domingo, 14 de julho de 2024

“A raiva é uma perda de tempo”


Por LUCIANA LEIDERFARB *
Transcrevemos com a devida vênia da Revista do EXPRESSO , na coluna ENTREVISTA, matéria publicada na edição nº 2698, de 12/07/2024, pp. 38-44.
Acorda de manhã e pensa: “Ainda estou aqui.” Porque esteve para não estar. Após o atentado de agosto de 2022 e da longa recuperação, o escritor quer apenas uma vida mais privada. Em exclusivo, conta ao EXPRESSO como nasceu “Faca”, o livro-catarse que era preciso escrever. A fotografia foi feita pela sua mulher, a poetisa Rachel Eliza Griffiths. 

Crédito pela foto: Rachel Eliza Griffiths

 

Se não fosse a sorte, ele não contava a história. Se não fosse a “incompetência do utilizador” da faca, ou se o clima não favorecesse o transporte por helicóptero para o hospital, ou se o seu corpo não tivesse uma capacidade de recuperação fora do vulgar  todos os médicos o disseram , esta conversa não teria acontecido. Sobretudo, Salman Rushdie não teria escrito “Faca”, por cá lançado em maio pela D. Quixote, onde narra com total pormenor a vulnerabilidade de um corpo que hoje vive mais consciente de si mesmo. Ele é também corpo, e talvez no futuro esse seja um tema a desenvolver. Por enquanto, o escritor indo-britânico-americano senta-se ao computador e deixa-se ficar por lá. Aos 77 anos, planeia com a mulher, a também escritora e poetisa Rachel Eliza Griffiths, a festa do seu 100º aniversário. Tendo perdido grandes amigos nos últimos tempos e quase perdido a própria vida em agosto de 2022, vê-se a ter uma existência mais privada. Provavelmente ao pé de um rio e de uma árvore, com um bloco de notas na mão. “Penso que, durante um tempo, o mundo não precisa de ouvir falar de mim.” 

No seu livro, há momentos extremamente comoventes e agudos. É uma forma de dizer obrigado? A quem? 
Tenho muita gente a quem agradecer e essa é certamente uma das razões para o livro existir: dirigir-me a todos aqueles que trabalharam para me salvar a vida. Isso era algo que queria reconhecer, o esforço do público no próprio evento onde tudo aconteceu, o do pessoal médico nos hospitais e o da minha mulher e família. Se hoje estou aqui, é graças a um imenso empreendimento coletivo. Teria sido ridículo não dizer obrigado. É importante dizê-lo.
  
É importante ter a quem o dizer?  
Sim, e muitas são pessoas que não conheço, que não reconheceria na rua se me cruzasse com elas. E, no entanto, devo-lhes a minha vida, o que é algo muito estranho. 
  
Qual foi a dificuldade de escrever “Faca” e quanto tempo demorou? 
Foi difícil, mas é sempre. Os livros são sempre difíceis de escrever, cada um à sua maneira. O ataque foi em agosto e devo tê-lo iniciado em fevereiro ou março, portanto, uns seis meses depois. Levou-me uns dez meses a escrever. Não se trata de um livro enorme, sempre senti que não podia ser extenso, mas sim intenso, claro e rápido. Foi muito duro começar, sobretudo o primeiro capítulo, onde me obriguei a descrever tudo com o maior detalhe de que fui capaz. Essa parte foi complicada, porque a minha própria memória do ataque é muito fragmentária. 
 
Mas é incrível o quanto se lembra do que lhe aconteceu. 
Muito disso foram relatos feitos por outras pessoas. Portanto, não é apenas a minha memória que está envolvida nesse capítulo. Foi preciso fazer uma espécie de collage da minha memória com a dos outros para poder redigi-lo. Por isso avançou tão lentamente. Por outro lado, eu não conseguia escrever muito num dia — era emocionalmente esmagador. Depois de ultrapassar o primeiro capítulo, tudo se tornou mais simples. Uma das coisas que me acontecem na escrita de qualquer livro é que o livro acelera à medida que avanço, então o último terço do livro flui muito mais depressa do que o primeiro terço. Isto foi sempre assim, é o normal no meu caso. O livro adquire o seu próprio momentum. “Faca” saiu há alguns meses e tenho andado a falar dele pelo mundo. Não é um livro sobre o qual seja fácil falar. Todo o processo de escrita e de publicação tem sido muito exigente. 
  
