sábado, 26 de maio de 2018

O Homem como refém do seu antropocentrismo


Por Demóstenes Romano Filho 


“É importante observar que um dos aspectos 
mais significativos de nossa situação atual é a 
chamada crise de significado. 
As visões da vida e do mundo, 
frequentemente de natureza científica, 
proliferam a tal ponto que nos vemos diante 
de uma crescente fragmentação do 
conhecimento. Isso torna a busca de 
significado difícil e, 
frequentemente, infrutífera”.

João Paulo II



O filósofo pré-socrático Xenófanes, que disseminou suas ideias 500 anos antes de Cristo, combateu veementemente o antropomorfismo, afirmando que se os animais tivessem a capacidade de pintar, certamente representariam os seus deuses em forma de animais, ou seja, à sua própria imagem e semelhança, como o Homem faz para parecer Deus ou para fazer Deus se parecer mais humano do que planetário, universal e cósmico. 

Mais ou menos nesta mesma época, o também grego Empédocles sustentava a ideia de que o universo era constituído por quatro princípios de vida: Água, Ar, Fogo e Terra. E que, por isso, o que havia de imutável e de indestrutível no mundo eram estes quatro elementos, componentes, em maior ou menor grau, de tudo o que existe. 

Tales de Mileto, Anaximandro, Heráclito de Éfeso, Anaxímenes, Demócrito, Parmênides e outros filósofos desta época se destacaram em estudos e discursos sobre as relações do Homem com outros seres do Universo e no empenho em procurar respostas sobre as sempre misteriosas questões “de onde viemos?”, “onde estamos?” e “para onde vamos?” e “quem éramos?”, “quem somos?” e “quem seremos?”. 

Um dos expoentes nestas indagações e propostas de reflexões foi Anaxágoras (500 – 428 A.C). Nascido em Clazômenas, na Jônia, fundou a primeira escola filosófica de Atenas, contribuindo para a expansão do pensamento grego na Ásia. Ele escreveu um tratado intitulado “Sobre a Natureza”, no qual afirmava que o Universo se constituiu e se constitui pela ação do “Nous”, conceito que geralmente é traduzido por espírito, mente ou inteligência (semelhante ao que hoje se chama de “Gaia”). Uma noção de causa inteligente que mais tarde repercutiu em Platão e Aristóteles. 

Muito antes destes filósofos, as relações do Homem com a Natureza eram de respeito do Homem pelas divindades do sol, da lua, da luz, da chuva, do rio, do vento, da pedra, da árvore, da montanha, da nascente, dos quadrúpedes, das aves, do mar, da escuridão, do sono, dos sonhos. Tudo era divino: ou a criatura era um Deus ou era criada por um Deus ou era guardada por um Deus. O Homem que não tivesse uma relação de respeito com as Águas de um rio, com uma árvore ou com um outro ser vivo estava desagradando o Deus Água ou o Deus das Águas, o Deus Árvore ou o Deus das Árvores. Por exemplo: matar um animal exigia um ritual, que incluía justificativa de sobrevivência do matador, e cortar uma árvore dependia de um ritual de pedido de licença a um Deus e de compromisso de bom uso dela (construção de um barco, de uma ponte, de uma casa, etc.) para não provocar a vingança divina. 

Muito tempo depois desses filósofos, outros filósofos e dirigentes de algumas organizações religiosas “idealizaram” uma “promoção” para o homem: “criaram” um Deus “humano”. E “rebaixaram” a Natureza: “mataram” a crença de que ela é a “mãe” da Vida de todos os seres. 

Sentindo-se único Ser considerado “imagem e semelhança de Deus”, o homem passou a negar esse status de imagem e semelhança a outros Seres que não fossem ele, o Homem. Outros desdobramentos não tardaram, como nesta manipulação antropocêntrica: sendo o Deus do Homem mais importante e melhor do que os Deuses dos outros Seres do Universo, o Homem é mais do que os outros Seres. Então, é como se fosse defensável uma proclamação assim: “viva o Deus do Homem, superior aos Deuses dos outros Seres”. 

