terça-feira, 6 de setembro de 2016

UMA PROSA CANTADA


Por Antônio Campos Tirado *


Em minha juventude colaborei bastante nas páginas do "Diário do Comércio". No "Ponte da Cadeia" parece-me que esta será a segunda vez, e espero que não seja a última. Quanto ao que vou dizer, será dedicado àqueles e àquelas de minha geração, os quais, como eu, chegaram aos quarenta anos quase sem perceber...

Quero dizer-lhes que a pior forma de saudade, acho eu, não é aquela que sentimos de um lugar onde já vivemos e jamais podemos rever, mas sim a de voltarmos a êsse lugar e sentirmos que êle já não é mais o mesmo em que vivemos. Sim, estou falando de nossa época, que pouco a pouco foi passando, e com ela nossos amigos, parentes, usos e costumes.

Se estou em São João em pleno carnaval, ao invés de ouvir a batucada do Dângelo, meus ouvidos teimam em escutar o Zé Pereira de outros tempos. Se resolvo ir às Águas Santas, vou confortàvelmente em meu carro, mas onde ficou a poesia do trem? Onde estão as locomotivas resfolegantes da RMV? Onde ficaram as estaçõezinhas dos subúrbios?

Quando passo pela avenida Tiradentes, em meio àquela mocidade feminina de pernas de fora e daquela rapaziada barbuda, sinto uma nostalgia profunda: lembro-me do tradicional "footing" da Ruy Barbosa, recordo-me do velho Café Rio de Janeiro e de seus antigos frequentadores, (a maioria dêles já em ossuários); lembro-me do Café Avenida e da Califórnia do Pedro Faria. Nada mais existe! O João-rachador-de-lenha foi substituído pelos fogões a gás; o Mané-encerador-de-casa pelo sinteco; o Carlos-sorveteiro pela Kibon; as Missas em latim por Missas em português; os meninos-vendedores-de-areia pelo bom-bril.

Graças a Deus ainda temos as igrejas e os sinos! Graças a Deus ainda temos as veneráveis irmandades e ordens que perpetuam as tradições! Graças a Deus ainda temos alguns fantasmas e assombrações! Graças a Deus ainda temos tico-ticos nas encostas do Lenheiro, a poesia de um Castanheira, o entusiasmo de um Palhares e o esfôrço de um Fábio Guimarães! Graças a Deus temos ainda um jornal para dizer:

A todos que um dia viveram comigo,
Àquelas a quem dediquei afeição, 
Se um dia quiserem lembrar-se do amigo, 
Contemplem as paredes de austera mansão,
Caminhem por ruas estreitas e tortas,
Respirem o perfume de velhos jardins,
Embora sem lírios, sem lírios, sem cravos,
E as rosas estejam caídas e mortas.
Que fiquem através de barrôcas janelas
Olhando a garoa bater no telhado
De antigas igrejas, de pobres capelas,
Ou sôbre o silêncio de um triste sobrado,
Que ouçam de longe, em tardes juninas,
Pianos tocando em casas em festa;
Que contem nas noites suaves de Minas
Histórias de mêdo depois da seresta.
Bem sei quão difícil será na verdade
Seguir um roteiro de coisas assim,
Por isso lhes peço: não sintam saudades,
Melhor que se esqueçam de tudo e de mim!

Fonte: jornal Ponte da Cadeia, edição de 6/9/1970. 

*  Antônio Campos Tirado foi sócio correspondente (no Rio de Janeiro) do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, tendo sido colaborador  ativo da sua Revista, a partir do seu volume III inclusive (pp. 92-103), onde estreou com o artigo intitulado "A vida e a personalidade de Alvarenga Peixoto", matéria utilizada em sua palestra proferida em 1º/07/1984. Observe-se que o seu nome já aparece como sócio correspondente no Rio de Janeiro, desde a Revista nº 1, de 1973.

8 comentários:

Eric Tirado Viegas (escritor e poeta, membro da Academia de Letras de São João del-Rei. Com o pseudônimo, Éric Ponty, é gerente de vários blogs, destacando-se o dedicado ao escritor Oranice Franco) disse...

