Por Rute Pardini
O rapto da princesa (lenda folclórica russa) |
O texto de meu marido Francisco, intitulado “Nossa Vida em Moscou”, me fez de verdade voltar àquela época em que vivemos intensamente nossa vida de moscovitas.
Bem; passo agora a comentar o texto dele, sob um olhar feminino.
Em meados do ano 2001, fomos nós dois para a Rússia com a cara e a coragem, ele mais preparado do que eu. De fato, cerca de trinta anos atrás, ele tinha feito um Curso Básico de Língua Russa na então União Cultural Brasil-URSS, que funcionava na Rua Frei Caneca, 390, na cidade de São Paulo, quando ele ali residia, sobre o que já escreveu um texto intitulado “Doces Recordações da FGV nos Anos 70 (Parte 3)”, no Blog do Braga.
Ao chegar ao nosso apartamento em Brasília, já de férias escolares, vi-o já com as malinhas prontas e comecei a ficar angustiada de ter que ficar aqui no Brasil, esperando por ele por causa do reinício do segundo semestre de minha Faculdade Mozarteum em São Paulo.
Então pensei: “Não estou gostando nada disso, pois nas suas aulas particulares de conversação no Instituto Rio Branco com aquele professor e tradutor oficial de russo, Roberto Wanderley de Souza Ferreira, este deixou claro, em tom de brincadeira entre os dois, sobre as mulheres russas e como eram lindas e fogosas. Hahaha... eu casadinha de pouco com meu marido solto por toda a Moscou... não permitiria deixá-lo nunca sozinho.”
Disse logo de cara, vou também para Moscou. E ele quase caiu de susto, quando lhe comuniquei minha decisão. Colocando a mão na testa, disse: “Adorei! Era isso que eu queria, minha amada.” E então logo começou a correr atrás da papelada para eu seguir junto naquela aventura.
Quase toda a parte burocrática estava pronta em menos de 5 dias. No último dia, quando nos dirigíamos para buscar meu passaporte com o visto da Embaixada russa, já na véspera de sairmos de Brasília, em plena Avenida W-3, próximo ao Brasília Shopping, um carro freou diante do semáforo no asfalto molhado e o carro que vinha atrás não conseguiu evitar a colisão com a traseira deste, bem à sua frente, o qual, num desvio brusco para a direita, voou para a pista onde nós estávamos já parando no semáforo, então provocando nova colisão com a parte traseira do nosso Escort.
Pensei: “Agora não vou mais para Rússia... Acabou meu sonho... Vamos ficar aqui resolvendo problemas que terceiros nos envolveram.”
Quase naquele mesmo instante, chegou um veículo com a polícia volante do DETRAN (apta a resolver qualquer problema de trânsito mediante acordo entre as partes envolvidas, no caso, três veículos), estacionou uma van ali no canteiro central, todos nós entramos lá dentro e começou assim as tratativas. Eu nunca tinha visto tamanha rapidez para resolver uma encrenca no trânsito. Imediatamente, o acordo foi concluído com os dois causadores do acidente querendo pagar o reparo imediato de nosso veículo.
Também, pensei: “Francisco, de paletó, gravata, crachá do Senado no peito e pasta na mão, parecia um Senador”. Naquele momento fechei os olhos e pensei: “Francisco é meu herói, então não devo temer esta viagem longa e inesperada para mim.”
Deixamos tudo encaminhado para nosso amigo Robson resolver na nossa ausência e isso foi feito. Para nossa surpresa, no dia que retornamos de Moscou, lá estava, no estacionamento externo do nosso prédio na Quadra 310 Norte, o pobre do nosso carro reparado. Contei este caso, porque eu estava muito insegura de ir para outo país, com medo mesmo, mas, ao vivermos juntos aquele momento de apuro, criei forças para encarar o novo desafio no Leste Europeu.
Estava indo resignada, partindo do aeroporto de Brasília numa aeronave brasileira, mas, já na baldeação em São Paulo, comecei de novo a passar mal, quando vi aquele avião gigantesco da KLM e nunca tinha entrado dentro de algo tão grande como aquilo, só mesmo em aeronaves menores. Despachamos as nossas malas diretamente para Moscou e só as veríamos novamente na chegada, embora tivéssemos mais uma baldeação em Amsterdam, sem nos preocuparmos mais com a bagagem.
Entrei ali apavorada chorando e as aeromoças tiveram que me abraçar, me acalmando. Assim fiquei amiga delas lá dentro. Tudo fizeram para eu sorrir, inclusive me ofereceram até para entrar na cabine do comandante, que seria legal eu ver lá da frente, mas recusei, já me sentindo mais tranquila por estar bem na companhia das comissárias de voo.
Enquanto a viagem seguia, eu comecei a ficar calma, pois parecia que um filme se desenrolava debaixo de nosso avião, tudo muito lindo, sol brilhante a nos clarear o caminho pelos ares, rumo à tão sonhada Moscou.
Então, seguimos numa viagem bem tranquila. Fizemos a conexão, com troca de aeronaves em Amsterdã até Moscou.
Finalmente em Moscou, eu, já sentindo o fuso horário, fiquei mais para barata tonta do que para detetive.
Passamos pela alfândega e pegamos nossas bagagens sem problemas, mas, quando fomos tomar o táxi, aconteceu aquela confusão de conversa em russo (entre a máfia de táxis do aeroporto e os motoristas particulares) e repito aqui que não sabia falar nenhuma palavra em russo. Percebi que estava havendo um desentendimento, mas nem liguei: entrei dentro de um táxi preto que parou, apesar da oposição daquele outro grupo de taxistas enraivecidos. Um tipo estranho saiu, pegou nossas malas, apressando-se a deixar aquele ponto o mais rápido possível. Seguimos para o destino fornecido por Francisco. Eu estava toda amarrotada de tantas horas de viagem. A corrida durou quase uma hora, pois o nosso destino era o Instituto Pushkin, uns 30 km a sul do aeroporto de Sheremetyevo.
Aqui começa minha história de verdade.
Descemos do táxi em frente ao prédio do Instituto Pushkin. Francisco pagou ao motorista, que ajudou a descarregar as malas antes de partir. Fui contá-las. “Êpa, está faltando uma.” Comecei a ficar preocupada. Queria ir atrás do taxista, mas não tinha nem sentido por onde e como ir.
Larguei para lá. Mas lastimando muito porque, dentro da daquela malinha faltante, havia deixado meu álbum de partituras, que pretendia cantar em Moscou para divulgar a música brasileira.
Chegamos à recepção do Instituto Pushkin. Local sombrio, gente estranha, luz fraca. “Meu Deus! Será que vou dormir hoje e amanhã o dia vai ser claro?”
Mas, no outro dia, tudo claro, comecei a observar aquele gigantesco complexo, sem os alunos regulares circulando lá, muitas fotos, muitos vestígios de gente, mas, para o tamanho da escola, aquilo estava completamente vazio. Senti-me deslocada, porque sempre estudei em externato, nunca interna em colégios. Os tais alunos regulares, que moravam a maior parte do ano, agora estavam de férias e eu ocuparia um de seus alojamentos, durante suas férias de verão.