Disse que este livro era um passo necessário para avançar. Antes dele, em algum momento pensou que deixaria de escrever? 
Sim, pensei que isso poderia ocorrer, especialmente nos primeiros seis meses. Acima de tudo, porque não estava fisicamente em condições de me sentar à secretária. Durante bastante tempo, escrever não foi sequer um assunto. Mas houve um período após o ataque em que me senti bastante deprimido e, nessa altura, foi até fácil imaginar que seria quase impossível voltar a escrever ou a criar alguma coisa através da escrita. Depois, um dia, esse impulso regressou. É o que faço, o que sou. E seis meses após o ataque, quando me sentia melhor e já estava aqui em casa, chegou o momento em que pensei: deixa-me sentar à secretária e ver o que acontece. Estava sozinho, a refletir tranquilamente: “Ok, vou apenas sentar-me nesta cadeira e olhar para este computador.” 
 
E escreveu? 
Não pude escrever nada. Mas fiz outra coisa. Sabe, tenho uma pasta no computador onde guardo todo o tipo de fragmentos e ideias que podem vir a interessar-me. Por vezes são só pequenos apontamentos ou frases, ou então ideias que podem resultar em projetos maiores. Sempre conservei esta espécie de ‘depósitos’, com materiais em uso. E quis espreitar para ver se havia algum de que gostasse. Esse gesto mostrou-me basicamente que não conseguia sequer pensar nessas coisas, que era até absurdo estar a ler aquilo quando havia um grande assunto a olhar-me fixamente.
  
Um elefante na sala? 
Era uma coisa de tal dimensão que teria sido insensato pô-la de parte e não lhe dar atenção. Compreendi que a única forma de a ultrapassar era passar por ela.  
 
O livro é menos sobre o ódio do que sobre o amor. Concorda? 
Totalmente. A grande pergunta que tive de fazer a mim próprio foi: sobre o que é este livro? Porque se fosse apenas sobre o ataque, poderia tê-lo escrito em 10 ou 12 páginas. Portanto, há um livro aqui? E se há, qual é? A resposta a isto é a seguinte: o livro existe para dizer a mim mesmo que a força do amor se opõe à da violência e do ódio. Comecei a pensar no livro como um triângulo comigo num dos vértices, o atacante noutro representando o ódio e a minha mulher no terceiro simbolizando o amor. Não se tratava de nós enquanto indivíduos, mas das forças que através de nós entravam em combate. Essa figura permitiu-me perceber como havia de o escrever. Nela, o amor é muito importante. 
 
Chega a dizer que sentir a raiva parecia uma espécie de luxo. 
Uma das coisas que mais me impressionou e que continua a impressionar-me é que, imediatamente após o ataque, quando estava deitado e entubado na cama do hospital, o que eu sentia não era raiva. Não é estranho? Que de todos os sentimentos que experimentei numa fase obviamente muito emocional e de emoções muito diversas, não só dentro de mim como à minha volta, a única ausente fosse a raiva? Isso surpreendeu-me, levou-me a interrogar sobre o porquê. E a resposta é que tenho coisas mais importantes para fazer. A raiva é uma perda de tempo. De alguma forma, a minha mente, o meu inconsciente, sabia disso e apagou-a. Ainda sinto muitas coisas a respeito do homem que me atacou, entre as quais desprezo. Mas, apesar de não ter uma disposição amável a respeito dele, não me sinto zangado. Sinto-me displicente. E penso que este livro me ajudou a desdenhá-lo. Deixou de ser um tema.
  
Várias vezes expressou estar mais interessado em escrever sobre a felicidade do que sobre a infelicidade. 
Escrever sobre a felicidade é muito difícil. Porque não é uma condição permanente, que simplesmente se possui. A felicidade vai e vem. Não é como a justiça, não é um modo de estar ou de ser. É algo que, com sorte, se sente de tempos a tempos, ao contrário de outras emoções, como a tristeza, que são mais duradouras.  
 
