terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Iconografia do Ginásio Santo Antônio - São João Del Rey, MG - 1936


Por Marcelo Câmara *
 
José Augusto da Câmara Torres - Foto de 1937, de terno e gravata

José Augusto da CÂMARA TORRES (✰ Caicó, RN 22.6.1917 ✞ Niterói, RJ, 21.8.1998), jornalista, educador, advogado e político, quando ainda cursava o quinto ano ginasial do Colégio Salesiano Santa Rosa, em Niterói, participa, de 9 a 11.2.1936, do Congresso Universitário em São João del-Rei, MG, que reunia acadêmicos católicos de vários Estados. José Augusto, com dezessete anos, ainda não era universitário, mas exercia intensa atividade intelectual, como ativista católico e político, e dirigia o jornal A Ordem, Semanário Nacionalista Cristão, na capital fluminense. E foi nessa condição que participou do Congresso, onde conheceu e dialogou com jovens idealistas, que, mais tarde, viriam a ser figuras importantes da vida nacional, em diversas áreas profissionais e latitudes político-ideológicas, da Esquerda e da Direita. Entre outros, estiveram naquele verão em São João del-Rei: Roland Corbisier (filósofo, professor, jornalista e político, fundador e primeiro presidente do ISEB - Instituto Superior de Estudos Brasileiros), Rômulo Almeida (político, economista, escritor e professor, diretor do BNDES), José Garrido Torres (economista e presidente do BNDES), Lauro Escorel (diplomata, embaixador), Carlos Jacyntho de Barros (diplomata, cônsul-geral em Nova Iorque, EUA), Arnóbio Graça (advogado, professor e jornalista), Luiz de Sousa (deputado estadual e Secretário de Estado em Santa Catarina), Abdul Sayol de Sá Peixoto (jurista e professor universitário). 
 
Em dez anos dedicados à elaboração da biografia, Câmara Torres – Vida e Obra, livro digital lançado em 2020 (camaratorresvidaeobra.blogspot.com), nos acervos documentais de meu pai, encontrei um precioso livreto, impresso pela Empresa Graphica “O Cruzeiro” S.A, reunindo doze postais fotográficos, fotos de autor não identificado, de alta qualidade técnica, feitas na década de 1930, do Ginásio Santo Antônio, atual Colégio Santo Antônio, de São João del-Rei. O livreto foi adquirido pelo jovem jornalista Câmara Torres, durante o referido Congresso, realizado em São João del-Rei, naquele fevereiro de 1936. Nos versos dos postais, mensagens com autógrafos de dezenas de universitários presentes ao encontro. 
 
Consciente de que se trata de uma publicação histórica, de inestimável valor cultural para o patrimônio de São João del-Rei, ninguém melhor do que Francisco José dos Santos Braga, ex-aluno do Ginásio Santo Antônio, historiador, erudito intelectual, artista de muitos talentos e fazeres, gerente desse prestigioso blog, para conhecer, interpretar e divulgar esse documento. É com muito gosto e orgulho que promovo a doação virtual do livreto ao dileto amigo Braga, e presenteio os leitores do Blog de São João del-Rei com essas maravilhosas imagens. 
 

 


 
 
 
 
 
1 - Fachada principal
 
2 - Vista do fundo





 




 
3 - Ala direita

 
 
 
 
 
 
 
 
4 - Patio interno

5 - Museu de história natural

 
 
 
 
 
 
 
 
6 - Gabinete de física

 
 
 
 
 
 
 
 
7 - Um dos salões de estudo  


8 - Um dos dormitórios
 
 
 
 
 
 
 
  
9 - Teatro - Vista virada da galeria

 
 
 
 
 
 
 
10 - Um dos corredores

11 - Ginástica no grande pátio
 
 
 
 
 
 
 
 
12 - Campo de futebol
 
Pequeno Perfil biográfico de Câmara Torres 
 
José Augusto da Câmara Torres, jornalista aos onze anos, educador revolucionário, advogado brilhante e grande líder político – foi um notável intelectual cuja vida profissional iniciou-se aos quatorze anos, como orador oficial da mocidade de sua cidade natal, quando inaugura a sua profícua e vitoriosa vida pública. Filho de José Antunes Torres e Maria da Câmara Torres, pertenceu à mesma família do Senador João Câmara (1895-1948), do antropólogo e historiador Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), do Arcebispo Emérito de Olinda e Recife, PE, Dom Hélder Câmara (1909-1999) e do Cardeal do Rio de Janeiro, RJ, Dom Jaime de Barros Câmara (1894-1971). Em 1932, com a transferência do pai telegrafista para Natal, estuda no Colégio Santo Antônio, legendária escola marista. No ano seguinte, a família se muda para Niterói, onde no Colégio Salesiano Santa Rosa, se destaca como orador e jornalista, desenvolvendo fértil carreira como ativista católico e político, fundando e presidindo jornais e instituições culturais. Aos dezenove anos é professor daquela primeira escola salesiana do Brasil, leciona em outras escolas de Niterói, e desenvolve intensa atividade política. Aos vinte e três anos, é Técnico de Educação do Estado do Rio de Janeiro, por concurso público de provas e títulos, onde revoluciona o Ensino Público na Região do Extremo Sul Fluminense, e estreia na Advocacia, área onde atua, ininterruptamente, até o final da vida. De 1954 a 1970, exerce quatro mandatos de Deputado Estadual. Em 1967-8, ocupa a Secretaria de Estado do Interior e Justiça e 1971, a Secretaria de Estado de Serviços Sociais. Aposenta-se do Serviço Público como Consultor Técnico de Educação do RJ. 
 
