Por MANUEL IVO (Soares Cardoso) CRUZ *
O gerente do Blog de São João del-Rei dedica o presente trabalho ao empreendedor EDÉCIO OLÍVIO DO VALE, proprietário da loja MANIA DE CULTURA, localizada no centro histórico de São Paulo, à Rua Rodrigo Silva, 34, onde se encontra o livro abaixo com o ensaio do Maestro Manuel Ivo Cruz, da página 42 a 59. A Mania de Cultura é referência em todas as áreas do conhecimento, inclusive com itens esgotados e raros, merecendo destaque especial seu acervo de obras jurídicas.
|
Livro comemorativo da Exposição "D. Pedro d'Alcântara de Bragança, Imperador do Brasil, Rei de Portugal", inaugurada no Palácio de Queluz e transladada para o Paço Imperial da Cidade do Rio de Janeiro (1987)
|
"Querido Papá! Envio-vos nesta ocasião uma Missa de Neukomm que, como súbdito austríaco e discípulo de Haydn, merecerá sem dúvida o vosso bom acolhimento e além disso contém duas fugas que, todos sabemos, tanto vos agradam. O meu Marido é também compositor e faz-vos presente da Sinfonia e Te Deus de sua autoria; falando verdade é um tanto teatral, que é defeito de meu Marido. Mas posso garantir que é escrito por ele mesmo sem auxílio de ninguém." ¹
Tal é o teor de uma carta enviada do Rio de Janeiro em 19 de Fevereiro de 1821 a Francisco I da Áustria, por sua filha D. Leopoldina de Habsburg, primeira mulher de D. Pedro, futuro rei de Portugal e imperador do Brasil.
Este Te Deum é certamente a obra mais marcante do régio e imperial compositor; por outro lado, a ele se encontra associada a Sinfonia que D. Leopoldina envia a seu pai. Vejamos pois a história destas obras, como eixo da vida musical de D. Pedro de Bragança.
O Te Deum
Notifica a Gazeta do Rio de Janeiro em 27 de Março de 1821: ²
"Baptizado do Principe da Beira D. João Carlos, filho do Principe Regente D. Pedro... Depois entoou o mesmo Excelentíssimo Bispo o hymno Te Deum, que foi cantado pelos músicos da Real Câmara e Capella com música composta por um génio transcendente, tão amado das Musas como dos portugueses, dirigida pelo célebre Marcos Portugal, Mestre de S.S.A.A.R.R. Durante a augusta cerimónia se tocaram muitas agradáveis symphonias."
O "génio transcendente" era evidentemente D. Pedro; nem nunca Marcos Portugal acederia a dirigir, numa cerimónia tão importante, obra que não fosse de sua lavra, se o autor não tivesse outros títulos que justificassem tal pretensão! Por outro lado podemos ter a certeza que se tratou da primeira audição do Te Deum, pois a Gazeta do Rio de Janeiro não deixaria de mencionar tão importante acontecimento, e é esta a primeira vez que o faz.
Numa das minhas recentes viagens profissionais ao Brasil, já preocupado com a faceta musical de D. Pedro, procurei o notável compositor monsenhor Guilherme Schubert, a quem está confiado o arquivo musical do cabido da Sé Catedral do Rio de Janeiro; muito amavelmente patenteou-me as várias riquezas desse arquivo, entre as quais algumas das obras religiosas mais importantes de Marcos Portugal; lá se encontra também um manuscrito com a seguinte identificação na folha de rosto: "Te Deum Laudamus a 4 vozes e grande orquestra oferecido a El-Rei D. João 6 por seu filho o Principe Real D. Pedro d'Alcantara Duque de Bragança que o compôs para o nascimento [falta o resto da frase]. Original no Rio de Janeiro a 20 de Dezembro de 1820." *
Monsenhor Schubert, conhecedor profundo das obras de D. Pedro, garantiu-me ser uma partitura autógrafa.
Trata-se, com certeza, do mesmo Te Deum que D. Leopoldina enviou para seu pai e obviamente o que serviu na cerimónia do baptizado do pequeno João Carlos; compreende-se que D. Pedro, que já tinha uma filha, D. Maria da Glória, e tivera um filho que faleceu poucas horas depois de nascer (D. Miguel, em 24 de Março de 1820), esperasse com impaciência o nascimento de um filho varão; tanto o desejava que na impossibilidade de prometer a construção de um novo Convento de Mafra como o fizera seu real trisavô, terá composto o Te Deum Laudamus, talvez em cumprimento de secreto voto pela satisfação de uma das suas mais caras aspirações, mas certamente também para celebrar com brilho pessoal esse tão ansiado fausto.
E por isso mesmo, por ser uma obra para uma criança que estava para nascer, na dedicatória a seu Augusto Pai o nome do nascituro ficou em branco, para se preencher oportunamente – conjectura que bem pode coincidir com a verdade íntima dos acontecimentos.
De qualquer modo a cronologia do Te Deum deve ser estabelecido da seguinte maneira: composto no Rio de Janeiro para o descendente que haveria de nascer e oferecido a D. João VI austríaco em 19 de Fevereiro de 1821; nascimento de D. João Carlos, príncipe da Beira, a 6 de Março de 1821; baptizado do príncipe e primeira audição da obra, a 27 de Março do mesmo ano.
O mesmo Te Deum terá sido cantado certamente muitas vezes no Brasil; nomeadamente encontra-se uma referência expressa na carta de D. Pedro a seu pai, de 26 de Agosto de 1821, em que lhe relata as acções de regozijo pela notícia da boa chegada dos reis e familiares a Lisboa: ³
"... Em o dia 24 houverão as salvas do costume dos dias de Galla Grande e tão bem galla Grande, houve Missa e Te Deum de ma. composição, em atenção a nossa Regeneração Política: pregou o cónego Francisco o sermão mais constitucional q. se pode pregar, em huma palavra parecia um Anjo q. pregava, e não um pecador; depois fui dár o Beija mão pela feliz chegada de V. Magestade..." (sic).
Sobre este sermão, Metternich recebeu de seu indignado embaixador o seguinte relato:
"o Te Deum foi precedido de um sermão onde se pregou a soberania do povo em vez da moral de Jesus Cristo". ⁴
Também no baptizado do príncipe D. Pedro, que veio a ser o segundo imperador do Brasil (nascido a 2 de Dezembro de 1825, no Rio de Janeiro), a obra maior de D. Pedro de Bragança voltou a fazer-se ouvir, pelos artistas da Real Câmara, e muito apropriadamente.
Em Portugal, o Te Deum foi pelo menos executado nas cerimónias religiosas do baptizado de dois netos do régio compositor, filho de D. Maria II e de D. Fernando: no do infeliz príncipe que tão breve e saudosamente reinou com o nome de D. Pedro V, e no de seu irmão infante D. João.
