelly, que falou em nome da Comissão, tendo tido eu a honra de ser o porta-voz da comunidade judaica brasileira

Na sua resposta, revelando a sua peculiar modéstia, disse o embaixador Aranha que

devia o sucesso de sua missão ao descortínio diplomático, às instruções e constante apoio do Sr. Ministro das Relações Exteriores Raul Fernandes, e à honrosa escolha do presidente Eurico Gaspar Dutra, que o fora buscar em uma agremiação partidária de oposição para confiar-lhe, assim, duplamente, o dever de imprimir-lhe toda a eficiência de que se sentisse capaz. As energias que o alimentavam no trabalho imenso a que teve de consagrar-se à delegação brasileira ele as deve sobretudo ao Brasil, em cujo espírito pacifista, de conciliação e de equilíbrio sempre procurou se inspirar.
Terminada a sua histórica missão nas Nações Unidas, continuou o embaixador Osvaldo Aranha a acompanhar com vivo interesse o desenrolar da situação em torno do Estado judeu, para cuja criação tanto contribuiu. 

Em agosto de 1948, recebia o embaixador Aranha em sua residência o então ministro plenipotenciário itinerante do Estado de Israel para a América Latina Sr. Moshé Toff, a quem já conhecia desde os memoráveis e tormentosos dias em Lake Success. 

A visita do ministro Toff tinha como objetivo principal obter do Brasil o reconhecimento de jure para o Estado recém-proclamado. 

Durante esse encontro, a que estivemos presente, ocorreu um episódio que merece ser lembrado, pois revela de novo o grande espírito desse excepcional homem público que foi Oswaldo Aranha. 

Apareceu inesperadamente na residência do chanceler Aranha o governador Otávio Mangabeira. Exclamou num ímpeto o embaixador Aranha:

Este encontro é verdadeiramente providencial, Sr. Ministro de Israel. Ninguém mais credenciado existe no Brasil para sentir o grande drama de seu povo e advogar a sua causa do que o Sr. Otávio Mangabeira.

O embaixador Aranha expôs, então, numa síntese admirável, ao governador Mangabeira toda a problemática do Estado de Israel, para concluir dizendo o seguinte:

Quando defendemos na ONU o ressurgimento do Estado de Israel, o fizemos porque sempre consideramos que ali estávamos para estabelecer uma nova ordem para o mundo. A continuação de Israel como povo sem pátria era o maior símbolo da sobrevivência da velha e injustificada ordem mundial. Israel nasceu de uma deliberação espontânea da maioria absoluta das Nações Unidas, de que o Brasil participou e que subscreveu: Israel é portanto um filho legítimo e não um filho natural das Nações Unidas. Não lhe parece absurdo que se deva solicitar a um pai o reconhecimento de um filho legítimo?
Ainda um ano mais tarde, em julho de 1949, ao fazer uso da palavra durante um almoço realizado na Associação Brasileira de Imprensa em homenagem ao mesmo ministro Moshé Toff, promovido pelo Comitê Pró-Palestina, narrou o embaixador Aranha episódios da luta nos bastidores da ONU durante as discussões em torno da partilha. Exclamou:
O medo da verdade é o mais covarde dos medos! O que ficou claro é que há um mundo que aspira à liberdade e outro que não a deseja. Não é pelos meios violentos que se fazem conquistas. O desarmamento espiritual é a base do futuro das nações. A resolução da criação do Estado judeu era uma experiência nova na vida da humanidade.
Vale citar aqui uma passagem do discurso proferido por David Ben-Gurion sobre a Partilha e que condiz muito bem com o pensamento do embaixador Aranha. Disse Ben Gurion:
A decisão tomada pelo plenário das Nações Unidas no dia 29 de novembro de 1947 foi de grande importância tanto do ponto de vista judeu como do ponto de vista geral. Mais de 30 nações decidiram em favor do estabelecimento de um Estado judeu e com a sua atitude demonstraram que ainda existe uma consciência universal e que ainda há um apoio para a justiça histórica, mesmo em se tratando de um povo a quem o mundo injustiçou no decorrer de séculos. Ficou provado que ainda não está perdida a esperança de que a ONU possa congregar a humanidade e assegurar a paz.
O último ato público ligado ao Estado de Israel, a que compareceu o embaixador Osvaldo Aranha nesta cidade do Rio de Janeiro, foi a comemoração do 10º aniversário da independência, realizada no Teatro Recreio, quando foi ovacionado de pé pela enorme massa popular que lotava o teatro. 