Comecei no prézinho, quase mesmo só conversação, pois eu não falava nada e os professores terminantemente não falavam inglês, somente um pouco de francês e espanhol. Aí eu me virei. Já começamos na pauleira, aula em cima de aula, e Francisco com aquela fome de estudar...
Tudo que passei lá ficou gravado em minha memória. Levei um caderninho em branco, em cuja primeira página escrevi “Minha Vida em Moscou”.
Quem disse que escrevi uma linha? Não consegui tempo para isso.
Tínhamos que treinar o russo dia e noite, além de termos de nos preparar para a apresentação de um recital de música, em que o nosso duo estava programado para representar o Brasil numa festa de comemoração da Amizade entre as Nações.
Acho importante recordar esse fato, porque esta foi a primeira apresentação do duo Rute Pardini e Francisco Braga, respectivamente soprano lírica e pianista.
Uma mulher levava as roupas de cama, mas eu combinei com ela que não era preciso arrumar meu quarto, já que eu mesma arrumaria, pois, aqui entre nós, tinha medo de que algo meu sumisse. E o tempo foi passando, enquanto me acostumava com aquilo.
Na sala de aula, eu brilhava. Pensava que entendia tudo, mas quando chegava ao nosso alojamento, Francisco dizia: “Querida, está tudo errado.” O problema é que a língua eslava é meio complicada; tem diversos casos para substantivos e adjetivos que não acabam mais. Eis um exemplo de transliteração de um substantivo russo para nosso alfabeto: dom, a casa ou uma casa; damá, as casas; para casa, domói; dóma, em casa, e assim por diante. Observe no exemplo dado que a palavra DOM vem seguida de terminações, prescindindo de artigos e preposições. Assim é a língua russa, o polonês, o tcheco, etc. Ainda bem que a nossa língua portuguesa é bem diferente.
Fui ver a comida que eles ofereciam no restaurante universitário do Instituto. Vi alguma semelhança entre a culinária russa e a brasileira, mas era o modo de fazer que não me agradava; mesmo assim passamos a comer todos os dias no R.U. Lembro-me que, certo dia, discuti com uma das serventes do restaurante. A gente comprava uma ficha já destinada a determinado prato, que consistia na “mistura” de ovo e purê de batata; ou de arroz e frango (ou galinha); etc.
Mas a coisa horrível mesmo é que o arroz era retirado com uma escumadeira de dentro de um caldeirão de água fervendo para ser servido. Parece que ele era cozido assim, tipo “sopão”. Ela pegava aquela papa e colocava no meu prato com um pedaço imenso de frango bem pálido, se não optasse pelo purê com ovo frito. Senti saudades da nossa comida brasileira.
Enjoada do cardápio uniforme, certo dia eu quis mudar a “mistura” do cardápio: arroz com ovo frito. Havia os dois como opção daquele mencionado conjunto. Só que o arroz (ris, que se pronuncia com o mesmo “r” de cara) ia com a galinha (kúritsa), enquanto o ovo frito (eitsó) ia com outro acompanhamento, purê (piuré).
Foram quase uns dez minutos eu discutindo com ela: “Eu quero arroz com ovo frito” (em russo: Yá ratchú ris i eitsó.)
Ela me corrigia: “Niet. O arroz só podia ser servido com kúritsa”. E eu: “Niet, yá ratchú ris i eitsó” (Não, eu quero arroz e ovo.)
E a fila parada. Finalmente, veio um homem e disse a ela que me servisse o arroz com ovo.
Depois desse entrevero, disse a Francisco que nunca mais comeria ali, porque, se não fosse para comer do jeito que eu queria, eu não aceitaria a comida deles.
É claro que tinha muitos outros pratos diferentes, mas desconhecidos para mim até então.
Bem, com o passar do tempo, vi que havia outras formas de me alimentar em Moscou, mas nunca similar à nossa comida. Se quisesse comer coisas diferentes, teria que sair de dentro daquele Instituto ou eu mesma preparar minha propia comida, mas, com o tempo escasso, não pensamos em procurar restaurantes fora da escola.
Na sala de aula, ao relatar para meu amigo espanhol, Joseph, ele me disse que eu teria que sair dali e procurar nas redondezas do Instituto, porque ali, fora do Instituto, havia umas vendas que negociavam de tudo. Então, fui eu mesma ver “in loco” o que era aquilo de que ele falava.
Descobri que era coisa pequena, mas que dava para satisfazer as nossas necessidades diárias.
Lembro também que no Instituto havia uma cozinha em cada andar do alojamento onde vivíamos, e aí foi a minha glória, pois comecei a comprar os ingredientes que eu queria naquelas mercearias pela redondeza e, vendo os itens que os russos compravam, comprei-os também para fazer a minha própria comida. Francisco recordou essa experiência com linda passagem do seu texto, que aqui reproduzo: “Para chegarmos a esses pontos de venda, costumávamos tomar o caminho existente no meio de um bosque florido, muito bem preservado, de rosas silvestres delicadíssimas (não existentes no Brasil) e de árvores muito elevadas (plátanos e vidoeiros prateados ou bétulas). Atrás do bosque, costumava haver um comércio ativo de cidadãos russos que descobrimos com o passar do tempo e com nossa experiência. Ali se vendiam arenques secos na neve, pães de limão, de beterraba, com castanha, pão preto, etc. Também se vendiam roupas íntimas, casacos, etc.”
Eu elaborava os pratos todos os dias, pois não havia geladeira. Estudávamos de manhã e, depois do estudo, ia para a cozinha com meus ingredientes numa sacola e duas panelas e ali começava a fazer minha refeição, enquanto conhecia muita gente legal.
Engraçado! As meninas pareciam idiotas, nunca as vi cozinhar, embora vivessem agarradas a seu namorados. Alguns deles eram bons cozinheiros, às vezes. Tinha um francês, que era um espetáculo! Eu preparava minha comida e levava para o meu quarto, o mais rápido possível, porque, se demorasse para chegar à cozinha, dali a pouco teria que entrar na fila e aguardar a minha vez para cozinhar. Registro aqui minha primeira experiência com fogão elétrico, daqueles que, se você não tiver cuidado, queimam até a panela.
Nosso quarto tinha duas janelas duplas, a saber, eram janelas convencionais na Rússia, uma de dentro e outra de fora uns 15 cm distante uma da outra, que fechavam tipo a vácuo, coisa maravilhosa! Tais janelas eram feitas assim para proteção do frio e da neve, certamente. Quando ambas estavam fechadas, não se ouvia quase nada do lado de dentro. Lá, no Instituto, as nossas estavam voltadas para um pátio muito grande e eu via muitas coisas estranhas acontecerem ali.