Tive recentemente a grata oportunidade de consultar o manuscrito do Te Deum que existe no arquivo da Casa Palmela, que, segundo a informação dada por D. Manuel de Sousa e Holstein Beck, conde da Póvoa, foi oferecido ao seu antepassado segundo duque de Palmela pela viúva de D. Pedro IV, a imperatriz D. Amélia de Leuchtenberg, pouco antes da morte, ocorrida em Lisboa no ano de 1873.
Esta partitura ostenta na primeira página a seguinte legenda: "Santissimo in Domine/ Patri / Leone Duodécimo Hymnus / Te Deum Laudamus / a / D. Pedro Primus Brasilia Imperatore Constitutionale / nec non Perpetuo Defensori / Compositus / Et in Signum Filiater Reverentiae Oblatus."
Trata-se da mesma obra musical que eu examinara no cabido da Sé do Rio de Janeiro, donde se conclui curiosamente que D. Pedro dedicou o seu Te Deum ao papa Leão XII e a seu pai; pelo menos, pois não sabemos ainda que dedicatória levava o exemplar enviado a seu sogro e que se deve encontrar numa das bem organizadas bibliotecas de Viena.
A Abertura
A grande diferença entre as duas partituras reside no facto de o manuscrito Palmela ostentar uma "Abertura", em mi bemol maior, que não existe na partitura do cabido carioca.
Verifiquei posteriormente que esta "Abertura" é conhecida no Brasil pelo nome de Independência; encontram-se no arquivo de uma das centenárias orquestras de S. João d'El-Rei as partes cavas desta obra, lendo-se na parte do primeiro clarinete: "Ouverture Composta pelo Senhor D. Pedro I na época da Independência do Brasil." ⁵ Foi recuperada pelo nosso bom amigo e apreciado maestro Alceo Bocchino que, no Brasil, a deu sob aquele nome, em primeira audição moderna em 1972 e gravou em 1979 na preciosa colecção Monumento da Música Clássica Brasileira, no volume dedicado ao tempo de D. Pedro I.
Será a mesma Sinfonia ** que D. Leopoldina enviou a seu pai? Tudo leva a crer que sim, pois não se vislumbra que outra obra de D. Pedro pudesse merecer, pela sua importância e acabamento, distinção tão elevada.
O Concerto de Paris
Esta Sinfonia, ou Abertura do Te Deum ou Ouverture da Independência tem por um lado uma história que interessa relatar.
Quando, depois de abdicar do trono brasileiro, a caminho de Portugal para a conquista da coroa portuguesa para a filha, D. Pedro atardou-se em Paris de Agosto de 1831 a Janeiro de 1832; foram quase seis meses de grande atividade política e diplomática, em que febrilmente preparou uma das mais espetaculares aventuras militares de todo o século XIX.
São no entanto constantes as referências da imprensa às deslocações do imperial casal (já estava casado com D. Amélia) a concertos, espectáculos de ópera e comédia, assim como se noticiam numerosas reuniões musicais mais íntimas. Iam frequentemente ao Théâtre des Italiens, ao Théâtre Français, para o camarote do rei Luís Filipe ou, como simples viajantes, para lugares menos em evidência. ⁶
Travou então D. Pedro conhecimento com o seu maior ídolo mundial, o compositor mais admirado do seu tempo, o de facto admirável Gioacchino Rossini, mutuamente se ofereceram partituras de suas composições e Rossini, num gesto de profunda elegância, prontificou-se a fazer incluir uma obra de D. Pedro num dos programas do Teatro Italiano.
O concerto realizou-se na noite de 30 de Outubro de 1831 e um crítico teatral alemão, Ludwig Boerne refere-se-lhe desta antipática maneira:
"Domingo passado houve no Théâtre des Italiens um concerto a que não assisti. Começou por uma Ouverture à grand Orchestre e calcula o senhor de que compositor? De D. Pedro, imperador do Brasil. É supérfluo dizer que a música era detestável. O Senhor Imperador andaria mais acertado enxotando seu irmão de Portugal e não os pacíficos espectadores do teatro. Falei pelo menos com Alguém que não gostou da música imperial e por causa dela deixou o teatro."
Comenta com muito acerto Octávio Tarquínio de Sousa, que "provavelmente Boerne teria razão, mas opinou por informação de terceira pessoa, visto que não ouviu a 'Ouverture à grand Orchestre'."
Pois esta obra, tão mal tratada pela crítica (se assim se pode chamar ao infundamentado comentário) é identificada por Alceo Bocchino como a Independência por ele recuperada em São João d'El-Rei; e é por mim positivamente reconhecida como a que abre o Te Deum da casa Palmela.
A concluir este parágrafo sobre a "Abertura", torna-se indispensável transcrever a carta ⁷ que Rossini endereçou ao filho do controverso compositor, o sábio e bondoso D. Pedro II do Brasil, assinada de Paris, 3 Avril 1866:
"Pendant le trop court séjour de sa Magesté l'Empereur Don Pedro à Paris ai fait exécuter au Théâtre Italien une ouverture de sa composition qui était charmante, elle eut grand succès, et comme par discrétion je n'ai pas nommé l'auteur, on m'adressa des compliments croyant peut-être que la susdite overture était composé par moi, erreur qui ne déplaira pas son auguste fills, qui pourrait bien souvenir m'adresser un peu d'un café si célèbre de Vos contrées." (sic)
Sobre esta partitura resta acrescentar, como informação, que foi dada em primeira audição moderna em Portugal no passado dia 5 de Abril no Teatro Municipal de S. Luiz pela Orquestra Sinfônica da RDP sob a direcção do autor destes apontamentos, utilizando a partitura transcrita por Rosa de Carvalho do original da casa Palmela, amavelmente cedido.
Um pouco sobre a formação do compositor
A vida curta e essencialmente agitada de D. Pedro de Bragança não lhe permitiu aprofundar devidamente a sua indiscutível veia musical. Sabemos que foi aluno de três notabilíssimos compositores, que o destino reuniu no Rio de Janeiro, no primeiro quartel do século XIX, o lisboeta Marcos Portugal, o carioca padre José Maurício e o salzburguês Sigismund Neukomm. Por outro lado, a facilidade musical do príncipe era assinalável; assim o diz Adriano Balbi (1782-1846), o geógrafo italiano que tantas informações curiosas nos deixou no seu Essai statistique sur le Royaume de Portugal et d'Algarve... (Paris 1822). A D. Pedro dedica meia dúzia de linhas altamente elucidativas:
"Sua Alteza Real o Príncipe do Brasil que possui extraordinário talento musical e compõe com tanto gosto quanto facilidade e toca vários instrumentos, entre outros o fagote, trombone, flauta e violino..."