Vinte e cinco anos são decorridos daquele sábado inesquecível de 29 de novembro de 1947, e ainda é difícil descrever a tensão e a emoção com que os judeus do mundo inteiro acompanharam pelo rádio o desenrolar dos trabalhos em Lake Success, mantendo-se em vigília de 28 para 29, numa ansiosa expectativa, para explodir numa alegria incontrolável diante da vitória. 

Ao comemorarmos hoje o 25º aniversário da decisão das Nações Unidas que aprovou a Partilha, podemos dizer tranquilamente que no dia 29 de novembro de 1947 Oswaldo Aranha teve a grande ventura de inscrever o seu nome entre os grandes homens que fazem história, enquanto era concomitantemente inscrito e eternizado, com o carinho, o respeito e a gratidão devidos, no coração de todo o povo judeu. ³

Rua em Tel Aviv com o nome de Oswaldo Aranha

 

* SAMUEL MALAMUD (1908-2000), advogado, nascido na Ucrânia em 1908, chegou ao Rio de Janeiro em dezembro de 1923. A partir dos anos 30, transformou-se em um dos mais influentes representantes da comunidade judaica no Brasil. Em 1948, Malamud foi o primeiro Cônsul de Israel no país. Fundou e presidiu, entre outras entidades, a Federação Israelita do Brasil e o Clube Hebraica.

 

II. NOTAS EXPLICATIVAS

 

¹ Eretz Israel significa "Terra de Israel" e é um termo que carrega significados profundos na tradição judaica, referindo-se à terra prometida por Deus ao povo de Israel. O conceito é muito mais do que um simples lugar geográfico; é um espaço repleto de significados, tradições e histórias que ressoam ao longo dos séculos. Para muitos, esta é a terra prometida, um símbolo de esperança e fé.
Hoje, Eretz Israel é um termo que carrega muitos significados. Para alguns, está associado ao sonho sionista de um estado judaico na terra ancestral, enquanto para outros, a terra é um símbolo de disputas políticas e sociais. A atualidade de Eretz Israel pode ser entendida através dos eventos que moldaram o Estado de Israel como o conhecemos, desde a declaração da independência em 1948 até os conflitos que surgiram em torno da questão palestina.
(Crédito: https://cidesp.com.br/artigo/eretz-israel/)

² Em Lake Success, local da sede da ONU na época, as Nações Unidas decidiram dividir a Palestina em um Estado judeu e um Estado árabe, conforme previsto na Resolução 181 da Assembleia Geral da ONU. Esta localidade marcou a votação das Nações Unidas para dividir o mandato britânico da Palestina em dois Estados, judeu e árabe. Os judeus chamaram isso de "O Milagre de Lake Success", enquanto os árabes o consideraram ilegal e uma traição aos habitantes árabes da Palestina.

 
³ Quando o gerente deste blog esteve em Israel, visitou o kibutz "Bror Khail". Ali compareceu à Sala de Cultura "Osvaldo Aranha" em homenagem e em memória ao diplomata brasileiro que teve influência fundamental na fundação do Estado de Israel em 1948, tendo dirigido a reunião histórica da ONU em 29/11/1947 que decidiu pela criação do Estado de Israel, assunto que pode ser confirmado no vídeo abaixo. 
 

III. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BBC NEWS BRASIL: Quem foi Oswaldo Aranha, o brasileiro que ajudou a criar o Estado de Israel, matéria de 04/11/2023
 
DRUMMOND, Pedro Silva: Oswaldo Aranha e a sua importância para a criação do Estado de Israel, artigo de 1º/10/2023

MALAMUD, Samuel: Homenagem a Oswaldo Aranha (Cerimônia promovida pela Federação Israelita do Rio de Janeiro, no dia 29 de novembro de 1972 no Salão Nobre do Museu de Arte Moderna, por ocasião da Partilha da Palestina), 1972, 24 p.

________________: DOCUMENTÁRIO: contribuição à memória da comunidade judaica brasileira. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1992, 365 p.

SCHAM, Paul: Annapolis Versus Lake Success, artigo de 13/12/2007