A sua ideia de felicidade modificou-se com o atentado? 
De certa forma, sim. A minha vida tem sido bastante pública, teve sempre essa dimensão, talvez até mais do que noutros escritores, devido a tudo o que me aconteceu. E ao longo de muito tempo esse foi o modo como fui obrigado a viver. Agora, ao fazer-me a pergunta sobre a felicidade, creio que ela consiste em proteger a minha vida privada. Tudo o que quero é sentar-me debaixo de uma árvore, à beira de um rio, com um bloco de notas. E ver o rio correr. Isso seria suficiente.
  
Mas a parte pública ainda está lá. 
Sim, mas não estou interessado nela. Acabei de fazer 77 anos, não sei quantos ainda tenho pela frente, espero que muitos. E o que quero para eles é paz. Em 2023, na Alemanha, deram-me o Prémio da Paz da Feira do Livro de Frankfurt. Na altura pensei: que bom seria receber paz como prémio. Silêncio, um rio e talvez um copo de vinho. 
 
Gostava de falar da palavra ‘faca’, que descreve como uma forma de intimidade. É por isso que o livro é tão físico? 
É capaz de ser, sim. Um ataque à faca acontece muito perto. Uma arma de fogo pode estar longe, mas uma faca vem diretamente contra nós. Desde aquele dia, tenho estado mais conectado com o meu corpo do que alguma vez estive. Um atleta, por exemplo, está constantemente ciente e a interagir do seu corpo. Precisa de estar atento a tudo o que se passa nele, seguir uma dieta adequada, porque o corpo é o seu instrumento — é o que lhe permite ser quem é. Mas um escritor não tem essa relação. Muitas vezes, os escritores são até bastante negligentes com os seus corpos. O corpo limita-se a estar sentado na cadeira e tudo o que é relevante acontece na cabeça. A nossa vida é a mente, não o corpo. Isto é algo que mudou em mim desde o ataque, quando pensei que o meu corpo estava a morrer e a levar-me com ele. Desde então, tornei-me tão fisicamente consciente de ser este corpo! Essa consciência é sobretudo causada por danos físicos persistentes. O meu olho direito não está lá e não é fácil lidar com isso. A minha mão esquerda (mostra-a no ecrã) só consegue fazer certos movimentos, mas perdeu sensibilidade e não é como costumava ser. A minha boca não se move como antes e fiquei com muitas cicatrizes. No fundo, as lesões recordam-me de forma diária a conexão com o meu corpo, e isso é interessante. Sou da opinião de que tudo se transforma em algo, tudo o que acontece a um escritor acaba por se tornar objeto de escrita. Não sei ainda em que é que esta consciência do corpo se vai transformar, mas poderá ter algum efeito no que escrever a partir de agora. Posso vir a estar mais interessado nas coisas do corpo. 
  
Uma faca também pode significar ‘irmandade’, por exemplo, com outros escritores como Beckett ou Mahfouz, certo? 
Pois, achei que isso era estranho, poder fazer uma lista de autores que foram esfaqueados. Depois obriguei-me a parar, porque isto não é propriamente um clube seleto. Por outro lado, as facas foram objeto de literatura de Borges a Kafka, portanto, há muito material de referência. Houve uma altura, quando estava a planear o livro, em que me interessei pela utilização da faca na arte, na literatura. Creio que o aspeto principal se resume a uma frase que escrevi: a própria linguagem é uma faca. A linguagem é um modo de cortar o mundo, abrindo-o e revelando-o. E pensei que, se tivesse de me defender, essa seria a minha arma. A linguagem para mim equivale a uma faca. A arte de escrever constitui a minha resposta à faca.  
 
Essa resposta é algo que surgiu cedo na sua vida, certo? 
Digamos que sempre tive essa resposta, mas nem sempre soube exatamente qual era a pergunta. Uma coisa é dizer que a linguagem é uma resposta às coisas, à realidade, mas é resposta porquê? Desta vez descobri a pergunta. E a pergunta liminar que suscita essa resposta é o ataque. 
  
