sexta-feira, 31 de maio de 2024

AS VISITAS


Por Raquel Naveira
 

 
Mariana (1745) foi a primeira vila de Minas Gerais, a Cidade Primaz, um marco histórico nesses campos de ouro e minérios, de picos altos, fria e úmida, no meio da Mata Atlântica. Conserva a arquitetura barroca colonial, em igrejas encantadoras com altares de madeira torneada, lustres de cristal e notas musicais vindas de um antigo órgão alemão. 
 
Foi para Minas Gerais que a caravana modernista, organizada pelo escritor e folclorista Mário de Andrade (1893-1945), se dirigiu em 1924. Integravam a caravana Oswald de Andrade, Godofredo da Silva Telles, René Thiollier, Tarsila do Amaral, Olívia Guedes Penteado e o poeta de origem suíça em visita ao Brasil, Blaise Cendrars. Encontraram no século XVIII mineiro, na área das artes visuais, o “lastro cultural de uma identidade nacional”. Mário havia publicado um longo ensaio no Jornal do Brasil sobre a arte religiosa em Ouro Preto, Mariana, Congonhas do Campo e São João del-Rei. Escreveu também sobre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, e suas magníficas esculturas. A partir daí, propõe a proteção do patrimônio cultural brasileiro, através do serviço histórico e artístico nacional, que se tornou realidade no dia 30 de novembro de 1937, em ato do presidente Getúlio Vargas. Mário via nas cidades mineiras uma “sociedade de pensamento que fala em independência e república”, já com a participação de mulatos e artesãos. 
 
 
Mário anteriormente fora para Mariana, com o intuito de visitar o poeta simbolista Alphonsus de Guimaraes, conhecido como “o solitário de Mariana”. Alphonsus nascera em Ouro Preto, foi apaixonado por sua prima Constança, desde muito cedo escrevendo versos para ela. Constança morreu prematuramente de tuberculose e essa tragédia pessoal, amor e morte, está presente em toda a sua obra poética. Quem não se lembra de “Ismália”? 
 
Quando Ismália enlouqueceu, 
Pôs-se na torre a sonhar... 
Viu uma lua no céu, 
Viu outra lua no mar. 
 
No sonho em que se perdeu, 
Banhou-se toda em luar... 
Queria subir ao céu, 
Queria descer ao mar... 
 
E, no desvario seu, 
Na torre pôs-se a cantar... 
Estava perto do céu, 
Estava longe do mar... 
 
 E como um anjo pendeu 
As asas para voar... 
Queria a lua do céu, 
Queria a lua do mar... 
 
As asas que Deus lhe deu 
Ruflaram de par em par... 
Sua alma subiu ao céu, 
Seu corpo desceu ao mar... 
 
Alphonsus formou-se em Direito em 1895. Já juiz e casado com Zenaide, mudou-se para Mariana vivendo em isolamento completo, morrendo nessa cidade em 1921, com cinquenta anos. Compunha loucamente poemas de forte misticismo, numa atmosfera branca de sonhos e melancolia. 
 
Mário de Andrade, jovem de vinte e seis anos, dedicado à promoção cultural nacional, pesquisador incansável de ritmos novos para a poesia, bem como de uma linguagem genuinamente brasileira, no léxico e na sintaxe, sentia-se impactado pelos poemas que atravessaram cachoeiras e vales até o Rio de Janeiro e São Paulo. 
 
Como teria sido essa visita? Esse inusitado encontro entre Mário de Andrade e Alphonsus de Guimaraens? O poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) imaginou esse encontro e registrou-o num magnífico poema narrativo, um denso diálogo entre duas gerações de poesia, onde o poeta modernista reverencia o simbolista. Uma soberba homenagem à herança deixada pelos simbolistas. O poema A visita de Drummond começa assim: 
 
“1919. 10 de julho. 
Palmas. A porta aberta não responde. 
Ô de casa! Mais palmas. A menina 
Manda entrar. O corredor abre à esquerda, 
Na tristeza de cinza do escritório baixo. 
Dentro, o homenzinho, 
50 anos por fazer, mas feitos secamente 
No rosto grave:  O senhor deseja? 
Vim conhecer o Príncipe, vim saudar o Príncipe 
Dos Poetas das Alterosas Montanhas.” 
 
E aí tem início a respeitosa conversa, pois é bom conversar com aquele que contempla o deserto das cidades mortas. Dois obcecados pela vertigem do poema no cristal da linguagem. Mário veio de longe, de baldeados trens de ferro, da chuvosa São Paulo, para conhecer o estranho poeta encravado naquelas paragens sonolentas. Mário confessa que toca piano, que a música é uma forma de poesia, pede que Alphonsus lhe mostre alguns poemas guardados. Mário começa a ler em voz alta: “Tens um lis de ternura, que desliza à flor da pele em mágoa suavizante...” Mário delira diante do poeta que diz o indizível. Interpreta versos em francês, sua segunda língua. Tudo se transfigura em redor e dentro desses poetas gigantes, entre as montanhas de Minas. Tudo se dissolve e a luz os traspassa. Despedem-se. É dolorida a despedida, mas a visita foi completa. Alphonsus agradece, Mário retruca, pois é ele quem se rende e se alegra. Desaparece pela rua vazia, como uma ave desconjuntada e grande. A memória nunca se diluirá, embora não fique na folhinha de Mariana. Dois anos depois, a alma de Alphonsus de Guimaraens será uma cruz enterrada no céu. 
 
Essas belezas todas estão no livro A Visita, uma edição particular, homenagem a Carlos Drummond de Andrade. Foram apenas 125 exemplares numerados e recebi esse presente valioso das mãos do bibliófilo José Mindlin (1914-2010), quando lhe fiz uma visita em São Paulo para conhecer sua famosa biblioteca. 
 
Importante o que Dr. Mindlin me contou sobre o planejamento gráfico desse livro. Que chamou a fotógrafa Maureen Bisiliat (1931), inglesa naturalizada brasileira, que atuou na formação do acervo de arte popular da Fundação Memorial da América Latina, em São Paulo, para ilustrar o poema. Aí ela teve uma ideia: ilustrar com fotografias de pedras preciosas. As pedras das Minas Gerais: a opala da noite em estilhaços; o topázio cravado na terra; a ametista negra da solidão; as águas-marinhas, as turmalinas, blocos gelados de insuportável silêncio. Gemas coradas, diamantes, berilos azuis e amarelos. Ficou de uma lindeza pura e mineral. 
 
Por que só hoje relembrei dessas visitas? De quando Mário de Andrade visitou Alphonsus Guimaraens, de quando Drummond visitou as antigas lembranças dos poetas, de quando eu visitei o Dr, Mindlin, um homem raro? Não sei o motivo, mas foram visitas perfeitas, dessas que não se repetem.

domingo, 19 de maio de 2024

LAMENTO DE UM RIO


Por Scheilla Lobato *
 
Lamento de um Rio 
 
Em homenagem e solidariedade ao povo do Rio Grande do Sul.
 


 

Me perdoem por toda esta "bagunça"... Eu só queria passar. 
 
Eu não fui feito pra Destruir... Eu só queria passar. 
 
Já fui Esperança para os Navegantes... 
Rede cheia para Pescadores... 
Refresco para os banhistas em dias de intenso calor. 
Hoje sou sinônimo de Medo e Dor... 
 
Mas, eu só queria passar... 
 
Me perdoem por suas casas 
Por seus móveis e imóveis 
Por seus animais 
Por suas plantações... Eu só queria passar. 
 
Não sou seu inimigo 
Não sou um vilão 
Não nasci pra destruição... 
Eu só queria passar. 
 
Era o meu curso natural 
Só estava seguindo meu destino 
Mas, me violentaram, 
Sufocaram minhas nascentes 
Desmataram meu leito... Quando eu só queria passar. 
 
Encontrei tanta coisa estranha pelo caminho... Que me fizeram 
[transbordar... 
Muros 
Casas 
Entulhos 
Garrafas 
Lixo 
Pontes 
Pedras 
Paus... 
Tentei desviar ... Porque eu só queria passar. 
 
Me perdoem por inundar sua história, 
Me perdoem por manchar esta história... 
Eu só estava passando... 
 
Seguindo o meu trajeto 
Cumprindo o meu destino: 
Passar....  
 
* Natural de Cachoeiro de Itapemirim-ES. É esposa, professora, pedagoga, preletora, escritora com dois livros publicados e algumas participações em antologias poéticas.
 
Áudio de voz: Pr. Delandi Machado

sexta-feira, 17 de maio de 2024

QUEM TEM MEDO DE OLHAR PARA TRÁS?


Por LUÍS RIBEIRO *
Transcrevemos com a devida vênia da revista VISÃO, artigo publicado na edição da quinta-feira, de 16/05/2024, nº 1628, pp. 46-52.
Falámos com vários investigadores representantes das comunidades negras em Portugal sobre os impactos do tráfico de escravos e da colonização nas sociedades e as eventuais reparações às ex-colónias. Afinal, por que razão ainda não estamos prontos para começar o debate? E de que reparações estamos a falar?, diz Luís Ribeiro
 

“Temos de pagar os custos. Há ações que não foram punidas e responsáveis que não foram presos? Há bens que foram saqueados e que não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso.” 

Pagar. Devolver. Reparar. Em poucos segundos, Marcelo Rebelo de Sousa incendiou meio País. A condenação às declarações do Presidente da República, num jantar a 23 de abril com jornalistas estrangeiros, foi ruidosa, sobretudo à direita. 

Três dias depois, Marcelo tentou justificar-se, mas não recuou. Portugal tem “a obrigação de liderar” o processo de reparações, disse, durante a inauguração do Museu Nacional da Resistência e da Liberdade, em Peniche. Mas isso não significa necessariamente pagar alguma coisa a alguém. “A reparação é pagar uma indemnização? Não, é uma realidade que já começou há 50 anos”, continuou, dando como exemplos o perdão da dívida a países colonizados e o estatuto de mobilidade a cidadãos dos países de língua oficial portuguesa. 