Caro Francisco
agradeço a homenagem.
eric

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor e gerente do Blog de São João del-Rei e do Blog do Braga) disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Em 6 de setembro de 1970, através das páginas do Ponte da Cadeia, a população são-joanense leu a crônica "UMA PROSA CANTADA", da autoria do são-joanense Antônio Campos Tirado, o "Antonito".
Hoje, passados exatamente 46 anos, o Blog de São João del-Rei vem homenagear o inesquecível Antonito com a sua mesma crônica, que tanto encantamento trouxe a seus inúmeros fãs e admiradores.
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Prof. José Lourenço Parreira (capitão do Exército, escritor, violinista e regente são-joanense) disse...

Caríssimo amigo FRANCISCO BRAGA, paz!

Bela crônica, a de Antônio Campos Tirado, que evidencia verdades inexoráveis. Realmente, a pior forma de saudade é a de voltarmos a um lugar e sentirmos que ele já não é mais o mesmo em que vivemos, outrora.
Vivo essa realidade quando, normalmente em agosto (este ano, nem isso), retorno à querida São João. Sim, a beleza da nossa Terra Natal não está apenas nas frias montanhas, no sussurro da Lenheiro que parece contar-nos segredos à noite ou até na melodia dos sinos que ouvimos ainda no ventre de nossas mães e, em especial, as harmonias das orquestras Lira e Ribeiro Bastos, duas vezes seculares, sendo a Lira a mais antiga das Américas e a segunda do mundo.
Não, refiro-me aos seres humanos que dão vida ao que São João tem de mais belo e sagrado. Esses seres que passam, mas, sem eles, tão especiais, a perenidade da nossa arte estaria comprometida.
Sou grato a Deus por retornar a São João e encontrar os baluartes da cultura que marcaram minha vida, quando adolescente.
Dentre eles, você, caro amigo; o Professor Abgar; meu querido irmão Benigno; os amigos da Lira, onde ingressei aos 14 anos de idade; dentre outros, muitos outros...
No entanto, corroborando as palavras do autor da Crônica, faltam-me, no reencontro, alguns luminares. Para não ser longo, cito apenas alguns: Aluízio Viegas; Monsenhor Paiva; minha Mestra Maria Estela Neves Vale; o gênio Geraldo Barboza...
De você, caríssimo Braga, guardo inúmeras e vivas lembranças.
Certa noite, de madrugada, num sábado, eu retornava do Morro da Forca, da casa do Toninho Ramos. Lá estivera gravando o Programa do Estudante, a cargo do Conservatório.
Próximo à Ponte da Cadeia, alguns jovens conversavam. Passei célere para ir para casa.
Alguns passos adiante, e um dos jovens gritou meu nome, saudando-me: era você!
Tais recordações se me apresentam valioso tesouro!
Forte e saudoso abraço do filho de São João que, ainda que pequeno, procura a Terra de Tiradentes!

Jota Dangelo (diretor, ator, dramaturgo e gestor cultural, cronista e escritor) disse...

Lembrança do velho Antonito, amigo e companheiro de boemia da minha mocidade em São João del-Rei. Suas crônicas são memoráveis. Justa homenagem, Braga. Dangelo

Mercemiro Oliveira Silva (jornalista, cronista e membro da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Embora minha ida a Pará de Minas não tenha sido mais que de dois anos, da última vez que lá fui, quase me perdi. Já não mais conheço a terra de minha infância. O antigos conhecidos e amigos já devem estar nos "ossuários" e a cidade é outra. Mais moderna, mas, para mim, menos romântica.

José Carlos Hernández Prieto disse...

Fenomenal, caro Braga! Obrigado por resgatar tão lindos versos do saudoso irmão de nosso amigo e confrade Abgar! Abraço fraterno!

Dr. Mário Pellegrini Cupello (pesquisador, escritor e presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto, de Valença, e sócio correspondente da Academia de Letras e IHG de São João del-Rei) disse...

Agradecemos pelo envio.

Abraços, Mario.