Publicou Imortais, com Dayl de Almeida (Ed. Getúlio Costa, Rio, RJ, 1940), dezenas de ensaios e conferências nas áreas da Política, História, Sociologia, Educação, Folclore e Literatura, e centenas de artigos na Imprensa fluminense, carioca e potiguar. Foi dirigente da OAB-RJ, titular da Academia Valenciana de Letras (Valença, RJ), fundador do Instituto Histórico e Artístico de Paraty, membro correspondente do Ateneu Angrense de Letras e Artes (Angra dos Reis, RJ), filiado a diversas entidades culturais fluminenses e nacionais e detentor de diversos títulos e láureas. Cidadão Honorário do Estado do Rio de Janeiro e de cinco municípios fluminenses, até o final da vida, mesmo sem cumprir mandatos eletivos, exerceu importante liderança política no Estado, consagrando-se como “O maior líder do Extremo Sul Fluminense no Século XX”. 
 
Fonte: CÂMARA TORRES, VIDA E OBRA, de Marcelo Câmara 
 
* Marcelo Câmara é jornalista, escritor, consultor cultural e empresarial. Site profissional e biográfico: ilhaverde.net 

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

QUINZE POETAS CATALÃES


Por JOÃO CABRAL DE MELO NETO *
Esta breve antologia traduzida de Quinze poetas catalães foi apresentada pela primeira vez em fevereiro de 1949 nas páginas da Revista brasileira de poesia, publicada pelo Clube de Poesia de São Paulo. A reprodução aqui foi feita a partir da Revista Literária em Tradução, ano 1, nº 1, set. 2010 - Florianópolis, pp. 237-267.  
João Cabral de Melo Neto (✰ Recife, 09/01/1920 ✞ Rio de Janeiro, 09/10/1999)

Quinze poetas catalães | Quinze poetes catalans
Antologia Poética

“Toda a minha vida se liga a ti,
      como na noite, as chamas à treva.”

 

“Tota la meva vida es lliga a tu,
       com en la nit les flames a la fosca.”  

1) [Mariano Manent

Tradução de João Cabral de Melo Neto: LOUVAÇÃO DO BARRO 

Cantarei o barro, porque nele esteve a vida 
e este sangue que ferve em nosso corpo. 
Meus olhos de barro pressentem o repouso 
e o clarão imortal de uma outra Vida. 
 
Cantarei o barro porque foi amassada 
a nossa carne de barro inconsistente 
e na argila curtida e inanimada 
o sopro de Deus entrou como a semente. 
 
LLOANÇA DEL FANG 
 
Lloaré el fang, per ço que hi fou la vida 
i aquella sang que bull al nostre cos. 
Mos ulls de fang pressenten el repòs 
i la immortal claror de l’altra Vida. 
 
Lloaré el fang, per ço com fou pastada 
la nostra carn del fang inconsistent 
i dins l’argila immóbil i colrada 
el buf de Déu entrà com la sement. 
 
 2) [Joan Oliver (Pere Quart)
 
Trad. idem: Poema XIX de AS DECAPITAÇÕES 
 
Sem caule, só 
corola 
que na noite serena 
voa, 
errante, 
alma penada, 
lívida 
(como seu rosto 
de despedida 
à bela vida). 
Casamento 
de asa e neve, 
fruto celeste 
(cabeça 
sacra 
de Madame 
Ana Bolena 
rediviva em simulacro), 
cinza e chama, 
lua plena. 
 
N. XIX (LES DECAPITACIONS) 
 
Sens tija, sola
 corol.la 
que en la nit serena 
vola 
errivola 
ànima en pena, 
livida 
(com son visatge 
d’adéu 
a la bella vida). 
Maridatge 
d’ala i neu, 
fruit celeste, 
(testa 
sacra 
de Madama 
Anna Bolena 
rediviva en simulacre) 
cendra i flama, 
lluna plena. 
 
3) [Tomás Garcés
 
Trad. idem: LENDA 
 
Cavaleiros de alvas barbas 
na vereda a cavalgar. 
Talvez regressem da caça, 
talvez partam a guerrear. 
Capinzal alto e florido, 
um berço no capinzal. 
Entre flores, rosas brancas, 
o Infante sorrindo está. 
Descavalgam, se ajoelham, 
se o soubessem embalar! 
Com a névoa se dissiparam 
o combater e o caçar. 
 
Nascem albas, tombam folhas, 
águas no rio a passar. 
Nos caminhos da ribeira, 
cavalos, sem brida, já. 
 
LLEGENDA 
 
Cavallers de barba blanca 
per un aspre viarany. 
Potser tornen de cacera, 
potser van a guerrejar. 
Canyes altes i florides, 
Un bressol vora el canyar. 
Entre flors de satalia, 
el somriure de l’Infant. 
Descavalquen, s’agenollen, 
si el sabessin bressolar! 
Amb la boira s’esvaïen 
la cacera i el combat. 
 
