Por A. Fonseca Pimentel
Este ensaio foi originalmente publicado no Suplemento Literário Minas Gerais, Belo Horizonte, nº 44, p. 7, edição de 01/07/1967.
Numa série de três artigos publicados neste suplemento sob o título "Gonzaga e Puchkin" ¹, expusemos e analisamos, em vários dos seus aspectos, o fato de haver o grande poeta russo traduzido para o seu idioma, em 1825, uma das liras do cantor de Marília: a Lira 9 da II Parte das antigas edições de "Marília de Dirceu". ² Retraduzimos, inclusive, aquela lira, do russo para o português, a fim de possibilitar o confronto da tradução com o original, e, ao fazê-lo, ressalvamos que alguns dos lugares comuns que apareciam na nova versão portuguesa do poema já se encontravam na versão russa de Puchkin e não eram da responsabilidade dêste prosaico ensaista. Afirmamos mesmo que, com razão ou não, Gonzaga já havia sido acusado de ser useiro e vezeiro em lugares comuns. E, ao afirmá-lo, estávamos pensando sobretudo em Waltensir Dutra, autor da secção "O Arcadismo na Poesia Lírica, Épica e Satírica" de "A Literatura no Brasil", publicada sob a direção de Afrânio Coutinho.
Ali, com efeito, escreve aquêle crítico e coestaduano nosso, a propósito exatamente da lira traduzida por Puchkin:
"As saudades de Marília são cantadas em expressões arcádicas, gastos expedientes da poética contemporânea, como por exemplo na Lira 9 da Parte II, onde o poeta nada mais faz do que repetir lugares-comuns: fala na inveja que os outros pastôres têm do seu amor, na estrêla, na fresca rosa, no gado que àquela hora soltava quando estava livre, na ovelha que mais amava, no prado e na selva, nas finas rocas que para Marília lavrava, no passarinho que procura o ninho e na sanfoninha que o pastor tocava. A saudade limitou-se à descrição de cenas imaginárias e, como sentimento em si, é apenas mencionada na última estrofe". ³
Pessoalmente, e com a nossa fraca sensibilidade poética, estamos inclinados a concordar plenamente com Waltensir Dutra e a reconhecer que o poema encerra, em verdade, um amontoado de lugares comuns que não seriam aceitáveis nem concebíveis em qualquer composição poética de mediano valor nos dias de hoje.
O problema porém, é saber se êsses "lugares comuns" e êsses "gastos expedientes" já o eram ao tempo de Gonzaga e Puchkin e se os seus contemporâneos sentiam o poema como o sentimos hoje, a quase dois séculos de distância.
Parece que não e que, talvez, haja um excesso de rigor crítico da parte daquele comentador de Gonzaga, que o estaria julgando segundo os gostos e as preferências do nosso tempo. Em outras palavras, afigura-se que o crítico mineiro estaria cometendo um êrro de perspectiva, apreciando um poema do século XVIII com os padrões do século XX.
Do contrário, como admitir que um homem da fina sensibilidade poética de Gonzaga compusesse um poema que fôsse, inclusive para os seus contemporâneos, um amontoado de lugares comuns e de expressões cediças e que, em seguida, um artista da excepcionalíssima sensibilidade poética de Puchkin perdesse tempo em traduzir semelhante poema para o russo? E como justificar que êsse autor de "lugares comuns" e "expedientes gastos" se houvesse tornado o segundo poeta mais lido do idioma, superado apenas por Camões?
Não. Há evidentemente, no juízo formulado, uma injustiça para com o cantor de Marília, que, a nosso ver, foi julgado sem aquêle requisito indispensável na apreciação das obras de arte, que Taine já preconizava há mais de um século, de situar o homem e a obra no seu meio e na sua época. ⁴
Por isso, ainda preferimos, sôbre Gonzaga, o conceito emitido por Ronald de Carvalho na sua "Pequena História da Literatura Brasileira":
Por isso, ainda preferimos, sôbre Gonzaga, o conceito emitido por Ronald de Carvalho na sua "Pequena História da Literatura Brasileira":
"Marília de Dirceu" é o livro de amor mais estimado da língua portuguesa. Nada menos de 34 edições já se fizeram das Liras de Gonzaga, depois da primeira de 1792. Os preconceitos da escola não lhe prejudicaram a sensibilidade. Gonzaga é um árcade mais humano do que Cláudio, mais sincero nos seus dissabores, sobretudo na 2ª parte das Liras, onde o espírito enamorado e gracioso cede o passo à alma ferida e dolorosa."
Ou, melhor ainda, o juízo de Sílvio Romero e João Ribeiro no seu "Compêndio de História da Literatura Brasileira":
"É um dos mais completos representantes do lirismo amoroso no Brasil. Não tinha grandes recursos de forma, nem audácias de pensamento; mas tinha suavidade na expressão, clareza nas idéias, e o seu sentimento era real."
Os modernos entendidos da arte poética é que poderão, todavia, dizer a última palavra a respeito.