A insistência levou a novas indignações, com o Chega a anunciar, na semana passada, o recurso à bomba atómica: um processo a Marcelo por “traição à pátria”, encetado na Assembleia da República pelo recurso ao Artigo 130º da Constituição, com vista à sua destituição. Bomba que se revelou um foguetório, já que se sabia que teria chumbo garantido, o que se confirmou, quando todos os deputados dos outros partidos votaram contra. 

Assente a poeira, para lá da polémica e da espuma das indignações, o que ficou? Uma mão-cheia de nada e um debate por fazer, dizem-nos investigadores, historiadores e pessoas que lutam pelos direitos da comunidade negra em Portugal.

IDENTIDADE NACIONAL EM XEQUE

“A minha ideia era abrir a discussão para a necessidade de se descolonizar o imaginário colonial. Não eram propostas minimamente radicais. E foram rejeitadas num quadro de maioria de esquerda”, diz Joacine Katar Moreira, ex-deputada

Há quatro anos, Joacine Katar Moreira apresentou a proposta Descolonização do Conhecimento, na qual se previa a restituição às ex-colónias de património cultural (o que constava do programa do Livre). A proposta chumbou, apesar de uma maioria de esquerda, e a deputada acabou por ser vítima de ataques virulentos por se atrever a levantar a questão, com André Ventura a propor mesmo que a deputada fosse “devolvida ao seu país de origem”. 

“O colonialismo foi um projeto político e ideológico, e tem de ser desmantelado política e ideologicamente. A minha ideia era abrir a discussão para a necessidade de se descolonizar o imaginário colonial”, recorda Joacine Katar Moreira. “Não eram propostas minimamente radicais. Falavam da criação de um grupo de trabalho para se dar início ao debate e da inventariação do espólio oriundo das colónias. E foram rejeitadas, note-se, num quadro de maioria de esquerda.” 

A somar à “reação visceral de todas as alas políticas”, a historiadora e ativista sublinha a posição de intelectuais, “que até concordavam com a ideia de restituição e reparação, mas diziam não ser aquele o momento nem a forma indicados”. “Qual é o momento e a forma, então? Sim, é uma discussão desconfortável, e tem de o ser, para ser desmantelada. A desumanização do colonialismo tem de ser algo que nos desconforta.” 

Esta resistência da sociedade portuguesa em reconhecer o lado negativo da sua História está enraizada na própria identidade do povo, diz Joacine Katar Moreira. “A identidade nacional assenta na ideia de um passado glorioso, que por sua vez é oriunda da maneira como a História colonial é ensinada: uma História maravilhosa, sempre na ótica da heroicização do povo, omitindo e tornando invisível toda a violência. Daí que, quando alguém diz que é necessário refletir e reconhecer os erros do nosso passado colonial, as pessoas respondam imediatamente que não têm nada de que se envergonhar.” 

Salão Nobre da Assembleia da República de Portugal

 

Murais polêmicos Um projeto de resolução de Joacine Katar Moreira recomendou à Assembleia da República a contextualização das pinturas no Salão Nobre, que normalizam   "a subjugação de outros povos" - Crédito pela foto: Marcos Borga
 

José Pedro Monteiro, especialista no período imperial e colonial, diz que a investigação científica desenvolvida em Portugal fez aumentar muito o conhecimento sobre o colonialismo, mas os debates públicos continuam a estar presos em “estribilhos e dicotomias, com formas de debater e factos que não refletem o conhecimento disponível”. “A discussão continua no ‘Não vamos reparar o que aconteceu há cinco séculos’. Mas há imensa gente ainda viva que passou pela realidade do colonialismo português.” 

Além disso, adianta o historiador, não faz sentido continuarmos a debater a História no espaço público com a mesma abordagem do século XIX. “As sociedades evoluíram. A ideia do Estado Social é corrigir desigualdades, de modo que a sorte e o azar não sejam os únicos determinantes das histórias individuais. E nós hoje conseguimos rastrear os efeitos do colonialismo e o modo como o passado violento marcou as sociedades contemporâneas. É óbvio que não podemos olhar para o passado com olhos do presente, mas podemos pensar se, de facto, queremos uma postura diferente da que tivemos.”

NÃO É UMA QUESTÃO DE DINHEIRO

“Grande parte das instituições, que ainda hoje perduram, foi fundada com dinheiro proveniente da escravatura e do colonialismo. Não foi todo gasto em sedas e em especiarias”, diz Ana Cristina Pereira, investigadora

Ana Cristina Pereira, investigadora em Ciências Sociais, defende que a narrativa gloriosa dos Descobrimentos não é falsa, mas é “muito incompleta”, e que “o passado não fica no passado”. “Não somos outra coisa senão a nossa História. É preciso olhar para ela por forma a saber para onde queremos ir. Não precisamos de ter vergonha ou de rejeitar a História, mas temos de perceber que também foi uma História de abuso.” E lembra que Portugal ganhou muito com a violência e a opressão. Falta saber exatamente quanto. “Grande parte das instituições que ainda hoje perduram foi fundada com dinheiro proveniente da escravatura e do colonialismo. Não foi todo gasto em sedas e em especiarias. Este tema ainda não está aprofundado. Nos EUA, sabe-se de onde veio o dinheiro para fundar as instituições, as universidades.” 

A investigadora coordenou o projeto Oficina de Reparações, um workshop com académicos e ativistas, que redundou na Declaração do Porto, em julho do ano passado, com uma proposta de 18 medidas de reparação. Entre elas, encontram-se o reconhecimento de crimes, o perdão das dívidas das “províncias ultramarinas” e a restituição de obras de arte, mas também várias iniciativas para apoiar os descendentes dos colonizados em Portugal, como políticas contra a desigualdade racial (incluindo quotas) e a criminalização do racismo, além da eliminação de propinas para alunos oriundos dos países colonizados. “Receber alunos das ex-colónias nas nossas universidades, sem que tenham de pagar propinas, seria uma belíssima maneira de reparação, porque os antepassados deles ajudaram a criar riqueza sem receberem os benefícios”, sustenta. 

Há ainda processos de autorreparação que envolvem o espaço público. “Não estou a falar de destruir monumentos ou de deitar abaixo estátuas, mas de erguer outras estátuas e monumentos. É urgente a construção do memorial às pessoas escravizadas, em Lisboa, aprovada em 2017 num orçamento participativo. É também consensual que o 25 de Abril começou em África, que as lutas africanas não foram contra o povo português, mas contra o governo, e no entanto não temos nenhuma estátua de Amílcar Cabral.” 

Ana Cristina Pereira admite, porém, que o debate é muito difícil de se fazer quando se põe a questão em termos financeiros. “O Presidente falou em pagar a conta, e isso inquinou o debate. Não é por aí, apesar de os países ex-colonizados aproveitarem para insistir na narrativa da cooperação, a pensar no hoje e nos trocos, o que revela falta de visão de futuro. As elites políticas são todas muito parecidas.”

COMPENSAR OS AFRODESCENDENTES

“Não há dinheiro que pague o que foram a escravatura e a colonização. Mesmo nos grupos negros, a questão do dinheiro não surge como assunto principal. A dívida é eterna”, diz Apolo de Carvalho, investigador

Para Apolo de Carvalho, investigador envolvido no projeto Afro-Port – Afrodescendência em Portugal, é moralmente irrelevante falar em eventuais indemnizações monetárias. “Não há dinheiro que pague o que foram a escravatura e a colonização. Mesmo nos grupos negros, a questão do dinheiro não surge como assunto principal. A dívida é eterna.” 

Importante, diz, é tentar compensar os países africanos de outras formas, através, por exemplo, do apoio diplomático à sua entrada em organismos internacionais de relevo, como o Conselho de Segurança das Nações Unidas ou o FMI, ou ainda resolvendo as burocracias e os abusos nos serviços consulares. “Os cabo-verdianos são humilhados e tratados como animais para vir para Portugal”, acusa. 

Há igualmente passos com enorme importância simbólica que também não custam nada, seja em dinheiro seja em honra ferida. “Como é que a língua cabo-verdiana não é reconhecida como língua nacional, ao lado do mirandês? Língua é cultura, é identidade da existência de um povo, e basta vontade política.” É também este tipo de iniciativas que Joacine Katar Moreira favorece. 

“Devemos mudar a legislação para melhorar a vida das populações descendentes dos países colonizados. Desracializar a lei, acabando, por exemplo, com o Artigo 250º do Código de Processo Penal, que diz que polícia pode interpelar e interrogar indivíduos com suspeitas de permanência ilegal em território nacional, o que é usado pela polícia para interpelar e algemar pessoas racializadas, quando a única suspeita é a cor. Advogo também a existência de quotas raciais, tal como há para as mulheres, para acelerar a justiça histórica.” 

As reivindicações centrais são conhecidas e públicas, garante a socióloga Cristina Roldão, ainda que não tenham grande repercussão no espaço público. “Tivemos um debate sobre a recolha de dados étnico-raciais, estamos há anos a falar dos manuais escolares, de quotas para o Ensino Superior e para a Administração Pública, da política das zonas urbanas sensíveis... E nada avançou.” No Reino Unido, aponta, o assunto já está noutro patamar, com “políticas de ação afirmativa, recolha de dados étnico-raciais, representatividade nos media e até bancos a assumirem que têm património com origem na escravatura”. “Temos de ver o que os outros têm feito. Talvez nos possamos inspirar.”

O benemérito.... esclavagista

A primeira rede de escolas primárias em Portugal foi paga pelo Conde de Ferreira, que fez fortuna a traficar pessoas escravizadas

Joaquim Ferreira dos Santos emigrou para o Brasil em 1800 e fez uma fortuna no tráfico transatlântico de escravos. Em 1832, fugiu para Portugal, ao ser apanhado a traficar pessoas ilegalmente (o Brasil baniu o tráfico em 1831). Em 1866, já conde, morreu sem descendentes, tendo deixado a imensa herança à Santa Casa, com instruções para construir um hospital psiquiátrico no Porto e 120 escolas primárias em todo o País. “Foi a primeira rede escolar em Portugal. Revolucionou socialmente gerações de pessoas e teve um enorme impacto no País”, diz Nuno Coelho, investigador-principal de um projeto sobre o Conde de Ferreira. 