Neixen albes, cauen fulles, 
passen aigües riu enllà. 
Pels camins de la ribera, 
sense brides, els cavalls. 
 
4) [Rosa Leveroni
 
Trad. idem: CANÇÃO 
 
Mil auroras acendeu 
o ardente grito da chama. 
Dez mil estrelas nos deu 
o pranto sutil do orvalho. 
Punha o perfume carmim 
na alma desta rosa branca 
e uma cerva pela fonte 
buscava o espelho de prata. 
Percebi uma canção 
e não sei quem a cantava; 
entre suspiros de ramos, 
como de longe, chegava, 
dizendo bem docemente: 
Ai da triste enamorada! 
 
CANÇÓ 
 
Totes les albes ha encès 
El clam ardent d’una flama. 
Tots els estels han donat 
un plor subtil de rosada. 
El perfum posa carmi 
al cor de la rosa blanca 
i la daina, dins la font, 
cercava un mirall de plata. 
He sentit una cançó 
i no sé qui la cantava: 
semblava venir de lluny 
entre sospirs com de branca 
i deia ben dolçament: 
Ai la trista enamorada! 
 
 5) [B. Rosselló-Pòrcel
 
Trad. idem:A MAIORCA, DURANTE A GUERRA CIVIL 
 
Reverdecem ainda aqueles campos 
e permanecem aqueles arvoredos 
e sobre o mesmo azul 
se recortam as minhas montanhas. 
Ali as pedras invocam sempre 
a chuva difícil, a chuva azul 
que vem de ti, cordilheira clara, 
serra, prazer, claridade minha! 
Sou avaro do que me resta de tua luz 
e que me faz estremecer quando te evoco! 
Ali os jardins são agora como a música 
e me turbam, fatigam com seu tédio lento. 
Ali o coração do outono já murcha 
em harmonia com fumeiros delicados. 
E as ervas são queimadas pelos cerros 
de caça, entre sonhos de setembro 
e névoas tingidas de ocaso. 
 
Toda a minha vida se liga a ti, 
como na noite, as chamas à treva. 
 
A MALLORCA, DURANT LA GUERRA CIVIL 
 
Verdege encara aquells camps 
i duren aquelles arbredes 
i damunst del mateix atzur 
es retallen les meves muntanyes. 
Allí les pedres invoquen sempre 
la pluja difícil, la pluja blava 
que ve de tu, cadena clara, 
serra, plaer, claror meva! 
Sóc avar de la llum que em resta dins els ulls 
i que em fa tremolar quan et recordo! 
Ara els jardins hi són com músiques 
i em torben, em fatiguen com en un tedi lent. 
El cor de la tardor ja s’hi marceix, 
concertat amb fumeres delicades. 
I les herbes es cremen a turons 
de cacera, entre somnis de setembre 
i boires entintades de capvestre. 
 
Tota la meva vida es lliga a tu, 
com en la nit les flames a la fosca. 
 
 6) [Joan Teixidor
 
Trad. idem: MENINO 
 
Todos os jardins se fizeram para ti 
e as flores, as pedras. 
Não tentes saber mais, contempla 
a luz pendurada na árvore. 
 
Quando grande, não te lembrarás 
desta paz divina. 
Mas uma obscura saudade haverá no desejo 
do que agora te sobra. 
 
INFANT 
 
Tots els jardins s’han fet per tu, 
i les flors i les pedres. 
No intentis saber més; mira 
la llum penjada a l’arbre. 
 
Quan seràs gran oblidaràs 
aquesta pau divina. 
I, sense esment, tindràs enyor 
del que ara tens i et sobra. 
 
7) [Salvador Espriu
 
Trad. idem: MONÓLOGO DE ESTHER 
 
Quando te perderes dentro 
do deserto da tarde 
e te der sede o azul 
do mar tão distante, 
sentirás que és olhado, 
pelo meu olhar. 
Eterno príncipe, Jacob, 
terás sempre companhia 
contigo peregrinando 
através séculos, palavras. 
Suportarás a morte 
como o ramo ao pássaro. 
 
Ai, inimigo caminho 
das horas, das águas, 
galope de altivos archeiros 
contrários à estátua 
de sal do que pensou 
vir a ser mármore! 
Si tu cais, os teus olhos 
gelarão esperanças. 
 
Povo triste, à lembrança 
das cidades abrasadas. 
Nenhum repouso te acolhe 
de sombra doce, ou casa. 
Apenas sonhos, no fundo 
do meu olhar. 
 
MONOLAC DE ESTHER 
 
Quan et perdis endins 
del desert de la tarda 
i t’assedegui el blau 
de la mar tan llunyana, 
et sentiràs mirat 
per la meva mirada. 
Etern, príncep, Jacob, 
tindràs sempre companya 
que peregrini amb tu 
per segles e paraules. 
Suportaràs la mort, 
com a l’ocell la branca. 
 
Ai, enemic camí 
de les hores i l’aigua, 
galop d’altius arquers 
contraris a l’estàtua 
de sal de qui volgué 
esdevenir de marbre! 
Si et tombes, ele teus ulls 
glaçaran esperances. 
 