Parece que, na época que estivemos em Moscou (2001), era comum os pais europeus se desfazerem, durante as férias escolares, de filhos já maduros mas problemáticos, procurando encaminhá-los para algum curso em outro país vizinho. Quando anoitecia, uns malucos que estudavam lá faziam a maior urgia e a coisa não tinha limites, perturbando os estudantes sérios. Aqueles enchiam com água os galões de bebidas alcoólicas vazios e os arremessavam dos andares superiores naquele pátio e era aquela algazarra quando os galões se espatifavam pelo chão do pátio em verdadeira explosão. O barulho insuportável parecia de vidro quebrado. Coisa horrorosa!
Episódio marcante foi o que contarei agora. Toda noite algo me levava a olhar aquele “pátio da bagunça”. Tinha um portão grande, através do qual entravam e saíam imensos caminhões de entregas de mercadorias. Ali entrava e saía de tudo. Cada dia presenciava uma cena das minhas janelas voltadas para o pátio. Um dia, olhei para baixo e vi um homem fumando. Do quarto andar, onde me encontrava, observei-o durante vários dias a fumar junto a uma porta bem embaixo das minhas janelas.
Uma noite, no meio dessa bagunça no pátio, visto da janela, vi o homem fumando e, do seu lado, uma mala. Me lembrei imediatamente da minha mala perdida na chegada. Fiquei intrigada, mas fui dormir, porque não havia o que fazer naquela hora da noite. Quase toda noite havia urgia no pátio com o arremesso de galões vazios, e a mala continuava lá imóvel.
O homem não punha a mão nela. Pensei: “Deve estar secando, mas era dele? Mas um dia choveu bastante e a mala continuava no mesmo local. Eu refletia: “Que coisa!” De dia, era um entra-e-sai de caminhões, descarregando mercadoria e a mala continuava lá. Então, a certa altura, já tinha mudado de ideia: “Vou ver que mala é esta.”
Devo confessar que era coisa de louco, pois eu contava as janelas e ia lá no rumo da mala, chegando ao piso térreo, mas infelizmente não via nem cheiro da mala. Labirinto. Missão para detetive. Coisa de Rússia, viu?
Eu subia de novo e via a mala imóvel, continuando encucada. “Será que vão levar a mala embora?”, pensei com certa tristeza, pois agora já queria aquela mala para mim.
Cheguei a pensar em dar a volta e chegar pelo portão dos caminhões, mas era longe e temia a grande quantidade de arvoredo. Temi morrer ali atrás.
Caladinha, arquitetei um plano; vou fisgar essa mala na hora da bagunça dos malucos nas cozinhas.
Sem que ninguém percebesse, eu daria um jeito de pescá-la. Agora ela tomava completamente meu pensamento. Chegou o sábado e cedinho fomos a uma feira ali perto e comprei um monte de coisas para mim, me entupindo mais ainda de coisas, mas adquiri também um rolo de fita de nylon pensando no seu uso a distância.
Depois do almoço comecei a preparar meu gancho para a pesca. Como fazer o gancho? Peguei um cabide, entortei-o no formato de um gancho e amarrei-o bem forte com a fita, como se fosse um anzol, e comecei a treinar. Tudo isso só podia ser executado à noite, pois tinha medo do homem que fumava. Ele ficava ali o dia todo; só ia embora ao anoitecer e eu queria aproveitar a barulhada, para que não percebessem meu barulho também, ao arremessar o meu “anzol” na direção da mala. Comecei a treinar minha pontaria, no fim de semana, mas não imaginava como era difícil pescar a mala.
Levei bem uns dois dias tentando. Às vezes, até o gancho encostava na mala, mas precisava conseguir encaixar o gancho na alça da mala. Ainda não imaginava se a mala era pequena e nem o seu peso, pois era essencial que o gancho suportasse o peso da mala até o quarto andar, onde me encontrava. Não é que comecei a ter plateia?! Quando descobriram minhas tentativas, os malucos começaram a gritar em coro, assim: Yes, Da (Sim), No, Niet (Não). Sliéva, net, správa, priáma (Para a esquerda, não, para a direita, para a frente)... Nossa, me descobriram. Por fim, depois de muitas tentativas e erros, eu acertei a alça da mala e consegui arrastá-la um pouco de lado e a vi. Linda, brihando até, preta de vinil, imensa. Era uma mala muito grande (balchói tchimadán). Não imaginava que pesasse tanto. Ao tentar erguê-la até o quarto andar, o gancho não foi suficiente firme para aguentar tanto peso e ela caiu de borco. Deixei estar. Dormi aquela noite com um enorme sentimento de frustração. Mas não dei o meu braço a torcer.
No dia seguinte, depois da aula cheguei correndo curiosa junto à janela e ela me esperava, já de pé no mesmo local de antes. O tal fumante a recolocara no lugar original. Chamei o Francisco para ir até lá comigo e ele se dispôs a acompanhar-me. “Desta vez, vamos pegar a minha mala”, pensei.
Nada! Nem cheiro da porta onde ela estava. Estava ficando nervosa com a situação.
Mais um dia; de manhã observo chegar o caminhão do lixo para recolher aquele lixo nojento que se acumulava, inclusive o que os empregados haviam retirado do pátio. Eu corri para a janela, de olho na mala, para verificar se eles iam jogá-la dentro do caminhão do lixo. Então, vi sair do ponto onde se achava a mala um carrinho imenso de lixo das cozinhas dos andares, e aquele carrinho passou pela porta, deixando um rastro de chorume. Pensei: “Agora sim, vou descobrir o caminho deixado pelo carrinho que desaparece toda vez que eu desço.” Desta vez implorei com ao Francisco e então ele desceu comigo os quatro andares de elevador, xingando-me e pedindo para eu parar com aquela insistência, pois não teríamos êxito. Então, eu corri e vi perfeitamente aquele rastro de chorume entrando em uma porta. Nem pensei, abri a porta sem bater, pensando que era o pátio. Entretanto, dei de cara com o fumante. Quase desmaiei. Ele olhou para mim com um olhão verde de gato e sorriu. E escancarando a boca com uma falha de dente, disse:
- Zdrástvuytie! (Salve!)
O jeito foi eu praticar meu russo castiço, transliterado:
- Zdrástvuytie! Kak d’ilá? (Como vai?)
- Kharashó! (Bem.)
- Mniá zavút Rut. (Chamo-me Rute.)
E fui andando, já vendo, agora sim, o pátio ali à minha frente, depois de uma porta aberta. E chego perto da mala, sem lhe dar tempo.
- Pajal'sta. Tchei éta tchimadán? (Por favor, de quem é a mala?)
- Nie znáiu. (Não tenho ideia.)
Ele deu de ombros. Não acreditei. Correndo, peguei-a e vi que parecia perfeita. Sem dar-lhe tempo para raciocinar bem, continuei: - Ya ratchú. Mójna? (Eu quero. Posso?)
Ele olhou de novo para mim e disse, dando de ombros, indiferente:
- Kaniéshna. (Claro.)