Ainda hoje, o antigo esclavagista dá o nome a dezenas de escolas e de ruas. “Esse lado foi invisibilizado, mas não podemos falar dele como benemérito sem explicar a origem do dinheiro.” Nuno Coelho sublinha ainda que o caso do Conde de Ferreira pode servir para ajudar a calcular quanto Portugal ganhou com o esclavagismo. “Ele foi responsável pelo tráfico de dez mil pessoas, o que representa 0,17% do total. Onde está o fruto dos restantes 99,87%? Que famílias têm ainda hoje dinheiro ganho dessa forma?” 

A (lenta) evolução dos manuais

Os livros escolares continuam a dar uma imagem acrítica e desumanizante da escravatura, diz investigadora, mas tem havido mudanças

Quando Marta Araújo coordenou um primeiro projeto sobre a escravatura nos manuais de História do 3º Ciclo, entre 2008 e 2012, tirou várias conclusões: África era apresentada como um continente sem História, primitivo; as Descobertas representaram um “encontro entre culturas”; não era feita qualquer ligação entre a escravatura e o racismo nem havia referências aos movimentos de resistência liderados por negros. Entretanto, a investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra iniciou outro projeto semelhante e, numa análise prévia, diz que já são visíveis várias alterações, mais nos manuais do 9º ano do que nos do 7º e do 8º. “É hoje menos frequente o uso de terminologia que objetiva a população escravizada, em que o escravo é apresentado como um produto em circulação equivalente às especiarias e ao marfim, e está presente uma maior relação entre a escravatura e a violência, omitida noutros manuais.” 

Marta Araújo diz, no entanto, que ainda há muito a fazer. “Falta vontade política para mudar o sistema no seu todo, com orientações curriculares mais específicas nesta matéria. A própria formação de professores tem de ser repensada. E não estamos a ver estas mudanças noutros ciclos do ensino.” A investigadora acrescenta que “os ganhos não são garantidos”, dando o exemplo de um retrocesso: em 2003, um manual dizia que se haviam dado “grandes migrações” de europeus para a América, “enquanto escravos africanos negros eram levados à força”; em 2008, o manual da mesma editora dizia que tinham ocorrido “movimentações de povos – de emigrantes europeus e de escravos africanos sobretudo para a América”. 

A especialista em exclusão e em racismo institucional avisa, contudo, que, apesar de haver muitas medidas que não implicam necessariamente maior dispêndio de orçamento”, há outras que vão mesmo custar dinheiro (ainda que admita não ter estimativas de quanto poderá ser, até porque “não há espaço para fazer essa discussão”). Mas não deve ser o povo português a temer esse lado mais materialista do debate. “As elites é que enriqueceram às custas dos africanos escravizados, dos povos indígenas, dos camponeses, dos portugueses pobres. Não é por acaso que, em alguns países, o que se tem tentado perceber é a origem das grandes fortunas. As plantações de cacau em São Tomé e Príncipe, nos anos 60, por exemplo, foram feitas com muito trabalho forçado. Isto é algo que a sociedade portuguesa precisa de saber. Se pudéssemos avançar de forma mais séria neste debate, talvez tivéssemos uma opinião pública menos crispada.”

SEM VOZ 

Entre a comunidade negra lamenta-se que, mais uma vez, sejam chamados à discussão os mesmos de sempre. “Não é aceitável que as pessoas negras não estejam neste debate, dado que, até na perspetiva vivencial, há todo um dano ao nível das heranças etnorraciais”, diz Paula Cardoso, fundadora da rede Afrolink, comunidade de profissionais africanos e afrodescendentes. “Há uma responsabilidade da comunicação social em perceber que não tem essa diversidade nas suas estruturas e que, para refletir a diversidade da sociedade, tem de ir ao encontro das pessoas.” 

Cristina Roldão alinha na crítica. “É preciso ouvir quem foi lesado pelo processo, dar-lhe mais espaço. Só temos ouvido homens brancos a discutir o assunto, uma elite cultural e intelectual, quando as pessoas prejudicadas com o processo colonial são racializadas e eram da classe trabalhadora.” 

Já o argumento, muito repetido, de que a sociedade ainda não está preparada para ter esta conversa não colhe junto de Apolo de Carvalho. “Qual sociedade? A negra, que há muito tempo vê negada a pertença a este País, quer um programa de reparações, não como esmola mas como política de justiça reparativa. Mas essa sociedade não é auscultada. Tem produzido um conjunto de estudos, documentos e propostas na área das desigualdades étnico-raciais, mas acaba sempre relegada para segundo plano.” 

O investigador deixa ainda uma crítica à afirmação de Marcelo Rebelo de Sousa de que cabe a Portugal “liderar” o processo de reparações. “É como dizer que o criminoso é que decide as indemnizações às vítimas. Não, não tem de liderar. Portugal tem, sim, de abrir conversações com os países africanos, que têm as próprias agendas, e estar aberto para ouvir as pessoas negras que cá vivem.”

 * Jornalista da revista VISÃO desde 1999.


BIBLIOGRAFIA (já publicada no Blog de São João del-Rei)

 

AÇORIANO ORIENTAL: HISTÓRIA NÃO SE COMPENSA, por Cáti Martins, artigo publicado na edição da quinta-feira, de 16/05/2024, na coluna OPINIÃO, p. 14.
 
PÚBLICO: “A expansão portuguesa é indissociável da escravatura”, falta Portugal reconhecê-lo, por António Rodrigues, edição da quinta-feira, artigo de 02/05/2024, na coluna Destaque Reparações históricas, pp. 2-4 

quinta-feira, 16 de maio de 2024

HISTÓRIA NÃO SE COMPENSA


Por Cáti Martins *
Transcrevemos com a devida vênia do jornal Açoriano Oriental, o mais antigo jornal português fundado em 1835 por Manuel António de Vasconcelos, artigo publicado na edição da quinta-feira, de 16/05/2024, na coluna OPINIÃO, p. 14.
 

Numa declaração, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa provocou discussão ao abordar a herança colonial portuguesa e a possível obrigação de Portugal em compensar tais eventos históricos. Num discurso ponderado, o presidente destacou a importância de reconhecer os equívocos do passado, mas será realmente justo associar dívidas atuais com ações de outros tempos? 

A história é um fio que liga gerações e, no caso de Portugal, essa história inclui um complexo legado colonial. Recordemos que foram séculos em que territórios foram explorados, vidas foram afetadas e culturas colidiram. Contudo, é fundamental olhar para este passado não com culpas, mas com a consciência da evolução. 

Se assim for, então o que sucederia com outras nações que ao longo dos tempos também carregaram os encargos da colonização? Seria justo solicitar ajustes de contas, por exemplo, a países que mantêm artefactos portugueses como parte de suas heranças de guerra? 

Retrocedendo no tempo, podemos citar o caso de Goa, Damão e Diu, regiões que outrora fizeram parte do império português e que, após alterações políticas e conflitos, permaneceram em posse de outras nações. No entanto, a linha temporal é clara: a história é imutável, mas o dever de reparação das nações contemporâneas é um debate sensível e complexo. 

Olhando para o Brasil, país irmão onde a influência portuguesa é inquestionável, não seria prudente enxergar a atual luta por direitos como um pedido de compensação pelo passado, mas sim como parte de um processo natural de afirmação e crescimento. As raízes portuguesas fazem parte da identidade brasileira, e é através desta herança que se constrói a força para reivindicar justiça e igualdade. 

Em última análise, o legado colonial português é um capítulo inseparável da história de Portugal e das nações que dele advieram. Assim, é imprescindível não só refletir sobre as consequências do passado, mas também celebrar as conquistas que surgiram do encontro de culturas e povos. A herança é inegável, mas a responsabilidade de construir um futuro de cooperação e entendimento está nas mãos das gerações presentes e futuras. Que o diálogo seja o caminho e que a sabedoria do passado ilumine o presente em direção a um futuro comum de respeito e harmonia.

* Psicóloga Clínica, da Saúde e do Desporto, Técnica de Desporto, formada em Gestão de Recursos Humanos, açoriana de Ponta Delgada.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

GUSTAVO FONTELE DOURADO VENCE ITAÚ CULTURAL


Por ITAÚ CULTURAL 

Hacker Leonilia, animação da Fontele Studios, é contemplada

Um take de Hacker Leonilia, com roteiro de Gustavo e Elias Fontele Dourado, produzido pela Fontele Studios

 

Hacker Leonilia, projeto de animação transmídia e de ficção científica, dirigido por Gustavo Fontele Dourado, com produção da Fontele Studios, é um dos contemplados pelo instituto Itaú Cultural, edital nacional Rumos de 2023/2024, um dos mais concorridos e prestigiados do setor cultural brasileiro. O resultado foi anunciado pelos representantes da instituição em coletiva de imprensa nesta segunda-feira (6 de maio). 

Foram 9.389 projetos inscritos, de todo o Brasil e de artistas brasileiros residentes no exterior, sendo cem escolhidos, alcançando os 26 estados e o Distrito Federal. Gustavo Fontele Dourado afirma que se sente muito feliz em ser selecionado por um dos editais mais disputados no Brasil e na América Latina. 

“O edital possui uma curadoria atenciosa, com o foco na contemporaneidade e na originalidade”, afirma o cineasta ao observar ainda que a “ficha demorou para cair” quando viu que tinha sido selecionado e que sua criação seria patrocinada pelo Itaú Cultural. Ele destaca que “o filme busca ser pioneiro nos novos gêneros de ficção científica solarpunk e lunarpunk, que são respostas ao gênero cyberpunk, atualmente muito em voga narrativamente e esteticamente”. E lembra que o projeto, como um todo, envolve longa-metragem, websérie interativa e curta-metragem, estes dois últimos financiados pelo Fundo de Apoio à Cultura (FAC/DF). 