O que tem a dizer sobre a faca enquanto forma de sorte, justamente por não ter sido fatal? 
Não sei se será a faca ou a incompetência do seu utilizador. Ele falhou toda uma série de alvos que poderiam ter acabado comigo logo ali. Apesar de me ter esfaqueado três vezes no peito, falhou o coração. Fez-me um corte transversal no pescoço e não danificou a artéria. Qualquer uma destas coisas poderiam ter significado o fim da história. A sorte que tive é simplesmente inacreditável. A boa sorte num mau momento, que me deu tempo suficiente para ser transportado de helicóptero para o hospital. Há outros aspetos relacionados com esse dia, como por exemplo o bom tempo. Estava um belo dia de sol. Se tivesse havido mau tempo, o helicóptero não teria podido voar e eu estaria morto. O hospital não é muito longe, mas indo por estrada não teria chegado vivo. Portanto, estive mesmo perto de não poder contar isto, porque segundo o que os médicos me disseram depois, quando cheguei ao hospital eles temeram que já fosse demasiado tarde. Felizmente, estavam errados.
  
Portanto, há milagres? Abraçou finalmente a contradição de ser ateu e acreditar? 
Não acredito em milagres. Se uso a palavra, faço-o num sentido metafórico e não religioso. Mas acredito num certo tipo de milagres, como a sorte, o acaso, a ciência ou a habilidade dos cirurgiões. E também no facto de, por razões que nada têm a ver com as minhas ações, o meu corpo ser invulgarmente capaz de se recuperar. Durante o processo de recuperação, muitos dos especialistas que me atenderam mostraram-se admirados pelo modo como o meu corpo ia reagindo. Diziam-me: “Tu não percebes, mas é mesmo inesperado. Com lesões tão graves como as tuas, o prognóstico não era nada bom.” Parece que tenho este superpoder. De novo, não sou eu, é o meu corpo, que pelos vistos é anormalmente poderoso na área da cura.  
 
O que diz àqueles que veem os escritores como uma ameaça? 
Creio que o pior é que eles não nos leem, não têm qualquer conhecimento daquilo que consideram ser uma ameaça. O homem que me atacou não tinha lido nada meu. Mas, para quem for autoritário ou tirânico, ou um ideólogo, a única coisa que importa é controlar a narrativa. É preciso dizer às pessoas que as coisas são assim e que têm de seguir este caminho, caso contrário serão perseguidas. Todas as tiranias — religiosas ou seculares, seja na Roménia ou na Rússia de Putin — fazem a mesma coisa, tentam controlar a narrativa, e os escritores são uns sacanas difíceis porque querem fazer exatamente o mesmo. E ainda por cima oferecem narrativas que, na maioria das vezes, não estão de acordo com a narrativa oficial. Como não gostamos que nos digam o que pensar ou dizer, como não aceitamos as condições que nos são impostas, tornamo-nos perigosos aos olhos do poder. Isto passa-se em toda a parte, desde sempre. O que é que García Lorca fazia de tão perigoso para Franco? Devia ser algo verdadeiramente poderoso, pensamos. Porém, só estava a escrever poesia. E o que é que Óssip Mandelstam fazia de tão perigoso para Estaline? Ria-se do seu bigode. Isso é o que fez de mais radical. Mas não é aceitável gozar com um ditador. A comédia é algo que os tiranos detestam e que os escritores praticam como uma segunda natureza. Talvez seja por isto que, em todo o mundo, somos muitas vezes censurados. Não temos exércitos, não temos facas.  
 
Têm a linguagem. 
E aquela outra palavra antiquada: liberdade. 
  