- Bal'shóie spassiba. Da svidánia! (Muito obrigado. Até a vista!)
- Da svidánia!
Nem acreditei. Peguei correndo aquela imensa mala de vinil maravilhosa com rodinhas. E Francisco? Ficou timidamente aguardando para ver o que daria o meu atrevimento e não teve a coragem de ir até à oficina comigo. Mas, ao me ver saindo sorridente de dentro da oficina com a mala, pegou-a das minhas mãos e não mais quis me dar, pois viu a possibilidade de enchê-la com seus livros.
Ficamos namorando-a durante uma semana, sem podermos abri-la, por não termos o segredo da fechadura, mas observamos que seu antigo dono lhe desferira um rasgo com um instrumento cortante na parte central, por onde certamente retirou seus pertences, descartando-a em seguida. Também como a mala era muito chique, concluímos que seus antigos donos deviam ser uns japoneses que chegaram na mesma noite da nossa chegada e que tinham algum acordo com o Instituto para usar o alojamento como hóspedes, como se fosse um hotel (bem mais barato, evidentemente). Concluímos que teriam perdido o segredo da fechadura, razão por que a descartaram, após dar-lhe um rasgo de uns 30 cm para retirar de seu interior suas roupas e outros pertences. Coisa mínima para mim! Saíra vitoriosa de mais um teste.
Às vezes, Francisco e eu íamos passear para conhecer novos locais, onde automaticamente começamos a adquirir coisas. É impressionante como ajuntamos objetos! Em curto espaço de tempo, já estávamos com uma grande quantidade de livros, uns comprados e outros descartados pelos estudantes, e muito contentes em ter onde pesquisar. Mas não só livros: compramos panelas, frigideira e talheres italianos, toalhas de banho, etc.
Como eu tinha muito menos aula que Francisco, comecei, nas minhas folgas de aula, a investigar o Instituto todo. Achei a sala de esporte um espetáculo, que ficava numa ala que era supermoderna. Percebi que aquele Instituto passava por reformas, mas era coisa que duraria anos, até que ficasse moderno, como convinha. Essa sala de ginástica era gigantesca. Vi que aquele povo seria mesmo um dos primeiros em ginástica olímpica e em todas as modalidades esportivas, pois nunca na minha vida tinha visto coisa de tamanha estrutura e tudo muito contemporâneo e novo. Tinha piscina com tudo para o usuário. Só que eu não tinha acesso a essas instalações, porque estavam sendo projetadas para uso dos alunos regulares.
Um dia eu vi um monte de entulho, um verdadeiro lixão, num canto em um determinado cômodo próximo ao teatro onde ensaiávamos e, no meio deste entulho todo, umas folhas encharcadas e outras rasgadas e outras tantas, enroladas como canudos. Peguei-as com o maior medo. Desenrolando-as, percebi gravuras lindas, verdadeiras obras de arte ali jogadas, mas muito prejudicadas de tão estragadas que já estavam. Umas não consegui aproveitar, pois estavam muito rasgadas, mas umas 3 eu amei, abracei e deixei-as secar na sombra e, tornando a enrolá-las, trouxe comigo.
De volta ao Brasil, mandei fazer molduras para aquelas verdadeiras obras de arte, que hoje ornamentam as paredes da escadaria que dá para o mezanino da minha casa. Ninguém pode imaginar a alegria de tê-las recuperado do lixo russo, ali prontas para a caçamba do lixão.
Fomos juntando coisas. Falei para o Francisco: “Não podemos juntar muita coisa, não, porque não poderemos levar conosco para o Brasil. Desse jeito, teríamos que pagar um excesso de carga.” Ele me respondeu: “Tudo bem.” Mas cada dia vinha um com alguma coisa nova que comprou ou achou por aí. Não entendíamos porque aquele povo tinha a mania de pegar seus livros, verdadeiras raridades, arrancar a capa e jogá-los fora inteiros mas às vezes sem a capa. Esses novos livros eram introduzidos pelo buraco daquela mala descartada pelos hóspedes japoneses.
Lembro que em Moscou, no tempo todo que lá estive, não encontrei sacolinhas de plástico. Quando se vai às compras, a gente tem que levar as próprias sacolas ou carrinhos, etc. Eu tinha levado comigo nesta viagem à Rússia aqueles carrinhos de bagagem, e tive a sorte de achar uma caixa de papelão. Desfilava com orgulho por toda a redondeza do Instituto com aquele carrinho e a caixa em cima, amarrada. Dava para perceber que morriam de inveja os outros estudantes, pois eu vinha com o meu carrinho (maiá machína) abarrotado de víveres, enquanto eles carregavam suas compras desconfortavelmente nas mãos.
Bem, meus amados amigos: acho que por hoje já está de bom tamanho o texto por mim escrito. É claro que estou deixando de registrar outras coisas muito interessantes ainda antes de sairmos do Instituto Pushkin e seguirmos para a MGU. Mas tínhamos que sair do Instituto, porque ali dentro meu esposo e eu ficávamos muito presos, só estudando sem podermos aproveitar a maravilha que era a cidade e sua população.
Infelizmente eu não me lembro de nenhuma amizade com nenhum cidadão moscovita enquanto vivíamos dentro do Instituto.
Mas, ao entrar na MGU, eu me soltei completamente e Francisco também.
Em continuação, no próximo relato começarei já pela mudança de endereço e mais aventuras vividas por mim em Moscou.
E a cerimônia ortodoxa na Catedral de São Basílio, hein?
Bem; passo agora a comentar o texto dele, sob um olhar feminino.
Em meados do ano 2001, fomos nós dois para a Rússia com a cara e a coragem, ele mais preparado do que eu. De fato, cerca de trinta anos atrás, ele tinha feito um Curso Básico de Língua Russa na então União Cultural Brasil-URSS, que funcionava na Rua Frei Caneca, 390, na cidade de São Paulo, quando ele ali residia, sobre o que já escreveu um texto intitulado “Doces Recordações da FGV nos Anos 70 (Parte 3)”, no Blog do Braga.
Ao chegar ao nosso apartamento em Brasília, já de férias escolares, vi-o já com as malinhas prontas e comecei a ficar angustiada de ter que ficar aqui no Brasil, esperando por ele por causa do reinício do segundo semestre de minha Faculdade Mozarteum em São Paulo.
Então pensei: “Não estou gostando nada disso, pois nas suas aulas particulares de conversação no Instituto Rio Branco com aquele professor e tradutor oficial de russo, Roberto Wanderley de Souza Ferreira, este deixou claro, em tom de brincadeira entre os dois, sobre as mulheres russas e como eram lindas e fogosas. Hahaha... eu casadinha de pouco com meu marido solto por toda a Moscou... não permitiria deixá-lo nunca sozinho.”
Disse logo de cara, vou também para Moscou. E ele quase caiu de susto, quando lhe comuniquei minha decisão. Colocando a mão na testa, disse: “Adorei! Era isso que eu queria, minha amada.” E então logo começou a correr atrás da papelada para eu seguir junto naquela aventura.
Quase toda a parte burocrática estava pronta em menos de 5 dias. No último dia, quando nos dirigíamos para buscar meu passaporte com o visto da Embaixada russa, já na véspera de sairmos de Brasília, em plena Avenida W-3, próximo ao Brasília Shopping, um carro freou diante do semáforo no asfalto molhado e o carro que vinha atrás não conseguiu evitar a colisão com a traseira deste, bem à sua frente, o qual, num desvio brusco para a direita, voou para a pista onde nós estávamos já parando no semáforo, então provocando nova colisão com a parte traseira do nosso Escort.
Pensei: “Agora não vou mais para Rússia... Acabou meu sonho... Vamos ficar aqui resolvendo problemas que terceiros nos envolveram.”
Quase naquele mesmo instante, chegou um veículo com a polícia volante do DETRAN (apta a resolver qualquer problema de trânsito mediante acordo entre as partes envolvidas, no caso, três veículos), estacionou uma van ali no canteiro central, todos nós entramos lá dentro e começou assim as tratativas. Eu nunca tinha visto tamanha rapidez para resolver uma encrenca no trânsito. Imediatamente, o acordo foi concluído com os dois causadores do acidente querendo pagar o reparo imediato de nosso veículo.
Também, pensei: “Francisco, de paletó, gravata, crachá do Senado no peito e pasta na mão, parecia um Senador”. Naquele momento fechei os olhos e pensei: “Francisco é meu herói, então não devo temer esta viagem longa e inesperada para mim.”
Deixamos tudo encaminhado para nosso amigo Robson resolver na nossa ausência e isso foi feito. Para nossa surpresa, no dia que retornamos de Moscou, lá estava, no estacionamento externo do nosso prédio na Quadra 310 Norte, o pobre do nosso carro reparado. Contei este caso, porque eu estava muito insegura de ir para outo país, com medo mesmo, mas, ao vivermos juntos aquele momento de apuro, criei forças para encarar o novo desafio no Leste Europeu.
Estava indo resignada, partindo do aeroporto de Brasília numa aeronave brasileira, mas, já na baldeação em São Paulo, comecei de novo a passar mal, quando vi aquele avião gigantesco da KLM e nunca tinha entrado dentro de algo tão grande como aquilo, só mesmo em aeronaves menores. Despachamos as nossas malas diretamente para Moscou e só as veríamos novamente na chegada, embora tivéssemos mais uma baldeação em Amsterdam, sem nos preocuparmos mais com a bagagem.
Entrei ali apavorada chorando e as aeromoças tiveram que me abraçar, me acalmando. Assim fiquei amiga delas lá dentro. Tudo fizeram para eu sorrir, inclusive me ofereceram até para entrar na cabine do comandante, que seria legal eu ver lá da frente, mas recusei, já me sentindo mais tranquila por estar bem na companhia das comissárias de voo.
Enquanto a viagem seguia, eu comecei a ficar calma, pois parecia que um filme se desenrolava debaixo de nosso avião, tudo muito lindo, sol brilhante a nos clarear o caminho pelos ares, rumo à tão sonhada Moscou.
Então, seguimos numa viagem bem tranquila. Fizemos a conexão, com troca de aeronaves em Amsterdã até Moscou.
Finalmente em Moscou, eu, já sentindo o fuso horário, fiquei mais para barata tonta do que para detetive.
Passamos pela alfândega e pegamos nossas bagagens sem problemas, mas, quando fomos tomar o táxi, aconteceu aquela confusão de conversa em russo (entre a máfia de táxis do aeroporto e os motoristas particulares) e repito aqui que não sabia falar nenhuma palavra em russo. Percebi que estava havendo um desentendimento, mas nem liguei: entrei dentro de um táxi preto que parou, apesar da oposição daquele outro grupo de taxistas enraivecidos. Um tipo estranho saiu, pegou nossas malas, apressando-se a deixar aquele ponto o mais rápido possível. Seguimos para o destino fornecido por Francisco. Eu estava toda amarrotada de tantas horas de viagem. A corrida durou quase uma hora, pois o nosso destino era o Instituto Pushkin, uns 30 km a sul do aeroporto de Sheremetyevo.
Aqui começa minha história de verdade.
Descemos do táxi em frente ao prédio do Instituto Pushkin. Francisco pagou ao motorista, que ajudou a descarregar as malas antes de partir. Fui contá-las. “Êpa, está faltando uma.” Comecei a ficar preocupada. Queria ir atrás do taxista, mas não tinha nem sentido por onde e como ir.
Instituto Estatal A. S. Pushkin de Língua Russa em Moscou |
Larguei para lá. Mas lastimando muito porque, dentro da daquela malinha faltante, havia deixado meu álbum de partituras, que pretendia cantar em Moscou para divulgar a música brasileira.
Chegamos à recepção do Instituto Pushkin. Local sombrio, gente estranha, luz fraca. “Meu Deus! Será que vou dormir hoje e amanhã o dia vai ser claro?”
Mas, no outro dia, tudo claro, comecei a observar aquele gigantesco complexo, sem os alunos regulares circulando lá, muitas fotos, muitos vestígios de gente, mas, para o tamanho da escola, aquilo estava completamente vazio. Senti-me deslocada, porque sempre estudei em externato, nunca interna em colégios. Os tais alunos regulares, que moravam a maior parte do ano, agora estavam de férias e eu ocuparia um de seus alojamentos, durante suas férias de verão.
Comecei no prézinho, quase mesmo só conversação, pois eu não falava nada e os professores terminantemente não falavam inglês, somente um pouco de francês e espanhol. Aí eu me virei. Já começamos na pauleira, aula em cima de aula, e Francisco com aquela fome de estudar...
Tudo que passei lá ficou gravado em minha memória. Levei um caderninho em branco, em cuja primeira página escrevi “Minha Vida em Moscou”.
Quem disse que escrevi uma linha? Não consegui tempo para isso.
Tínhamos que treinar o russo dia e noite, além de termos de nos preparar para a apresentação de um recital de música, em que o nosso duo estava programado para representar o Brasil numa festa de comemoração da Amizade entre as Nações.
Rute estudando russo |
Dicionário que muito me ajudou |
Acho importante recordar esse fato, porque esta foi a primeira apresentação do duo Rute Pardini e Francisco Braga, respectivamente soprano lírica e pianista.
Duo Rute Pardini-Francisco Braga representam o Brasil no teatro do Instituto Pushkin num recital comemorativo da Amizade entre as Nações |
Colegas Jenny e Rute no palco do teatro do Instituto Pushkin |
Uma mulher levava as roupas de cama, mas eu combinei com ela que não era preciso arrumar meu quarto, já que eu mesma arrumaria, pois, aqui entre nós, tinha medo de que algo meu sumisse. E o tempo foi passando, enquanto me acostumava com aquilo.
Na sala de aula, eu brilhava. Pensava que entendia tudo, mas quando chegava ao nosso alojamento, Francisco dizia: “Querida, está tudo errado.” O problema é que a língua eslava é meio complicada; tem diversos casos para substantivos e adjetivos que não acabam mais. Eis um exemplo de transliteração de um substantivo russo para nosso alfabeto: dom, a casa ou uma casa; damá, as casas; para casa, domói; dóma, em casa, e assim por diante. Observe no exemplo dado que a palavra DOM vem seguida de terminações, prescindindo de artigos e preposições. Assim é a língua russa, o polonês, o tcheco, etc. Ainda bem que a nossa língua portuguesa é bem diferente.
Fui ver a comida que eles ofereciam no restaurante universitário do Instituto. Vi alguma semelhança entre a culinária russa e a brasileira, mas era o modo de fazer que não me agradava; mesmo assim passamos a comer todos os dias no R.U. Lembro-me que, certo dia, discuti com uma das serventes do restaurante. A gente comprava uma ficha já destinada a determinado prato, que consistia na “mistura” de ovo e purê de batata; ou de arroz e frango (ou galinha); etc.
Mas a coisa horrível mesmo é que o arroz era retirado com uma escumadeira de dentro de um caldeirão de água fervendo para ser servido. Parece que ele era cozido assim, tipo “sopão”. Ela pegava aquela papa e colocava no meu prato com um pedaço imenso de frango bem pálido, se não optasse pelo purê com ovo frito. Senti saudades da nossa comida brasileira.
Enjoada do cardápio uniforme, certo dia eu quis mudar a “mistura” do cardápio: arroz com ovo frito. Havia os dois como opção daquele mencionado conjunto. Só que o arroz (ris, que se pronuncia com o mesmo “r” de cara) ia com a galinha (kúritsa), enquanto o ovo frito (eitsó) ia com outro acompanhamento, purê (piuré).
Foram quase uns dez minutos eu discutindo com ela: “Eu quero arroz com ovo frito” (em russo: Yá ratchú ris i eitsó.)
Ela me corrigia: “Niet. O arroz só podia ser servido com kúritsa”. E eu: “Niet, yá ratchú ris i eitsó” (Não, eu quero arroz e ovo.)
E a fila parada. Finalmente, veio um homem e disse a ela que me servisse o arroz com ovo.
Depois desse entrevero, disse a Francisco que nunca mais comeria ali, porque, se não fosse para comer do jeito que eu queria, eu não aceitaria a comida deles.
É claro que tinha muitos outros pratos diferentes, mas desconhecidos para mim até então.
Bem, com o passar do tempo, vi que havia outras formas de me alimentar em Moscou, mas nunca similar à nossa comida. Se quisesse comer coisas diferentes, teria que sair de dentro daquele Instituto ou eu mesma preparar minha propia comida, mas, com o tempo escasso, não pensamos em procurar restaurantes fora da escola.
Na sala de aula, ao relatar para meu amigo espanhol, Joseph, ele me disse que eu teria que sair dali e procurar nas redondezas do Instituto, porque ali, fora do Instituto, havia umas vendas que negociavam de tudo. Então, fui eu mesma ver “in loco” o que era aquilo de que ele falava.
Descobri que era coisa pequena, mas que dava para satisfazer as nossas necessidades diárias.
Lembro também que no Instituto havia uma cozinha em cada andar do alojamento onde vivíamos, e aí foi a minha glória, pois comecei a comprar os ingredientes que eu queria naquelas mercearias pela redondeza e, vendo os itens que os russos compravam, comprei-os também para fazer a minha própria comida. Francisco recordou essa experiência com linda passagem do seu texto, que aqui reproduzo: “Para chegarmos a esses pontos de venda, costumávamos tomar o caminho existente no meio de um bosque florido, muito bem preservado, de rosas silvestres delicadíssimas (não existentes no Brasil) e de árvores muito elevadas (plátanos e vidoeiros prateados ou bétulas). Atrás do bosque, costumava haver um comércio ativo de cidadãos russos que descobrimos com o passar do tempo e com nossa experiência. Ali se vendiam arenques secos na neve, pães de limão, de beterraba, com castanha, pão preto, etc. Também se vendiam roupas íntimas, casacos, etc.”
Eu elaborava os pratos todos os dias, pois não havia geladeira. Estudávamos de manhã e, depois do estudo, ia para a cozinha com meus ingredientes numa sacola e duas panelas e ali começava a fazer minha refeição, enquanto conhecia muita gente legal.
Engraçado! As meninas pareciam idiotas, nunca as vi cozinhar, embora vivessem agarradas a seu namorados. Alguns deles eram bons cozinheiros, às vezes. Tinha um francês, que era um espetáculo! Eu preparava minha comida e levava para o meu quarto, o mais rápido possível, porque, se demorasse para chegar à cozinha, dali a pouco teria que entrar na fila e aguardar a minha vez para cozinhar. Registro aqui minha primeira experiência com fogão elétrico, daqueles que, se você não tiver cuidado, queimam até a panela.
Parece que, na época que estivemos em Moscou (2001), era comum os pais europeus se desfazerem, durante as férias escolares, de filhos já maduros mas problemáticos, procurando encaminhá-los para algum curso em outro país vizinho. Quando anoitecia, uns malucos que estudavam lá faziam a maior urgia e a coisa não tinha limites, perturbando os estudantes sérios. Aqueles enchiam com água os galões de bebidas alcoólicas vazios e os arremessavam dos andares superiores naquele pátio e era aquela algazarra quando os galões se espatifavam pelo chão do pátio em verdadeira explosão. O barulho insuportável parecia de vidro quebrado. Coisa horrorosa!
Episódio marcante foi o que contarei agora. Toda noite algo me levava a olhar aquele “pátio da bagunça”. Tinha um portão grande, através do qual entravam e saíam imensos caminhões de entregas de mercadorias. Ali entrava e saía de tudo. Cada dia presenciava uma cena das minhas janelas voltadas para o pátio. Um dia, olhei para baixo e vi um homem fumando. Do quarto andar, onde me encontrava, observei-o durante vários dias a fumar junto a uma porta bem embaixo das minhas janelas.
Uma noite, no meio dessa bagunça no pátio, visto da janela, vi o homem fumando e, do seu lado, uma mala. Me lembrei imediatamente da minha mala perdida na chegada. Fiquei intrigada, mas fui dormir, porque não havia o que fazer naquela hora da noite. Quase toda noite havia urgia no pátio com o arremesso de galões vazios, e a mala continuava lá imóvel.
O homem não punha a mão nela. Pensei: “Deve estar secando, mas era dele? Mas um dia choveu bastante e a mala continuava no mesmo local. Eu refletia: “Que coisa!” De dia, era um entra-e-sai de caminhões, descarregando mercadoria e a mala continuava lá. Então, a certa altura, já tinha mudado de ideia: “Vou ver que mala é esta.”
Devo confessar que era coisa de louco, pois eu contava as janelas e ia lá no rumo da mala, chegando ao piso térreo, mas infelizmente não via nem cheiro da mala. Labirinto. Missão para detetive. Coisa de Rússia, viu?
Eu subia de novo e via a mala imóvel, continuando encucada. “Será que vão levar a mala embora?”, pensei com certa tristeza, pois agora já queria aquela mala para mim.
Cheguei a pensar em dar a volta e chegar pelo portão dos caminhões, mas era longe e temia a grande quantidade de arvoredo. Temi morrer ali atrás.
Caladinha, arquitetei um plano; vou fisgar essa mala na hora da bagunça dos malucos nas cozinhas.
Sem que ninguém percebesse, eu daria um jeito de pescá-la. Agora ela tomava completamente meu pensamento. Chegou o sábado e cedinho fomos a uma feira ali perto e comprei um monte de coisas para mim, me entupindo mais ainda de coisas, mas adquiri também um rolo de fita de nylon pensando no seu uso a distância.
Depois do almoço comecei a preparar meu gancho para a pesca. Como fazer o gancho? Peguei um cabide, entortei-o no formato de um gancho e amarrei-o bem forte com a fita, como se fosse um anzol, e comecei a treinar. Tudo isso só podia ser executado à noite, pois tinha medo do homem que fumava. Ele ficava ali o dia todo; só ia embora ao anoitecer e eu queria aproveitar a barulhada, para que não percebessem meu barulho também, ao arremessar o meu “anzol” na direção da mala. Comecei a treinar minha pontaria, no fim de semana, mas não imaginava como era difícil pescar a mala.
Levei bem uns dois dias tentando. Às vezes, até o gancho encostava na mala, mas precisava conseguir encaixar o gancho na alça da mala. Ainda não imaginava se a mala era pequena e nem o seu peso, pois era essencial que o gancho suportasse o peso da mala até o quarto andar, onde me encontrava. Não é que comecei a ter plateia?! Quando descobriram minhas tentativas, os malucos começaram a gritar em coro, assim: Yes, Da (Sim), No, Niet (Não). Sliéva, net, správa, priáma (Para a esquerda, não, para a direita, para a frente)... Nossa, me descobriram. Por fim, depois de muitas tentativas e erros, eu acertei a alça da mala e consegui arrastá-la um pouco de lado e a vi. Linda, brihando até, preta de vinil, imensa. Era uma mala muito grande (balchói tchimadán). Não imaginava que pesasse tanto. Ao tentar erguê-la até o quarto andar, o gancho não foi suficiente firme para aguentar tanto peso e ela caiu de borco. Deixei estar. Dormi aquela noite com um enorme sentimento de frustração. Mas não dei o meu braço a torcer.
No dia seguinte, depois da aula cheguei correndo curiosa junto à janela e ela me esperava, já de pé no mesmo local de antes. O tal fumante a recolocara no lugar original. Chamei o Francisco para ir até lá comigo e ele se dispôs a acompanhar-me. “Desta vez, vamos pegar a minha mala”, pensei.
Nada! Nem cheiro da porta onde ela estava. Estava ficando nervosa com a situação.
Mais um dia; de manhã observo chegar o caminhão do lixo para recolher aquele lixo nojento que se acumulava, inclusive o que os empregados haviam retirado do pátio. Eu corri para a janela, de olho na mala, para verificar se eles iam jogá-la dentro do caminhão do lixo. Então, vi sair do ponto onde se achava a mala um carrinho imenso de lixo das cozinhas dos andares, e aquele carrinho passou pela porta, deixando um rastro de chorume. Pensei: “Agora sim, vou descobrir o caminho deixado pelo carrinho que desaparece toda vez que eu desço.” Desta vez implorei com ao Francisco e então ele desceu comigo os quatro andares de elevador, xingando-me e pedindo para eu parar com aquela insistência, pois não teríamos êxito. Então, eu corri e vi perfeitamente aquele rastro de chorume entrando em uma porta. Nem pensei, abri a porta sem bater, pensando que era o pátio. Entretanto, dei de cara com o fumante. Quase desmaiei. Ele olhou para mim com um olhão verde de gato e sorriu. E escancarando a boca com uma falha de dente, disse:
- Zdrástvuytie! (Salve!)
O jeito foi eu praticar meu russo castiço, transliterado:
- Zdrástvuytie! Kak d’ilá? (Como vai?)
- Kharashó! (Bem.)
- Mniá zavút Rut. (Chamo-me Rute.)
E fui andando, já vendo, agora sim, o pátio ali à minha frente, depois de uma porta aberta. E chego perto da mala, sem lhe dar tempo.
- Pajal'sta. Tchei éta tchimadán? (Por favor, de quem é a mala?)
- Nie znáiu. (Não tenho ideia.)
Ele deu de ombros. Não acreditei. Correndo, peguei-a e vi que parecia perfeita. Sem dar-lhe tempo para raciocinar bem, continuei: - Ya ratchú. Mójna? (Eu quero. Posso?)
Ele olhou de novo para mim e disse, dando de ombros, indiferente:
- Kaniéshna. (Claro.)
- Bal'shóie spassiba. Da svidánia! (Muito obrigado. Até a vista!)
- Da svidánia!
Duas curtas conversações mantidas entre Rute e o fumante, com caracteres cirílicos |
Nem acreditei. Peguei correndo aquela imensa mala de vinil maravilhosa com rodinhas. E Francisco? Ficou timidamente aguardando para ver o que daria o meu atrevimento e não teve a coragem de ir até à oficina comigo. Mas, ao me ver saindo sorridente de dentro da oficina com a mala, pegou-a das minhas mãos e não mais quis me dar, pois viu a possibilidade de enchê-la com seus livros.
Ficamos namorando-a durante uma semana, sem podermos abri-la, por não termos o segredo da fechadura, mas observamos que seu antigo dono lhe desferira um rasgo com um instrumento cortante na parte central, por onde certamente retirou seus pertences, descartando-a em seguida. Também como a mala era muito chique, concluímos que seus antigos donos deviam ser uns japoneses que chegaram na mesma noite da nossa chegada e que tinham algum acordo com o Instituto para usar o alojamento como hóspedes, como se fosse um hotel (bem mais barato, evidentemente). Concluímos que teriam perdido o segredo da fechadura, razão por que a descartaram, após dar-lhe um rasgo de uns 30 cm para retirar de seu interior suas roupas e outros pertences. Coisa mínima para mim! Saíra vitoriosa de mais um teste.
Às vezes, Francisco e eu íamos passear para conhecer novos locais, onde automaticamente começamos a adquirir coisas. É impressionante como ajuntamos objetos! Em curto espaço de tempo, já estávamos com uma grande quantidade de livros, uns comprados e outros descartados pelos estudantes, e muito contentes em ter onde pesquisar. Mas não só livros: compramos panelas, frigideira e talheres italianos, toalhas de banho, etc.