Poble trist, amb record 
de ciutats molt cremades. 
No t’aculll cap repòs 
d’ombra bona, de casa. 
Només somnis, al fons 
de la meva mirada. 
 
8) [Joan Vinyoli
 
Trad. idem: AO VENTO DE OUTONO 
 
Vento de outono, vento solitário, 
vento da noite, 
força obscura que se desprende 
do infinito e volta ao infinito, 
rodopia dentro de mim, conjura 
contra meu coração tua força, 
arranca de uma vez a casca 
do fruto que não madura. 
 
AL VENT DE TARDOR 
 
Vent de tardor, vent solitari, 
vent de la nit, 
obscura força que es deslliga 
de l’infinit i torna a l’infinit, 
arremolina’t dintre meu, conjura 
contra el meu cor la teva força, 
arrenca já l’escorça 
del fruit que no madura. 
 
9) [Josep Romeu
 
Trad. idem: JUNHO 
 
Nobres, mais do que o ouro, as espigas 
oscilam, maduras, e ondulam 
e vêm e vão ao vento, 
em tardes sagradas, doces. 
Esperam agora a foice 
para dar-se submissas, largamente. 
 
Conhecêssemos o amor do fruto 
que recolhe o mel profundo 
e cai, alimento de Deus, 
ao fazer-se maduro, completo! 
 
JUNY 
 
Més nobles que l’or, el blats 
oscil.len, madurs, i onegen, 
revenen i van al vent 
en tardes sagrades, dolces, 
Esperen avui la falç 
per dar-se sumisos i amples. 
 
 Sabéssim l’amor del fruit 
que serva la mel profunda 
i cau, nodriment de Déu, 
en fer-se madur i perfecte.! 
 
10) [Josep Palau
 
Trad. idem: SONETO INTRAUTERINO 
 
Desde teu mal, desde tua entranha, desde tuas lágrimas 
quero ser uma voz ― germinal. 
 
Pensar-te desde ti, desde teu centro contar-te, desde a 
[flor 
suprema de teus olhos. 
 
Quero desnascer em ti. Todo homem quer desnascer 
[num 
amor, num seio.
 
Ah! faze-me pequeno, pequeno, até que eu veja pó 
enfebrecido, pólen de teu ventre. 
 
SONET INTRAUTERÍ 
 
Des del teu mal, des de la teva entranya, 
des de laes teves llàgrimes, vull ser una veu ― germinal. 
 
Pensar-te des de tu, des del teu centre 
dir-te, des de la flor suprema dels teus ulls. 
 
Jo vull desnéixer en tu. Tot home vol desnéixer 
en un amor, un si. 
 
Ah! fes-me petit, fins que jo sigui pos 
estremida, pol.len del teu ventre. 
 
11) [Joan Barat
 
Trad. idem: ANO NOVO 
 
Meia-noite, epílogo 
e cinza de um pouco de mim 
e do tempo; outra vez empreender 
um sangue e um caminho 
eterno, sem entender. 
 
ANY NOU 
 
Mitja nit, cendra 
I epíleg d’un tros de mi 
I del temps: reprendre 
uma sang i un camí 
etern, sense comprendre. 
 
12) [Joan Perucho
 
Trad. idem: É POR ISSO QUE ESTIMO 
 
Mármore ou lua gelada,
errante, 
como pensativo asfódelo navegas por um céu de 
[esperança 
enquanto tuas mãos ignoram as macilentas febres, 
os horrores da morte sobe o lodo 
ou a injúria vil 
que sob encorajadoras palavras 
dirigem os homens a suas amantes secretas. 
 
Desejaria estimar-te 
como o delicado inseto estima a pequena memória de 
[uma flor 
ou como a terra estima a nuvem 
prostrado serenamente ante uma harmoniosa presença 
que perdura na luz de teu corpo 
tão esbelto e jovem. 
 
Porém o sonho que aproxima sonho, 
vida que alenta vida 
não perdoa uma boca, uma inútil tortura; 
não perdoa um amor que se enraíza como árvore 
alçada furiosamente por cima de um ventre 
ou de uma terra materna. 
 
É por isso que estimo 
esta canção que ora agoniza. 
 
ÉS PER AIXÓ QUE ESTIMO 
 
Marbre o lluna glaçada, 
errívola, 
com pensatiu asfòdel navegues per un cel d’esperança 
mentre tes mans ignoren les macilentes febres, 
els horrors de la mort sobre el fang 
o la injúria envilida 
que sota encoratjadoras paraules 
adrecen els homes a llurs amants secretes. 
 
Jo voldria estimar-te 
com el delicat insecte estima la petita memòria d’una flor 
o com la terra estima el nùvol, 
tombat serenament a una armoniosa presència 
que perduri en la llum del teu cos
tan esvelt i tan jove. 
 
Però somni que atança somni, 
vida que alena vida 
no perdona una boca, una inútil tortura; 
no perdona un amor que arrela com un arbre 
furiosamente alçat damunt d’un ventre 
o una terra materna. 
 
És per això que estimo 
aquesta cançó que ara agonitza. 
 