Foi aí que o Homem perdeu o conceito divino de sua integração com a Natureza, com o ambiente, com os outros Seres, com a Água. E passou a vacilar sobre o seu significado e o seu papel na Natureza, no Universo. Como diz o filósofo Roberto Bolzani Filho, professor de Filosofia Antiga na Universidade de São Paulo: “o Homem perdeu o seu próprio sentido na vida. Por isso destrói a Natureza. Não consegue enxergar a sua finalidade no ambiente natural”. 

Ao perder seu significado no meio ambiente, perdendo o seu sentido de vida, o Homem também perdeu a visão ética de respeito a outros Seres, passando a tratar a Natureza como objeto de um processo tecnológico, político, social, legalizado e burocraticamente administrativo. 

E da exacerbação do Antropocentrismo (antropo + centrismo = o Homem, a raça humana, no centro, hegemonicamente, superior aos outros seres vivos, aos quais tenta escravizar, dominar, clonar) nascem quase todas as disfunções da Humanidade, nas quais Homens aniquilam Homens, física ou emocionalmente. Afinal, não há muita diferença de princípios éticos entre o que a maioria da raça humana faz com a maioria dos quadrúpedes e o que muitos brancos fazem com negros ou o que muitos ricos de dinheiro fazem com os pobres de dinheiro ou o que quase todos os detentores de poder político ou de poder legal fazem com os menos poderosos. 

Nessa desvairada necessidade de afirmação, de competição, de exibicionismo e de hegemonia, a raça humana virou refém de seu próprio antropocentrismo por uma quase irrefreável compulsão de trocar o que é natural pelo que é artificial ou de destruir o que é natural para fazer valer sua capacidade de ser criador, de parecer Deus, de brincar de Deus. 

A gestão de Águas dará um salto quântico quando se fundamentar em princípios que busquem harmonia e equilíbrio, simplicidade e naturalidade, respeito e paz, prosperidade e abundância, razão e emoção, resultados e mudanças como fatores de sucesso na geração de um desenvolvimento sustentável, no qual a evolução da raça humana se fortaleça e se suporte na evolução de todas as outras espécies e no respeito a todas as outras riquezas cósmicas do Planeta Terra. 

Em síntese, serão morosos e insuficientes os avanços em gestão de projetos sociais e em gestão de projetos ambientais que não considerarem como fundamento de seus participantes (governamentais e não governamentais, institucionais ou individuais) que o Homem precisa recuperar e aplicar valores de respeito a todos os Seres do Universo, como expressão da visão, da integração e da interação do próprio Homem na Natureza. É preciso perguntar o “para quê?” de cada ideia, de cada projeto, de cada ação. E obter respostas interessantes a uma visão sustentável, holística, planetária, cósmica, transcendente. 

Fonte: capítulo 7 do livro Salve, Água! – Contraponto à cultura do salvacionismo e do consumo sem produção, Belo Horizonte: Ramalhete, 2018, pp. 63-68 (de um total de 226 p.)

10 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Tenho o prazer de apresentar novo colaborador do Blog de São João del-Rei: o jornalista DEMÓSTENES ROMANO FILHO, natural do distrito de Morro do Ferro, município de Oliveira-MG, que sofreu profunda influência de seu pai e avô, pioneiros nos seus ideais progressivos e visões abertas para sua época e região.
Enquanto funcionário público, Demóstenes tomou consciência da gravidade dos problemas educacionais por todo o país. Começou a sentir uma responsabilidade ética por mudar o sistema educacional, especialmente depois que percebeu que os esforços das ONG's e os programas de reformas governamentais eram amplamente ineficazes. Em 1994, decidiu dedicar-se inteiramente a transformar radicalmente a natureza da educação no Brasil, atuando ativamente na sua cidade natal e publicando livros com esse propósito.

Sobre o autor Demóstenes Romano Filho
http://saojoaodel-rei.blogspot.com.br/2018/05/colaborador-demostenes-romano-filho.html

Sobre seu texto "O Homem como refém do seu antropocentrismo"
http://saojoaodel-rei.blogspot.com.br/2018/05/o-homem-como-refem-do-seu.html

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Diamantino Bártolo (professor universitário Venade-Caminha-Portugal, gerente de blog que leva o seu nome http://diamantinobartolo.blogspot.com.br/) disse...

Bom dia

Estimado amigo

Francisco

Felicito o novo colaborador e que tanto ele quanto a organização do Blog tenham
os maiores sucessos.