Comenta Ayres de Andrade com certa acidez, que
"Balbi faz do príncipe a personificação de uma orquestra. Nem que o agitado e simpático príncipe fosse indivíduo particularmente dado a perder horas do seu precioso tempo com estudos, sobretudo dos instrumentos musicais".
Mas a verdade é que a correspondência de D. Leopoldina vem corroborar a afirmação do geógrafo; numa carta em francês, escrita do Rio de Janeiro em 24 de Janeiro de 1818 a sua tia D. Luísa Amélia, grã-duquesa da Toscana, a ainda feliz D. Leopoldina afirma:
"... toute la journée je suis occupée à écrire, lire et faire la musique comme mon Époux joue presque tous les instruments très bien, je l'accompagne avec le Piano et de cette manière j'ai la satisfaction d'être toujours près de la personne chérie" (sic). ⁸
Outro testemunho também fidedigno assinala que, nas festas de casamento dos jovens príncipes, houve serenata na Real Quinta da Boa Vista, na noite de 7 de Novembro de 1817, começando na casa da audiência.
"Deu princípio a esta pomposa solenidade uma sinfonia composta por Inácio de Freitas [músico da Real Câmara]. Dignou-se então o Sereníssimo Senhor Príncipe Real de cantar uma ária, com as formalidades seguidas em semelhantes circunstâncias..." ⁹
Além disso, D. Pedro tocava clarinete e também piano, que tinha no seu quarto de solteiro e no qual praticava com os seus professores, não só o próprio instrumento como também os exercícios de composição. Não ficaria completo o quadro das prendas musicais de D. Pedro se não apontar a sua habilidade em tocar viola (ou violão, pelo nome que este instrumento tomou no Brasil muito sensatamente), e como tinha uma bela voz baritonal, cantava modinhas acompanhando-se à viola. ¹⁰
Quanto ao ambiente musical em que formou a sua personalidade e gosto, é fácil de definir: em Lisboa, onde habitou até aos 9 anos, o jovem D. Pedro certamente frequentava já o S. Carlos ou pelo menos dele apanhava as emanações; a intensa vida musical ligada ao culto religioso era outra componente ¹¹ e completa-se o quadro com a actividade caseira, digamos, os serões musicais em que a modinha era muito praticada. ¹²
O S. Carlos inaugurou-se a 30 de Junho de 1793 com La Ballarina Amante de Cimarosa; desde 1800 até à data da partida da família real para o Brasil (1807) o seu repertório inclui sobretudo óperas de Marcos Portugal, Nasolini, Anchiozzi, Gluck (Orfeo, 1801), Fioravanti, Martini, Cimarosa, Mayer, Mosca, Farinelli, David Perez, Giordanetto Gnecco, Mozart (La Clemenza di Tito, 1806), António José do Rego, Gretry Guglielmi, Paer e Gianella; ¹³ durante este tempo o director artístico do teatro foi Marcos Portugal, que procurou manter a programação dentro de uma sã modernidade, sem no entanto excluir alguns compositores mais representativos do próximo passado, sendo de assinalar também a presença de óperas portuguesas de sua autoria e do compositor António José do Rego, maestro nos teatros da Rua dos Condes, Salitre e no próprio S. Carlos.
No Rio de Janeiro, a presença lírica italiana continuou: ¹⁴ entre 1800 e 1830 representaram-se no Rio de Janeiro óperas dos compositores Pe. José Maurício, Marcos Portugal, Salieri, Puccita, Brasil, Paer, Nicolini, Generali, Mozart (Don Juan 1821), Gnecco, Mosca, Caruso, Coccia, Donizetti e Rossini. Deixamos para o fim este compositor, pois a sua presença nos teatros cariocas no tempo de D. Pedro foi enorme. Averiguadas por Ayres de Andrade, foram catorze as óperas rossinianas encenadas em dez anos, contados desde a sua primeira aparição com o drama lírico Aureliano em Palmira, estreado no Real Teatro de S. João em 25 de Abril de 1820, até ao ano limite que escolhi por comodidade: essas catorze óperas (onde se inclui O Barbeiro de Sevilha, levado à cena pela primeira vez no mesmo teatro em 21 de Julho de 1821), tiveram centenas e centenas de récitas.
Não admira portanto que o melómano D. Pedro, nos seus breves e tão ocupados meses em Paris, frequentasse assíduo os teatros e o meio musical em que Rossini indiscutivelmente reinava, e podemos adivinhar o seu entusiasmo pela convivência que se veio a estabelecer entre os dois grandes homens – indiscutível e igualmente grandes, mas cada um no seu campo, claro está...
Uma longa tradição
O panorama musical brasileiro no tempo do príncipe regente D. João não se esgota no campo da ópera italiana, longe disso.
Uma longa tradição cultural, que teve como base o terreno preparado pelas Missões dos Jesuítas e como pólo irradiante a mecenática figura de D. João V, fez do Brasil de Setecentos para Oitocentos um verdadeiro alfobre de talentos, em que a fermentação local dos valores idos da metrópole deu origem a manifestações de grande pujança artística e altíssima qualidade, na música religiosa e até no teatro musicado.
Trabalhos de Francisco Curt Lang, Cléofe Person de Mattos, Regis Duprat e de tantos outros notáveis investigadores, têm revelado nomes e obras de dezenas de óptimos compositores, expoentes desse maravilhoso tecido musical do período áureo da mineração, que acompanhava a grande maioria do imenso território e não só a zona litoral, em directo complemento do esplendor barroco da arquitectura e escultura, mais divulgadas.
No Rio de Janeiro já existia à chegada da corte um autêntico génio musical – José Maurício Nunes Garcia, conhecido pelo afectuoso nome de Padre Mestre. Os génios não se improvisam, são fruto de uma grande criatividade natural, é certo, que, porém, se desenvolve e revela num ambiente próprio, pela utilização de uma técnica sofisticada e aprendida.
A corte portuguesa encontrou pois um país musicalmente apto e nele enxertou o que levava nas armas e bagagens – músicos, cantores, compositores, professores, administração, quadros, etc., mas sobretudo o estímulo das exigências de um príncipe habituado ao gosto europeu.