No seu diário online, Hanif Kureishi pergunta: “Quantas pessoas sou eu?” Refere-se ao ato de ler a sua própria biografia. Como responde a isto? 
Para começar, Hanif é um dos meus amigos mais chegados. E aquilo que lhe aconteceu é, em muitos aspetos, pior do que o que me aconteceu a mim — porque é mais difícil de sarar. Ele tem a característica de ser capaz de encarar o horror com inteligência, perspicácia e humor, tudo aquilo que sempre teve enquanto escritor. Também senti e ainda sinto uma espécie de estranheza quando leio o que se escreve sobre mim. Ou quando li o que se escreveu após o ataque, quando todos os jornais estariam a preparar o meu obituário. Infelizmente, a perseguição dos escritores não acabou, e se há zonas do globo onde as pessoas não se importam tanto com os escritores como para os perseguir — os Estados Unidos é uma delas —, a maior parte do mundo, a Rússia, a China, os países islâmicos, consideram-nos um grande perigo. E mesmo assim, perversamente, nós continuamos a fazer isto. O ser humano precisa de histórias, precisa de contar a sua própria história. Somos a única criatura no mundo que conta histórias para se compreender a si mesma. Então, é muito difícil parar. E os escritores somos gente muito determinada. Fazemos o que temos de fazer. No meu caso, não sou um jovem, certamente não tenho mais 22 livros no meu futuro, mas enquanto tiver uma boa ideia, vou escrevê-la — o que de momento, lamentavelmente, não está a acontecer.
  
Gostava de o ouvir sobre outro aspeto do seu livro: a evocação de uma família literária em extinção. Menciona Martin Amis e Paul Auster. O que representam para si? 
A maior parte dos meus amigos não são escritores. Mas tenho algumas amizades literárias muito próximas. E ao perder essas pessoas abre-se um buraco no mundo. Perdi muitas, Bruce Chatwin, Angela Carter, Raymond Carver, Christopher Hitchens. É muita gente, um hiato muito grande. Quantos amigos verdadeiros conseguimos ter? Nenhum de nós tem um exército de amigos próximos. Por isso, perder tantos cria um vazio. Eu costumava falar com o Paul o tempo todo. Paul, Don DeLillo e eu éramos um trio — Don é oito ou nove anos mais velho do que nós. Jantávamos juntos, reuníamo-nos com frequência. Fui ver o Paul dois dias antes de ele morrer. Fui num domingo e ele morreu na terça. E Don foi visitá-lo na segunda. Paul estava obviamente muito mal, mas tive a estranha — e assustadora — sensação de que ele esperou por nós. Que precisava que o fôssemos ver antes de partir, que nos despedíssemos dele. A perda de qualquer amigo é imensa, mas os amigos escritores percebem coisas que os outros não podem compreender. Porque é um trabalho incompreensível a não ser que se faça.
  
Paul Auster dizia que é um trabalho para indivíduos loucos. 
Tinha razão. Somos um pouco loucos, mas é uma loucura desejável. Eu nunca quis fazer outra coisa. Só uma vez, a dado momento, achei que podia tornar-me ator, porque fiz muito teatro nos meus tempos universitários. Mas durou pouco, fui suficientemente esperto para perceber que não seria uma boa ideia. Os meus pais contavam que quando eu era pequeno e os amigos deles me perguntavam o que queria ser, eu respondia: quero ser escritor. Claro que, nessa idade, não é possível saber o que isso significa. O que significa querer ser escritor? Agora creio que, se uma criança diz isso, está na verdade a dizer que adora ser um leitor. A maioria dos escritores nascem dos leitores. Mas conheço uma exceção. Num festival literário em Inglaterra, numa conversa com V. S. Naipaul, o entrevistador perguntou-lhe que livros o tinham influenciado, ao que ele respondeu, muito zangado: não sou um leitor, sou um escritor. Somente Naipaul poderia ter dito isto. Não conheço nenhum outro escritor no mundo que negue ser um leitor.
 
Para que serve a literatura? Vale a pena continuar a colocar esta questão? 
Sim, vale sempre a pena. A literatura deixou de ser uma forma dominante de narrativa e concorre com filmes de super-heróis e reality TV. Para mim, um filme de super-heróis é uma forma de nos infantilizar — comportamo-nos como se precisássemos de heróis para nos salvar mas, na verdade, não há heróis e eles não nos vão salvar. Cresci a adorar banda desenhada, Batman, a Mulher-Maravilha, li-as todas, mas jamais me ocorreu confundir isso com a vida real. E acho que, hoje, o problema do Universo Marvel é que os jovens pensam que vivem nele. Por tudo isto, sinto que os livros têm de trabalhar mais do que anteriormente para captarem alguma atenção, embora nunca tenham sido um empreendimento de massas. Os livros foram sempre uma cultura de nicho, como a pintura ou a música erudita. Mas os membros desse nicho são-lhe incrivelmente leais. Uma coisa interessante durante a pandemia foi que a venda de livros aumentou. Num momento em que todos estivemos isolados, eles ofereceram uma saída. Mostravam-nos o mundo de novo e as pessoas perceberam que precisavam deles.  
 