13) [Joan Triadú
 
Trad. idem: ENDIMIÃO (Fragmento) 
 
É ainda um repouso às feridas 
que o ar desperte, pátria, de seu sonho 
cansado e taciturno, amigo apenas 
de frágeis bandeiras, dos cabelos 
mais ágeis de um amor, e do sorriso 
do nosso mar ― aceso de pura manhã, 
ao lado da vida. Sempre me acompanham 
os silêncios amigos e essa fadiga 
tão doce de seu falar, rico de uma morte 
bem guardada nos anos e das lutas 
quando um abraço povoa as areias de frutos 
e me devolve as bandeiras no vento 
do ombro seguro e exaltado; 
enquanto as crianças agora, com olhos de noite, 
aspiram o clarão do céu selvagem, 
sem que uma voz responda ao seu chamado 
que serve apenas para afugentar os pássaros de boas-
[vindas. 
 
ENDIMION (Fragment) 
 
Encara és um repòs de les ferides 
que l’aire es llevi, pàtria, del seu son 
cansat i taciturn, amic a penes 
de les fràgils banderes, dels cabells 
més àgils d’un amor, i del somriure 
del nostre mar encès de pur matí, 
vora la vida. Sempre m’acompanyen 
els silencis amics i el cansament 
més dolç del seu parlar, quan l’abraçada 
pobla els arenys de fruit, ric d’una mort 
bens guardada en els anys i de les lluites, 
i em torna les banderes en el vent 
de l’espattla segura i exaltada, 
mentre els infants ara, amb ele ulls de nit, 
aspiren la claror del cel salvatge, 
i no respon una veu a llur crit, 
però fugen ocells de benvinguda. 
 
 14) [Jordi Sarsanedas
 
Trad. idem: COLOCAREI O MEU AMOR... 
 
Colocarei o meu amor, tão longo como as veias, 
na boca de cinza daquele menino esquivo 
entre a paz humilde das derradeiras cabras. 
Quero abraçar a fome que lhe dá aquele passo sutil, 
pousar um sonho leve na sua cabeça rapada 
e o reflexo da flor da nossa mimosa. 
 
POSARÉ EL MEU AMOR... 
 
Posaré el meu amor que és tan llarg com les venes 
a la boca cendrosa d’aquell infant esquerp 
entre la pau humil de les darreres cabres. 
Vull besar aquella fam que li affina la passa 
i posar un somni lleu en el crani rapat 
i el reflexe darrer de la nostra mimosa. 
 
15) [Jordi Cots
 
Trad. idem: VIVER COM FÉ... 
 
Viver com fé cada hora santa 
como se amanhã partíssemos 
para um país estrangeiro, 
sem despedir a hora nossa. 
 
E arrancar do céu a chuva, 
e de teus olhos o tempo, amiga, 
pássaro, flor de neve, para contemplar-te. 
 
Oh o ritmo grave da Morte! 
A Morte nos meus cabelos 
presa como uma rosa. 
 
VIURE AMB FE CADA HORA SANTA... 
 
Viure amb fe cada hora santa, 
com si a l’endema partíssim 
cap a un país estranger, 
sense comiats l’hora nostra. 
 
I arrencar del cel la pluja, 
i el temps dels teus ulls, amiga, 
ocell, flor de neu, per mirar-te. 
 
Oh el ritme greu de la Mort! 
La Mort en els meus cabells, 
segura com una rosa. 
 
* João Cabral de Melo Neto nasceu em Recife, em 1920, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1999. Poeta e escritor, autor, entre outros livros, de O cão sem plumas (1950), de O rio (1953) e de Morte e vida Severina (1956), considerada a sua obra mais célebre. Em 1945 ingressou na carreira diplomática, tendo atuado numa série de cidades europeias, entre as quais, Barcelona. Durante esse período, traduziu para o português a antologia poética de 15 poetas catalães selecionados.
 
 
II. O texto 
 
Em fevereiro de 1949, o poeta João Cabral de Melo Neto apresentou nas páginas da Revista brasileira de poesia, publicada pelo Clube de Poesia de São Paulo, uma breve antologia traduzida de “Quinze poetas catalães” da 1ª metade do século XX. A descoberta da literatura catalã pelo autor de Morte e Vida Severina foi fruto de seu período barcelonês, durante a década de 1940, quando fora diplomata na Catalunha. Ao caracterizar e definir a posição dos poetas selecionados para sua antologia como “uma posição de defesa da língua catalã”, já que à época, durante a ditadura franquista, o uso do idioma fora banido do território espanhol, assim como o basco e o galego, o escritor não só ansiava estreitar os laços entre o Brasil e a Catalunha  como atestam algumas de suas cartas a Bandeira, Drummond e Lispector  mas também se mostrava preocupado em preservar e resgatar a língua catalã e promover sua literatura dentro da literatura de seu país, fato que explica a tradução ter sido publicada ao lado do original em catalão. Após seis décadas, republicamos a seguinte tradução em homenagem à sua memória, seja enquanto texto literário seja enquanto registro de tradução. 
Texto de referência: “Quinze poetas catalães”. In Revista brasileira de poesia, fevereiro de 1949, pp. 29-43. 
Os autores: Mariano Manent, Joan Oliver, Tomás Garcés, Rosa Leveroni, B. Rosselló-Pòrcel, Joan Teixidor, Salvador Espriu, Joan Vinyoli, Josep Romeu, Josep Palau, Joan Barat, Joan Perucho, Joan Triadú, Jordi Sarsanedas e Jordi Cots. 
O tradutor: João Cabral de Melo Neto.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

À SOMBRA DO CARAÇA


Por BENÍCIO MEDEIROS *
"Acho Otto um dos melhores contistas do Brasil, embora não goste muito de ler os seus contos, porque são tristes."       Rubem Braga  
Otto Lara Resende (✰ São João del-Rei, 1º/05/1922 ✞ Rio de Janeiro, 28/12/1992) ocupou a cadeira nº 39 da Academia Brasileira de Letras.