Gustavo Fontele Dourado
 

Hacker Leonilia, com roteiro de Gustavo Fontele Dourado e Elias Fontele Dourado, também foi premiado como melhor pitching no Laboratório Hospital de Projetos Animados, que ocorreu dentro da programação do 6º Lanterna Mágica – Festival Internacional de Animação de 2024, realizado no Centro Cultural Oscar Niemeyer, em Goiânia. E ainda selecionado para o Fórum de Animação 2024, que é uma plataforma de encontro entre os profissionais do setor da animação dos Países de Língua Portuguesa, com foco no eixo Portugal-Brasil. 

Em 2023, com recursos do Conexão Cultura DF, o longa-metragem participou do Venice Production Bridge, que faz parte da Bienal de Veneza de Cinema (Biennale). No mesmo ano, foi apresentado no Marché du Film, do Festival de Cannes e no Ventana Sur, na Argentina, via parceria com a produtora associada Madá Produções. 

 

A PRODUTORA 

 

A Fontele Studios é uma produtora do Distrito Federal que existe desde 2016 e possui o foco no audiovisual, na literatura e nos quadrinhos. É integrada por Gustavo Fontele Dourado, Maria Félix Fontele e Elias Fontele Dourado. A produtora, integrante da instituição Cinema do Brasil, já executou dezenas de projetos culturais patrocinados pelo FAC-DF, pelo Ministério da Cultura, pela Lei Paulo Gustavo, Lei Aldir Blanc e agora está sendo contemplada pelo Itaú Cultural. 

O sócio-diretor da Fontele Studios, Gustavo Fontele Dourado, tem formação diversa em cinema e produção de games. Em dezembro de 2023, ele foi premiado, junto com Edileuza Penha de Souza, no DiaLab 2023 (Salvador-BA), com o Prêmio Diáspora pelo longa-metragem Mulheres que bordam. Gustavo integra a equipe de produção executiva junto com a cineasta e curadora Bethania Maia. E já trabalhou em projetos audiovisuais que foram exibidos na Cannes Classics (Festival de Cannes), É Tudo Verdade, Cine Tekton, Festival de Brasília, Icuman Lab, Fomenta Cine, Rio2C entre outros. 

A Fontele Studios atuou na produção executiva de cerca de dez curtas-metragens, dois longas-metragens e agora produz seus terceiro e quarto longas-metragens, constando, entre eles, o documentário João Tomé - Memória e Vida, dirigido por Edileuza Penha de Souza, co-produzido com a Sebastiana Mídias e Produções. Faz também a produção associada da animação transmídia Andorinhas, levando o projeto para diversos mercados audiovisuais internacionais. Ambos os longas-metragens contam com recursos da Lei Paulo Gustavo do Distrito Federal e do FAC-DF. 

A maior conquista na área dos quadrinhos foi a produção da História em Quadrinhos (HQ) Ritos de Passagem – Quando Éramos Irmãos, do autor Lucas Marques. Esta HQ foi premiada no 13º International Manga Award (ocorrida no Japão) e indicada ao Prêmio Jabuti de 2021.

quinta-feira, 9 de maio de 2024

PICADA DE GOIÁS


Por PAULO PINHEIRO CHAGAS 
Transcrevemos o primeiro capítulo do livro ESSE VELHO VENTO DA AVENTURA: memórias, livro impresso na Editora Itatiaia Ltda, Belo Horizonte, 2ª edição revista e aumentada, 1977, pp. 3-11

 

A Alma dos homens é como a água.
O destinho dos homens é como o vento.
GOETHE
Ventos do mar, das velas, dos caminhos:
Vossa música incerta é a minha música,
Sois irmãos de minha alma inquieta e errante.
AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT
Nos teus poemas de cadências bíblicas
Recolheste os sons das coisas mais efêmeras:
O vento que enternece as praias desertas,
O desfolhar das rosas cansadas de viver,
As vozes mais longínquas da infância.
Os risos emudecidos das amadas mortas.
MANUEL BANDEIRA

 

Livro impresso na Editora Itatiaia Ltda, Belo Horizonte, 2ª edição, 1977


ESSA OLIVEIRA, tão presente nos foros de Minas, nasceu à beira de um caminho que demandava Goiás. O local era passagem obrigatória de quantos em sua marcha para o Oeste — o velho rumo da aventura — corriam atrás do ouro de Goiás e do ouro de Paracatu. Por aquelas bandas, aí pelos 1674, rompera com estrondo a gente de Fernão Dias. Mas a bandeira seguira para o norte, quase paralelamente ao São Francisco, em busca de esmeraldas e prata. Ia de olho nas pedras verdes e passara ao largo, sôfrega e inquieta, deixando à esquerda, fora do seu itinerário, a futura Oliveira. Não obstante, retida pela estação das chuvas, havia abivacado treze léguas aquém, fundando Ibituruna, "o mais antigo lar da pátria mineira", na palavra de Diogo de Vasconcelos, e onde plantou roças de cereais para seu próprio abastecimento. Anteriormente, por volta de 1669, essas paragens já tinham sido devastadas por outro paulista famigerado: Lourenço Castanho Taques — Lourenço, o Velho — que deve ter sido o primeiro homem branco a pisar terras de Oliveira. A esse façanhudo rompedor-de-mato, inveterado caçador de índio, ficou o bandeirismo a dever inestimável serviço. Empenhado em guerra de morte aos ferozes cataguases, veio batendo-os desde Conquista (atual Itaguara), Oliveira, Itapecerica, Pium-í, Araxá até a serra de Paracatu, depois denominada serra de Lourenço Castanho. Submetendo a bugrada a tiros de trabuco, abriu as portas do sertão, com a definitiva conquista do território central das Minas Gerais. O Sertão dos Cataguases, daí por diante, pôde ser talado por todos os bandeirantes, a começar por Fernão Dias. 
 
Mais tarde, em 1736, já no Setecentos, era aberta a Picada de Goiás, em cuja margem nasceria Oliveira ¹. De resto, a providência se impunha, tal o movimento por aqueles lugares e a necessidade de encurtar distâncias. O ouro de Goiás abrasava as imaginações. O segundo Anhanguera — filho do Diabo Velho, que subjugara o gentio com a ameaça de por fogo nos rios e nos lagos, e acabar com a água da terra — mantendo bem alto o panache das tradições paternas, fizera novas e grandes descobertas auríferas. Por tudo isso, a Picada de Goiás estava fadada a um grande destino. Nascera da aventura e da ambição e resultava num rosário de cidades, florescendo à sua beira. Aliás, esse problema da Picada de Goiás é altamente polêmico, no que diz com sua localização. Waldemar de Almeida Barbosa ², que pesquisou demoradamente o assunto, chegou a conclusões interessantes. As picadas abertas na mesma época eram duas. Uma, vinda de São João del-Rei, passava por Bambuí e serra da Marcela; outra saía de Pitangui e transpunha a serra da Saudade. Ambas iam dar em Paracatu, onde se fundiam todos os caminhos para Goiás. Isso sem falar em um sem-número de atalhos, cruzando em todas as direções o solo das Gerais. No entanto, a velha Picada de Goiás tinha, aproximadamente este percurso: saía de São João del-Rei e, infletindo para o ocidente, ou melhor, para noroeste, atravessava Santiago, Morro do Ferro, Oliveira, Formiga, Bambuí, Ibiá, Serra do Salitre, Patrocínio, Coromandel, Guarda-Mor, Paracatu. Obviamente, estas cidades ainda não existiam. O que havia no lugar delas eram pousos ou arraiais insignificantes. 
 
O Sertão dos Cataguases foi, desse jeito, vasculhado pelas bandeiras que vinham de São Paulo. As esmeraldas, a prata e o ouro eram a força motivadora de tanto afã. Os aventureiros, que romperam pelo Oeste de Minas — uns seguindo para o norte na rota de Fernão Dias, outros para o poente, através da Picada de Goiás — iam todos eles em corrida desesperada atrás de uma quimera, a "serra mui formosa e resprandescente", de que falava Gandavo, e em cujas abas dormia "a azul Vupabuçu", a lagoa romântica e fatal. A serra enfeitiçada seria a de Sabarabuçu, a "pedra-grande-que-resplende"? É de supor que ela fosse a um tempo a Serra da Prata, a Serra das Esmeraldas, a Serra do Ouro ³. Alguns índios a tinham visto toda branca, argêntea, prateando ao sol e ao luar (como uma torre branca e muito alterosa, escreve Walter Raleigh); outros diziam que ela era verde, fulgindo com os resplendores verdes, fulgindo com os resplendores verdes de suas esmeraldas; e os que garantiam ser ela toda dourada, com seu ouro rebrilhando na mataria como um "Sol-da-Terra"? E havia ainda uma outra, a serra dos Martírios, nos longes de Goiás, com suas fabulosas minas de ouro. É de ver, assim, que os sertões do oeste mineiro, ao modo de almenaras, atraíam o bandeirante para as duas serras lendárias, misteriosas e inatingidas: a de Sabarabuçu e a dos Martírios. 
 
