domingo, 7 de julho de 2024

CRIANÇAS DE ONTEM E DE HOJE


Por MIGUEL ESTEVES CARDOSO *
Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO nº 12.480 e 12.481, na coluna AINDA ONTEM, matérias publicadas na edição de quarta e quinta-feira, respectivamente 03/07/2024 e 04/07/2024, pp. 5 e 7. 

AS CRIANÇAS A BRINCAR

Em Julho de 1975 deixei de ser um adolescente. Até me lembro do alívio. Mas agora é uma novidade olhar deste lado da vida para a adolescência e para a infância.
A infância, que nos lembremos, são seis anos, dos seis aos 12, e a adolescência são mais seis, dos 13 aos 19.
Ao todo, só somos realmente jovens uma dúzia de anos. É muito pouco. É como ter passado 12 anos em África. Não chega para a cabazada de dúzias que restam.
É com esta idade avançada que começo, por exemplo, a achar graça à banda desenhada. Quando tinha a idade ideal para ela, não tinha tempo para essas criancices. Só lia livros gordos, livros sérios, livros difíceis, livros sem bonecos.
Começo a perder tempo a olhar para as crianças que brincam na praia — sobretudo para aquelas que estão sozinhas a brincar. Quase que consigo ouvi-las a pensar: “O que é que hei-de fazer com esta cana?”
Já não penso aquelas coisas pré-mastigadas, ditas por quem vê as crianças sem olhar para elas, como “coitadas, mal sabem o que as espera!” ou “quem me dera ter aquela idade!”.
Se penso alguma coisa — o maior prazer é observar e deixarmo-nos ir — é que tudo conspira para roubar a concentração às crianças.
Durante a infância, fora as urgências indiscutíveis, deixamos em paz a atenção das crianças. Deixamos que elas imaginem o que querem imaginar. Não destruímos imediatamente o que imaginaram.
Deixamos que elas inventem, sem estar sempre a chamá-las para a realidade.
Deixamos que elas brinquem.
No fundo, deixamos que façam a coisa mais preciosa de todas: deixamos que elas exerçam a liberdade.
Se pudesse querer uma coisa para elas, seria mais uma dúzia de anos de juventude: mais nove de infância e mais três de adolescência.
A infância faz tão bem ao resto da vida que alguma coisa tem de ser feita para ajudar-nos a lembrá-la. É muito difícil lembrá-la quando ela já aconteceu há tanto tempo — mesmo quando só se tem 30 anos.
É muito difícil quando é diariamente atropelada, e desmentida.


O QUE AS CRIANÇAS NÃO VÊEM


Há crianças que não têm sorte nenhuma, mas as que têm acabam por gostar de ser crianças – nem que seja pela falta das pressões e angústias que lhes estão reservadas para a época adulta.
A boa protecção não mostra ao protegido os riscos e os perigos que corre. Cria uma bolha que parece a liberdade. Assim, a criança pode distrair-se.
Uma das coisas que a criança não vê são os dois adultos que são os pais dela. Vê um pai e uma mãe – ou duas mães, ou dois pais, não interessa. Vê um pai e uma mãe onde estão dois adultos que são muitas outras coisas para além de um pai e de uma mãe.
Os filhos acontecem numa altura em que os pais são finalmente adultos e livres. Saíram há pouco da prisão da família e já ninguém manda neles.
Chega o bebé e, de repente, essas vidas são quase completamente alteradas. O pouco tempo livre que se tinha é ocupado. Até o tempo que não se tinha é ocupado. Os dois adultos livres deixam de ser dois adultos livres. O dinheiro já não chega — e a paciência também não.
Há pessoas que só depois dos pais terem morrido é que percebem que aquela mulher a que chama “minha mãe” era uma mulher. Era uma mulher que, por acaso, também era mãe. E era uma mulher que, durante muito tempo, não foi mãe de ninguém. Era uma pessoa. E o pai era a mesma coisa.
Ainda bem que as crianças não vêem que o mundo no qual nascem é um mundo que elas próprias criaram quando nasceram. E que esse mundo substituiu um mundo — de dois adultos livres e apaixonados — que não precisava de ser substituído, porque era bom.
Quando ouvimos outras pessoas a falar dos nossos pais, deveríamos perceber que os nossos pais também são pessoas. Deveríamos perceber que reduzi-las a pais é uma falta de respeito, e de amor, e de curiosidade. É o mesmo que reduzir uma criança a ser filha e passar a vida a avaliar se foi boa filha ou má filha.
As crianças não vêem o que interromperam. Não vêem o que substituíram. Só se vêem a si próprias. Ainda bem que é assim.

* É um crítico, escritor e jornalista português, colunista do jornal PÚBLICO.

4 comentários:

Fernando de Oliveira Teixeira (poeta e professor universitário, decano da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Grato pelo envio das crônicas. Abraço.

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Tenho o prazer de reproduzir no Blog de São João del-Rei duas crônicas de MIGUEL ESTEVES CARDOSO (✰ Lisboa, 1955), publicadas no jornal PÚBLICO, tratando, entre outras coisas, da infância, a sua e a dos dias atuais, de uma maneira bem humorada.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/07/criancas-de-ontem-e-de-hoje.html 👈

Abraço cordial,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Preciosíssimo!!!!!!!
Obrigado!
Heitor

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Talvez pela seriedade da infância que teve Miguel Esteves é que pode agora dar valor àquela que não teve e que somente as crianças abastadas desta geração podem ter.
Saudações,
Cupertino