Os Professores
Mas não fica por aqui a formação musical de D. Pedro. Não esqueçamos os professores.
|
Pe. José Maurício Nunes Garcia. Óleo sobre tela, realizado por seu filho José Maurício Jr. Biblioteca da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
|
O padre José Maurício Nunes Garcia nasceu no Rio de Janeiro em 1767, a 22 de Setembro. Nesta cidade passa toda a sua vida e ascende paulatinamente na carreira músico-eclesiástica que a capital do Brasil tinha então para lhe oferecer: vai-se notabilizando, como compositor e intérprete, entra em 1784 para a Irmandade de Santa Cecília, na de S. Pedro dos Clérigos (1791), canta a primeira missa em 1792 e é nomeado mestre de capela da Sé Catedral do Rio de Janeiro em 2 de Junho de 1798. Em 1808 chega D. João Príncipe Regente ao Rio de Janeiro e logo o nomeia mestre de capela da Real Câmara, condecora-o no ano seguinte com o hábito das Ordem de Cristo e cria-lhe condições materiais e psicológicas para o desenvolvimento da enorme criatividade musical.
A lista das suas obras é importante, pois no catálogo temático publicado em 1970 pela notável investigadora e musicóloga Cléofe Person de Mattos, atinge o número de duzentas e trinta e cinco composições e um tratado teórico.
Mas o que é mais impressionante ainda é a qualidade de conjunto de sua obra, não só do ponto de vista formal como do conteúdo estético. É uma obra que merece ser conhecida entre nós, pois situa-se entre o que de melhor e indubitavelmente mais profundo se escreveu na transição do século XVIII para o XIX, entre os compositores da área cultural lusitana.
A chegada, em 1811, ao Rio de Janeiro do famosíssimo compositor Marcos Portugal, que tinha vencido as barreiras da nacionalidade e ganho o justo título de compositor europeu, veio naturalmente apagar um pouco a preponderância que o Pe. José Maurício tinha na corte, por mérito próprio; mesmo assim, a sua actividade musical continua intensa, talvez até estimulado pela presença do afamado compositor. Sempre acarinhado pelo culto e bondoso Senhor D. João VI, o Padre Mestre diversifica a sua arte para outros campos que não exclusivamente o da música religiosa. Compõe uma ópera (perdida), modinhas, música de câmara, etc., além das obras religiosas que o rei continua a encomendar-lhe para importantes cerimónias oficiais.
Em Dezembro de 1819 rege a primeira audição no Brasil do Requiem de Mozart, na festa de Santa Cecília, e prepara a audição de obras-primas mais recentes, como a Criação de Haydn, que veio a verificar-se em 1821. Este contacto com a arte mais representativa da Europa é uma característica cultural do Pe. José Maurício, que se reflecte na qualidade de suas composições. Foi também importante pedagogo.
Morre pobre e bastante isolado no Rio de Janeiro, em 18 de Abril de 1830, como dois meses antes falecera o seu rival Marcos Portugal; note-se que, no progressivo esquecimento e abandono dos últimos anos, estes dois notáveis compositores passaram a conviver quotidianamente, com certeza relembrando os brilhantes dias da intensa actividade musical do Rio de janeiro, cujo declínio se iniciou com a retirada de D. João VI para Lisboa , em 1821.
|
Marcos Portugal (✰ Lisboa, 1762- ✞ Rio de Janeiro, 1830)
|
Marcos António da Fonseca Portugal foi de facto um cidadão do seu mundo. O notável compositor, nascido em Lisboa a 24 de Março de 1762, logo conquistou posição de relevo com a direcção do Teatro do Salitre; partiu em 1792 para Itália, onde bem cedo as suas óperas começaram a ser cantadas na grande maioria dos teatros italianos e nos mais prestigiosos centros musicais europeus, atingindo milhares as representações que documentalmente se comprovam.
Em 1800
"regressou Marcos triumphante a Lisboa, cheio de glória e também de vaidade",
diz Ernesto Vieira. ¹⁵ É nomeado imediatamente mestre da Capela Real e do Teatro de S. Carlos, onde a sua acção se exerceu em muito bom nível, tanto na escolha do repertório como na contratação dos elencos.
Retirou-se para o Brasil, onde a partir de 1811 exerceu os cargos mais importantes da vida artística do Rio e, numa actividade muito intensa de maestro e compositor, acorreu aos principais acontecimentos sociais e políticos com vertente musical. De facto, as Missas solenes, Exéquias, Responsórios, Pontificais, Te Deum comemorativos, festas da Coroação e Aclamação do Rei, festas das chegadas e partidas dos Príncipes, Missas anuais por alma deste ou daquele, festas religiosas e programas de casamento dos Príncipes, inaugurações de teatros, serenatas na corte, concertos especiais e ainda a vida normal do Teatro Real e da Sé Catedral, quase tudo era regido pelo nosso Marcos que, na maior parte dos casos, escrevia também "música nova" para as diferentes funções. Não admira pois o grave "insulto apoplético" que teve nos primeiros tempos da sua estada no Rio e que mais tarde se renovou.
Ilustrando este capítulo da vida de grande cidade musical, em que, no entretanto, se tinha transformado o Rio de Janeiro (de longe a mais importante de todas as Américas), vejamos a notícia de um acontecimento tão relevante para Portugal e que Ayres de Andrade transcreve e comenta desta maneira: ¹⁶
"1819, 5 de Abril – com que saborosa linguagem sabia a Gazeta do Rio de Janeiro anunciar aos seus leitores o nascimento de uma princesa, nem mais nem menos do que D. Maria Glória, futura rainha D. Maria II de Portugal! Assim começa o redactor:
Domingo, 4 do corrente, pelas 5 horas da tarde, os fogos de artifício, as salvas das fortalezas e embarcações de guerra e os repiques dos sinos anunciavam que o céu, em prémio das singulares virtudes de Sua Magestade, El Rei nosso Senhor, concedera a seu Augusto Sucessor as primícias de feliz fecundidade de SAR a Princesa Real do Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves, que naquele afortunado momento, e com o mais próspero sucesso, dera à luz uma princesa."
E depois:
"Segunda feira, 5 do corrente, querendo Sua Magestade dár graças ao Omnipotente por haver concedido à sua Real Casa um novo sinal da distinta protecção com que assiduamente tem vigiado pelo seu aumento e prosperidade, pelas sete horas e meia baixou à sua Real Capela, acompanhado de S.S.A.A.R.R. o Príncipe Real e os Sereníssimos Infantes D. Miguel e D. Sebastião, e assistido da sua Corte, e Oficiais-Mores todos em grande gala, e oficiando o Excelentíssimo Bispo Capelão-Mor, cantaram os músicos da Real Capela e Camara o hino Te Deum Laudamus, sendo a música do célebre Marcos Portugal e regida pelo mesmo."