Sou um pobre menino do Matola, de São João del-Rei. Assim, à maneira de Eça, Otto de Oliveira Lara Resende teria começado a autobiografia que nunca escreveu. A frase foi pinçada de uma entrevista a Paulo Mendes Campos. Tem uma certa inflexão de tristeza. Otto nasceu a 1º de maio de 1922 numa casa da Rua do Matola nº 9. No Dia do Trabalho. No ano da invenção do rádio e da teatralização da Semana de Arte Moderna. O que é nascer-se em 1922? O próprio Otto responde:

Eu nasci no fundo da Idade Média. São João del-Rei, no dia 1º de maio de 1922, era uma comunidade de alta Idade Média. O peso daquele décor barroco, agravado pela massa física das igrejas que aprisionam a cidade numa proteção apavorante, imprime na alma da gente uma marca indelével.
A República Velha vivia, então, uma das suas piores crises. O presidente Epitácio Pessoa confronta-se com a petulância de oficiais do Exército que, desde a saída de cena do marechal Floriano Peixoto, em 1894, sonham em voltar ao poder. Epitácio Pessoa é um político de mão-firme. Mandou fechar o Clube Militar e prender o marechal Hermes da Fonseca, a liderança militar mais prestigiada da época, por desacato à autoridade civil.
 
Por consequência, jovens tenentes se rebelam e tomam o Forte Copacabana, em julho, de onde começam a bombardear a cidade, protagonizando o episódio que passaria à história como Os Dezoito do Forte. Foi um ato de violência entre tantos, na época, refletindo um momento especialmente tumultuado no Brasil e no mundo, ainda mal pensado das feridas da Primeira Guerra.
 
O movimento tenentista produziria, pelo lado direito, a ascensão de uma nova categoria de militares que teria seu papel na política nacional nas décadas seguintes. Pelo lado esquerdo, desaguaria na Coluna Prestes, que começa em 1924, tendo São Paulo como ponto-de-partida, a sua romântica incursão pelos recônditos do Brasil profundo. Denuncia-se a questão social. O país começa a conhecer-se melhor. 
 
Minas estava onde sempre esteve. Preparava-se, àquela altura, para levar ao poder um preclaro filho, Artur Bernardes, o seu Mé, renovando assim a política do café-com-leite" que imperou no país até a Revolução de 30. Bernardes foi eleito presidente da República em março de 1922  mesmo mês em que fundou-se o Partido Comunista , apesar de ter sido estrepitosamente vaiado, no ano anterior, pelas ruas da capital federal.
 
São Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel dá samba  como diria o compositor Noel Rosa. Todo mineiro, na sua família, tinha uma história envolvendo gado e currais. Partilhas, moratórias, pepitas de ouro. Mas também, uma reconhecida tradição literária que vinha desde os tempos dos poetas-inconfidentes do final dos setecentos. 
 
Em 1921, diz a crônica, o grande Mário de Andrade desabalou-se de São Paulo especialmente para conhecer um poeta simbolista mineiro, que vivia afastado do mundo, Alphonsus de Guimaraens, cujos versos lhe chamaram a atenção. Nascido em Ouro Preto, Alphonsus foi também um poeta triste: Sinos que dobram, dobras de sudário!, lamentou-se. 
O avô e o bisavô de Otto Lara Resende eram homens do campo, autênticos montanheses, como se diz em Minas. O pai de Otto, Antônio de Lara Resende, embora tenha nascido numa fazenda, a Fazenda Boa Esperança, em Belo Vale, fixou-se aos 19 anos em São João del-Rei como professor. Logo se transformaria no educador mais respeitado das Minas Gerais do seu tempo. Foi entre as tristezas e os livros que cresceu, portanto, o menino Otto Lara Resende. 
 
Antônio de Lara Resende, além de professor, gramático e memorialista, foi um rigoroso e longevo patriarca, lídimo representante da TFM  a Tradicional Família Mineira. Católico praticante e militante, se correspondia e mantinha relações de amizade com os grandes líderes eclesiásticos e laicos do seu tempo. Casou com dona Maria Julieta Oliveira e teve nada menos que 20 filhos, dos quais Otto era o quarto. O padrinho de batismo de Otto foi o escritor católico Jackson de Figueiredo, que morreu em 1928, aos 37 anos, afogado durante uma pescaria na Avenida Niemeyer, no Rio. Quanto ao professor Lara Resende, morreu aos 94 anos, em 1988, cercado por mais de 150 descendentes. 
 