Calendário "No mundo do belo" para 2002 |
Um dia eu vi um monte de entulho, um verdadeiro lixão, num canto em um determinado cômodo próximo ao teatro onde ensaiávamos e, no meio deste entulho todo, umas folhas encharcadas e outras rasgadas e outras tantas, enroladas como canudos. Peguei-as com o maior medo. Desenrolando-as, percebi gravuras lindas, verdadeiras obras de arte ali jogadas, mas muito prejudicadas de tão estragadas que já estavam. Umas não consegui aproveitar, pois estavam muito rasgadas, mas umas 3 eu amei, abracei e deixei-as secar na sombra e, tornando a enrolá-las, trouxe comigo.
De volta ao Brasil, mandei fazer molduras para aquelas verdadeiras obras de arte, que hoje ornamentam as paredes da escadaria que dá para o mezanino da minha casa. Ninguém pode imaginar a alegria de tê-las recuperado do lixo russo, ali prontas para a caçamba do lixão.
O rapto da princesa (lenda folclórica russa) |
Disputa na linha de demarcação - Gravura de Konstantín Savítsky (Taganrog, 1844-Penza, 1905) |
Chinelinhos comprados das feirantes na entrada do metrô |
Lembro que em Moscou, no tempo todo que lá estive, não encontrei sacolinhas de plástico. Quando se vai às compras, a gente tem que levar as próprias sacolas ou carrinhos, etc. Eu tinha levado comigo nesta viagem à Rússia aqueles carrinhos de bagagem, e tive a sorte de achar uma caixa de papelão. Desfilava com orgulho por toda a redondeza do Instituto com aquele carrinho e a caixa em cima, amarrada. Dava para perceber que morriam de inveja os outros estudantes, pois eu vinha com o meu carrinho (maiá machína) abarrotado de víveres, enquanto eles carregavam suas compras desconfortavelmente nas mãos.
Meus chinelinhos de Moscou |
Bem, meus amados amigos: acho que por hoje já está de bom tamanho o texto por mim escrito. É claro que estou deixando de registrar outras coisas muito interessantes ainda antes de sairmos do Instituto Pushkin e seguirmos para a MGU. Mas tínhamos que sair do Instituto, porque ali dentro meu esposo e eu ficávamos muito presos, só estudando sem podermos aproveitar a maravilha que era a cidade e sua população.
Infelizmente eu não me lembro de nenhuma amizade com nenhum cidadão moscovita enquanto vivíamos dentro do Instituto.
Mas, ao entrar na MGU, eu me soltei completamente e Francisco também.
Em continuação, no próximo relato começarei já pela mudança de endereço e mais aventuras vividas por mim em Moscou.
E a cerimônia ortodoxa na Catedral de São Basílio, hein?
14 comentários:
Fiquei satisfeito por meu texto "NOSSA VIDA EM MOSCOU" ter servido para a produção de um texto muito mais colorido e recheado de emoções que eu nem percebi que vivi, da minha esposa RUTE PARDINI, que se dispôs a dar a sua visão de nossa experiência em Moscou, em 2001.
De fato, ela foi protagonista e testemunha ocular de tudo o que narrei e, cá entre nós, sempre um toque feminino dá mais cor a uma experiência tão bem vivida como foi a nossa.
Publico, portanto, no Blog de São João del-Rei, o olhar feminino para "Nossa vida em Moscou".
http://saojoaodel-rei.blogspot.com/2018/07/nossa-vida-em-moscou-sob-um-olhar.html
Abraço cordial,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
MEU AMIGO E CONTERRÂNEO É CULTO E VIAJADO.
APRENDO MUITO.
ABS.
Parabéns a Rute pelo vivo e colorido relato.
Abraços
Anderson
Parabéns aos meus amigos Rute e Francisco por tantos conhecimentos, fruto de anos de estudo e muitas viagens por esse mundo, sempre juntos um apoiando o outro, lindo casal sempre em sintonia .
Com carinho
Sônia Marcia da Mata
PARIS IMÓVEIS
O olhar feminino é sempre um olhar poético e o relato da cantora Rute mostra outro lado da mesma viagem excepcional.
Moscou é uma cidade famosa e agora, com os jogos da copa, se tornou o centro das atenções mundiais.
O texto veio em boa hora e a elegância verbal enaltece o casal de amigos e traz conhecimento histórico e geográfico da terra russa.
Parabéns!
Francisco e Rute!
Adorei a versão de Rute!!!
E que fotos maravilhosas!!
Saudade de vocês!!
Quando estiverem em Brasília, venham nos visitar!
Estou devendo à Rute a foto de nossa formatura na UnB!
Um abraço!
Roseane Cruzeiro
Caro professor Braga;
De fato a D.Rute complementa a sua narrativa com os aspectos pitorescos da experiência do casal desde o início da viagem. Acontecimentos inusitados acabam ganhando certa relevância e estão quase sempre associados às viagens, uma vez que nelas tudo é diferente, surpreendente e marcam de modo especial na memória as situações vividas nesses brevíssimos períodos.
Muito grato.
Prezado Braga, bom dia. Agradeço o envio do depoimento, no qual podem ser vistos os dotes literários de sua esposa. Abraço amigo do Fernando Teixeira com os cumprimentos à Rute. Fernando Teixeira
A transformação de Moscou
06.07.18 13:43
Uma reportagem de Globo mostra que Moscou modernizou-se para muito além da mera maquiagem nos últimos dez anos.
Bairros inteiros foram reformados, o trânsito está mais organizado, o serviço de táxis agora tem padrão ocidental, foram construídas 70 estações de metrô e a cidade ganhou um grande parque verde.
Enquanto isso, as grandes cidades brasileiras só pioraram na última década — e não têm grandes perspectivas pela frente. Ganhando ou não a Copa.
https://www.oantagonista.com/o-antagonista-na-copa/transformacao-de-moscou/
Bom dia, amigos.
Quase perdi meu ônibus na leitura de vocês dois na Rússia.
Vocês nasceram um para o outro.
Em determinado momento me vi junto de vocês.
Rute, ouvi você cantar, vi você brigando com a prostituta, desfazendo as malas à procura da fronha.
Enfim, vocês viveram uma história linda e que não poderia ficar só para vocês dois.
Çãozinha
Valeu, Francisco ! Parabéns à Rute pelo excelente trabalho.
Quando vocês me convidarem para visitar São João del-Rei, só vou na seguinte condição: "yá ratchú ris i eitsó".
Um forte abraço do
Gurgel
Amei o texto!
Quero agora saber sobre a apresentação de vcs!
A felicidade é minha por vc compartilhar comigo a sua vida e o conhecimento do Franz!
Stefânia
Parabéns! Bonito texto, e repito: maravilhosa experiência e aventuras na belíssima Rússia. Abraços
Muito grata pelo convite para o recital e pelos palpitantes relatos de viagem a Rússia.
Tudo muito lindo! Abs. Gina
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