sexta-feira, 3 de outubro de 2025

BILAC, POETA DO IV SÉCULO

Por GUILHERME DE ALMEIDA *
Oração gratulatória proferida na Sessão de Gala da Academia Brasileira de Letras, comemorativa do Centenário do nascimento de Olavo Bilac.
Artigo originalmente publicado no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, Ano X, nº 459, p. 36, em 18/12/1965, dia em que comemorávamos o Primeiro Centenário do Nascimento de Olavo Bilac.
 

Estamos ante um poema do Tempo.
Se ele, o Tempo  Saturno ou Cronos  mitológico, alado ancião, trona entre o Céu e a Terra, portando a ampulheta e a foice  é Símbolo. Se, anterior ao Verbo, ordena o Cosmos  é Ritmo. Se conta segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, séculos  é Metro. Se ausculta e sincroniza o bater de dois corações, operando o milagre das consonâncias  é Rima. E se com tudo isso, afinal, "muove il sole e l'altre stelle"  é Amor.
 
Símbolo - Ritmo - Metro - Rima - Amor; isto é, poema. O que tudo quer dizer: o Tempo é poeta. Compõe a marcha triunfal dos monstros siderais pela raia do Zodíaco; a bárbara, estrepitosa epopeia das borrascas; a bucólica, leviana, colorida bailia das estações; a balada lunática das marés; o ciciante idílio de vidro fino e frio desfiado das estrelas e só ouvido por quem ama, 
          "pois só quem ama pode ter ouvido
          capaz de ouvir e de entender estrelas"... 
 
Eis que um diálogo  poema do Tempo, pois que o Tempo é poeta  está pairando, esta noite, aqui, sobre esta nobre sala. É que duas estrelas ora amorosamente se encontram e conversam neste céu desta Guanabara: a estrela que há quatro séculos viu aqui nascer uma cidade, e a estrela que há um século aqui viu nascer um poeta.
São Sebastião do Rio de Janeiro - Olavo Bilac.
Estrela da Cidade - Estrela do poeta.
 
Ora, para denunciar o orto, enunciar o desígnio e anunciar o cumprimento de tal inefável predestinação, uma voz tinha que soar hoje, aqui. Débil que fosse, era mister que soasse. E é essa voz a que ora se faz ouvir: a minha. 

Mas, por que a minha voz? Por quê?... Simples coincidência? Mero acaso?  Não sei admitir a existência dessas duas palavras. Creio apenas no fato: não no fado. O fado de ter vindo a ser eu, por amigas complacências, o ocupante, na Academia Brasileira de Letras, da cadeira fundada por Olavo Bilac, e o atual titular do Principado da Poesia Brasileira por ele inaugurado, e mais, o de ser eu, agora, no "Petit Trianon", o decano da ilustre companhia  tais as credenciais que invocou a magnanimidade do nosso querido presidente ao confiar-me a honra da palavra oficial nesta solenidade. A essas, para mim, dignificantes circunstâncias, que realmente me permitem tangenciar com o "curriculum vitae" do grande poeta do amor, seja-me consentido o acrescentar-lhes eu mais uma: e esta, personalíssima. É que a grande Musa de Bilac foi a minha também: esta Cidade que em 1923 me deu um amor: o definitivo do meu sonho e decisivo da minha vida.

 
Guanabara... Bilac...
Cidade de um poeta, poeta de uma cidade, centenários ambos, pertencem-se  e quanto!, completam-se  e como!
 
Embora tendo vivido pouco mais de meio século, Olavo Bilac foi, é e será, na História da Literatura Brasileira, o Poeta do IV Século. Nenhum, de então, falou mais e melhor do que ele à alma e ao coração da sua terra; e nada calou  mais fundo na memória sensorial da sua gente do que esse gosto, contato, cor, música e perfume que tem o seu verso de forte amor.
 