Campo Grande da Picada de Goiás e de Campo Grande da Travessia de Goiás ou simplesmente Picada de Goiás teriam sido os primeiros nomes de Oliveira, tese recentemente contestada pelo historiador Waldemar de Almeida Barbosa:
A menção de "Picada de Goiás" e de "Campo Grande", expressões usadas nas primeiras sesmarias, levou alguns autores a outro equívoco: o de supor que estes tinham sido os primitivos nomes de Oliveira. Ora, Picada de Goiás era a designação escolhida para todas as sesmarias situadas nas vizinhanças daquele caminho, desde São João del-Rei até Paracatu: da mesma forma, Campo Grande era expressão designativa de toda a vasta região que ia de São João del-Rei até Goiás, ou melhor, até o Alto Paranaíba. Salvo engano, foi José Joaquim da Silva o primeiro a cometer o equívoco, escrevendo: "A povoação da Oliveira, denominada antigamente Picada de Goiás" (Tratado de geografia descritiva especial da província de Minas Gerais, 1878).
Em outros termos, a Picada de Goiás era uma sorte de testada das diversas sesmarias daquele sertão. Oliveira, o nome atual da cidade, é o ponto nevrálgico de uma velha controvérsia. Para uns, empolgados pelo rigorismo histórico, a origem do topônimo estaria no fato de os portugueses ao penetrarem o sertão, irem erguendo ermidas, capelas ou simples oratórios com os oragos de sua devoção trazida de Portugal. Para outros, o nome proviria, romanticamente, de uma desilusão amorosa. Onde a verdade? Na tradição da história ou na tradição da lenda? Demais, nem sempre é fácil estabelecer com precisão estes limites: onde acaba a lenda e começa a história ou, ao reverso, onde acaba a história e começa a lenda. E como desconhecer o fato, deveras relevante, de que a lenda também faz a história e de que a história também faz a lenda? Com referência à origem do nome de Oliveira, é bem patente essa dicotomia de opiniões. Waldemar de Almeida Barbosa , preso ao formalismo histórico, explica: 
Com relação a Nossa Senhora da Oliveira, incluída entre as devoções mais comuns trazidas de Portugal, era padroeira dos oficiais confeiteiros, carpinteiros de carruagens e de carros em geral e dos picheleiros, os quais constituíam, em Portugal, um dos onze ofícios embandeirados, isto é, com direito a bandeira. Augusto de Lima Júnior, em História de Nossa Senhora em Minas Gerais, depois de mostrar a antiguidade da devoção a Nossa Senhora da Oliveira, em Portugal, escreve: "Traziam os povoadores de Minas, nos primeiros tempos do desbravamento, pequenas imagens dos padroeiros ou oragos de suas aldeias natais, diante dos quais haviam começado a levantar suas almas e mãos para o céu." E aqui, nos sertões onde se fixavam, construíam sua capela, dedicando-a a Nossa Senhora ou ao santo de sua devoção. O mesmo autor cita, a propósito, entre outros, o arraial de Nossa Senhora da Oliveira do Itambé do Mato Dentro, de Nossa Senhora da Oliveira do Piranga, além daquele que deu origem à atual cidade de Oliveira.
Já Gonzaga da Fonseca  encontra a razão do topônimo em antigas tradições locais. Foi o caso que um tal Manoel de Oliveira, de origem portuguesa, vindo de Brumado, de onde cavalheirescamente partira para não disputar com o irmão mais velho o amor da mesma donzela, por quem ambos se haviam apaixonado, arranchara à beira da Picada de Goiás. Aí se estabeleceu e casou. A breve trecho, esse singelo rancho de tropeiros adquiria ares de hospedaria, que o tempo tornaria a mais famosa daquelas lonjuras. Com sua morte, a viúva, Maria de Oliveira, tomou as rédeas da casa e, a duras penas, projetou ainda mais o negócio. Ao cabo de algum tempo, a amável estalajadeira se fazia conhecida por aquelas paragens. O "pouso da Oliveira" transformara-se em pouso predileto e forçado de quantos transitavam pela Picada. À sua volta nasceu a cidade, esspraiando-se morro acima. Nesse episódio romântico se inspiraram os poetas para cantar as origens municipais. Como historiador, escreveu Gonzaga da Fonseca: 
Oliveira é, pois, filha de uma paixão, pelo seu lado toponímico. Topograficamente, provém de sua geografia privilegiada. E, historicamente, nasceu dum arremesso para o Oeste.”
E como poeta diria, num belo soneto: 
 
Passando outrora, aqui pelas picadas 
Abertas rumo do rincão goiano, 
Quantos pousavam, frouxos das jornadas, 
No rancho da Oliveira, bom e lhano. 
 
E desse transitar febril e insano, 
Foram surgindo, ao lado, outras pousadas, 
Entre alas de casinhas de ar serrano 
— Em cidade, mais tarde transformadas. 
 
Pousos se foram... vêm os palacetes; 
Ei-los galgando o aclive das colinas, 
Ao som de sinos, músicas, foguetes... 
 
E assim nasceu, um tanto régia e agreste, 
Esta flor nívea dos vergéis de Minas 
Ao sopro de arremessos para o Oeste! 
 
Outro poeta, Geraldo Ribeiro de Barros, pensando em escrever o Hino do Centenário de Oliveira, com música de Ângela Maria Patrus, assim falaria: 
 
Nascente da encruzilhada 
para o rumo do sertão, 
E cresceste imaculada 
sob a santa proteção. 
 
Ao caminhante cansado 
abrigaste com carinho. 
Era teu fado, esse fado: 
servir de pouso e de ninho. 
 
Não obstante, o Hino do Centenário de Oliveira, oficialmente reconhecido pela Câmara Municipal, em 5 de junho de 1961, é de autoria de Batista Gariglio, musicado pelo padre Raimundo Nascimento Teixeira, como se vê por este trecho: 
 
Oliveira da antiga picada 
Demandando o sertão de Goiás. 
Oliveira, terra abençoada, 
De trabalho, de amor e de paz. 
 
Oliveira que à sombra da cruz 
E da Virgem Maria cresceu. 
Oliveira, que a todos seduz, 
És a graça provinda do céu. 
 
Salve, salve Oliveira, 
Salve Olivia Speciosa, 
Linda ciade mineira, 
Salve ó terra dadivosa. 
 
Aliás, em outra oportunidade, Batista Gariglio , em versos livres, evocou a estalajadeira famosa, "revivendo Maria que foi o início da bela Oliveira": 
 
De braços abertos 
Maria esperava, 
Maria atendia, 
Maria agradava 
com festa nos olhos 
e no coração. 
Maria Oliveira 
que a todos queria, 
que a todos amava. 
Surgiu a pousada 
dos bons Oliveira, 
para os viajantes, 
ricos e pobres, 
pretos e brancos, 
do norte ou do sul, 
de um lado ou do outro. 
 
A história e a lenda, ambas bem estruturadas na tradição, se irmanam na explicação do topônimo. Nossa Senhora de Oliveira deu à cidade um sentido de grandeza, de dimensão e de eternidade, robustecendo a fé católica do seu povo. E o "pouso da Oliveira" popularizou o nome, ao tornar-se o fogo, o lar, a lareira daqueles rijos aventureiros do Oeste.
 
*
  *     * 
 
Com o correr dos anos, a Picada de Goiás se tornava em uma espécie de Via Appia do sertão. Valia por um marco na arremetida do Brasil, em sua Marcha para Oeste. Estuava de vida, fervilhava de gente. Enquanto durou o ciclo das bandeiras, foi o mais batido caminho desses duros conquistadores do setecentismo. Por ela, transitavam os caçadores de ouro, à cata das minas, e os caçadores de homens, que iam prear o bugre. Era gente de toda espécie: portugueses, paulistas, judeus, ciganos, aventureiros, flibusteiros, mulheres de vida fácil, colonos, escravos, índios pacificados, mascates, brancos, negros, mulatos, mamelucos. Mesmo com a exaustão das lavras e descobertos, e consequente decadência da mineração, continuou intenso o trânsito na Picada. Por ela passavam, em tristes e extensas caravanas, com destino ao trabalho forçado, levas e levas de escravos, comprados nos mercados do Rio e que seguiam aguilhoados como animais, gemendo sob o chicote dos comboieiros. Iam e vinham outros caminheiros, novos sertanistas. Bufarinheiros e salteadores. Reinóis e paulistas. Tropas e boiadas. Contrabandistas e "mulatas de partes, mulatas de mau viver", segundo o anátema do casto Antonil. Cargueiros e rebanhos, Muladas e burramas. E os tropeiros, e os tropeiros, e os tropeiros. 
 
Desse jeito, foi ao derredor do "pouso da Oliveira", na velha rua dos Cabrais, que começou a cidade, desde o início afamada por seu clima. "A terra em si he de muytos bons ares, assim frios e temperados", para usar o estilo de Pero Vaz de Caminha. Sucessivamente capela, curato, freguesia, paróquia, já em 1840 era desmembrada do município de São José del Rei (atual Tiradentes) e guindada à condição de vila. À categoria de cidade era elevada em 1861. E sete anos depois recebia os foros de comarca, separada da do Rio das Mortes. Era então um vasto município. Cabeça da comarca de Nossa Senhora de Oliveira, como passara a se chamar, tinha, à época, doze distritos: os atuais municípios de Nossa Senhora do Carmo da Mata, Nossa Senhora da Glória de Passa Tempo, Nossa Senhora do Carmo do Japão (hoje Carmóplis), Nossa Senhora da Aparecida do Cláudio, Santana do Jacaré, São João Batista (hoje Morro do Ferro), Santo Antônio do Amparo, Nossa Senhora do Bom Sucesso, Perdões e Canaverde. A propósito, observou Nélson de Sena  o fato sugestivo de serem dados os nomes de santos, especialmente o da Virgem, a Oliveira e seus distritos, e o fato pitoresco da origem asiática destas designações: distrito do Japão e estação da Tartária, esta no caminho de Bom Sucesso. 
 