NOTAS EXPLICATIVAS
¹ Suplementos de 09/11/1966, 26/11/1966 e 03/12/1966.
² Poema 71 das "Obras Completas" editadas em 1957 pelo Instituto Nacional do Livro e poema 76 das "Obras Completas" editadas em 1942 pela Companhia Editôra Nacional.
³ "A Literatura no Brasil", Vol. I, Tomo 1, p. 474, Editorial Sul Americana S.A., Rio de Janeiro, 1955.
⁴ Hippolyte Taine, "Philosophie de l'art", 5ª ed., 2 vols., Librairie Hachette et Cie., Paris, 1890.
AGRADECIMENTOS
Como gerente do Blog de São João del-Rei, gostaria de consignar alguns agradecimentos a pessoas que contribuíram para este post:
• Sra. Sara Azevedo, responsável pelo Setor de Periódicos/COMUT, da Biblioteca da Faculdade Letras da UFMG, que gentilmente me forneceu o artigo em questão e todos os outros dos SLMG-Suplementos Literários de Minas Gerais que já se encontram digitalizados;
• Sr. Joaquim Rodrigues da Costa, Coordenador da Biblioteca do Campus Dom Bosco da UFSJ, que me facilitou o acesso à coleção de Suplementos Literários de Minas Gerais no acervo da referida biblioteca, desde o nº 1 (1966);
• Adelto Gonçalves, professor universitário, autor de "Gonzaga, um Poeta do Iluminismo" e crítico literário, o qual me sugeriu a consulta a este ensaio de A. Fonseca Pimentel, utilizado, dentre muitos, em sua tese de doutorado pela USP.
⁴ Hippolyte Taine, "Philosophie de l'art", 5ª ed., 2 vols., Librairie Hachette et Cie., Paris, 1890.
AGRADECIMENTOS
Como gerente do Blog de São João del-Rei, gostaria de consignar alguns agradecimentos a pessoas que contribuíram para este post:
• Sra. Sara Azevedo, responsável pelo Setor de Periódicos/COMUT, da Biblioteca da Faculdade Letras da UFMG, que gentilmente me forneceu o artigo em questão e todos os outros dos SLMG-Suplementos Literários de Minas Gerais que já se encontram digitalizados;
• Sr. Joaquim Rodrigues da Costa, Coordenador da Biblioteca do Campus Dom Bosco da UFSJ, que me facilitou o acesso à coleção de Suplementos Literários de Minas Gerais no acervo da referida biblioteca, desde o nº 1 (1966);
• Adelto Gonçalves, professor universitário, autor de "Gonzaga, um Poeta do Iluminismo" e crítico literário, o qual me sugeriu a consulta a este ensaio de A. Fonseca Pimentel, utilizado, dentre muitos, em sua tese de doutorado pela USP.
8 comentários:
Pelos bons ofícios da Biblioteca da Faculdade de Letras da UFMG, tivemos acesso a outro ensaio de A. FONSECA PIMENTEL, publicado no Suplemento Literário de Minas Gerais nº 44, p. 7, de 01/07/1967, que pode ser considerado o esclarecimento/continuação do anterior "Gonzaga e Puchkin", publicado em duas partes pelo Blog de São João del-Rei em 24/09/2017.
Consideramos mais do que válido o resgate da memória de nosso amigo particular, que, além de inúmeros livros, publicou um grande número de ensaios sobre administração e literatura na imprensa periódica brasileira e deixou uma enorme quantidade de benemerências em suas missões no exterior.
O amigo é pesquisador incansável!
Abs.
O artigo chama a atenção para o erro cometido até com certa frequência por críticos hodiernos: tentar criticar poetas de dois ou um século anteriores utilizando critérios estéticos e literários contemporâneos. Dangelo
Caro amigo Braga
Agradeço pela sua gentileza em enviar-me o post “A Propósito de Uma Lira de Gonzaga”: muito interessante. Parabéns por mais esse trabalho de divulgação cultural.
Forte abraço, Mario.
Prezado Francisco, boa noite.
Seu blog está muito interessante. Agradeço a citação de meu nome e nos colocamos à sua disposição sempre que necessário.
Forte abraço. Joaquim
Muito grato pelo envio, amigo e confrade. Não se esqueça de cumprimentar a Rute, sua esposa, por mim. Abraço do Fernando Teixeira
Professor, bom dia;
Grato pelas novas publicações que colocam outras questões para o estudo anterior de Fonseca Pimentel acerca de Gonzaga/Puchkin.
Fiquei curioso em saber se houve erro de digitação no trecho "(...) como o sentimos hoje, a quase dois séculos de distância."
Estranhei o "a" no lugar do "há". Forte abraço e parabéns por mais essa publicação.
Caro Francisco Braga,
Que rica experiência conviver com um grande mestre.
Obrigada pelos arquivos.
Abraço fraterno,
Raquel Naveira
PS: Bom recordar a poesia árcade de Gonzaga.
Postar um comentário