Por JOÃO CABRAL DE MELO NETO *
Esta breve antologia traduzida de “Quinze poetas catalães” foi apresentada pela primeira vez em fevereiro de 1949 nas páginas da Revista brasileira de poesia, publicada pelo Clube de Poesia de São Paulo. A reprodução aqui foi feita a partir da Revista Literária em Tradução, ano 1, nº 1, set. 2010 - Florianópolis, pp. 237-267.
João Cabral de Melo Neto (✰ Recife, 09/01/1920 ✞ Rio de Janeiro, 09/10/1999) |
Quinze poetas catalães | Quinze poetes catalans
Antologia Poética
“Toda a minha vida se liga a ti,
como na noite, as chamas à treva.”
“Tota la meva vida es lliga a tu,
com en la nit les flames a la fosca.”
1) [Mariano Manent]
Tradução de João Cabral de Melo Neto: LOUVAÇÃO DO BARRO
Cantarei o barro, porque nele esteve a vida
e este sangue que ferve em nosso corpo.
Meus olhos de barro pressentem o repouso
e o clarão imortal de uma outra Vida.
Cantarei o barro porque foi amassada
a nossa carne de barro inconsistente
e na argila curtida e inanimada
o sopro de Deus entrou como a semente.
LLOANÇA DEL FANG
Lloaré el fang, per ço que hi fou la vida
i aquella sang que bull al nostre cos.
Mos ulls de fang pressenten el repòs
i la immortal claror de l’altra Vida.
Lloaré el fang, per ço com fou pastada
la nostra carn del fang inconsistent
i dins l’argila immóbil i colrada
el buf de Déu entrà com la sement.
2) [Joan Oliver (Pere Quart)]
Trad. idem: Poema XIX de AS DECAPITAÇÕES
Sem caule, só
corola
que na noite serena
voa,
errante,
alma penada,
lívida
(como seu rosto
de despedida
à bela vida).
Casamento
de asa e neve,
fruto celeste
(cabeça
sacra
de Madame
Ana Bolena
rediviva em simulacro),
cinza e chama,
lua plena.
N. XIX
(LES DECAPITACIONS)
Sens tija, sola
corol.la
que en la nit serena
vola
errivola
ànima en pena,
livida
(com son visatge
d’adéu
a la bella vida).
Maridatge
d’ala i neu,
fruit celeste,
(testa
sacra
de Madama
Anna Bolena
rediviva en simulacre)
cendra i flama,
lluna plena.
3) [Tomás Garcés]
Trad. idem: LENDA
Cavaleiros de alvas barbas
na vereda a cavalgar.
Talvez regressem da caça,
talvez partam a guerrear.
Capinzal alto e florido,
um berço no capinzal.
Entre flores, rosas brancas,
o Infante sorrindo está.
Descavalgam, se ajoelham,
se o soubessem embalar!
Com a névoa se dissiparam
o combater e o caçar.
Nascem albas, tombam folhas,
águas no rio a passar.
Nos caminhos da ribeira,
cavalos, sem brida, já.
LLEGENDA
Cavallers de barba blanca
per un aspre viarany.
Potser tornen de cacera,
potser van a guerrejar.
Canyes altes i florides,
Un bressol vora el canyar.
Entre flors de satalia,
el somriure de l’Infant.
Descavalquen, s’agenollen,
si el sabessin bressolar!
Amb la boira s’esvaïen
la cacera i el combat.
Neixen albes, cauen fulles,
passen aigües riu enllà.
Pels camins de la ribera,
sense brides, els cavalls.
4) [Rosa Leveroni]
Trad. idem: CANÇÃO
Mil auroras acendeu
o ardente grito da chama.
Dez mil estrelas nos deu
o pranto sutil do orvalho.
Punha o perfume carmim
na alma desta rosa branca
e uma cerva pela fonte
buscava o espelho de prata.
Percebi uma canção
e não sei quem a cantava;
entre suspiros de ramos,
como de longe, chegava,
dizendo bem docemente:
Ai da triste enamorada!
CANÇÓ
Totes les albes ha encès
El clam ardent d’una flama.
Tots els estels han donat
un plor subtil de rosada.
El perfum posa carmi
al cor de la rosa blanca
i la daina, dins la font,
cercava un mirall de plata.
He sentit una cançó
i no sé qui la cantava:
semblava venir de lluny
entre sospirs com de branca
i deia ben dolçament:
Ai la trista enamorada!
5) [B. Rosselló-Pòrcel]
Trad. idem:A MAIORCA, DURANTE A GUERRA CIVIL
Reverdecem ainda aqueles campos
e permanecem aqueles arvoredos
e sobre o mesmo azul
se recortam as minhas montanhas.
Ali as pedras invocam sempre
a chuva difícil, a chuva azul
que vem de ti, cordilheira clara,
serra, prazer, claridade minha!
Sou avaro do que me resta de tua luz
e que me faz estremecer quando te evoco!
Ali os jardins são agora como a música
e me turbam, fatigam com seu tédio lento.
Ali o coração do outono já murcha
em harmonia com fumeiros delicados.
E as ervas são queimadas pelos cerros
de caça, entre sonhos de setembro
e névoas tingidas de ocaso.
Toda a minha vida se liga a ti,
como na noite, as chamas à treva.
A MALLORCA, DURANT LA GUERRA CIVIL
Verdege encara aquells camps
i duren aquelles arbredes
i damunst del mateix atzur
es retallen les meves muntanyes.
Allí les pedres invoquen sempre
la pluja difícil, la pluja blava
que ve de tu, cadena clara,
serra, plaer, claror meva!
Sóc avar de la llum que em resta dins els ulls
i que em fa tremolar quan et recordo!
Ara els jardins hi són com músiques
i em torben, em fatiguen com en un tedi lent.
El cor de la tardor ja s’hi marceix,
concertat amb fumeres delicades.
I les herbes es cremen a turons
de cacera, entre somnis de setembre
i boires entintades de capvestre.
Tota la meva vida es lliga a tu,
com en la nit les flames a la fosca.
6) [Joan Teixidor]
Trad. idem: MENINO
Todos os jardins se fizeram para ti
e as flores, as pedras.
Não tentes saber mais, contempla
a luz pendurada na árvore.
Quando grande, não te lembrarás
desta paz divina.
Mas uma obscura saudade haverá no desejo
do que agora te sobra.
INFANT
Tots els jardins s’han fet per tu,
i les flors i les pedres.
No intentis saber més; mira
la llum penjada a l’arbre.
Quan seràs gran oblidaràs
aquesta pau divina.
I, sense esment, tindràs enyor
del que ara tens i et sobra.
7) [Salvador Espriu]
Trad. idem: MONÓLOGO DE ESTHER
Quando te perderes dentro
do deserto da tarde
e te der sede o azul
do mar tão distante,
sentirás que és olhado,
pelo meu olhar.
Eterno príncipe, Jacob,
terás sempre companhia
contigo peregrinando
através séculos, palavras.
Suportarás a morte
como o ramo ao pássaro.
Ai, inimigo caminho
das horas, das águas,
galope de altivos archeiros
contrários à estátua
de sal do que pensou
vir a ser mármore!
Si tu cais, os teus olhos
gelarão esperanças.
Povo triste, à lembrança
das cidades abrasadas.
Nenhum repouso te acolhe
de sombra doce, ou casa.
Apenas sonhos, no fundo
do meu olhar.
MONOLAC DE ESTHER
Quan et perdis endins
del desert de la tarda
i t’assedegui el blau
de la mar tan llunyana,
et sentiràs mirat
per la meva mirada.
Etern, príncep, Jacob,
tindràs sempre companya
que peregrini amb tu
per segles e paraules.
Suportaràs la mort,
com a l’ocell la branca.
Ai, enemic camí
de les hores i l’aigua,
galop d’altius arquers
contraris a l’estàtua
de sal de qui volgué
esdevenir de marbre!
Si et tombes, ele teus ulls
glaçaran esperances.
Poble trist, amb record
de ciutats molt cremades.
No t’aculll cap repòs
d’ombra bona, de casa.
Només somnis, al fons
de la meva mirada.
8) [Joan Vinyoli]
Trad. idem: AO VENTO DE OUTONO
Vento de outono, vento solitário,
vento da noite,
força obscura que se desprende
do infinito e volta ao infinito,
rodopia dentro de mim, conjura
contra meu coração tua força,
arranca de uma vez a casca
do fruto que não madura.
AL VENT DE TARDOR
Vent de tardor, vent solitari,
vent de la nit,
obscura força que es deslliga
de l’infinit i torna a l’infinit,
arremolina’t dintre meu, conjura
contra el meu cor la teva força,
arrenca já l’escorça
del fruit que no madura.
9) [Josep Romeu]
Trad. idem: JUNHO
Nobres, mais do que o ouro, as espigas
oscilam, maduras, e ondulam
e vêm e vão ao vento,
em tardes sagradas, doces.
Esperam agora a foice
para dar-se submissas, largamente.
Conhecêssemos o amor do fruto
que recolhe o mel profundo
e cai, alimento de Deus,
ao fazer-se maduro, completo!
JUNY
Més nobles que l’or, el blats
oscil.len, madurs, i onegen,
revenen i van al vent
en tardes sagrades, dolces,
Esperen avui la falç
per dar-se sumisos i amples.
Sabéssim l’amor del fruit
que serva la mel profunda
i cau, nodriment de Déu,
en fer-se madur i perfecte.!
10) [Josep Palau]
Trad. idem: SONETO INTRAUTERINO
Desde teu mal, desde tua entranha, desde tuas lágrimas
quero ser uma voz ― germinal.
Pensar-te desde ti, desde teu centro contar-te, desde a
[flor
suprema de teus olhos.
Quero desnascer em ti. Todo homem quer desnascer
[num
amor, num seio.
Ah! faze-me pequeno, pequeno, até que eu veja pó
enfebrecido, pólen de teu ventre.
SONET INTRAUTERÍ
Des del teu mal, des de la teva entranya,
des de laes teves llàgrimes, vull ser una veu ― germinal.
Pensar-te des de tu, des del teu centre
dir-te, des de la flor suprema dels teus ulls.
Jo vull desnéixer en tu. Tot home vol desnéixer
en un amor, un si.
Ah! fes-me petit, fins que jo sigui pos
estremida, pol.len del teu ventre.
11) [Joan Barat]
Trad. idem: ANO NOVO
Meia-noite, epílogo
e cinza de um pouco de mim
e do tempo; outra vez empreender
um sangue e um caminho
eterno, sem entender.
ANY NOU
Mitja nit, cendra
I epíleg d’un tros de mi
I del temps: reprendre
uma sang i un camí
etern, sense comprendre.
12) [Joan Perucho]
Trad. idem: É POR ISSO QUE ESTIMO
Mármore ou lua gelada,
errante,
como pensativo asfódelo navegas por um céu de
[esperança
enquanto tuas mãos ignoram as macilentas febres,
os horrores da morte sobe o lodo
ou a injúria vil
que sob encorajadoras palavras
dirigem os homens a suas amantes secretas.
Desejaria estimar-te
como o delicado inseto estima a pequena memória de
[uma flor
ou como a terra estima a nuvem
prostrado serenamente ante uma harmoniosa presença
que perdura na luz de teu corpo
tão esbelto e jovem.
Porém o sonho que aproxima sonho,
vida que alenta vida
não perdoa uma boca, uma inútil tortura;
não perdoa um amor que se enraíza como árvore
alçada furiosamente por cima de um ventre
ou de uma terra materna.
É por isso que estimo
esta canção que ora agoniza.
ÉS PER AIXÓ QUE ESTIMO
Marbre o lluna glaçada,
errívola,
com pensatiu asfòdel navegues per un cel d’esperança
mentre tes mans ignoren les macilentes febres,
els horrors de la mort sobre el fang
o la injúria envilida
que sota encoratjadoras paraules
adrecen els homes a llurs amants secretes.
Jo voldria estimar-te
com el delicat insecte estima la petita memòria d’una flor
o com la terra estima el nùvol,
tombat serenament a una armoniosa presència
que perduri en la llum del teu cos
tan esvelt i tan jove.
Però somni que atança somni,
vida que alena vida
no perdona una boca, una inútil tortura;
no perdona un amor que arrela com un arbre
furiosamente alçat damunt d’un ventre
o una terra materna.
És per això que estimo
aquesta cançó que ara agonitza.
13) [Joan Triadú]
Trad. idem: ENDIMIÃO (Fragmento)
É ainda um repouso às feridas
que o ar desperte, pátria, de seu sonho
cansado e taciturno, amigo apenas
de frágeis bandeiras, dos cabelos
mais ágeis de um amor, e do sorriso
do nosso mar ― aceso de pura manhã,
ao lado da vida. Sempre me acompanham
os silêncios amigos e essa fadiga
tão doce de seu falar, rico de uma morte
bem guardada nos anos e das lutas
quando um abraço povoa as areias de frutos
e me devolve as bandeiras no vento
do ombro seguro e exaltado;
enquanto as crianças agora, com olhos de noite,
aspiram o clarão do céu selvagem,
sem que uma voz responda ao seu chamado
que serve apenas para afugentar os pássaros de boas-
[vindas.
ENDIMION (Fragment)
Encara és um repòs de les ferides
que l’aire es llevi, pàtria, del seu son
cansat i taciturn, amic a penes
de les fràgils banderes, dels cabells
més àgils d’un amor, i del somriure
del nostre mar encès de pur matí,
vora la vida. Sempre m’acompanyen
els silencis amics i el cansament
més dolç del seu parlar, quan l’abraçada
pobla els arenys de fruit, ric d’una mort
bens guardada en els anys i de les lluites,
i em torna les banderes en el vent
de l’espattla segura i exaltada,
mentre els infants ara, amb ele ulls de nit,
aspiren la claror del cel salvatge,
i no respon una veu a llur crit,
però fugen ocells de benvinguda.
14) [Jordi Sarsanedas]
Trad. idem: COLOCAREI O MEU AMOR...
Colocarei o meu amor, tão longo como as veias,
na boca de cinza daquele menino esquivo
entre a paz humilde das derradeiras cabras.
Quero abraçar a fome que lhe dá aquele passo sutil,
pousar um sonho leve na sua cabeça rapada
e o reflexo da flor da nossa mimosa.
POSARÉ EL MEU AMOR...
Posaré el meu amor que és tan llarg com les venes
a la boca cendrosa d’aquell infant esquerp
entre la pau humil de les darreres cabres.
Vull besar aquella fam que li affina la passa
i posar un somni lleu en el crani rapat
i el reflexe darrer de la nostra mimosa.
15) [Jordi Cots]
Trad. idem: VIVER COM FÉ...
Viver com fé cada hora santa
como se amanhã partíssemos
para um país estrangeiro,
sem despedir a hora nossa.
E arrancar do céu a chuva,
e de teus olhos o tempo, amiga,
pássaro, flor de neve, para contemplar-te.
Oh o ritmo grave da Morte!
A Morte nos meus cabelos
presa como uma rosa.
VIURE AMB FE CADA HORA SANTA...
Viure amb fe cada hora santa,
com si a l’endema partíssim
cap a un país estranger,
sense comiats l’hora nostra.
I arrencar del cel la pluja,
i el temps dels teus ulls, amiga,
ocell, flor de neu, per mirar-te.
Oh el ritme greu de la Mort!
La Morte en els meus cabells,
segura com una rosa.
* João
Cabral de Melo Neto nasceu em Recife, em 1920, e faleceu no Rio de
Janeiro, em 1999. Poeta e escritor, autor, entre outros livros, de O cão sem plumas (1950), de O rio (1953) e de Morte e vida Severina
(1956), considerada a sua obra mais célebre. Em 1945 ingressou na
carreira diplomática, tendo atuado numa série de cidades europeias,
entre as quais, Barcelona. Durante esse período, traduziu para o português a antologia poética de 15 poetas catalães selecionados.
II. O texto
Em fevereiro de 1949, o poeta João Cabral de Melo Neto apresentou nas páginas da Revista brasileira de poesia, publicada pelo Clube de Poesia de São Paulo, uma breve antologia traduzida de “Quinze poetas catalães” da 1ª metade do século XX. A descoberta da literatura catalã pelo autor de Morte e Vida Severina foi fruto de seu período barcelonês, durante a década de 1940, quando fora diplomata na Catalunha. Ao caracterizar e definir a posição dos poetas selecionados para sua antologia como “uma posição de defesa da língua catalã”, já que à época, durante a ditadura franquista, o uso do idioma fora banido do território espanhol, assim como o basco e o galego, o escritor não só ansiava estreitar os laços entre o Brasil e a Catalunha — como atestam algumas de suas cartas a Bandeira, Drummond e Lispector — mas também se mostrava preocupado em preservar e resgatar a língua catalã e promover sua literatura dentro da literatura de seu país, fato que explica a tradução ter sido publicada ao lado do original em catalão. Após seis décadas, republicamos a seguinte tradução em homenagem à sua memória, seja enquanto texto literário seja enquanto registro de tradução.
Texto de referência: “Quinze poetas catalães”. In Revista brasileira de poesia, fevereiro de 1949, pp. 29-43.
Os autores: Mariano Manent, Joan Oliver, Tomás Garcés, Rosa Leveroni, B. Rosselló-Pòrcel, Joan Teixidor, Salvador Espriu, Joan Vinyoli, Josep Romeu, Josep Palau, Joan Barat, Joan Perucho, Joan Triadú, Jordi Sarsanedas e Jordi Cots.
O tradutor: João Cabral de Melo Neto.
Um comentário:
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
Em fevereiro de 1949, o poeta JOÃO CABRAL DE MELO NETO apresentou nas páginas da Revista brasileira de poesia, publicada pelo Clube de Poesia de São Paulo, uma breve antologia traduzida de “QUINZE POETAS CATALÃES” da 1ª metade do século XX. A descoberta da literatura catalã pelo autor de Morte e vida Severina foi fruto de seu período barcelonês, durante a década de 1940, quando fora diplomata na Catalunha.
O Blog de São João del-Rei transcreve essa antologia poética catalã, na língua original e em português, já que foi necessário o encontro marcante com a poesia e a cultura da Catalunha para redimensionar o racionalismo e o esteticismo da poesia do vate brasileiro.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/01/quinze-poetas-catalaes.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
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