O próprio peso de uma grande figura da música mundial, transladada para uma cidade em expansão, mas necessariamente ainda mais periférica do que Lisboa, torna-a automaticamente absorvente, o que nem os próprios podem controlar completamente mesmo que o queiram; tal não é porém o caso de Marcos Portugal: nunca pecara pela modéstia, era sabedor da sua projecção internacional, tinha consciência do seu próprio mérito e da eficiência de sua arte. Em resumo, Marcos Portugal sabia quanto valia e tudo em sua volta contribuía para o agigantar ainda mais. É humano, natural, e não se pretenda dos grandes homens que o sejam em todas as facetas, pois raramente isso acontece. Marcos foi traçado pela sua empáfia, já notada em Lisboa; chamavam-lhe à sucapa o "Barão do Alamiré" ¹⁷, o que é engraçado, mas sobrecarregaram a sua memória com antipáticas atitudes de perseguição ao Pe. José Maurício, o que não está demonstrado em parte alguma, longe disso.
Marcos Portugal morreu brasileiro, pois aderiu à independência e à proclamação do Império: nos últimos anos da sua vida foi, como vimos, no seu colega padre José Maurício que encontrou o carinho da amizade, o consolo da companhia e, talvez, o seu último público atento – pois as conversas dos dois velhotes deviam cair frequentemente nas histórias de Marcos Portugal sobre as suas andanças pelos mundos da música, que Maurício talvez nem em imaginação percorrera.
Marcos Portugal morreu no Rio em 7 de Fevereiro de 1830 e as suas cinzas repousam em Lisboa na Igreja de Santa Isabel, aguardando instalação definitiva no Panteão Nacional.
|
Sigismund von Neukomm (✰ Salzburg, Áustria, 1778 - ✞ Rio de Janeiro, Paris, 1858)
|
A estas duas grandes figuras vem juntar-se em 1816 o compositor cavaleiro Sigismundo de Neukomm (Salzburg 1778, Paris 1858) que viajou para o Brasil integrado na comitiva do duque de Luxemburgo, embaixador da Áustria na corte de D. João VI.
Foi nomeado imediatamente mestre de capela, convivendo intensamente com D. Pedro e com o Pe. José Maurício, a quem muito admirava.
Antes de chegar ao Brasil este bom e estimado aluno do grande Haydn levara já uma vida bastante movimentada: em 1806 vai para a Suécia e torna-se membro da Academia Musical de Estocolmo; em 1808 encontra-se mestre do teatro alemão em S. Petersburgo; um ano depois parte para Paris onde se torna pianista oficial do chanceler príncipe de Talleyrand e ganha a Legião de Honra com o Requiem por Luís XVI.
No Rio, além de D. Pedro, conta-se entre os seus alunos o importante compositor Francisco Manuel da Silva, futuro autor do Hino Nacional Brasileiro, também educando de José Maurício.
Um dos aspectos mais relevantes de Neukomm é a sua faceta jornalística; pelas crónicas enviadas do Brasil para o Allgemeine Musikalische Zeitung de Viena, ficou a conhecer-se muito da vida brasileira de então, com especial realce para a personalidade artística e humana de José Maurício; a sua correspondência inclui uma interessante referência à primeira audição no Brasil do Requiem de Mozart que, como vimos, foi dirigido em Dezembro de 1819 na festa da Irmandade de Santa Cecília.
Escreve Neukomm: ¹⁸
"A corporação dos músicos locais (em português Irmandade), espécie de associação religiosa, celebra todos os anos a festa de Santa Cecília e, alguns dias depois, faz rezar missa em memória dos músicos falecidos durante o ano. Com essa finalidade os membros da corporação mais versados em música sugeriram para a última festa de Santa Cecília o Requiem de Mozart, tendo sido executado na Igreja do Parto por uma orquestra numerosa. A regência foi entregue a José Maurício Nunes Garcia, mestre de música da Capela Real...
... A execução da obra-prima de Mozart nada deixou a desejar. Todos os executantes se empenharam em receber com dignidade neste novo mundo o desconhecido Mozart. Esta primeira experiência foi tão bem sucedida em todos os seus aspectos que esperamos não seja a última."
E ainda: ¹⁹
"O zelo com que o Sr. Garcia superou todas as dificuldades para finalmente levar aqui uma obra-prima do nosso imortal Mozart, merece os calorosos agradecimentos dos amantes da arte; da minha parte, vejo-me na obrigação de aproveitar a oportunidade para chamar a atenção do nosso mundo cultural europeu para a figura de um homem que, talvez, unicamente por causa de sua grande modéstia, terá alcançado nessa ocasião, pela primeira vez, a atenção do público do Rio de Janeiro."
E, noutro texto, Neukomm considera o Pe. José Maurício como "o maior improvisador do mundo".
Regressa à Europa em 1821, fixando-se primeiro em Lisboa e depois em Paris, viajando sempre pelas diversas cidades por motivos profissionais ou por simples curiosidade turística.
Neukomm deixou uma obra enorme, hoje completamente adormecida nos arquivos. Importante é porém a incorporação que faz na sua arte, descendente de Haydn e próxima de Beethoven (só lhe falta o génio...), de elementos da vivência sócio-cultural brasileira. Tal é o caso da Fantasia para Flauta e Piano, L'Amoureux, uma bela e interessante peça, digna de figurar nos normais programadas de recital.
Numa recente viagem a Paris para verificar determinadas partituras de Marcos Portugal que lá se encontram, folheei na Biblioteca Nacional algumas obras de Neukomm muito interessantes para nós: Modinhas Portuguesas, cançonetas como Emília, Miao! e Amor Brasileiro (lundu), Missa para a Capela real de Queluz, Marcha Fúnebre para a morte do Conde da Barca, Hino e Missa para a aclamação de D. João VI e D. Pedro IV, respectivamente, Marcha para o Príncipe Real, etc., além da magnífica Abertura Sinfónica "O Herói", obra profunda e de nobrérrima emoção, que tanto nos revela um verdadeiro perfil psicológico do príncipe, como traduz a amizade e admiração do compositor austríaco pelo seu extraordinário aluno.
Outras obras religiosas de D. Pedro
Depois desta breve incursão ao elementos que contribuíram decisivamente para a formação do jovem príncipe, vejamos algo mais sobre as obras de sua autoria.
Da Missa cantada em 5 de Dezembro de 1829 na Capela imperial na cerimónia do seu segundo casamento, com D. Amélia de Leuchtenberg (irmã do príncipe Augusto, efémero primeiro marido de D. Maria II, sua enteada), apenas o Credo chegou a nossos dias. Outrora muito cantado no Brasil sob o nome de Credo do Imperador, a sua primeira audição moderna verificou-se a 1 de Dezembro de 1972, pelo Coro e Orquestra da Rádio MEC sob a direção de Alceo Bocchino, no mesmo local da coroação de D. Pedro como primeiro Imperador do Brasil, a antiga Catedral do Paço, exactamente cento e cinquenta anos antes. Dele existe também uma gravação (Philips St. 6349044), efectuada pelo mesmo conjunto mas com regência de Henrique Morelembaum.
O seu original encontra-se também no arquivo da Sé Catedral do Rio, juntamente com o já referido Te Deum e ainda um volume encadernado que agrupa o Responsório de S. Pedro de Alcântara com uma pequena obra para coro e orquestra, ocasionalmente descoberta por monsenhor Guilherme Schubert quando procedia ao estudo mais aprofundado do autógrafo do Responsório.
Trata-se de uma antífona mariana, Sub Tuum Praesidium que, pela simplicidade dos meios, deve ser uma das primeiras composições do príncipe real. Foi recuperada pelo competente achador e também se encontra gravada em disco, no Brasil.
Presença na música
Encontram-se, em obras de outros compositores que privaram com D. Pedro, vestígios ou traços da sua influência, o que é natural; tal é o caso da Grande Fantasia e Variações sobre um thema original de S.M.I. o Sr. D. Pedro Duque de Bragança, de Manuel Inocêncio Liberato dos Santos, editado em Lisboa por Lence & Cia; da Fantasia para Grande Orquestra sobre uma pequena valsa de D. Pedro I de S. Neukomm; mas uma autêntica homenagem musical prestou-lhe, como vimos, este notável compositor austríaco, na sua bela e sentida Abertura Sinfônica "O Herói".
Entre as relações mais amistosas de D. Pedro contava-se o importante compositor pianista e pedagogo João Domingos Bontempo, que tão grande influência exerceu no meio musical português; é dedicada a D. Pedro a sua cantata A Paz da Europa, impressa em Londres por Clementi; e na Biblioteca da Ajuda encontra-se o autógrafo do seu Libera Me consacré à la mémoire de D. Pedro Duc de Bragança, obra recentemente editada pelo Ministério da Cultura.
Também José Avelino Canongia, que conhecera em Paris, o homenageia com uma notável composição, o Deuxième Concerto pour la Clarinette avec Orchestre Composé et Dedié à Sa Magesté Pierre I Empereur du Brasil et Roi du Portugal... publicado na capital francesa pela casa Pacini.
Também na música menos erudita e popular o Senhor D. Pedro é muitas vezes evocado, numa vasta série de marchas militares, danças e contradanças, polcas e valsas, que lhe são dedicadas pelos mais variados autores.
A verdade é que a Música constitui o autêntico pano de fundo de toda a breve e irrequieta vida de D. Pedro de Bragança.
Que teria sido este homem, se a Providência lhe não tem imposto o extraordinário Destino, que cumpriu, com a rapidez do meteoro, a subtil inteligência do melhor momento, a inconsciente facilidade do génio, a alegria pura da realização do acto?
Teria este homem sido um grande compositor?
|
PALÁCIO NACIONAL DE QUELUZ, em Queluz, cidade do concelho de Sintra, Portugal. Aí nasceu D. Pedro I do Brasil ou Pedro IV de Portugal em 12/10/1798, onde também faleceu em 24/09/1834. |
Os Hinos
Voluntariamente deixei para a última parte destas notas uma das mais importantes facetas da vida musical de D. Pedro, à qual deve a sua maior sobrevivência como compositor.
Na maioria ligados a importantíssimos factos políticos de carácter nacional, quer em Portugal quer no Brasil, os hinos de D. Pedro são verdadeiras marchas vibrantes, em que o real compositor fixava a força dos seus sentimentos, convicções e esperanças.
Entre estas composições, relativamente numerosas, aponto a curiosidade da existência do Hino da Maçonaria, ainda hoje ocasionalmente executado no Brasil em algumas cerimónias daquela instituição; encontra-se gravado pela banda e coro da Polícia de São Paulo.
Também como curiosidade, mas esta do destino, transcrevo o essencial dum artigo do grande investigador Curt Lang, publicado em 1977 na Revista de História, de S. Paulo, e que me foi amavelmente comunicado pelo ilustre musicólogo Prof. Vicente Salles, de Brasília.
Diz Curt Lang, baseado em bibliografia argentina, que, após a batalha de Ituzaingó, travada a 20 de Fevereiro de 1827, em que um batalhão brasileiro foi vencido pelas forças argentino-uruguaias, executou a banda de música dos aliados, a Marcha de Ituzaingó, composição tomada aos brasileiros no campo de batalha.
E continua:
"Segue-se agora uma afirmação que possivelmente nunca poderá ser esclarecida – embora seja duma lógica absolutamente aceitável – pois atribui-se a composição desta Marcha ao próprio Imperador Dom Pedro I, que ele teria entregue à Banda das tropas para que a executassem após a primeira vitória sobre os argentinos.
Quando o Exército Brasileiro retirou do campo de batalha, ficou abandonado um arcão contendo várias peças de música, dentre estas, a marcha foi selecionada pelos músicos argentinos, ensaiada e baptizada com o nome da batalha que acabara de se travar."
Lang acrescenta que esta histórica obra
"ainda se executa no Exército Argentino e foi durante muitos anos a Marcha Presidencial, substituída não faz muito tempo pela Marcha de San Lorenzo."
|
Primeiros Sons do Hino da Independência, pintura de Augusto Bracet, Museu Histórico Nacional, Brasil
|
O Hino da Independência do Brasil foi cantado pela primeira vez no Teatro de S. João, do Rio de Janeiro, em 8 de Março de 1824, de acordo com a opinião de Ayres de Andrade e Vasco Mariz ²⁰, baseados em documentação exaustiva severamente analisada; esta datação deita por terra a notícia, geralmente aceite, de que, a 7 de Setembro de 1822, na própria noite do histórico "Grito do Ipiranga", D. Pedro se apresentava da casa da Ópera de São Paulo, para a celebração do transcendente acontecimento dessa tarde, já com o novo hino acabado de compor – o que, vendo bem, é bastante inverossímil.
A referida estreia deste hino no S. João do Rio de Janeiro, foi assim descrita no Diário do Comércio:
"... diremos que S.M. o Imperador foi o primeiro a levantar a voz para dar vivas à nossa Constituição.
Repetindo por cinco vezes estes vivas, os quais foram respondidos pelo numeroso concurso do povo que ali havia, depois disto rompeu a orquestra o hino nacional composto por S.M. o Imperador, findo o qual tornou a levantar de novo S.M. a voz, gritando – Viva a nossa Perpétua Independência, que da mesma forma foi correspondido."
Prova também Ayres de Andrade, citando até o autorizadíssimo testemunho de Francisco Manuel da Silva, que era de Marcos Portugal o primeiro Hino da Independência, a cantar-se no Brasil, com letra de Evaristo da Veiga, extraído do Hino Constitucional Brasileiro.
Na colecção de manuscritos musicais que foi de meu pai, e que hoje se encontra nos reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa (CIC), figura um conjunto de três hinos, para piano: Hymno Novo composto por Sua Magestade Imperial o Senhor D. Pedro Duque de Bragança a bordo da Corveta Amélia, Hymno Constitucional de 1820 e o Hymno de S.M.F. a Senhora D. Maria II.
Destes, o primeiro é o que D. Pedro (incorrigível melómano mas político muito avisado do efeito da música na movimentação das massas) compôs antes de desembarcar e que utilizou como mais uma arma eficaz para a formidável campanha que acabaria por elevar D. Maria da Glória ao trono português. ²¹
Encontra-se também na Biblioteca Nacional uma antiga edição inglesa, Portuguese Hymn composed by Don Pedro, em fá maior, embora posteriormente, já como Hino da Carta nos apareça sempre em mi bemol maior, talvez para facilitar a tarefa dos cantores.
É o hino cuja primeira edição, da Imprensa Régia do Rio de Janeiro, se encontra na Biblioteca Nacional Brasileira e ostenta o seguinte cabeçalho e letra: ²² Hino Constitucional. Feito aos 21 de Março de 1821 e oferecido à Nação Portuguesa pelo Príncipe Real seu autor.
O Hymno da Carta
Mas a mais importante de todas as composições de D. Pedro IV é, sem dúvida, o Hymno da Carta***, por ter sido, até 19 de Junho de 1911, o Hino Nacional Português.
Por falecimento de el-rei D. João VI, em 10 de Março de 1826, ficou regente do Reino a infanta D. Isabel Maria, enquanto se aguardava que D. Pedro IV, também imperador do Brasil desde 1822, providenciasse a solução do problema sucessório.
Encontrada esta, cantou-se repetidamente no Real Teatro de S. Carlos o que ficou para sempre conhecido como o Hymno da Carta, por ter acompanhado a outorga do novo texto constitucional.
Relata Fonseca Benevides que, no programa são-carlino da noite de 6 de Janeiro de 1827 figurava a ópera Semiramis, de Rossini (sempre Rossini...), com Pauline Sicard, Constância Pietralia, Luigi Ravaglia e Giovanni Maria Cartagenova nos principais papéis.
Com todo o coro e os solistas no palco, no fim do 1º acto apareceu o retrato de D. Pedro IV e cantou-se o seu Hymno, entre ondas de entusiasmo.
Estreou-se então a versão orquestral de João Evangelista Pereira da Costa, organista, maestro do Teatro de S. Carlos e, segundo Ernesto Vieira, compositor de talento.
–––––––––––––––––––––––––––––––
A primeira vez que ouvi o Hino da Carta foi em 1980 na nova capital do Brasil, em casa de um bom amigo também da mesma corte tão real como espiritual, que previamente me avisou do disco que ia pôr a rodar.
A audição emocionou-me, não pela obra musical em si mesma, nem pela memória adquirida pessoalmente (que não a podia ter), mas pelas intensas vivências tradicionais que despertou, saudade colectiva e intemporal que acompanha e molda os nossos verdes anos, ajudando-nos depois na terrena peregrinação.
E lembrei-me então de Eça de Queirós, que insere na redentora maravilha A Catástrofe a mais bela e comovente página que alguma vez se escreveu sobre esta melodia real, transubstanciada em Símbolo Pátrio:
"E depois, nem tudo são tristezas: também temos as nossas festas! E para festas tudo nos serve: o 1º de Dezembro, a outorga da Carta, o 24 de Julho, qualquer coisa contanto que celebre uma data nacional. Não em público – ainda não podemos fazer – mas cada um em sua casa, à sua mesa.
N'esses dias collocam-se mais flores nos vasos, decora-se o lustre com verduras, põe-se em evidência a linda e velha Bandeira, as Quinas de que sorrimos e que hoje nos enternecem – e depois, todos em família, cantamos em surdina, para não chamar a attenção dos espias, o velho hymno, O Himno da Carta... E faz-se uma grande saúde a um futuro melhor!"
* Maestro, musicólogo e membro da Sociedade Brasileira de Musicologia
II. NOTAS EXPLICATIVAS
¹ "Bester Papa! Ich übersende Ihnen durch diese Gelegenheit ein Hochant von Neukomm der als österreichischer Unter tan und Leidnischer Schüler geeis Ihr Wohlgefallen verdienen soll und überdies sind zwei Fugen darin die, wie allen - Ihnen dass Sie senlieben. Mein Gemahl der acua Compositor isto, übersendet Ihnen eis Geschenk Sinphonie und Te Deus von ihm componiert. Aufrichtig gesprochen ist es etwas teatralisch was der Fehler mein Mannes ist. Was ich aber versichen kann ist dass es von iam selbst one Beih verfanst ist."
Esta transcrição da carta da Imperatriz Leopoldina na revista "Canto Gregoriano", ano XXV, nº 103, Abril-Maio-Junho/1982, inserida no artigo Uma composição Sacra de D. Pedro I, Imperador do Brasil, de monsenhor Schubert, é o único texto em alemão da carta publicada em todas as obras que consultei.
Encontra-se no conjunto de cópias de trinta cartas, conservado no arquivo do Castelo Eu, como ensina Luís Norton no seu trabalho A Corte de Portugal no Brasil (2ª edição, ENP, Lisboa, s.d.).
Levanta-se logo aqui um grande problema: todas as versões portuguesas que conheço (Luís Norton, ob. cit.; Vasco Mariz, História da Música no Brasil; Octávio Tarquínio de Sousa, A Vida de D. Pedro IV Compositor, artigo no "Diário de Notícias", 15 de Abril de 1982, são unânimes em citar o comentário crítico de D. Leopoldina como "... na verdade são um tanto teatrais o que é culpa de seu professor..."; a esta uniformidade escapa apenas Vasco Mariz, que em lugar de "tanto", escreve "pouco".
Como o restante texto da carta é rigorosamente igual, concluo que todos beberam na mesma fonte, isto é, utilizaram a tradução feita por Lucia M. Furquim Lahmeyer, segundo informação do embaixador Luís Norton.
Enquanto esse problema não fica completamente esclarecido, opto pelo texto alemão transcrito por monsenhor Schubert, por todas as razões facilmente aduzíreis e por mais uma, que é o meu grande apreço por Marcos Portugal.
Por estranho que pareça, a musicologia romântica e sua derivada encarniçou-se contra Marcos Portugal; e um dos "graves erros" que lhe imputam é o de ser muito teatral, de não ter composto sonatas e quartetos de cordas... Mas o que poderia ser um dos maiores compositores dramáticos do fim do século XVIII e primeiro quartel do XIX, senão um compositor muito teatral? Por que haveria um homem de gosto e formação essencialmente teatrais, compor quartetos e sonatas, que ninguém lhe pedia para compor?
² Ayres de Andrade, Francisco Manuel da Silva e o seu tempo, Rio de Janeiro, 1967.
³ Tarquínio Octávio de Sousa, A Vida de D. Pedro I, Rio de janeiro, 1972.
⁴ Idem.
⁵ Andrade Muricy, Nota do disco SC 10121, Música na Corte Brasileira de D. Pedro I.
** Sinfonia como sinônimo de Abertura.
⁶ Tarquínio Octávio de Sousa, ob. cit.
⁷ Andrade Muricy, ob. cit., carta publicada no Daumier de Álvaro Cotrim (Alvarus), MEC, Rio de Janeiro.
⁸ Luís Norton, A Corte de Portugal no Brasil, Lisboa, s.d.
⁹ Ayres de Andrade, ob. cit., referência à Gazeta do Rio de Jaaneiro.
¹⁰ Monsenhor Guilherme Schubert, Uma composição sacra de D. Pedro I Imperador do Brasil, in "Canto Gregoriano", ano XXV, nº 103, Lisboa, 1982. Vasco Mariz, História da Música no Brasil, Rio de Janeiro, 1981.
¹¹ As obras mais tocadas eram de Marcos Portugal, Leal Moreira, Jerónimo Francisco de Lima, Sousa Carvalho, David Perez, Jomelli, etc.
¹² Torna-se muito interessante consultar a este respeito o Diário de William Beckford, no qual surgem personalizados vultos como Policarpo José António da Silva, Jerónimo Francisco de Lima, o célebre modinheiro Domingos Caldas Barbosa, etc., além de nos dar uma impressão muito viva do êxito que a modinha gozava então na sociedade portuguesa.
¹³ Francisco da Fonseca Benevides, O Real Teatro de S. Carlos, Lisboa, 1883.
¹⁴ Ayres de Andrade, ob. cit.
¹⁵ Ernesto Vieira, Diccionário Biographico de Musicos Portugueses, Lisboa, 1900.
¹⁶ Ayres de Andrade, ob. cit.
¹⁷ Carta de Santos Marrocos a seu pai, citada por Jean-Paul Sarrautte, in Marcos Portugal, Ensaios, Lisboa, 1979.
¹⁸ Ayres de Andrade, ob. cit.
¹⁹ Cléofe Person de Mattos, Catálogo Temático de José Maurício Nunes Garcia, Rio de Janeiro, 1970.
²⁰ Obras citadas.
²¹ Octávio Tarquínio de Sousa, ob. cit.
²² Ayres de Andrade, ob. cit.
*** Letra do Hymno da Carta (estrofes):
I - Ó Pátria, ó Rei, ó Povo / Ama a tua Religião / Observa e guarda sempre / Divinal Constituição.
Estribilho: Viva, viva, viva o Rei / Viva a Santa Religião / Vivam os Lusos Valorosos / E a Feliz Constituição, etc.
II - Ó com quanto desafogo / Na comum agitação, / Dás vigor às almas todas / Divina Constituição!
III - Venturosos nós seremos / Em perfeita união, / Tendo sempre em vista todos, / Divinal Constituição.
IV - A verdade não se ofusca, / O Rei não se engana, não; / Proclamemos Portugueses / Divinal Constituição.
²³ Humberto d'Ávila, artigo no Diário de Notícias, 15 de Abril de 1982.
²⁴ Eça de Queirós, A Catástrophe, 3ª edição, Porto, 1926.
III. AGRADECIMENTO
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste ensaio.
IV. BIBLIOGRAFIA
AFONSO, Simonetta Luz (org.): D. PEDRO D'ALCÂNTARA DE BRAGANÇA (1798-1834), IMPERADOR DO BRASIL, REI DE PORTUGAL, Editora Palácio de Queluz, 1987, 211 p.
8 comentários:
Prezad@,
Tenho o prazer de compartilhar com o leitor o ensaio intitulado D. PEDRO, REI, IMPERADOR E MÚSICO, da autoria do Maestro MANUEL IVO CRUZ, que integrou o livro D. PEDRO D'ALCÂNTARA DE BRAGANÇA (1798-1834), IMPERADOR DO BRASIL, REI DE PORTUGAL, de 1987, livro comemorativo da Exposição inaugurada no Palácio de Queluz e transladada para o Paço Imperial na Cidade do Rio de Janeiro.
A Diretora do Palácio Nacional de Queluz, Sra. Simonetta Luz Afonso, teceu o seguinte comentário sobre o Paço Imperial:
"(...) As suas paredes testemunharam os mais importantes episódios da 'vida brasileira' de D. Pedro: foi a sua primeira morada quando chegou ao Brasil em 1808; na sua Sala do Trono assistiu às cerimónias do Beija-Mão a D. João VI seu Pai; de uma das janelas do primeiro andar declarou o FICO a 9 de Janeiro de 1822; na sua Capela foi coroado Imperador em 1º de Dezembro do mesmo ano; da sacada de uma das janelas da fachada principal participou ao Povo em 1825 que Portugal reconhecera a Independência do Brasil. (...)"
TEXTO DO ENSAIO "D. PEDRO, REI, IMPERADOR E MÚSICO"https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2022/09/d-pedro-rei-imperador-e-musico.html
BREVE BIOGRAFIA DO AUTOR: MAESTRO MANUEL IVO CRUZhttps://saojoaodel-rei.blogspot.com/2022/09/colaborador-maestro-manuel-ivo-soares.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
🙇🏽🙇🏽🙇🏽 muito obrigado, sou um privilegiado, agradeço a Deus todos os dias por colocar pessoas boas em minha vida.
Como monarchista que sou, aggradeço a lembrança do envio.
Gratidão, mestre. Estou repassando aos amigos. Luz e Paz! Eduardo
Obrigado. Oportuna divulgação. Parabéns ao autor. Estou certo de que, mais do que oportuna, a matéria é uma necessária lição.
MANUEL IVO CRUZ, parabéns pela necessária lição. Temos muito a aprender. E parabéns ao blog que nos oferece o presente.
Simplesmente magistral esta sua matéria.
Tomei a liberdade de enviá-la para muitos dos meus amigos pessoais.
Tarcízio Dinoá Medeiros
Ao reexame, confirmo que de fato as indicações, todas elas, estão lá...
E mais uma vez, parabéns pelo material postado. Sempre uma lição!
Boa noite!
Postar um comentário