Não se pode esquecer, no contexto da infância de Otto, a assustadora presença do espírito do Caraça santo e inesquecível Caraça a que se referiu, nas suas memórias, o pai de Otto. Este ficou órfão aos nove anos. Aos 14 foi enviado para o Colégio do Caraça. Devia a sua formação escolar, moral e espiritual, e mesmo a profissão de educador que abraçou, a essa tradicional instituição educacional mineira, dirigida pelos padres lazaristas, hoje extinta. 
 
O Caraça pode ter sido muito bom. Mas não tinha boa fama entre os jovens estudantes. Durante várias gerações, a simples menção do nome provocava calafrios nos meninos em débito com as obrigações familiares em todo o Brasil. Se continuar assim, te mando para o Caraça! Era esta, entre todos, a mais terrível das ameaças. Perguntado, Antônio Lara Resende negou que a palmatória fosse o principal recurso pedagógico daquele castelo mal-assombrado encravado nos contrafortes da Serra do Espinhaço, região central de Minas, a 1.500 metros de altitude. Mas, no imaginário infantil, era. Falava-se, também, de outros horrores fantasiosos nunca confirmados. 
 
Ao fundar o seu próprio colégio, o Instituto Padre Machado  depois transferido para Belo Horizonte, quando a família para lá se mudou, em 1938, e finalmente entregue, tempos depois, ao controle dos padres barnabitas  o velho Lara Resende só o poderia ter erigido nos moldes do velho e bom Caraça que conheceu e amou. Disse ele ao fazer um balanço da sua longa vida de educador: Minha filosofia de educação continua sendo aquela que a Igreja Católica colheu dos evangelhos, através dos seus legítimos intérpretes.

Adulto, o filho Otto diria:
Aquela educação bem-medida demais deu à gente referências muito nítidas demais, para apreciar o mundo e a vida. No contexto daquele maniqueísmo simplista e inocente, as noções de bem e de mal ficavam demasiadamente claras, excessivamente bem-separadas.
O Instituto Padre Machado era uma espécie de versão mineira, portanto mais conventual, do célebre Colégio Abílio, do Rio, dirigido por Joaquim Abílio Borges, que inspirou O Ateneu, de Raul Pompéia. Lá não havia conversa, espaço para dúvida. Que o diga o escritor João Guimarães Rosa, do qual Antônio Lara Resende, por uma casualidade do destino, foi professor.  O futuro autor de Grande Sertão: Veredas, como registrou mais tarde Otto Lara Resende, recordava-se de São João del-Rei com o casario antigo, as igrejas barrocas e os seus sinos plangentes  como um lugar triste, um tédio só. 
 
Rosa referia-se também com melancolia à sua passagem pelo Instituto Padre Machado ¹ e a seu antigo mestre, com os claros olhos azuis a refletir firmeza e autoridade. Certa vez Joãozito, como o escritor era conhecido na infância, foi pego em flagrante delito. Qual seja: lendo um livro de Camilo Castelo Branco durante a aula! O severo diretor o puniu. Não com palmatória. Mas com o flagelo da cópia, castigo em voga na época, que consistia em copiar várias vezes, até a exaustão, um mesmo texto. No caso de Joãozito, o texto versava sobre os benefícios da leitura. Só que nas horas adequadas...
 
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Foi pelas mãos de um professor do colégio de seu pai, Benone Guimarães, também egresso do Caraça, que Otto Lara Resende fez contato com alguns autores cujos livros o acompanhariam pelo resto da vida. Foi no Instituto Padre Machado, também, que estreou como jornalista, tendo desempenhado as funções de gerente, eleito por voto secreto, do jornalzinho feito pelos alunos.
 
Otto conheceu Benone Guimarães quando cursava o final do ginásio, em 1938, pouco antes de deixar São João del-Rei. Àquela altura, seguindo o exemplo do pai, já era professor de Francês, idioma que aprendeu por conta própria. Muitos anos depois, numa conferência na Academia Municipalista de Letras de Belo Horizonte, ele evocaria o antigo professor Benone como um exigente copidesque, que não apenas dirigia o jornalzinho e orientava os colaboradores como não deixava passar nada que o seu crivo caracense considerasse impróprio.
 
Foi, a bem dizer, o início das agruras de Otto na imprensa. Um artigo seu, devidamente guaribado por Benone, lhe pareceu, quando saiu, totalmente desfigurado. Sofri e escondi a decepção. Talvez por não se ver nos textos publicados, Otto chegou a inventar um pseudônimo, para assinar as suas colaborações, que na verdade se aproximava muito mais de um trocadilho infame: Oh Tu! 
 
Para compensar, o exigente Benone Guimarães, leitor de autores clássicos e modernos, apresentou o adolescente Otto ao que havia de melhor na literatura.
Não sei avaliar até onde Benone Guimarães, como meu professor, diagnosticou em mim o vírus literário, esta grave infecção que me impediu de ter um destino mais pacato, de dormir melhor e viver menos cansado”,
diria Otto depois.
Nas mãos de Benone Guimarães, vi o primeiro exemplar de Boletim de Ariel, a revista literária dos anos 30. Nela escrevia Grieco e eu, curioso, admirador, li todos os livros do Grieco que me caíram sob os olhos.
Grieco, com a sua faiscante inteligência, seu estilo ferino e demolidor, era um dos críticos literários mais respeitados, e temidos, do país. 
 