Descoberto o seu território por Lourenço Castanho Taques, em 1669, sua colonização começa aí pelos 1752. A igreja da Matriz teve a sua construção iniciada por volta de 1785, pelo padre Bonifácio da Silva Toledo, ajudado por seu parente Nicolau Francisco Toledo. De começo, era a capela de Nossa Senhora de Oliveira, já então padroeira da cidade. Aliás, lá está no frontispício da atual Igreja da Matriz a clara legenda, buscada no Ecclesiastes, cap. XXIV, v. 19: Quasi oliva speciosa in campis, a saber, "como uma bela oliveira nos campos". Esse padre Bonifácio da Silva Toledo era parente de Carlos Correa de Toledo e Melo, presbítero do Hábito de São Pedro e Vigário Colado da Freguesia de Santo Antônio da Vila de São José del Rei, um dos chefes principais da Inconfidência , levado ao infortúnio por um dos delatores da conspiração, o Mestre de Campo Inácio Correa Pamplona, que o denunciou (saliente-se que os três delatores da Inconfidência eram portugueses). Uma amizade de longa data levara o vigário da Vila de São José del Rei a contar-lhe os planos da sublevação. Dessa amizade há uma prova eloquente na carta do Padre a Pamplona, por sinal datada de Oliveira, onde andava em visita pastoral ¹. Nela, dando notícias do estado da Igreja em Tamanduá (Itapecerica), abre-se com o amigo:
Estes são os termos em que me acho e sem que algum experimente o quanto... (palavra ilegível) o braço de quem nos governa, quer eu quer Vmcê sofreremos muito mais do que temos sofrido. Eu tinha obrigação de dar esta parte a Vmcê a quem desejo boa saúde e muitas felicidades, como quem é, de Vmcê Amº e obrigadíssimo Capelão Carlos Corrêa de Toledo e Melo. Oliveira, 14 de outubro de 1782.
Homem de grande bravura, Carlos Correa de Toledo e Melo quis reagir mesmo após a descoberta do levante, exclamando: 
mais vale morrer de espada na mão do que como carrapato na lama.”
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O austríaco Dr. Pohl e o barão de Eschwege, de passagem por Oliveira, nada viram digno de nota. Já Saint-Hilaire, em 1819, foi menos pessimista e fez observações interessantes, sobre o arraial nascente, escrevendo, com propriedade, que Oliveira 
pertence ao pequeno número das povoações, que não devem sua fundação à presença do ouro; deve-a unicamente às vantagens de sua posição. Com efeito, diversas estradas importantes passam por este ponto ¹¹.”
As palavras do sábio francês valorizam a afimativa de que Oliveira é filha de uma encruzilhada. Hoje, como ontem, o seu território está recortado de estradas. E não seria esta uma das razões por que a cidade possui um tão vivo sentimento democrático? A estrada é democrática até por definição. Aliás, já notara Vítor de Azevedo que 
a democracia se extinge ou se estiola, em qualquer meridiano que seja, pela ausência de vias fáceis de comunicação, que são os seus vasos sanguíneos ¹².”
Ora o objetivo destas notas é tão somente fixar o fato relevante de que Oliveira estava talhada para grandes destinos. Já em 1909, Nélson de Sena escrevia que "a cidade era uma das mais cultas do Estado". Na verdade, de seu seio sairiam grandes figuras, algumas de repercussão internacional, sem falar no grande número de seus filhos ilustres, brilhando nas mais diversas profissões e diferentes misteres. A cultura projetou Oliveira e a política fez a sua grandeza. Sua economia, com base no pastoreio e na agricultura, nada tem de pujante, como é de vezo neste estranho país, onde o campo e suas implicações nunca foram lá objeto de maior preocupação oficial. Ferrenhamente apegada à propriedade imobiliária, que gera a aristocracia, seus fazendeiros se constituíram numa sorte de nobreza sem títulos nobiliárquicos, nobreza econômica, com acentuada predominância na política municipal. Essa aristocracia rural sem brasões, fundiária por origem e escravocrata por necessidade, faria de Oliveira um dos mais intensos empórios de escravos, em todo o Oeste de Minas. O tráfico teve ali um movimento inusitado. E um dos maiores comboieiros da região foi muito precisamente o meu trisavô... Mas isso são águas passadas. Naquele tempo, a mão-de-obra só podia ser buscada no mercado africano. Os homens, que estão nos começos de Oliveira, provêm daquela velha cepa, onde se forjaram as virtudes assinaladas dos povos das Gerais: a pureza dos costumes, a lhaneza no trato, o acatamento à palavra empenhada, a tradição hospitaleira, o horror ao arbítrio, tudo aquilo, em suma, que levaria Saint-Hilaire a evocar "os meus bons mineiros" e Torres Homem a defini-los como "varões singelos e grandes". De resto, aí estavam a geografia e a história a inserir, nas tradições de Oliveira, um ideário de grandeza. Em suas plagas, num raio de poucas léguas, se haviam passado acontecimentos relevantes. Ali, Ibituruna e Santana do Paraopeba, os dois primeiros arraiais fundados em Minas, lembravam as figuras legendárias de Fernão Dias e Borba Gato. Aqui, na atual Itaguara, Lourenço, o Velho, em batalha decisiva, derrotara os Cataguases, impondo a paz nas Gerais e limpando o caminho para os conquistadores do sertão. Acolá, no Rio das Mortes, se dera o mais sério entrechoque entre Paulistas e Emboabas, nessa primeira reação nacionalista de Minas. E o sangue generoso dos trezentos paulistas, trucidados no Capão da Traição, como que adubou aquelas terras para os dias do futuro. Pois nas sua imediacões se situava a Fazenda do Pombal, onde nasceria o Tiradentes. 
 
Dentre os ventos, que sopram de Oliveira, um tem algo de misterioso. Nasce no Diamante, o ponto culminante do município, a mil e duzentos metros, de onde se divisam, a perder de vista, a rechã e os vastos chapadões em derredor. A propósito, Gonzada da Fonseca, o minucioso historiador de Oliveira, assim fala: 
Há aqui um vento noturno, chamado "vento do Diamante", que costuma surgir de repente, às nove horas da noite. É sempre anunciado por um arrepio nas franças e, quando desce aos troncos, já virou ímpeto. Logo as ruas se despovoam e as casas vão se fechando. É impressionante escutar aquele uivo nas árvores e nos jardins, em horas mortas. Também como surgiu, assim desaparece: inesperadamente.
Deus louvado, esse é um dos ventos de minha vida. E é como se ainda o escutasse, uivante e desabusado, apavorando a noite sertaneja. Não, ele não vem do Diamante. Vem de mais longe. Tremulou a bandeira dos desbravadores. Colheu os gemidos dos escravos nos troncos. Acompanhou a toada dos tropeiros, cantando pelas estradas. Ouviu o retinir de espadas e os tiros de trabuco, ecoando pelas quebradas. Beijou a face gelada daqueles cadáveres do Capão da Traição. E veio vindo, aos pulos, pelas escarpas, enchendo-se de vozes, de gritos e de soluços, rolando o seu desespero e a sua aflição. Vento de minha infância, vento resmungão, vento que veio ventando e se mandando por esse mundo largo sem porteira...
 
NOTAS EXPLICATIVAS
 
¹ L. Gonzaga da Fonseca, História de Oliveira, 1961. A obra, concluída em 1942, foi atualizada em 1961 por dois outros escritores, intimamente vinculados ao patrimônio intelectual de Oliveira: Honório Silveira Neto e Geraldo Ribeiro de Barros. 

² Waldemar de Almeida Barbosa, A Decadência das Minas e a Fuga da Mineração, Belo Horizonte, 1971, [pp. 76-96].

³ Paulo Setúbal, El-dorado, Edição Saraiva, São Paulo, 1950 [pp. 77-78].

Waldemar de Almeida Barbosa, Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1971 [p. 324].

Waldemar de Almeida Barbosa, op. cit. [p. 325].

L. Gonzaga da Fonseca, op. cit. [pp. 63-66].

Batista Gariglio, Minha História de Oliveira, in Gazeta de Minas, 29 set. 1968.

Nélson de Sena, Anuário histórico-geográfico de Minas Gerais, Ano III, 1909.

L. Gonzaga da Fonseca, op. cit., p. 334, afirma que o padre Bonifácio era irmão do Inconfidente, o que não passa de um equívoco do historiador de Oliveira.

¹Waldemar de Almeida Barbosa, A Decadência das Minas e a Fuga da Mineração, Belo Horizonte, 1971 [p. 122] (Carta colhida em Documentos Avulsos, do Arquivo Público Mineiro).

¹¹ Saint-Hilaire, Voyage Aux Sources du Rio S. Francisco et das la Province de Goyaz.

¹² Vítor de Azevedo, Feijó — Vida, Paixão e Morte de um Chimango.

Colaborador: PAULO PINHEIRO CHAGAS


Por Francisco José dos Santos Braga

 PAULO PINHEIRO CHAGAS nasceu em Oliveira (MG) no dia 1º de setembro de 1906. Foi um médico, advogado e político brasileiro. Era primo do sanitarista Carlos Chagas, que ficou conhecido por ter identificado o agente causador da tripanossomíase, posteriormente conhecida por "doença de Chagas". Por sinal, ambos naturais de Oliveira (MG). Fez os estudos primários no Colégio Pinheiro Campos e no Grupo Escolar Francisco Fernandes, em sua cidade natal, e concluiu o secundário no antigo Colégio Militar de Barbacena em 1924. Ingressou a seguir na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, e ao mesmo tempo trabalhou, de 1925 a 1926, como praticante da Secretaria de Finanças de Minas Gerais e auxiliar de gabinete do secretário, seu tio Djalma Pinheiro Chagas. 

Entusiasta da Aliança Liberal, participou como estudante universitário da Revolução de 1930, incorporando-se à tropa que lutou sob o comando do major João Lemos, da Força Pública de Minas Gerais. Entre outros combates travados em seu estado, tomou parte no assalto ao 4o Regimento de Cavalaria Divisionária, sediado em Três Corações. 

Após a vitória da revolução, concluiu, ainda em 1930, o curso de medicina, passando a clinicar em Belo Horizonte como assistente do professor Osvaldo de Melo Campos e, a seguir, na clínica de tisiologia dirigida por Pedro Nava. 

Abandonando a carreira médica pouco tempo depois, Pinheiro Chagas decidiu dedicar-se à política e ingressou no Partido Republicano Mineiro (PRM), então chefiado por Artur Bernardes. 

Favorável à imediata reconstitucionalização do país, tornou-se opositor do governo provisório liderado por Getúlio Vargas e do governo do presidente de Minas Gerais, Olegário Maciel. 