Acha que esse interesse veio para ficar? 
Não sei se é um fenómeno duradouro, mas foi encorajador que, numa crise global, as pessoas se virassem para a literatura. A literatura é algo que cada um pode fazer por si mesmo. Com os teatros e os cinemas fechados, com as salas de concerto fechadas, o que se pode fazer? Pode-se sentar e abrir um livro, e o mundo volta a estar acessível. A literatura dá-nos também mundos que não conhecemos. Por vezes, as pessoas são muito paroquiais nas suas leituras. Só querem ler sobre o que conhecem. Mas eu sempre quis que os livros me contassem o que não sei. Por isso, muitas das minhas leituras foram traduções de escritores — japoneses, russos, espanhóis ou portugueses. Tive a sorte de me cruzar com José Saramago algumas vezes. 
  
Esses são alguns dos livros que estão nas estantes atrás de si? 
Sim, diria que talvez metade deles não tiveram origem na língua inglesa. Gosto de sublinhar a grande importância dos tradutores no nosso tempo. Eles são o elo mais desvalorizado do mundo dos livros. Porém, não poderíamos ter esta conversa se os meus livros não estivessem traduzidos para português. 
  
Em “Linguagens da Verdade” defendeu o papel da imaginação. Estamos a perdê-la? 
Não sei, há muitos jovens escritores talentosos, tanto quanto posso avaliar. É tentador dizer que ‘a literatura de hoje não é tão boa quanto o era no meu tempo’. Em especial se, como eu, se vier de uma geração que, em todo o mundo, gerou escritores colossalmente grandes. Seja na América Latina, na América do Norte, na Europa ou na Ásia, foi um período tão rico que nos perguntamos se a próxima fornada será igual. Porém, sabemos sempre que a próxima será suficientemente boa — a história está aí para o provar. É vaidade pensar o contrário.
  
A sua mulher Eliza está muito presente no livro. É comovente ouvi-lo dizer que os ferimentos dela eram tão graves quanto os seus. 
Sim, talvez até mais. Nestes últimos dois anos aprendi muito sobre traumas. Falei com especialistas no tema e muitos referiram que, por vezes, a família da pessoa fica pelo menos tão ferida quando ela. Foi um evento traumático para todos, mas ela é forte e os dois ainda estamos aqui. E o romance dela, “Promise” vai sair em português, em breve. Ela vai viajar para Portugal — eu não, mas ela sim.  
 
Há um momento, que ela filma, em que sente ter voltado por fim a ser apenas um escritor contente por lançar um livro — “Cidade da Vitória” tinha acabado de sair. 
Foi aquele momento em que, algum tempo após o ataque, pude finalmente desfrutar da saída do livro. Por estranho que pareça, essa é a única coisa que alguma vez quis fazer, sempre tive este desejo muito simples na vida, o de escrever livros. E nada mudou, na verdade. Tenho sido um escritor afortunado, desde muito novo. Com o meu segundo livro, “Os Filhos da Meia-Noite” (D. Quixote) conquistei um público internacional bastante vasto e, de alguma forma, esse público manteve-se fiel. Isso permitiu-me, ao contrário de muitos outros escritores, não precisar de fazer mais nada. Desde os 33 anos, ou seja, há 44, que consigo viver do que escrevo.  
 
É impressionante. 
É só incomum. Estou grato por isso, era a vida que eu queria.  
 
Numa entrevista recente, disse que perdoar é um ato poderoso. Perdoou o seu atacante? 
Não estou interessado em perdoá-lo. Cheguei a um ponto em que já não me importo com ele. Por isso, perdoá-lo ou não é irrelevante.  
 
Vai ter aquilo que no livro chama o seu “momento Beckett”, ou seja, em que irá testemunhar à frente do agressor? 
Não sei. Depende de ele se declarar culpado ou não. Neste momento, ele declara-se inocente. Isso significa que tem de haver julgamento e que terei de testemunhar em tribunal. Porém, se ele mudar a sua declaração, deixa de haver julgamento. Portanto, não sei a resposta.
  