Foi aí que Otto resolveu ser escritor.
Eu estava convencido de que tinha vindo ao mundo para escrever, para lutar com as palavras, por mais vã que fosse essa luta.
Por influência de Benone, tornou-se um leitor voraz de Machado de Assis.
A descoberta de Machado de Assis, de sua visão cética, amarga, de sua ironia, de seu sense of humour, desvendou um mundo para mim. Aos catorze, quinze anos, eu talvez fosse mais amargo e mais pessimista do que Machado...
Além de pessimista, asmático. Preocupada com a saúde do filho, a mãe de Otto, dona Julieta, durante os seus acessos de asma, o punha numa cadeira de balanço, em local privilegiado da sala de jantar, para que pudesse desfrutar melhor do ar puro que entrava pela janela. Foi nessa condição de doente, quase mártir, que Otto Lara Resende viu irromper, mundo doméstico adentro, um homem que até então, para ele, não passava de uma suprema sumidade, um inalcançável mito. 
 
Seu primeiro contato com Alceu Amoroso Lima, ou Tristão de Athayde, como também se assinava o famoso escritor e pensador católico, jamais lhe saiu da memória. Já tinha visto uma foto do doutor Alceu, engalanado com seu fardão da Academia, entronizado como se fosse um santo, na vitrine de uma casa comercial de São João del-Rei. Agora o via em carne e osso, dentro da sua própria casa, não como um deus, mas como um homem. 
 
Membro proeminente do Centro Dom Vital, organização da direita católica fundada em 1922 por Jackson de Figueiredo, da qual o pai de Otto fazia parte, Alceu fora a São João del-Rei para uma conferência sobre as repercussões do catolicismo na sociedade. 
 
Como um menino olhando sob a lona do circo, Otto esgueirou-se sorrateiro pelo salão onde pontificava o ilustre conferencista. Não entendeu nada do que ele disse. Mas entendeu tudo, no dia seguinte, sem precisar sair de casa. Aprendeu, por exemplo, que um homem pode muito bem ter duas caras: Uma convencional, acadêmica e fardada; outra, jovial, humana e simpática.

Causou-lhe um espanto de proporções dantescas, conforme escreveu, esse seu encontro, o primeiro de uma longa série, com Alceu Amoroso Lima. Ver de repente, não mais que de repente, em meio a uma crise de asma, do ângulo da sua modesta cadeira de balanço,
a glória descer de suas altitudes olímpicas para, como qualquer mortal, tomar café com biscoito de polvilho e pão de queijo”,
equivaleu a um verdadeiro alumbramento.
Foi esta, por certo, a primeira lição que recebi de Tristão de Athayde  a de me impor a certeza de que um grande homem pode ser, e quase sempre o é, também e antes de tudo, um homem comum, um homem humano.
Otto, de sua parte, não foi mais ou menos isso?
 
* Jornalista e escritor, nasceu em Niterói-RJ em 1947 e faleceu no Rio de Janeiro em 11/10/2019. Estreou na imprensa em 1970 como repórter do jornal Última Hora. Trabalhou como editorialista no Jornal do Brasil, no Estado de S. Paulo; foi repórter e crítico literário da revista Veja, redator da revista Isto É, editor do Jornal da Globo e redator-chefe da revista Manchete. Também foi diretor de jornalismo da Academia Brasileira de Imprensa (ABI), editor da Revista do Livro da Biblioteca Nacional, tendo participado do conselho editorial da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. É autor de “A poeira da Glória” (Relume Dumará, 1998), “Brilho e sombra” (Bem-Te-Vi, 2006), sobre a vida e obra de Otto Lara Resende, e “A rotativa parou” (Record, 2010), que relata a história do jornalista Samuel Wainer à frente do jornal Última Hora.
 
 
II. NOTA EXPLICATIVA do gerente do Blog 

 
¹ Em trabalho anterior registrei breve passagem de Guimarães Rosa pelo Ginásio Santo Antônio de São João del-Rei, dirigido por frades franciscanos holandeses. Seu professor de português era o severíssimo Antônio de Lara Resende, pai de Otto Lara Resende. Consta que GR não se adaptou à comida oferecida. Por isso, retornou a Belo Horizonte para conclusão de seus preparatórios no Colégio Arnaldo e Ginásio Mineiro e posterior ingresso, aos 17 anos, na Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais...”. Esta divergência em relação ao exposto no texto visa apenas esclarecer o leitor, não desmerecendo de forma nenhuma o excelente trabalho de Benício Medeiros sobre a biografia de Otto Lara Resende.
 
 
 
III. BIBLIOGRAFIA versando sobre o Caraça
 
 
BRAGA, Francisco José dos Santos: NO CARAÇA... CRIME REAL?, postado no Blog do Braga em 24/12/2024.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2024/12/no-caraca-crime-real.html
 
MEDEIROS, Benício: OTTO LARA RESENDE: a poeira da Glória, integrante da série Perfis do Rio. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará: Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, 1998, 141 p.