De março a junho de 1932, na gestão de seu outro tio, Carlos Pinheiro Chagas, na Secretaria de Finanças de Minas Gerais, voltou a exercer a função de chefe de gabinete do secretário. 

Durante a Revolução Constitucionalista de São Paulo, deflagrada em julho do mesmo ano, foi preso e permaneceu incomunicável por cerca de um mês. Com a derrota dos rebeldes paulistas em outubro, os principais líderes do PRM foram exilados e tiveram seus direitos políticos cassados. 

Com a reconstitucionalização do país, elegeu-se em maio de 1933 suplente de deputado à Assembleia Nacional Constituinte na legenda do PRM e ainda no mesmo ano matriculou-se na Faculdade de Direito de Minas Gerais. Também jornalista, em 1934 fundou e passou a dirigir o vespertino O Debate, de Belo Horizonte, através do qual empreendeu uma campanha de oposição aos governos municipal, estadual e federal. 

Ainda em 1934 elegeu-se deputado à Assembleia Constituinte de Minas Gerais. Tomou posse no início do ano seguinte e, após a promulgação da nova Carta estadual, passou a exercer mandato legislativo ordinário até novembro de 1937, quando o advento do Estado Novo suprimiu todos os órgãos legislativos do país. Nesse mesmo ano bacharelou-se em direito e em seguida transferiu-se para o Rio de Janeiro. Em 1943 foi um dos signatários, entre outros importantes nomes da política de seu estado, do chamado Manifesto dos mineiros. Reivindicando a redemocratização do país, o documento representou a primeira manifestação ostensiva de oposição ao Estado Novo partida de lideranças políticas liberais e conservadoras. 

Com a desagregação do Estado Novo e a reorganização partidária em 1945, foi um dos fundadores da União Democrática Nacional (UDN), e nessa legenda alcançou uma suplência de deputado nas eleições de dezembro para a Assembléia Nacional Constituinte. De 1949 a 1951 foi diretor do jornal Diário Carioca, do Rio de Janeiro. Após desentendimentos com correligionários de sua cidade natal, abandonou a UDN e ingressou no Partido Social Democrático (PSD). Nessa legenda foi eleito deputado federal por Minas.

Nomeado em maio de 1956, no governo de José Francisco Bias Fortes (1956-1961), primeiro titular da recém-criada Secretaria de Segurança Pública de seu estado, Pinheiro Chagas interrompeu então seu mandato na Câmara. 

Deixando a Secretaria de Segurança em julho de 1958, nesse mesmo mês reassumiu seu mandato na Câmara. Outra vez reeleito em outubro desse ano, exerceu a partir de abril de 1961 a liderança do PSD e da maioria, formada por seu partido, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido Social Progressista (PSP) em oposição ao governo de Jânio Quadros. Após a renúncia deste em 25 de agosto de 1961 e a posse do vice-presidente João Goulart sob o regime parlamentarista em 7 de setembro seguinte, voltou à condição de líder da maioria na Câmara, dessa vez em apoio ao governo federal. 

Reconduzido à Câmara dos Deputados nas eleições de outubro de 1962, licenciou-se em janeiro de 1963 por haver sido nomeado ministro da Saúde, permanecendo no cargo até julho de 1963, após o que participou, como vice-presidente, da Reunião dos Ministros da Saúde em Genebra, na Suíça, e, como chefe da delegação brasileira, da Sessão Anual da Organização Mundial de Saúde (OMS), também em Genebra. Reassumiu a seguir o mandato de deputado federal. 

Com a extinção dos partidos políticos pelo Ato Institucional no 2 (27/10/1965) — editado pelo governo instaurado através do movimento político-militar de 31 de março de 1964, que depôs o presidente João Goulart —, e a posterior implantação do bipartidarismo, filiou- se à Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido de sustentação do regime militar. Reeleito em novembro de 1966 nessa legenda, exerceu o mandato até o fim da legislatura, em janeiro de 1971. 

Diretor da Fundação João Pinheiro — cuja revista dirigiu — a partir de 1973, Pinheiro Chagas exerceu, paralelamente à vida política, atividades comerciais e industriais em diversas empresas. Como jornalista, foi redator e colaborador em diversos periódicos. 

Também escritor, foi representante da seção mineira da Associação Brasileira de Escritores e do Círculo Cultural Hispano-Brasileiro, além de vice-presidente da Academia Mineira de Letras e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais. 

Faleceu em Belo Horizonte no dia 12 de abril de 1983. Era casado com Zembla Soares Pinheiro Chagas, de quem teve dois filhos. 

Dentre seus inúmeros livros, destacam-se Teófilo Otoni, ministro do povo (1943, 2a ed. 1956), Atualidade de Teófilo Otoni (1957), Elogio de Pedro Aleixo (1974) e Esse velho vento da aventura (memórias), 1977


sexta-feira, 3 de maio de 2024

“A expansão portuguesa é indissociável da escravatura”, falta Portugal reconhecê-lo


Por António Rodrigues *
Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO, edição da quinta-feira, artigo de 02/05/2024, na coluna Destaque Reparações históricas, pp. 2-4.
Organizações brasileiras manifestaram na ONU o repúdio pela “ausência absoluta de posicionamento” de Portugal em relação ao passado esclavagista e à falta “de reparação à população negra brasileira”

Passadas três décadas desde os primeiros debates em torno das reparações pelos crimes cometidos pelas potências coloniais nos territórios que colonizaram, há alguns passos concretos que foram dados, desde a devolução de França ao Benin de artefactos pilhados até ao acordo histórico assinado entre a Alemanha e a Namíbia por causa do genocídio dos povos hereros e namas (namaquas) na então colónia alemã do Sudoeste Africano. 

A primeira Conferência Pan-Africana sobre Reparações pela Escravatura, Colonização e Neocolonização Africana, realizada entre 27 e 29 de Abril de 1993, pedia à comunidade internacional, no seu documento final, a chamada “Declaração de Abuja”, que “reconheça que existe uma dívida moral única e sem precedentes para com os povos africanos que ainda não foi paga — a dívida de compensação aos africanos enquanto povo mais humilhado e explorado dos últimos quatro séculos da história moderna”. 

Desde então, existe uma investigação histórica importante, feita por muitos historiadores em Portugal e no estrangeiro, que tem ajudado “a definir melhor o passado e a ver como é que os países hoje se podem relacionar com esse mesmo passado”, afirma ao PÚBLICO o historiador Francisco Bethencourt, professor no King’s College de Londres. Em Portugal, essa reflexão tem sido parca nos seus frutos porque “nos últimos 50 anos não houve política de memória”. 

A inacção portuguesa em relação ao seu passado colonial e às reparações devidas aos povos colonizados e escravizados mereceu recentemente o repúdio de sete organizações da sociedade civil brasileira que participaram de 16 a 19 de Abril, em Genebra, na reunião do Fórum Permanente para Pessoas Afrodescendentes, criado pelas Nações Unidas em 2021 para contribuir para a inclusão social, económica e política dos afro-descendentes no mundo. 

“A expansão portuguesa é indissociável da escravatura. É fundamental que Portugal — Estado que beneficiou social, económica, política e culturalmente de um sistema colonial de poder e da exploração negra — se responsabilize e ofereça respostas efectivas voltadas à memória, verdade, justiça, reparação e não-repetição”, dizia o comunicado conjunto assinado pelo Instituto Marielle Franco, Odara Instituto da Mulher Negra, Redes da Maré, Fundo Agbara, Movimento Mulheres Negras Decidem, Observatório da Branquitude e o Centro de Estudos de Relações de Trabalho e Desigualdades. 

A “ausência absoluta de posicionamento” por parte de Portugal, a falta de “medidas concretas de reparação à população negra brasileira pelos danos profundos causados pela escravização e o tráfico transatlântico, graves crimes contra a humanidade” são faltas que precisam de ser remediadas, acrescentava o documento. 

Há até estudos quantitativos sobre esse tráfico transatlântico de seres humanos transformados em mercadoria. “Jaime Reis, Nuno Palma e Leonor Freire Costa publicaram, aqui há uns anos, um artigo importante de História Económica, em que demonstravam com imensa investigação — e é um artigo consensual, ninguém o discutiu — que, entre 1500 e 1800, Portugal beneficiou da exploração colonial ao nível de 20% do rendimento nacional”, explica Bethencourt. “De 1500 a 1860, dos 12,6 milhões de africanos arrancados das suas terras para alimentar o trabalho escravo nas Américas, 4,8 milhões foram levados pelos portugueses”, acrescenta o historiador. 

Por isso, quando o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa refere agora que “há acções que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isto”, está a afirmar algo que está bem documentado em termos de investigação histórica. 

Alberto Oliveira Pinto, historiador com dupla nacionalidade, portuguesa e angolana, autor entre outras obras, de uma História de Angola e de Angola e Retóricas Coloniais, considera “impossível” e “até uma coisa completamente absurda” estar hoje a fazer um cálculo do custo trágico da história. Para o luso-angolano, “em história não há pedidos de desculpas, nem há indemnizações do que quer que seja a longo prazo”. 

“Defendo há muitos anos que se deve ensinar a história de África, a história da escravatura nas escolas, e isso é que é importante, é o conhecimento. Estar a devolver património ou a pedir perdão ou a pagar dívidas, isso é uma coisa em que as pessoas no dia-a-dia não pensam, tem a ver apenas com certos interesses de ordem política”, acrescenta Oliveira Pinto. 

Epsy Campbell Barr, que foi a primeira mulher afrodescendente na vice-presidência da Costa Rica, e é a actual presidente do Fórum Permanente para Pessoas Afrodescendentes, concorda que é preciso ensinar a história — “de que adianta termos dez tomos sobre a História de África se eles não fazem parte dos textos obrigatórios [nas escolas]?” —, mas, em entrevista ao site da Geledés — Instituto da Mulher Negra, discorda no que diz respeito às reparações. 