Há dois anos, num encontro de escritores na ONU disse que a América estava a escorregar de novo para a Idade Média. O que tem a dizer sobre as próximas eleições americanas? 
Estou absolutamente aterrorizado. Até a semana passada, sentia-me otimista, mas depois da catástrofe do debate Biden-Trump o meu ânimo mudou. Devo dizer que gosto muito de Joe Biden. Ele tem sido um Presidente excecional. Tem uma grande obra feita e é um homem decente e honrado. Mas? Está velho. Quer dizer, é apenas cinco anos mais velho do que eu, e espero aos 82 ainda estar a funcionar. Mas todos vimos, o mundo todo viu que ele está velho. O que se passará agora? Não sei. Se ele insistir em continuar, não vejo como poderá ganhar. Nesse caso, poderemos ter o monstro de volta. 
  
E se ele não insistir em continuar? 
Poderemos na mesma ter o monstro de volta.  
 
Considera voltar para a Inglaterra? 
Não, porque em Inglaterra há um naufrágio a acontecer. A Inglaterra pós-’Brexit’ está em péssimas condições. Penso que vou ficar por cá. Nova Iorque não é a América. Em Nova Iorque ainda acreditamos que a civilização existe, mesmo que os bárbaros estejam a rodear-nos.  
 
Nessa reunião na ONU, falou da Ucrânia e da Índia. Se fosse hoje, falaria também de Gaza/Israel? 
Naquela altura havia só uma guerra, na Ucrânia. Estamos a progredir: agora temos também a guerra em Israel e Gaza, que é igualmente importante. Não tenho nada de muito original para dizer, parece-me claro que só é necessário ser-se humano para criticar a quantidade de mortes inocentes. Mas gostaria que se desse mais atenção ao Hamas do que se tem dado. Porque é aí que tudo começou. Não são boas pessoas: os próprios dirigentes dizem abertamente que não querem a paz, mas um conflito permanente. Dizem que sabiam que Israel iria retaliar brutalmente e que as pessoas iriam morrer. Um deles até se gabou: “Somos uma cultura de mártires.” Então, temos uma entidade que está disposta a sacrificar o seu próprio povo para atingir os seus objetivos. Gostava que houvesse uma maior reflexão sobre isto. Claro que acho deplorável o que se está a passar, todos os bombardeamentos — Netanyahu deveria saber que estes empurram as pessoas em direção ao Hamas e não contra este. Ainda para mais, os líderes do Hamas estão a observar tudo instalados em hotéis de luxo no Catar. Como é que se destrói uma organização bombardeando Gaza se os seus líderes estão noutro país? É que não faz qualquer sentido.  
 
Avançando para o final da entrevista, li que Kundera não acreditava em segundas oportunidades. A questão do que fazer com a vida é hoje mais relevante para si do que costumava ser?  
A alegria de estar vivo é hoje muito mais intensa. Acordo de manhã e penso: ainda estou aqui. E tudo o que tenho a fazer é abraçar isso e viver a vida do modo mais pleno possível. Outro dia, contei a alguns jornalistas que Eliza e eu estamos a planear a festa do meu 100º aniversário, e decidimos que deveria ser, obviamente, uma festa de dança. Estamos à procura de um bom DJ que esteja livre daqui a 23 anos.  
Está a escrever agora? 
Não. Pelo menos, nada de importante. Escrevi uma história, uma espécie de novela, de umas 60 páginas e 20 mil palavras. Sabe, muitas vezes estou aqui sentado ao computador — esta é a sala onde trabalho — e, como não sei o que fazer, deixo-me apenas ficar sentado. Penso que, durante um tempo, o mundo não precisa de ouvir falar de mim. “Cidade da Vitória” e “Faca” saíram um a seguir ao outro, as pessoas têm muito material meu para ler.  
 
Então tem imenso tempo para se sentar ao pé do rio. 
Sim, de um rio e de uma árvore, com um copo de vinho. É aí que está o futuro próximo.
 
* Jornalista de EXPRESSO, natural de Buenos Aires, licenciou-se em Filosofia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Iniciou-se no jornalismo em 1992, no Jornal de Letras, tendo nos anos seguintes colaborado com a RDP, e com as revistas "Grande Reportagem" e "Ler", entre outras.  Dedicou-se também à tradução.

7 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
O escritor Salman Rushdie deu detalhes à BBC sobre o atentado que sofreu há dois anos, quando foi esfaqueado no palco onde daria uma palestra na pequena cidade de Chautauqua no Estado de Nova York, nos EUA.
O autor vencedor do Booker Prize contou que seu olho ficou pendurado no rosto "como um ovo cozido" — e que perder o olho "o entristece diariamente".
"Lembro-me de pensar que estava morrendo", diz ele. "Felizmente, eu estava errado."
O ataque está relacionado com ameaças de morte de setores radicais muçulmanos que o escritor sofria desde décadas pelo seu livro Os Versos Satânicos (1989).

O Blog de São João del-Rei tem o prazer de publicar a entrevista que a jornalista LUCIANA LEIDERFARB da revista EXPRESSO fez com o ensaísta e autor indiano-inglês-americano SALMAN RUSHDIE.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/07/a-raiva-e-uma-perda-de-tempo.html 

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Paulo Roberto Sousa Lima (escritor, gestor cultural e secretário da Diretoria do IHG de São João del-Rei para o triênio 2024-2026) disse...

Na biblioteca do IHG temos um Caderno Pensar, do jornal Estado de Minas, de 25/05/2024,com um resumo comentado sobre seu ultimo texto literario "Faca: reflexões sobre um atentado" e um artigo sobre "o Corte" que fala do impacto da facada no seu rosto e as consequências disto para sua vida e obra. Parabéns pela divulgação.

Aylê-Salassié Filgueiras Quintão (jornalista, ex-correspondente em Londres, e professor, doutor em História Cultural, membro da Academia de Letras do Brasil, autor do livro "Lanternas Flutuantes") disse...

Braga,
Bela entrevista! Obrigado por dar-nos acesso a ela...

Cordialmente
Aylê-Salassié

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Notável entrevista desse célebre escritor sobre conteúdos preocupantes do mundo atual, para além de temas como vida, poder e literatura. Feita, por sinal, em sua plena maturidade.
Parabéns pela sua publicação. Muito grato.
Saudações,
Cupertino

Rafael dos Santos Braga (pesquisador graduado em Filosofia pela UFSJ) disse...

Deve ser interessante essa entrevista ! Vamos ler ! Obrigado !

Danilo Gomes (escritor, jornalista e cronista, membro das Academias Mineira de Letras e Brasiliense de Letras) disse...

Mestre Braga, obrigado pelo envio da excelente matéria da revista "Expresso": a entrevista da culta jornalista Luciana Leiderfarb com o grande escritor Salman Rushdie. O escritor disse coisas importantes, é um homem muito culto e inteligente. Devemos nos livrar, sim, do ódio, da raiva, do totalitarismo político, do fundamentalismo religioso. E é bom ficar à beira de um rio, perto das árvores, vendo o rio, o céu e as árvores, escrevendo e tomando uma... cerveja ( não sou do vinho ).
Uma observação, mestre Braga: sim, o Presidente Joe Biden, boa gente, bom político, está velho e com falhas de memória, não tem condições de governar os Estados Unidos da América por mais quatro anos; mas não acho o Sr. Trump um monstro; ele é abrutalhado, briguento, mas não é um monstro, como quer Rushdie. Creio que ganhará as eleições de novembro. Ainda mais com esse maldito tiro que levou na orelha. O malucão assassino, de apenas 20 anos, morreu. Há muitos monstros neste mundo, mas creio que não o Sr. Trump; é exagero do Rushdie, em geral tão sensato.
Abraço do Danilo Gomes.

Raquel Naveira (membro da Academia Matogrossense de Letras e, como poetisa publicou, entre outras obras, Jardim Fechado, antologia poética em comemoração aos seus 30 anos dedicados à poesia) disse...

Muita intolerância sofrida por Salman Rushdie.
Sinto muitíssimo.
Obrigada por compartilhar, caro Francisco Braga.
Abraço fraterno,
Raquel Naveira