Daí, a perfeita entrosagem do homem com o ambiente: do poeta com a cidade. Isso é o que há de sentir e pensar aquele que, já de bem longe no calendário, mas de bem perto na recordação, intuição e, principalmente, divinatória sensibilidade, for capaz de descobrir a realidade dos contatos da poesia com o seu cenário, isto é, do efeito com a causa. Esse saberá que, para a poesia de Bilac, o Rio não é o aglomerado material, nem o social: nem a "urbs" nem a "civitas". É a Natureza. A intocada. A virgem. A bruta, no heróico sentido do termo! 
          "Ah! quem te vira assim, no alvorecer da vida,
          Bruta Pátria, no berço, entre as selvas dormida,
          no virginal pudor das primitivas eras"...
 
O seu Rio de Janeiro  o da sua poesia  não é o que eu, ainda infante, primeiro conheci com a sua Exposição Nacional de 1908, na Praia Vermelha; nem o da Avenida Central que tinha um zimbório mourisco todo chapeado de ouro refulgente; nem o dos meus iniciais, juvenis contatos literários: Olegário, Álvaro, Ronald, Renato, Felipe, Elísio...; nem o mundano, que eu espreitava durante o "footing" elegante pelos passeios do Hotel Central, no Flamengo; nem o do bondinho do Pão de Açúcar, nem o do Cristo do Corcovado, nem o dos Palácios de 1922... Nada disso. A sua cidade não é a casa, a rua, a fachada, o passeio, a calçada, a praça, a vitrina, o monumento, a igreja, o túnel, o viaduto, o trânsito... Não é não. Nada disso transparece, nunca, sob a excitante tessitura dos versos apaixonados e apaixonantes de Bilac. O seu Rio de Janeiro é o de verdade, não o de cartão-postal. É a Amada Panorâmica. É Guanabara, a luxuriante: faustoso tálamo, infinito leito para um infinito amor. Áureo dossel do sol - cortinados de leve névoa - moles coxins de nuvens e montanhas - fofas almofadas de folhagens - colcha de seda chamalotada do mar - branco roçagante - lençol de areia espraiado em rendas de espuma - lua-lâmpada vigilante na noite - sonhos com os monstros fabulosos das constelações - pesadelo - e o assustado persignar-se pela Cruz de Estrelas do Sul... Aí, feita assim à imagem e semelhança de um sonho de poeta, ela é a que por todas as coisas se espalha, com todas as coisas se confunde, de todas as coisas se serve, em todas as coisas espera para toda se dar ao amante deslumbrado. É essa que, orgulhoso da sua paixão, o poeta afixara como um imenso cartaz de turismo, violentamente fascinante. À entrada da barra, e falando alto e claro ao forasteiro:
          "Para! Uma terra nova ao teu olhar fulgura!
          Detém-te! Aqui, de encontro a verdejantes plagas,
          em carícias se muda a inclemência das vagas...
          Este é o reino da Luz, do Amor e da Fartura!
 
          Treme-te a voz afeita às blasfêmias e às pragas,
          ó nauta! Olha-a de pé, virgem morena e pura,
          que aos teus beijos entrega, em plena formosura,
          os dois seios que, ardendo em desejos, afagas...
 
          Beija-a! O sol tropical deu-lhe à pele dourada
          o barulho do ninho, o perfume da rosa,
          a frescura do rio, o esplendor da alvorada...
 
          Beija-a! é a mais bela flor da Natureza inteira!
          E farta-te de amor nessa carne cheirosa,
          ó desvirginador da Terra Brasileira!"
 
Aí se começa a sentir e compreender a autenticidade e interdependências perfeitas das duas expressões postas face a face: a Natureza e a Poesia. Aí se descobre, então, um como antromorfismo erótico, que seria uma dominante na lírica bilaquiana. Sim: precisamente isso. Sublimação da libido, tudo, na criação, ao mando subconsciente do mago-poeta vai, num passivo "sim" de entrega, tomando forma humana para, como tal, ser humanamente amado. Ele próprio, certa vez, nos arroubos de seu amor, se pergunta, atônito, ante o auto-milagre de tal transmutação:
          "Por que hei-de, em tudo quando vejo, vê-la?
          Por que hei-de, eterna, assim reproduzida,
          vê-la na água do mar, na luz da estrela, 
          na nuvem de ouro e na palmeira erguida?"...
Por quê?  porque essa natureza  a mais bela do mundo,  chama-se Guanabara: a sua cidade, a sua amada. É nela, é aí, somente aí, sempre aí que se vai operando a lírica metamorfose. Só aí, no voluptuoso, propício cenário natural do Rio poderia um poeta perguntar ao mundo:
          "Em que céus mais azuis, mais puros ares,
          voa pomba mais pura? Em que sombria
          moita mais nívea flor acaricia,
          à noite, à luz dos límpidos luares?"...
confidenciar, na intimidade camarada de bairro carioca:
          "Sonhei que me esperavas. E sonhando,
          saí, ansioso por te ver: corria...
          E tudo, ao ver-me tão depressa andando,
          soube logo o lugar para onde eu ia.

