O gerente do Blog de São João del-Rei dedica este artigo ao ilustre tradutor e helenista português por sua obra de divulgação de grandes obras escritas em grego. A publicação deste artigo tem por objetivo contribuir para uma próxima e esperada reedição de sua tradução do Novo Testamento que — espero — venha contemplar as sugestões do grande e experiente helenista salesiano, sem absolutamente desqualificar a sua atual edição, conforme afinal já o fizeram também outros estudiosos como José Augusto Ramos e Anderson de Oliveira Lima, de seu conhecimento, com vista a um aperfeiçoamento do texto.
Pe. Wolfgang Gruen (1927-2024) |
Alguns dos livros da autoria de Wolfgang Gruen |
I. Observação preliminar.
Para traduzir “do grego”, convém verificar primeiro qual o dialeto grego do original: homérico, jônico, dórico, eólico, ático; se for um texto de filósofo, é preciso ter em conta o alcance de seus termos específicos; etc.
Ora, o Novo Testamento (NT) foi escrito no grego espalhado e vulgarizado por Alexandre Magno, chamado koiné diálektos, que variava um pouco conforme a região. No caso da Bíblia, era a koiné alexandrina, pois foi em Alexandria do Egito que, nos séculos 3-2 a.C., se fez a primeira tradução completa do AT, para uso dos numerosos judeus da diáspora. Quando os primeiros escritores do NT começaram a escrever para judeus da diáspora e pagãos de língua grega, é compreensível que recorressem em grande parte a essa koiné.
No caso de tradutor do NT, não basta que ele seja helenista: tem que ter familiaridade com o vocabulário da koiné alexandrina e particularidades de sua gramática. Muito importante: tem que estar familiarizado com o assunto e seu espírito. Não basta invocar a etimologia de uma palavra para justificar a preferência por determinada tradução: a etimologia não esclarece o significado posterior de um termo: apenas diz seu significado originário, muitas vezes bem diferente do atual. O que esclarece o sentido de um termo ou uma expressão é seu uso pelo povo em determinada época, atual ou passada (cf. WITTGENSTEIN: Investigações Filosóficas). Aliás, uma mesma etimologia pode resultar em sentidos diferentes. Cf. em português: percalço, privar, competente e petulante; candidato, marechal, infantaria, prestígio, escola, idiota, trabalho. Para casos discutíveis, o tradutor terá que consultar um bom dicionário de Grego do NT: recomenda-se de BAUER/DANKER: Greek-English Lexicon of the New Testament and early Christian literature (1.156 p.).
II. Vamos aos textos apresentados como amostras.
Quanto a Mc 1,5: “E eram batizados por ele no rio Jordão, reconhecendo os seus erros”, conforme Frederico Lourenço. As nossas traduções do original grego geralmente dizem confessando seus pecados (Nova Vulgata, CNBB, BJ, TEB, Peregrino, nova tradução das Paulinas; João Ferreira de Almeida (Revista e Atualizada), da Sociedade Bíblica do Brasil. A Tradução do Novo Mundo, das Testemunhas de Jeová, diz: confessando abertamente os seus pecados.)
Comecemos pelo verbo exomologéo [> exomologoúmenoi]: além de outros sentidos, tem o de admitir, confessar, reconhecer abertamente, professar. O termo hamartía pode ser traduzido por pecado, culpa, falta, erro. À primeira vista, trata-se de sinônimos. Na verdade, sinônimos nunca o são totalmente. No nosso caso, temos uma boa pista: a junção dos dois termos corresponde à expressão confessar os próprios pecados – na oração pública ou particular, e na liturgia. Detalhe: a imersão (em grego: báptisma) na água era muito usada em Qumrân, como em outros lugares, para designar o gesto de confissão dos próprios pecados e seu perdão. O fato de João Batista usar o rito é um dos detalhes pelos quais se costuma afirmar que João Batista, provavelmente, passou uns tempos no ”mosteiro” de Qumrân, logo ali perto.