Reparação é reconhecer o que a história nos negou. Não é algo novo, que a humanidade desconheça, porque já o fizeram em relação a outros grupos. A humanidade, quando reconhece que um grupo foi prejudicado, degradado ao extremo, toma decisões políticas, económicas, culturais que permitem devolver aos descendentes, às vítimas destes feitos históricos, os direitos que lhes foram negados”, explica Epsy Cambell Barr. 

Para a ex-vice-presidente costa-riquenha, “é mentira dizer que não se sabe como fazer a reparação, porque a mesma já foi feita para os judeus e para os japoneses”. Falta fazer isso agora em relação aos afro-descendentes. 

Debate por fazer em África 

As críticas das referidas organizações brasileiras em relação a Portugal advêm do facto de o debate no Brasil em relação a esta matéria ir bem avançado, até por ser o país com maior população negra fora de África, a quem o Estado deve a obrigação de repor séculos de injustiça. A cumplicidade brasileira nos crimes da escravatura era lembrada no sábado pelo historiador Luiz Filipe de Alencastro na BBC Brasil: “O país também deve assumir a responsabilidade, porque ele foi co-participante, ao lado de Portugal — e, depois da independência, sozinho —, da pilhagem dos povos africanos.” 

“Não é um debate muito intenso, mas está sempre presente em meios políticos e sobretudo universitários”, conta o angolano Jonuel Gonçalves, investigador da Universidade Federal Fluminense e do Iscte-Instituto Universitário de Lisboa. “As responsabilidades na escravatura e sua vigência por cerca de três séculos; o açúcar e o ouro exportados em larga maioria sem os correspondentes benefícios locais; e o pagamento pelo Brasil a Portugal de indemnizações para reconhecimento da independência” são temas essenciais de reflexão e crítica, diz Jonuel Gonçalves. 

Nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) esse debate é mais insípido e as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa terão apanhado de “surpresa” a maioria dos dirigentes, afirma o investigador. Emídio Fernando, jornalista luso-angolano, em entrevista ao podcast Na Terra dos Cacos do PÚBLICO, concorda: “Certamente que apanhou de surpresa porque os angolanos não estão minimamente preocupados com esta questão.” 

“Em Angola, não conheço nenhum movimento, nenhuma acção, nem artigos de opinião sequer e muito menos declarações de governantes” sobre aquilo que Marcelo Rebelo de Sousa referiu. Não se conhecem opiniões de que Portugal devia “pedir desculpa, ou ressarcir” os angolanos, garante o autor de O Último Adeus Português — História das Relações entre Portugal e Angola do Início da Guerra Colonial até à Independência. 

O Jornal de Angola admite a falta de reflexão sobre o assunto: “É verdade que em quase 50 anos de independência das ex-colónias, de liberdade e democracia em Portugal, nunca de um e do outro lado foi levantado este debate que divide opiniões, reacende certos ânimos e levanta inúmeras interrogações, mas sobre o qual urge fazer alguma coisa em nome da verdade histórica, preservação da memória e justiça.” 

Elísio Macamo, sociólogo moçambicano, especialista em Estudos Africanos da Universidade de Basileia, lembra, no mesmo podcast, que, “à primeira vista”, a questão da “reparação parece bonita”, só que, quando se “começa a reflectir sobre as suas implicações”, levantam-se “dúvidas”. 

O sociólogo, que em 2022 escreveu um artigo no PÚBLICO sobre o assunto, depois de o então primeiro-ministro António Costa ter pedido perdão pelo massacre português em Wiriyamu, defendia que “não era a África ou à América que Portugal devia desculpas, mas sim a si próprio”. Portugal é um país que se “define por certos valores e o colonialismo violou esses valores”, portanto, “num primeiro momento, devia ter havido um processo de descolonização dentro de Portugal”. 

Fácil de dizer, mais difícil de concretizar, concorda Macamo. Tudo depende de um processo político. Mas esse “não é um problema apenas de Portugal, é um problema de toda a Europa, que foi colonial”. Porque “em nenhum país europeu houve realmente um processo interno de reflexão sobre até que ponto esses países teriam traído os seus próprios valores”.

Crítica a Portugal 

Não “fica bem” estar “cada vez mais isolado” no “discurso negacionista” 

Declara extinta a escravidão no Brasil

 

Há uma alteração “palpável” no discurso público, garante a professora Ana Cristina Pereira, também conhecida por Kitty Furtado, em relação ao debate sobre as reparações históricas da escravatura e da colonização em Portugal. Para a investigadora da Universidade do Minho, uma das organizadoras, com a historiadora de arte Inês Beleza Barreiros, do IV Encontro de Cultura Visual: Reparações, realizado o ano passado no Porto, a “mudança vai-se fazendo muito lentamente”, mas o importante é que “a discussão está instalada”. 

Agora, com as declarações do Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, a discussão sobre as reparações devidas pelo colonialismo e a escravatura que se mantinha em meios académicos e entre o activismo, espaços mais ou menos restritos, saltou para a praça pública, para o circuito mainstream. É uma consequência, segundo Kitty Furtado, doutorada em Estudos Culturais, da “pressão de grupos activistas” e da pressão internacional. 

“Portugal vai ficando cada vez mais isolado num discurso negacionista e as autoridades também não andam a dormir, percebem que isso não lhes fica bem”, acrescenta, em declarações ao PÚBLICO. Dessa forma se pode explicar o pedido de desculpas do então primeiro-ministro António Costa sobre o massacre de Wiriyamu, em 2022, e a ordem do seu ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, para a inventariação de peças de origem duvidosa que poderiam ser devolvidas por Portugal às suas ex-colónias. 

Do encontro do ano passado na Mala Voadora saiu um documento, a partir de uma denominada “Oficina de Reparações”, onde participaram, além das organizadoras, a cantora e compositora Aline Frazão, o investigador e activista Apolo de Carvalho, a investigadora e directora do Buala Marta Lança, a poetisa e investigadora Ellen Lima Wassu (Pirá), a poetisa e investigadora Gessica Correia Borges e a actriz e marionetista Sara Henriques. Tendo contado com contributos do activista Mamadou Ba. 

O documento, denominado Declaração do Porto: Reparar o Irreparável, com 115 assinaturas, defendia a necessidade de “reconhecer a dívida histórica para com pessoas negras, ciganas/romae indígenas” e alertava para o facto de o 25 de Abril ter fechado as portas ao fascismo, mas ter deixado “várias janelas” que ficaram “escancaradas”, por onde “os saudosistas vão reavivando a sua memória colonial e (re)inscrevendo-a no espaço público”. 

“Que medo é que há desta discussão?”, pergunta-se Kitty Furtado. “A discussão tem de ser tida. E nós temos que aprender a lidar com este passado e com as consequências, no presente, deste passado. Porque, ao contrário do que se veicula, a história não fica no passado. Nós não somos outra coisa senão o resultado da nossa história. E as clivagens sociais, as diferenças, o racismo estrutural, está todo cá. E não acontece por acaso, é a consequência de uma história e do facto de lidarmos tão mal com ela.” 

Tanto para Kitty Furtado como para Francisco Bethencourt, professor do História no King’s College de Londres, que em 1991 organizou, com Diogo Ramada Curto, o livro A Memória da Nação (1991), a declaração de Marcelo Rebelo de Sousa “só peca por tardia”. Independentemente da forma como foi gerida pelo Presidente da República, que falou pela primeira vez da “obrigação” de Portugal “liderar” o processo de reparações aos países que colonizou durante um jantar com jornalistas estrangeiros, o que importa mesmo é ter falado publicamente sobre o assunto. 

Afirmação de Marcelo "só peca por tardia", diz Francisco Bethencourt
 

“Nunca há condições ideais para começar um debate desta natureza”, diz Bethencourt. Admitindo que tudo “podia ter sido feito de uma maneira mais pensada e, enfim, com alguma estratégia”, o mais importante agora é aproveitar. “É sempre a altura de pegar nas situações e tentar ver como é que se podem encontrar algumas soluções, os primeiros passos que se possam dar nesse sentido.” 

Aquilo que Portugal não pode continuar a fazer “é fugir” ao assunto, refere Bethencourt, “porque o país beneficiou da exploração colonial”. O Portugal “que temos hoje não nasceu do nada, foi resultado de toda uma história de que a exploração colonial fez parte”. 

E àqueles que dizem que isso é história, que devia ficar no passado, Kitty Furtado lembra que “a escravatura existiu em Portugal, em termos de práxis, até aos anos 1960. Sim, porque os contratados que iam trabalhar para as fazendas de café não eram outra coisa senão mão-de-obra escrava.” Não deixavam a sua terra, a sua família para ir trabalhar em condições infra-humanas de livre vontade. Eram escravos com outro nome. 

“Porque não se admite este passado e porque não se pede desculpas? É incompreensível”, acrescenta a investigadora da Universidade do Minho. Outros países “estão a lidar com o seu passado colonial, estão a devolver, estão a pedir desculpas – estão a reparar de alguma maneira e nós continuamos sem querer reparar nada, à custa dessa narrativa luso-tropicalista”. 

O primeiro passo a dar, como no caso dos indivíduos adictos, é reconhecer que “não há colonialismos bons”, como diz Kitty Furtado. Nenhum povo subjuga outro com flores. O segundo passo é parar de repetir que isso ficou lá atrás, enterrado no passado, porque, lembra, “os crimes contra a Humanidade são imprescritíveis”. “Isto não é uma ideia woke, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é de 1948. Não foram os identitaristas e culturalistas que a escreveram agora”, acrescenta. 

Como afirma Francisco Bethencourt, “o que Portugal tem a fazer é acabar com esta retórica passadista porque é uma vergonha para o país”. Porque se o país foi capaz de “absorver, de maneira digna, a quantidade enorme de pessoas que regressaram das colónias depois de 1975, uma das grandes realizações do país do ponto de vista social”, também tem de ser capaz de “absorver todos os aspectos do passado”. E entender de uma vez por todas que “não há nenhum país que tenha uma história impoluta”.

* Jornalista do jornal PÚBLICO, advogado e ex-membro do Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa