quinta-feira, 9 de maio de 2024

PICADA DE GOIÁS


Por PAULO PINHEIRO CHAGAS 
Transcrevemos o primeiro capítulo do livro ESSE VELHO VENTO DA AVENTURA: memórias, livro impresso na Editora Itatiaia Ltda, Belo Horizonte, 2ª edição revista e aumentada, 1977, pp. 3-11

 

A Alma dos homens é como a água.
O destinho dos homens é como o vento.
GOETHE
Ventos do mar, das velas, dos caminhos:
Vossa música incerta é a minha música,
Sois irmãos de minha alma inquieta e errante.
AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT
Nos teus poemas de cadências bíblicas
Recolheste os sons das coisas mais efêmeras:
O vento que enternece as praias desertas,
O desfolhar das rosas cansadas de viver,
As vozes mais longínquas da infância.
Os risos emudecidos das amadas mortas.
MANUEL BANDEIRA

 

Livro impresso na Editora Itatiaia Ltda, Belo Horizonte, 2ª edição, 1977


ESSA OLIVEIRA, tão presente nos foros de Minas, nasceu à beira de um caminho que demandava Goiás. O local era passagem obrigatória de quantos em sua marcha para o Oeste — o velho rumo da aventura — corriam atrás do ouro de Goiás e do ouro de Paracatu. Por aquelas bandas, aí pelos 1674, rompera com estrondo a gente de Fernão Dias. Mas a bandeira seguira para o norte, quase paralelamente ao São Francisco, em busca de esmeraldas e prata. Ia de olho nas pedras verdes e passara ao largo, sôfrega e inquieta, deixando à esquerda, fora do seu itinerário, a futura Oliveira. Não obstante, retida pela estação das chuvas, havia abivacado treze léguas aquém, fundando Ibituruna, "o mais antigo lar da pátria mineira", na palavra de Diogo de Vasconcelos, e onde plantou roças de cereais para seu próprio abastecimento. Anteriormente, por volta de 1669, essas paragens já tinham sido devastadas por outro paulista famigerado: Lourenço Castanho Taques — Lourenço, o Velho — que deve ter sido o primeiro homem branco a pisar terras de Oliveira. A esse façanhudo rompedor-de-mato, inveterado caçador de índio, ficou o bandeirismo a dever inestimável serviço. Empenhado em guerra de morte aos ferozes cataguases, veio batendo-os desde Conquista (atual Itaguara), Oliveira, Itapecerica, Pium-í, Araxá até a serra de Paracatu, depois denominada serra de Lourenço Castanho. Submetendo a bugrada a tiros de trabuco, abriu as portas do sertão, com a definitiva conquista do território central das Minas Gerais. O Sertão dos Cataguases, daí por diante, pôde ser talado por todos os bandeirantes, a começar por Fernão Dias. 
 
Mais tarde, em 1736, já no Setecentos, era aberta a Picada de Goiás, em cuja margem nasceria Oliveira ¹. De resto, a providência se impunha, tal o movimento por aqueles lugares e a necessidade de encurtar distâncias. O ouro de Goiás abrasava as imaginações. O segundo Anhanguera — filho do Diabo Velho, que subjugara o gentio com a ameaça de por fogo nos rios e nos lagos, e acabar com a água da terra — mantendo bem alto o panache das tradições paternas, fizera novas e grandes descobertas auríferas. Por tudo isso, a Picada de Goiás estava fadada a um grande destino. Nascera da aventura e da ambição e resultava num rosário de cidades, florescendo à sua beira. Aliás, esse problema da Picada de Goiás é altamente polêmico, no que diz com sua localização. Waldemar de Almeida Barbosa ², que pesquisou demoradamente o assunto, chegou a conclusões interessantes. As picadas abertas na mesma época eram duas. Uma, vinda de São João del-Rei, passava por Bambuí e serra da Marcela; outra saía de Pitangui e transpunha a serra da Saudade. Ambas iam dar em Paracatu, onde se fundiam todos os caminhos para Goiás. Isso sem falar em um sem-número de atalhos, cruzando em todas as direções o solo das Gerais. No entanto, a velha Picada de Goiás tinha, aproximadamente este percurso: saía de São João del-Rei e, infletindo para o ocidente, ou melhor, para noroeste, atravessava Santiago, Morro do Ferro, Oliveira, Formiga, Bambuí, Ibiá, Serra do Salitre, Patrocínio, Coromandel, Guarda-Mor, Paracatu. Obviamente, estas cidades ainda não existiam. O que havia no lugar delas eram pousos ou arraiais insignificantes. 
 
O Sertão dos Cataguases foi, desse jeito, vasculhado pelas bandeiras que vinham de São Paulo. As esmeraldas, a prata e o ouro eram a força motivadora de tanto afã. Os aventureiros, que romperam pelo Oeste de Minas — uns seguindo para o norte na rota de Fernão Dias, outros para o poente, através da Picada de Goiás — iam todos eles em corrida desesperada atrás de uma quimera, a "serra mui formosa e resprandescente", de que falava Gandavo, e em cujas abas dormia "a azul Vupabuçu", a lagoa romântica e fatal. A serra enfeitiçada seria a de Sabarabuçu, a "pedra-grande-que-resplende"? É de supor que ela fosse a um tempo a Serra da Prata, a Serra das Esmeraldas, a Serra do Ouro ³. Alguns índios a tinham visto toda branca, argêntea, prateando ao sol e ao luar (como uma torre branca e muito alterosa, escreve Walter Raleigh); outros diziam que ela era verde, fulgindo com os resplendores verdes, fulgindo com os resplendores verdes de suas esmeraldas; e os que garantiam ser ela toda dourada, com seu ouro rebrilhando na mataria como um "Sol-da-Terra"? E havia ainda uma outra, a serra dos Martírios, nos longes de Goiás, com suas fabulosas minas de ouro. É de ver, assim, que os sertões do oeste mineiro, ao modo de almenaras, atraíam o bandeirante para as duas serras lendárias, misteriosas e inatingidas: a de Sabarabuçu e a dos Martírios. 
 
Campo Grande da Picada de Goiás e de Campo Grande da Travessia de Goiás ou simplesmente Picada de Goiás teriam sido os primeiros nomes de Oliveira, tese recentemente contestada pelo historiador Waldemar de Almeida Barbosa:
A menção de "Picada de Goiás" e de "Campo Grande", expressões usadas nas primeiras sesmarias, levou alguns autores a outro equívoco: o de supor que estes tinham sido os primitivos nomes de Oliveira. Ora, Picada de Goiás era a designação escolhida para todas as sesmarias situadas nas vizinhanças daquele caminho, desde São João del-Rei até Paracatu: da mesma forma, Campo Grande era expressão designativa de toda a vasta região que ia de São João del-Rei até Goiás, ou melhor, até o Alto Paranaíba. Salvo engano, foi José Joaquim da Silva o primeiro a cometer o equívoco, escrevendo: "A povoação da Oliveira, denominada antigamente Picada de Goiás" (Tratado de geografia descritiva especial da província de Minas Gerais, 1878).
Em outros termos, a Picada de Goiás era uma sorte de testada das diversas sesmarias daquele sertão. Oliveira, o nome atual da cidade, é o ponto nevrálgico de uma velha controvérsia. Para uns, empolgados pelo rigorismo histórico, a origem do topônimo estaria no fato de os portugueses ao penetrarem o sertão, irem erguendo ermidas, capelas ou simples oratórios com os oragos de sua devoção trazida de Portugal. Para outros, o nome proviria, romanticamente, de uma desilusão amorosa. Onde a verdade? Na tradição da história ou na tradição da lenda? Demais, nem sempre é fácil estabelecer com precisão estes limites: onde acaba a lenda e começa a história ou, ao reverso, onde acaba a história e começa a lenda. E como desconhecer o fato, deveras relevante, de que a lenda também faz a história e de que a história também faz a lenda? Com referência à origem do nome de Oliveira, é bem patente essa dicotomia de opiniões. Waldemar de Almeida Barbosa , preso ao formalismo histórico, explica: 
Com relação a Nossa Senhora da Oliveira, incluída entre as devoções mais comuns trazidas de Portugal, era padroeira dos oficiais confeiteiros, carpinteiros de carruagens e de carros em geral e dos picheleiros, os quais constituíam, em Portugal, um dos onze ofícios embandeirados, isto é, com direito a bandeira. Augusto de Lima Júnior, em História de Nossa Senhora em Minas Gerais, depois de mostrar a antiguidade da devoção a Nossa Senhora da Oliveira, em Portugal, escreve: "Traziam os povoadores de Minas, nos primeiros tempos do desbravamento, pequenas imagens dos padroeiros ou oragos de suas aldeias natais, diante dos quais haviam começado a levantar suas almas e mãos para o céu." E aqui, nos sertões onde se fixavam, construíam sua capela, dedicando-a a Nossa Senhora ou ao santo de sua devoção. O mesmo autor cita, a propósito, entre outros, o arraial de Nossa Senhora da Oliveira do Itambé do Mato Dentro, de Nossa Senhora da Oliveira do Piranga, além daquele que deu origem à atual cidade de Oliveira.
Já Gonzaga da Fonseca  encontra a razão do topônimo em antigas tradições locais. Foi o caso que um tal Manoel de Oliveira, de origem portuguesa, vindo de Brumado, de onde cavalheirescamente partira para não disputar com o irmão mais velho o amor da mesma donzela, por quem ambos se haviam apaixonado, arranchara à beira da Picada de Goiás. Aí se estabeleceu e casou. A breve trecho, esse singelo rancho de tropeiros adquiria ares de hospedaria, que o tempo tornaria a mais famosa daquelas lonjuras. Com sua morte, a viúva, Maria de Oliveira, tomou as rédeas da casa e, a duras penas, projetou ainda mais o negócio. Ao cabo de algum tempo, a amável estalajadeira se fazia conhecida por aquelas paragens. O "pouso da Oliveira" transformara-se em pouso predileto e forçado de quantos transitavam pela Picada. À sua volta nasceu a cidade, esspraiando-se morro acima. Nesse episódio romântico se inspiraram os poetas para cantar as origens municipais. Como historiador, escreveu Gonzaga da Fonseca: 
Oliveira é, pois, filha de uma paixão, pelo seu lado toponímico. Topograficamente, provém de sua geografia privilegiada. E, historicamente, nasceu dum arremesso para o Oeste.”
E como poeta diria, num belo soneto: 
 
Passando outrora, aqui pelas picadas 
Abertas rumo do rincão goiano, 
Quantos pousavam, frouxos das jornadas, 
No rancho da Oliveira, bom e lhano. 
 
E desse transitar febril e insano, 
Foram surgindo, ao lado, outras pousadas, 
Entre alas de casinhas de ar serrano 
— Em cidade, mais tarde transformadas. 
 
Pousos se foram... vêm os palacetes; 
Ei-los galgando o aclive das colinas, 
Ao som de sinos, músicas, foguetes... 
 
E assim nasceu, um tanto régia e agreste, 
Esta flor nívea dos vergéis de Minas 
Ao sopro de arremessos para o Oeste! 
 
Outro poeta, Geraldo Ribeiro de Barros, pensando em escrever o Hino do Centenário de Oliveira, com música de Ângela Maria Patrus, assim falaria: 
 
Nascente da encruzilhada 
para o rumo do sertão, 
E cresceste imaculada 
sob a santa proteção. 
 
Ao caminhante cansado 
abrigaste com carinho. 
Era teu fado, esse fado: 
servir de pouso e de ninho. 
 
Não obstante, o Hino do Centenário de Oliveira, oficialmente reconhecido pela Câmara Municipal, em 5 de junho de 1961, é de autoria de Batista Gariglio, musicado pelo padre Raimundo Nascimento Teixeira, como se vê por este trecho: 
 
Oliveira da antiga picada 
Demandando o sertão de Goiás. 
Oliveira, terra abençoada, 
De trabalho, de amor e de paz. 
 
Oliveira que à sombra da cruz 
E da Virgem Maria cresceu. 
Oliveira, que a todos seduz, 
És a graça provinda do céu. 
 
Salve, salve Oliveira, 
Salve Olivia Speciosa, 
Linda ciade mineira, 
Salve ó terra dadivosa. 
 
Aliás, em outra oportunidade, Batista Gariglio , em versos livres, evocou a estalajadeira famosa, "revivendo Maria que foi o início da bela Oliveira": 
 
De braços abertos 
Maria esperava, 
Maria atendia, 
Maria agradava 
com festa nos olhos 
e no coração. 
Maria Oliveira 
que a todos queria, 
que a todos amava. 
Surgiu a pousada 
dos bons Oliveira, 
para os viajantes, 
ricos e pobres, 
pretos e brancos, 
do norte ou do sul, 
de um lado ou do outro. 
 
A história e a lenda, ambas bem estruturadas na tradição, se irmanam na explicação do topônimo. Nossa Senhora de Oliveira deu à cidade um sentido de grandeza, de dimensão e de eternidade, robustecendo a fé católica do seu povo. E o "pouso da Oliveira" popularizou o nome, ao tornar-se o fogo, o lar, a lareira daqueles rijos aventureiros do Oeste.
 
*
  *     * 
 
Com o correr dos anos, a Picada de Goiás se tornava em uma espécie de Via Appia do sertão. Valia por um marco na arremetida do Brasil, em sua Marcha para Oeste. Estuava de vida, fervilhava de gente. Enquanto durou o ciclo das bandeiras, foi o mais batido caminho desses duros conquistadores do setecentismo. Por ela, transitavam os caçadores de ouro, à cata das minas, e os caçadores de homens, que iam prear o bugre. Era gente de toda espécie: portugueses, paulistas, judeus, ciganos, aventureiros, flibusteiros, mulheres de vida fácil, colonos, escravos, índios pacificados, mascates, brancos, negros, mulatos, mamelucos. Mesmo com a exaustão das lavras e descobertos, e consequente decadência da mineração, continuou intenso o trânsito na Picada. Por ela passavam, em tristes e extensas caravanas, com destino ao trabalho forçado, levas e levas de escravos, comprados nos mercados do Rio e que seguiam aguilhoados como animais, gemendo sob o chicote dos comboieiros. Iam e vinham outros caminheiros, novos sertanistas. Bufarinheiros e salteadores. Reinóis e paulistas. Tropas e boiadas. Contrabandistas e "mulatas de partes, mulatas de mau viver", segundo o anátema do casto Antonil. Cargueiros e rebanhos, Muladas e burramas. E os tropeiros, e os tropeiros, e os tropeiros. 
 
Desse jeito, foi ao derredor do "pouso da Oliveira", na velha rua dos Cabrais, que começou a cidade, desde o início afamada por seu clima. "A terra em si he de muytos bons ares, assim frios e temperados", para usar o estilo de Pero Vaz de Caminha. Sucessivamente capela, curato, freguesia, paróquia, já em 1840 era desmembrada do município de São José del Rei (atual Tiradentes) e guindada à condição de vila. À categoria de cidade era elevada em 1861. E sete anos depois recebia os foros de comarca, separada da do Rio das Mortes. Era então um vasto município. Cabeça da comarca de Nossa Senhora de Oliveira, como passara a se chamar, tinha, à época, doze distritos: os atuais municípios de Nossa Senhora do Carmo da Mata, Nossa Senhora da Glória de Passa Tempo, Nossa Senhora do Carmo do Japão (hoje Carmóplis), Nossa Senhora da Aparecida do Cláudio, Santana do Jacaré, São João Batista (hoje Morro do Ferro), Santo Antônio do Amparo, Nossa Senhora do Bom Sucesso, Perdões e Canaverde. A propósito, observou Nélson de Sena  o fato sugestivo de serem dados os nomes de santos, especialmente o da Virgem, a Oliveira e seus distritos, e o fato pitoresco da origem asiática destas designações: distrito do Japão e estação da Tartária, esta no caminho de Bom Sucesso. 
 
Descoberto o seu território por Lourenço Castanho Taques, em 1669, sua colonização começa aí pelos 1752. A igreja da Matriz teve a sua construção iniciada por volta de 1785, pelo padre Bonifácio da Silva Toledo, ajudado por seu parente Nicolau Francisco Toledo. De começo, era a capela de Nossa Senhora de Oliveira, já então padroeira da cidade. Aliás, lá está no frontispício da atual Igreja da Matriz a clara legenda, buscada no Ecclesiastes, cap. XXIV, v. 19: Quasi oliva speciosa in campis, a saber, "como uma bela oliveira nos campos". Esse padre Bonifácio da Silva Toledo era parente de Carlos Correa de Toledo e Melo, presbítero do Hábito de São Pedro e Vigário Colado da Freguesia de Santo Antônio da Vila de São José del Rei, um dos chefes principais da Inconfidência , levado ao infortúnio por um dos delatores da conspiração, o Mestre de Campo Inácio Correa Pamplona, que o denunciou (saliente-se que os três delatores da Inconfidência eram portugueses). Uma amizade de longa data levara o vigário da Vila de São José del Rei a contar-lhe os planos da sublevação. Dessa amizade há uma prova eloquente na carta do Padre a Pamplona, por sinal datada de Oliveira, onde andava em visita pastoral ¹. Nela, dando notícias do estado da Igreja em Tamanduá (Itapecerica), abre-se com o amigo:
Estes são os termos em que me acho e sem que algum experimente o quanto... (palavra ilegível) o braço de quem nos governa, quer eu quer Vmcê sofreremos muito mais do que temos sofrido. Eu tinha obrigação de dar esta parte a Vmcê a quem desejo boa saúde e muitas felicidades, como quem é, de Vmcê Amº e obrigadíssimo Capelão Carlos Corrêa de Toledo e Melo. Oliveira, 14 de outubro de 1782.
Homem de grande bravura, Carlos Correa de Toledo e Melo quis reagir mesmo após a descoberta do levante, exclamando: 
mais vale morrer de espada na mão do que como carrapato na lama.”
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  *     * 
 
O austríaco Dr. Pohl e o barão de Eschwege, de passagem por Oliveira, nada viram digno de nota. Já Saint-Hilaire, em 1819, foi menos pessimista e fez observações interessantes, sobre o arraial nascente, escrevendo, com propriedade, que Oliveira 
pertence ao pequeno número das povoações, que não devem sua fundação à presença do ouro; deve-a unicamente às vantagens de sua posição. Com efeito, diversas estradas importantes passam por este ponto ¹¹.”
As palavras do sábio francês valorizam a afimativa de que Oliveira é filha de uma encruzilhada. Hoje, como ontem, o seu território está recortado de estradas. E não seria esta uma das razões por que a cidade possui um tão vivo sentimento democrático? A estrada é democrática até por definição. Aliás, já notara Vítor de Azevedo que 
a democracia se extinge ou se estiola, em qualquer meridiano que seja, pela ausência de vias fáceis de comunicação, que são os seus vasos sanguíneos ¹².”
Ora o objetivo destas notas é tão somente fixar o fato relevante de que Oliveira estava talhada para grandes destinos. Já em 1909, Nélson de Sena escrevia que "a cidade era uma das mais cultas do Estado". Na verdade, de seu seio sairiam grandes figuras, algumas de repercussão internacional, sem falar no grande número de seus filhos ilustres, brilhando nas mais diversas profissões e diferentes misteres. A cultura projetou Oliveira e a política fez a sua grandeza. Sua economia, com base no pastoreio e na agricultura, nada tem de pujante, como é de vezo neste estranho país, onde o campo e suas implicações nunca foram lá objeto de maior preocupação oficial. Ferrenhamente apegada à propriedade imobiliária, que gera a aristocracia, seus fazendeiros se constituíram numa sorte de nobreza sem títulos nobiliárquicos, nobreza econômica, com acentuada predominância na política municipal. Essa aristocracia rural sem brasões, fundiária por origem e escravocrata por necessidade, faria de Oliveira um dos mais intensos empórios de escravos, em todo o Oeste de Minas. O tráfico teve ali um movimento inusitado. E um dos maiores comboieiros da região foi muito precisamente o meu trisavô... Mas isso são águas passadas. Naquele tempo, a mão-de-obra só podia ser buscada no mercado africano. Os homens, que estão nos começos de Oliveira, provêm daquela velha cepa, onde se forjaram as virtudes assinaladas dos povos das Gerais: a pureza dos costumes, a lhaneza no trato, o acatamento à palavra empenhada, a tradição hospitaleira, o horror ao arbítrio, tudo aquilo, em suma, que levaria Saint-Hilaire a evocar "os meus bons mineiros" e Torres Homem a defini-los como "varões singelos e grandes". De resto, aí estavam a geografia e a história a inserir, nas tradições de Oliveira, um ideário de grandeza. Em suas plagas, num raio de poucas léguas, se haviam passado acontecimentos relevantes. Ali, Ibituruna e Santana do Paraopeba, os dois primeiros arraiais fundados em Minas, lembravam as figuras legendárias de Fernão Dias e Borba Gato. Aqui, na atual Itaguara, Lourenço, o Velho, em batalha decisiva, derrotara os Cataguases, impondo a paz nas Gerais e limpando o caminho para os conquistadores do sertão. Acolá, no Rio das Mortes, se dera o mais sério entrechoque entre Paulistas e Emboabas, nessa primeira reação nacionalista de Minas. E o sangue generoso dos trezentos paulistas, trucidados no Capão da Traição, como que adubou aquelas terras para os dias do futuro. Pois nas sua imediacões se situava a Fazenda do Pombal, onde nasceria o Tiradentes. 
 
Dentre os ventos, que sopram de Oliveira, um tem algo de misterioso. Nasce no Diamante, o ponto culminante do município, a mil e duzentos metros, de onde se divisam, a perder de vista, a rechã e os vastos chapadões em derredor. A propósito, Gonzada da Fonseca, o minucioso historiador de Oliveira, assim fala: 
Há aqui um vento noturno, chamado "vento do Diamante", que costuma surgir de repente, às nove horas da noite. É sempre anunciado por um arrepio nas franças e, quando desce aos troncos, já virou ímpeto. Logo as ruas se despovoam e as casas vão se fechando. É impressionante escutar aquele uivo nas árvores e nos jardins, em horas mortas. Também como surgiu, assim desaparece: inesperadamente.
Deus louvado, esse é um dos ventos de minha vida. E é como se ainda o escutasse, uivante e desabusado, apavorando a noite sertaneja. Não, ele não vem do Diamante. Vem de mais longe. Tremulou a bandeira dos desbravadores. Colheu os gemidos dos escravos nos troncos. Acompanhou a toada dos tropeiros, cantando pelas estradas. Ouviu o retinir de espadas e os tiros de trabuco, ecoando pelas quebradas. Beijou a face gelada daqueles cadáveres do Capão da Traição. E veio vindo, aos pulos, pelas escarpas, enchendo-se de vozes, de gritos e de soluços, rolando o seu desespero e a sua aflição. Vento de minha infância, vento resmungão, vento que veio ventando e se mandando por esse mundo largo sem porteira...
 
NOTAS EXPLICATIVAS
 
¹ L. Gonzaga da Fonseca, História de Oliveira, 1961. A obra, concluída em 1942, foi atualizada em 1961 por dois outros escritores, intimamente vinculados ao patrimônio intelectual de Oliveira: Honório Silveira Neto e Geraldo Ribeiro de Barros. 

² Waldemar de Almeida Barbosa, A Decadência das Minas e a Fuga da Mineração, Belo Horizonte, 1971, [pp. 76-96].

³ Paulo Setúbal, El-dorado, Edição Saraiva, São Paulo, 1950 [pp. 77-78].

Waldemar de Almeida Barbosa, Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1971 [p. 324].

Waldemar de Almeida Barbosa, op. cit. [p. 325].

L. Gonzaga da Fonseca, op. cit. [pp. 63-66].

Batista Gariglio, Minha História de Oliveira, in Gazeta de Minas, 29 set. 1968.

Nélson de Sena, Anuário histórico-geográfico de Minas Gerais, Ano III, 1909.

L. Gonzaga da Fonseca, op. cit., p. 334, afirma que o padre Bonifácio era irmão do Inconfidente, o que não passa de um equívoco do historiador de Oliveira.

¹Waldemar de Almeida Barbosa, A Decadência das Minas e a Fuga da Mineração, Belo Horizonte, 1971 [p. 122] (Carta colhida em Documentos Avulsos, do Arquivo Público Mineiro).

¹¹ Saint-Hilaire, Voyage Aux Sources du Rio S. Francisco et das la Province de Goyaz.

¹² Vítor de Azevedo, Feijó — Vida, Paixão e Morte de um Chimango.

6 comentários:

João Paulo Guimarães (diretor de produção audiovisual e influenciador digital da TV DelRei, cobrindo muitos momentos históricos da cidade de São João del-Rei) disse...

Muito grato.
É um livro muito interessante.
Eu o possuo.

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Valiosa narrativa histórica para a progressista Oliveira, com suas dimensões tanto trágicas quanto épicas.
Cumprimentos pela publicação de Pinheiro Chagas.
Cupertino

Heitor Garcia de Carvalho (pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008) disse...

Fantástico! Obrigado!

Eu nasci nas 'margens do S. Francisco", então chamada "Porto Real do S. Francisco"
Até a construção da barragenm de Três Marias era a única passagem a atravessar o rio a caminho de Goiás.
O meu tataravô foi quem importou uma ponte de ferro para que o trem (antiga Rede Mineira de Viação) atravessasse aquele rio para Goiás. Até hoje toda a gasolina e diesel que vai para Brasília, Goiás,
Mato Grosso, é transportada por esta estrada de ferro (cujo nome mudou...)

Mario Pellegrini Cupello, Arquiteto, Diplomado em Direito, Escritor, Presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto, Membro Correspondente do IHG de Minas Gerais, entre outras importantes instituições culturais de Minas. Membro Efetivo da Academia Valencia de Letras, onde participou da diretoria por mais de 12 anos sucessivos. Disse: disse...

Caro amigo e Maestro Braga
Agradecemos pela gentileza de mais esta postagem, desta feita sobre o primeiro capítulo de um livro de memórias, de autoria de Paulo Pinheiro Chagas.
Lemos com grande atenção e prazer sobre o histórico da cidade de Oliveira, que de nome já conhecíamos através de relatos de um estimado e importante amigo, que durante alguns anos foi Bispo Diocesano de Oliveira, Dom Francisco Barroso Filho, atualmente Bispo Emérito e residente em Ouro Preto, servindo até hoje à Basílica de Nossa Senhora da Conceição.
Foi muito bom conhecer a história do nascimento de Oliveira, cidade que eu e Beth sempre quisemos visitar: um dia ainda iremos lá.
A propósito, entre tantos outros importantes empreendimentos, além de suas atividades pastorais, Dom Barroso foi o fundador -– quando ainda era padre -- do famoso Museu Aleijadinho, em 1968, reunindo peças de arte sacra e documentos gráficos com a finalidade de conservar, preservar e difundir o precioso acervo da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, no Bairro de Antônio Dias, em Ouro Preto, quando ele era Pároco dessa Igreja.
Homem dinâmico, também fundou o “Coral e Orquestra São Pio X”, além de fazer parte do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Mariana, entras outras atividades...
Quando for possível apreciaríamos receber o segundo capítulo do livro, “Esse velho vento da aventura”, de Paulo Chagas, pelo que desde já agradecemos.
Cordiais saudações, minhas e de Beth.
O amigo Mario Cupello

Afrânio Vilela (desembargador do TJMG desde 2005, atual Ministro do STJ) disse...

Precioso texto, de cultura e fidedignidade. E ainda mencionou Ibiá! 👏🏻👏🏻👏🏻

Danilo Gomes (escritor, jornalista e cronista, membro das Academias Mineira de Letras e Brasiliense de Letras) disse...

Mestre Braga, é sempre bom reler PAULO PINHEIRO CHAGAS, cujo livro de memórias li, com grande encantamento. Parabéns !!! Conheci o Dr. Paulo, conversei com ele algumas vezes, na Livraria Itatiaia, década de 1960. Muito simpático e amável. Gostava de um bom uísque. Abraço do Danilo Gomes.