Em vez de pecados, convém aceitar a tradução erros? Reconheço que, já bem antes do Vaticano II, principalmente na Igreja católica começou lamentável inflação do termo e do próprio conceito pecado; a inflação teve como resultado, entre outros, a sua desvalorização: “tudo era pecado”. Daí a tão difundida preferência pelo termo mal. Concordo com o saneamento; mas não com a mudança no texto bíblico: isso pertence à interpretação. Em tempos e lugares diferentes, o mesmo texto deverá levar a aplicações e atuações diversas; inclusive, a superar a inflação do conceito pecado: mesmo na área da ética, há males que não são pecados – por falta de conhecimento, de intenção, etc. Posso errar uma citação bíblica e reconhecer o meu erro; mas ele não implica em pecado a ser confessado.
Em síntese: não vou dizer que, neste texto, reconhecendo seus erros seja tradução errada; mas ela desconhece importantes conotações dos termos usados no rito do batismo e, com isso, empobrece o que o texto quer dizer. Prefiro o divulgado “confessando seus pecados”.
Quanto a Jo 1,1. “O Verbo estava em Deus, e Deus era o Verbo.” Algo a questionar nessa tradução? Penso que sim.
1. “O Verbo estava em Deus?” Se o autor quisesse dizer isso, era só escrever en to Theó . Mas o texto diz prós ton Theón. A preposição prós com acusativo pode significar com Deus, ou junto / perto dele, ou voltado para ele. Note que em Deus dá a impressão de algo fechado, abrigado em. Junto com, perto de, voltado para indica relacionamento e até dinamismo. Em todo caso, na koiné as preposições são mais livres que no grego clássico; por isso, em Deus é aceitável, mas não recomendável.
2. Deus era o VERBO ou O VERBO era Deus? Em português, dizer que Pedro ama Maria é diferente de Maria ama Pedro: a posição do sujeito da frase faz a diferença. Em latim, tanto faz dizer Petrus amat Mariam como Mariam amat Petrus, Petrus Mariam amat, Mariam Petrus amat. É que o latim e o grego têm sufixos flexionais (desinências) que, acrescentados ao radical da palavra, fornecem seus vários significados gramaticais. Ainda no exemplo acima, o sujeito da frase, Petrus, está no nominativo, enquanto o objeto direto, Mariam, no acusativo; isso basta: a posição na frase é opcional. Em português, nosso sistema de desinências nominais é mais reduzido; não dá certas liberdades, mas em compensação, é mais simples. Até aqui, não há como resolver o problema: o 4º Evangelho diz que Deus era o VERBO, como defende Frederico Lourenço, ou que O Verbo era Deus, de acordo com a grande maioria das traduções? Vejamos.
3. Tomemos a frase que estamos analisando: o grego é: Theòs en ho Logos, em latim Deus erat Verbum: temos um sujeito da frase (em grego e latim no caso nominativo), com um verbo de ligação (verbo ser, estar), seguido de um predicativo, também ele no caso nominativo: dois nominativos, um do sujeito, outro do predicativo. (Em latim, há uma “pegadinha” para o iniciante: verbum é neutro, com desinência idêntica no nominativo e no acusativo singular: verbum.) Nessa frase, não temos uma prova de que o sujeito é o VERBO, mas uma probabilidade: quando, numa frase grega, temos um sujeito e um predicativo, ambos no nominativo, mas um com artigo e outro sem, normalmente, aquele que tem artigo é o sujeito. É justamente o caso da frase Theòs en ho Lógos: ho Lógos, sujeito, Theòs, predicativo; a posição na frase não muda o sentido. Estamos na área da probabilidade; mas ainda não dá para resolver o problema. Felizmente, há ainda outros indicadores, que podem ajudar. Vejamos.
4. Diante das ambiguidades provocadas nos pontos acima, como podemos saber, então, qual o sujeito gramatical, e portanto a tradução correta, de Jo 1,1 “kai Theòs en ho Lógos“: “Deus era o Verbo” ou, “o Verbo era Deus”? O texto grego diz: kaì Theòs en ho logos – literalmente: e Deus era o Verbo. É também a tradução da Nova Vulgata Latina: “et Deus erat Verbum”, ambígua como o original grego, porque, em ambas, a ordem das palavras não altera o sentido da frase. Aliás, a versão latina é mais ambígua, porque o latim não tem artigo definido. Isso já pode acarretar uma diferença. Também em português: Jesus é o filho de Maria é diferente de Jesus é filho de Maria. O grego pode expressar essa diferença num texto, o latim não.
5. Jo 1,1-5 constitui um monobloco literário e teológico, cujo ponto alto é justamente o final do v.1: kai Theòs en ho Lógos. O actante central desse bloco é o VERBO, citado 10 vezes, embora só 3 com a denominação própria, VERBO. “Ele estava no princípio – ele estava junto de Deus – [ele] era Deus; (resumindo) ele estava no princípio junto de Deus. Tudo foi feito por ele; nada apareceu sem ele. Nele havia vida; esta vida era a luz das pessoas; esta luz brilha (mesmo) nas trevas; as trevas não a venceram.” A denominação VERBO só aparece 3 vezes, sempre com artigo e no nominativo.
E Theós? De acordo com a tradição judeu-cristã, no NT esse termo é mais usado com artigo – naturalmente no singular. Em Jo 1,1-5, nunca é subentendido; é nomeado 3 vezes, sempre junto do VERBO; nessas 3 vezes, só uma vez é usado sem artigo: no fim do versículo 1, que é o texto que estamos examinando. Que nos diz essa análise linguística? É inegável que o VERBO domina a cena, de ponta a ponta: ele é o sujeito gramatical desse primeiro monobloco. Pede a coerência que se leia assim também esse final do primeiro versículo do Cântico do Verbo.
Com essa leitura, compreendemos a aparente “exceção” que aparece na frase: Lógos, que domina a cena nesse monobloco, vem sempre acompanhado de artigo, como era de esperar; Theós, que no NT tem preferência pelo artigo (no singular, referindo-se ao Deus único e verdadeiro), se fosse o sujeito da frase, teria mais um motivo para ser acompanhado de artigo; mas, justamente porque não é o sujeito da frase, para evitar o mal-entendido, aqui, e só aqui nesse monobloco, está sem artigo.
Complementando: dizer que Deus era o VERBO é algo inaudito na Bíblia. Positivamente, temos numerosos comprovantes na Bíblia desse posicionamento: a Palavra de Deus realiza as tarefas: Gn 1, 1-31: Deus disse; Sl 34,6-9; Sb 9,1; Eclo 42,15, etc. Particularmente importante é a comparação desse “Hino ao VERBO” com sua retomada na 1.Jo 1,1-4.5-7. Lembra a nossa profissão de fé, cantada. Poderia ser o motivo pelo qual o autor optou por kaì Theòs en ho Lógos em vez de kaì ho Lógos en en Theõ.
Para tudo o que ponderei vale o “salvo melhor juízo”!
W. Gruen, Belo Horizonte, março 2018.
II. AGRADECIMENTO
O
gerente do Blog agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga pela
formatação do registro fotográfico utilizado neste trabalho.
2 comentários:
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
Tenho o prazer de enviar-lhe artigo do Pe. WOLFGANG GRUEN. Tive a felicidade de tê-lo como mestre na disciplina Cultura Religiosa, nos três primeiros anos do meu curso de Letras, cursado na Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras de São João del-Rei. Gruen era um erudito e nessa disciplina nos introduziu no pensamento de grandes teólogos, como o teólogo e historiador Bultmann. No último ano, ele foi substituído pelo capixaba Pe. Jacy Cogo na mesma disciplina.
Nessa época, Pe. Gruen produzia um programa semanal radiofônico noturno na ZYI-7 Rádio São João del-Rei que fazia verdadeiro apostolado através de uma bem fundamentada exegese dos textos bíblicos.
No seu artigo, Pe. Gruen defende que traduzir significa transpor determinado conteúdo de uma língua para outra, isto é, dizer a mesma coisa em outra cultura. O problema é que, muitas vezes, surgem inúmeros contratempos nessa operação metalinguística, especialmente quando se traduz um texto longínquo no tempo.
TEXTO
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/02/da-traducao-de-textos-de-marcos-e-joao.html
BREVE BIOGRAFIA DO AUTOR
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/02/colaborador-wolfgang-gruen.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Alessandro Gagnor Galvão disse...
Grato!
Postar um comentário