Se algum dia quiser ter um colaborador internacional (português) pode contar
comigo, só terá de fazer o favor de me indicar quais os meus deveres.

Bom final de semana.

Abraço.

Diamantino Bártolo

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga!
Mais uma excelente publicação. É saudar também seu novo colaborador. Gostaria apenas de acrescentar que, partindo da filosofia greco-romana, muitas vezes não nos damos conta de que o Brasil é berço de uma original filosofia da relação Homem/Natureza que é constituída pelo imenso legado dos povos americanos. O brasileiro comum, na sua inaudita ignorância, acredita que seus indígenas sejam incivilizados, quando deveria valorizar ao extremo o patrimônio humano que, apesar de sofrer tantos crimes ao longo de 500 anos de História e particularmente agora, ainda sobrevive pela graça de Deus.
Muito grato. Saudações

Paulo Sousa Lima disse...

Parabéns por publicar esse belo texto do novo colaborador. Senti-me contemplado por ter aprendido em Teilhard Chardin uma dimensão humanista da nossa inserção na natureza, a qual compartilho com figuras como o ambientalista e sanitarista Apolo Heringer.

Prof. Fernando de Oliveira Teixeira (professor universitário, escritor, poeta e membro da Academia Divinopolitana de Letras, onde é Presidente) disse...

Muito grato pelo envio, prezado Braga. Vou ler com cuidado o texto. O nome e os méritos de Demóstenes Romano não me são desconhecidos. Abraço do Fernando Teixeira

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador do TJMG, escritor e membro da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

OLAVO É BOM AMIGO.
ESTUDOU EM SJ DEL REI, SABIA?
GRANDE ABRAÇO E BOM DOMINGO.
ROGÉRIO

Danilo Carlos Gomes (cronista, escritor e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal e da Academia Brasiliense de Letras) disse...

Mestre Braga, grato pelo envio do artigo do Dr. Demóstenes Romano Filho e da crônica do Olavo Romano sobre aquele seu irmão. Uma família de homens cultos e eruditos, que muito admiro e estimo. Aprendi muito com mais esse Blog do Braga. Abraço do Danilo Gomes modesto cultor da Natureza que Deus nos deu.

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro amigo Braga

Agradecemos pela gentileza do envio do excelente artigo do Dr. Demóstenes Romano Filho. Trata-se de mais uma contribuição histórica que o erudito Mestre Braga – através de seu tradicional Blog – oferece aos seus inúmeros e cativos leitores.

Agradecemos, igualmente, pelo seu artigo sobre o primeiro historiador da cidade de Oliveira MG – Dr. Francisco de Paula Leite e Oiticica. Pouco conhecíamos sobre Oliveira, a não ser o fato de que um grande e estimado amigo, D. Francisco Barroso Filho, foi Bispo Diocesano de Oliveira. Hoje Emérito, ele reside em Ouro Preto. D. Barroso foi o criador do famoso Museu Aleijadinho, em Ouro Preto, em 1968. Como sabe o ilustre amigo, este Museu -- de renome internacional! -- reúne importantes peças de arte sacra e documentos gráficos visando a conservar, preservar e difundir o precioso acervo da Paróquia Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias, em Ouro Preto.

D. Barroso é um entre os mais ilustres Membros Correspondentes de nossa Academia Valenciana de Letras.

Com os reiterados agradecimentos, receba o abraço,

Dos amigos e admiradores,

De Mario e Beth.

Dra. Merania de Oliveira (jornalista e viúva do ex-presidente da Academia Marianense de Letras, Dr. Roque Camêllo) disse...

Dr. Francisco,
Paz, saúde e alegria!

Parabéns por nos apresentar o trabalho do jornalista Demóstenes Romano Filho.
Ele deve ser parente do nosso querido escritor Olavo Romano.
Saudações,
Merania

Frei Joel Postma (compositor sacro, autor dos hinários litúrgicos e fundador dos Corais Trovadores da Mantiqueira e Trovadores do Planalto) disse...


Francisco,
Meus parabéns para o novo colaborador! Todo esforço para melhorar o ensino é pouco, mas é sempre bem-vindo! "Paz e Bem!" fr.Joel