          E tudo me falou, tudo! Escutando
          meus passos através da ramaria,
          dos despertados pássaros o bando
          "Vai mais depressa! Parabéns!" dizia.

          Disse o luar: "Espera! que eu te sigo:
          quero também beijar as faces dela!"
          E disse o aroma: "Vai que eu vou contigo!"

          E cheguei. E, ao chegar, disse uma estrela:
          Como és feliz, como és feliz, amigo,
          que tão de perto vais ouvi-la e vê-la!"...
Ou aos incrédulos da sua mágica, que transforma em gente as estrelas, contar que
          "... para ouvi-las muita vez desperto
          e abro as janelas pálido de espanto...

          E conversamos toda a noite, enquanto
          a via láctea, como um pálio aberto,
          cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
          inda as procuro pelo céu deserto"...
Ou assistir à fantasmagórica e lasciva transmudação, total sexualização da noite:
          "Por estas noites firas e brumosas
          é que melhor se pode amar, querida!
          Nem uma estrela pálida, perdida
          entre a névoa, abre as pálpebras medrosas.

          Mas um perfume cálido de rosas
          corre a face da terra adormecida...
          E a névoa cresce e, em grupos repartida,
          enche os ares de sombras vaporosas:

          Sombras errantes, corpos nus, ardentes
          carnes lascivas... um rumor vibrante
          de atritos longos e de beijos quentes...

          E os céus se estendem, palpitando, cheios
          da tépida brancura fulgurante
          de um turbilhão de braços e de seios"...
Ou sentir que, quando passa a bem-amada,
          "... todo o jardim, por que ela passe,
          atavia-se. Há falas misteriosas
          pelas moitas, saudando-a, respeitosas... 
          é como se uma sílfide passasse!

          E a luz cerca-a, beijando-a. O vento é um choro...
          Curvam-se as flores trêmulas... O bando
          das aves todas vem saudá-la em coro...

          E ela vai dando ao sol o rosto brando,
          às aves dando o olhar, ao vento o louro
          cabelo, e às flores os sorrisos dando"...

Mas não para aí no classicismo dos líricos sonetos da "Via Láctea" a sujeição da natureza às feições do seu amor. Eis, no ardor das "Sarças de Fogo", um fragmento de "Beijo Eterno":
          "Beijemo-nos! Que o mar
          nossos beijos ouvindo em pasmo a voz levante!
          E cante o sol! A ave desperte e cante!
          Cante o luar,
          cheio de novo fulgor!
          E a natureza toda, em delirante festa,
          cante, cante este amor!"...

Mais explícita, passa à poesia intimista de "Alma Inquieta" a constante participação de todas as coisas inanimadas nos animados amores do poeta. É dessa parte de "Poesias", de Bilac, a página popularíssima, que todo o Brasil sempre decorou e recitou, enamorado: aqueles doces, cantantes septissílabos de "Dentro da Noite". Alguns deles, ao acaso:
          "Caminho. A terra deserta
          anima-se. Aqui e ali,
          por toda parte desperta
          um coração que sorri.
          Em tudo palpita um beijo,
          longo, ansioso, apaixonado,
          e um delirante desejo
          de amar e de ser amado.
          E tudo  o céu que se arqueia
          cheio de estrelas, o mar,
          os troncos negros, a areia
           pergunta ao ver-me passar:

         "O Amor que a teu lado levas
          a que lugar te conduz,
          que entras coberto de trevas
          e sais coberto de luz?
          ............................................
          Sigo. Dissipo a tristeza
          de tudo, por todo o espaço,
          ardo e canto e a Natureza
          arde e canta, quando passo"...

Agora, é a "Tarde": portal entre o dia e a noite. O livro póstumo. Jazigo do qual se eleva, num halo de ressurreição, a voz subterrânea do poeta. Sim: subterrânea, vinda do seio da terra que ele miraculara com seu Verbo-Verso humanizado de inumanas coisas. Fiel, ainda e sempre, à sua "imagerie", a voz subterrânea fala da Tarde: mulher fecundada que traz no ventre
          ... "a palpitar como um fruto de outono,
          a noite, alma nutriz da volúpia e do sono,
          perpetuação da vida e iniciação do nada"...;

e da sua "Língua Portuguesa", que ele ama pelo seu viço agreste e seu aroma
          "de virgens selvas e de oceano largo":

e da "Música Brasileira", porque é
          "lasciva dor, beijo de três saudades,
          flor amorosa de três raças tristes";
 
e da montanha amada e feliz por ser
          "a última a receber o adeus do dia,
          primeira a ter a bênção das estrelas";
 
e dos rios em cujas humaníssimas águas
          "agita-se a ansiedade
          de todos os que vivem de esperança,
          de todos os que morrem de saudade";
 
e das árvores, dizendo-lhes:
          "Tendes alma também... Amais o seio
          da terra, mas sonhais, como sonhamos,
          bracejais, como nós, no mesmo anseio"...
          sim, as árvores...

 
Ora, numa árvore sagrada e una, que dessa sepultura jorra em ímpeto de epopeia, ora se transmuda o poeta. Alcança-o e domina-o o seu próprio mágico poder de antropomorfismo. Ele, agora, é que se faz árvore. Todo árvore. E a ela todo se entrega como numa divina crucificação. E nela totalmente se integra como num glorioso Nirvana. E é dela que emana a voz soberana que exclama:
          "Pátria, latejo em ti, no teu lenho, por onde
          circulo! e sou perfume, e sombra, e sol, e orvalho!
          E, em seiva, ao teu clamor a minha voz responde,
          e subo no teu cerne ao céu de galho em galho!
 
          Dos teus líquens, dos teus cipós, da tua fronde,
          do ninho que gorjeia em teu doce agasalho,
          do fruto a amadurar que em teu seio se esconde,
          de ti  rebento em luz e em cânticos me espalho!
 
          Vivo, choro em teu pranto; e em teus dias felizes,
          no alto, como uma flor, em ti pompeio e exulto!
          E eu, morto,  sendo tu cheia de cicatrizes,
 
          tu, golpeada e insultada  eu tremerei sepulto:
          e os meus ossos no chão, como as tuas raízes,
          se estorcerão de dor, sofrendo o golpe e o insulto!
 
* Guilherme de Almeida foi advogado, jornalista, crítico de cinema, poeta, ensaísta e tradutor brasileiro. Foi o primeiro modernista a pertencer à Academia Brasileira de Letras. Como terceiro ocupante da Cadeira 15 (cujo patrono é Gonçalves Dias e fundador, Olavo Bilac), eleito em 6 de março de 1930, na sucessão de Amadeu Amaral e recebido pelo Acadêmico Olegário Mariano em 21 de junho de 1930. Recebeu o Acadêmico Cassiano Ricardo.

Um comentário:

Francisco José dos Santos Braga disse...

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

GUILHERME DE ALMEIDA (1890-1969) é considerado um verdadeiro comunicador polivalente, tendo utilizado, sem preconceitos, quase todos os meios de comunicação disponíveis em seu tempo: livro, jornal, revista, cinema, teatro, rádio, letra de música e hinos. Também foi importante organizador da Semana de Arte Moderna de 22. Foi ainda um dos fundadores da revista Klaxon, que visava a divulgação da ideias modernistas, tendo realizado sua capa, assim como os arrojados anúncios da Lacta, para a mesma revista.
O Blog de São João del-Rei transcreve aqui a oração gratulatória proferida na Sessão de Gala da Academia Brasileira de Letras, comemorativa do Centenário do nascimento de Olavo Bilac.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/10/bilac-poeta-do-iv-seculo.html

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei