quinta-feira, 23 de março de 2023

O ABC DO SERTÃO

 

Por JOSÉ CARLOS GENTILI *

 

Luiz Gonzaga do Nascimento (13.12.1912- 2.8.1989) Exu, Pernambuco


O compositor e cantor Luiz Gonzaga, denominado O Rei do Baião, e seu companheiro Zé Dantas, egressos do sertão pernambucano, lançaram invulgar música, intitulada O ABC do Sertão, a relembrar como o abecedário da língua portuguesa era soletrado, que enunciava a letra G, como GUE, por exemplo. Atualmente, os lusitanos denominam o “gmail” como “guemeil”, enquanto que os brasileiros dizem “gemeil”. 

Vejam a letra da canção, a rememorar o aprendizado do abecedário:
 
 “Lá no meu sertão, pro caboco’ ler 
Tem que aprender um outro 
 
ABC O J é ji, o L é lê 
O S é si, mas o R tem nome de rê
 
Até o Y, lá é pissilone 
O M é mê, e o N é nê 
O F é fê, o G chama-se guê 
Na escola é engraçado ouvir-se tanto ê 
A, B, C, D 
P, Q, lê, mê 
Nê, P, Q, rê 
T, V e Z.” 
 
Verdadeira aula de passado no presente! A prosódia e seus meandros mágicos deixam-nos encantados.
 
Correio eletrônico é muito mais sonante! Cheira à estafeta, às cartas, ao mundo epistolar com ares de modernidade. 
 
A língua portuguesa, em nove países do mundo, conforme registra a Comunidade dos Países da Língua Portuguesa – CPLP, por ordem alfabética, é utilizada pelas seguintes nações: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Portugal, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste. 
 
Apesar de acordos ortográficos estabelecidos durante muitos anos, visando a uniformidade ortográfica, o último acordo vigente (AO90) foi celebrado pelas Altas Partes Contratantes do Brasil e Portugal, em 16.12.1990. 
 
Moçambique e Angola até a presente data não aderiram, enquanto que outros não implantaram. A propósito, a sociedade civil portuguesa deseja revisão do acordo, que foi assinado, politicamente e às pressas, por dois presidentes: Luiz Inácio Lula da Silva e Aníbal Cavaco e Silva. Sem comentários desairosos, assim deve ser! 
 
As críticas em geral, quer no Brasil, quer em Portugal, receberam, inclusive, apoio do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, bem como do saudoso Carlos Heitor Cony, membro da Academia Brasileira de Letras, além da professora Maria Helena Moura Neves, quando de sua manifestação no Simpósio Internacional da Língua Portuguesa, monumental evento realizado pela Academia de Letras de Brasília, à época. 
 
Indiscutível é que o AO90 ao invés de unificar o idioma, conseguiu gerar intransponíveis regramentos, inclusive em sua praticidade de aplicação e entendimento, no tocante a hifenização e em tantos outros segmentos. 
 
Verdadeira mixórdia, razão pela qual a Academia Brasileira de Filologia outorgou ao autor do livro – A Infernização do Hífen –, o Prêmio Nacional Antenor Nascentes, que demonstrou a origem do hífen na Língua Portuguesa. 
 
Somente nosso idioma e o francês utilizam essa excrescência anômala do hífen! 
 
Prémio assim se escreve em Portugal, enquanto que no Brasil grafa-se – prêmio. Além de inúmeras outras palavras! Onde está a unidade do acordo? Mera fantasia de requintes, regidos pela vaidade de muitos, que se arvoram imortais regedores da língua, que desconhecem as mutações dos gentios do Condado Portucalense até hoje. A língua é viva e transporta valores, no dizer do saudoso Adriano Moreira, homem de Macedo dos Cavaleiros. 
 
Anos atrás manteve-se reunião com o Presidente José Manuel Blecua Perdices, da Real Academia Española, entidade que reuniu os 29 países do idioma hispânico no mundo e fixou uma só gramática, a respeitar as variações. 
 
Algo extraordinário e motivador de profundas reflexões. Verdadeira aula magna de bom senso vernacular! 
 
A língua portuguesa é uma só com suas variantes!
 
Fonte: A Infernização do Hífen, lançado em 11/2015 em Lisboa, 616 p.
 
 
 
II. Manifestação de José Carlos Gentili na Audiência Pública Ordinária da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, em 3 de setembro de 2019 
 
(...) 
O SR. PRESIDENTE (Dr. Jaziel. PL - CE) - Obrigado.
Passo a palavra agora ao Sr. José Carlos Gentili, que disporá de 3 minutos.
 
O SR. JOSÉ CARLOS GENTILI - Parabéns, Presidente Jaziel! 
Os ilustres membros que compõem esta Mesa tiveram a oportunidade de equacionar, de verificar a oportunidade da realização deste movimento. Eu sou um escritor de Brasília, membro da Academia de Letras de Brasília e um dos 20 brasileiros membros da Academia de Ciências de Lisboa, onde sempre estou a proferir palestras a respeito de vários assuntos, inclusive sofrendo as aferições deste AO90 (Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa). 
 
O Prof. Sidney Silveira foi oportuníssimo. Nós, anos atrás, mantivemos contato com estes dois ícones da filologia: o do Brasil, o nosso Evanildo Bechara, como também o do lado português, o nosso João Malaca Casteleiro. Eu sempre perguntei a ambos, nas tertúlias portuguesas: "Quem é que inventou o hífen?" Nenhum dos dois teve a coragem de me dizer: "Eu sei". Disseram-me: "Não sei". Se esses dois, que são os dois ícones da língua portuguesa nesse campo, não sabem, pobre de mim, simples mortal. 
 
Eu fui estudar hífen. Fui para a Torre do Tombo, para a Biblioteca de Portugal. Fui aos escaninhos da Academia de Ciências de Lisboa, antigo mosteiro quase tricentenário da Casa do Duque de Lafões, como também à biblioteca no Rio de Janeiro. Após a análise, desde o Condado Portucalense, constatei, Prof. Silveira, que D. Dinis, quando oficializou a língua portuguesa, naquela amostragem galaico-portuguesa, simplesmente não utilizava o hífen. 
 
Então, escrevi um livro. Chama-se A Infernização do Hífen. Esse livro procura mostrar essa dissonância das relações lusófonas. Verificou-se que quem gerou toda essa alteração foi um tipógrafo de nome Gutenberg, há 500 anos, lá na Mogúncia. Ao fazer a impressão da Bíblia dentro dos novos moldes, eles chegavam ao final da oração e, na hora da translineação, simplesmente colocavam um tracinho, um sinal de igualdade. Aí os aritméticos, os matemáticos disseram: "O senhor não pode utilizar isso, porque esse sinal é privativo da aritmética". Então, tirou-se um traço, Presidente. Aí, nasceu essa figura incrível, o hífen. Eu verifiquei que apenas duas línguas no mundo utilizam o hífen. Uma é o francês, e a outra é o português. 
 
Fui conversar com o homem que estabeleceu a unicidade da língua espanhola no mundo, o doutor filólogo membro da Real Academia Espanhola Prof. Blecua Perdices, com quem tive uma relação extraordinária. Eu perguntei: "Como é que o senhor conseguiu finalizar esse registro reunindo 20 países de língua espanhola?" Ele disse: "Apenas tendo a paciência, o estudo, a releitura e a conjugação de todas as gramáticas dos 20 países que fazem a estrutura da língua espanhola". 
 
Acho que faltou no Brasil, Prof. Sérgio Pachá, a ultrapassagem dos limites da convivência filológica, gramatical e linguística. Tanto é que a Academia Brasileira de Filologia me destinou, a este pobre mortal, o Prêmio Antenor Nascentes. 
 
Muito obrigado a todos.
(...)
 
 
 
* Jornalista e escritor, integra a Academia das Ciências de Lisboa, como correspondente brasileiro; é Membro Patrono da Associação Internacional dos Colóquios de Lusofonia, com sede em São Miguel, nos Açores; e faz parte do Conselho-Geral do Museu da Língua Portuguesa de Bragança.

4 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
O Blog de São João del-Rei tem a honra de hospedar dois momentos do imortal da Academia de Letras de Brasília, JOSÉ CARLOS GENTILI. No primeiro momento, texto extraído de seu livro "A Infernização do Hífen". No segundo momento, texto obtido de uma publicação taquigráfica da Câmara dos Deputados, o qual se refere à contribuição de Gentili para a compreensão do AO90 (Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa), retirado do registro taquigráfico de uma reunião na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados em 03/09/2019, em que vários linguistas opinaram sobre o AO90, dentre eles, Prof. Sidney Silveira, Profª Amini Boainain Hauy, Embaixadora Márcia Donner Abreu e Sérgio de Carvalho Pachá.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/03/o-abc-do-sertao.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Diamantino Bártolo (professor universitário Venade-Caminha-Portugal, gerente de blog que leva o seu nome http://diamantinobartolo.blogspot.com.br/) disse...

Muito interessante.

Geraldo Reis (poeta, membro da Academia Marianense de Letras e gerente do Blog O Ser Sensível) disse...

Muito obrigado. Muito interessante e sobremaneira necessário.
Um abraço.

Raquel Naveira (membro efetivo da Academia Matogrossense de Letras e membro correspondente da Academia das Ciências de Lisboa; como poetisa publicou, entre outras obras, Jardim Fechado, antologia poética em comemoração aos seus 30 anos dedicados à poesia) disse...

Concordo completamente com o Professor Gentili.
Ficou confusa e dificílima essa reforma ortográfica quanto ao emprego do hífen.
Reforma difícil de entender, pois há tanta beleza nas pequenas diferenças e palavras interessantes das diversas falas lusófonas.
Abraço fraterno,
Raquel Naveira