segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

ENTREVISTA COM WOLFGANG GRUEN SOBRE SUA EXPERIÊNCIA COM A PRIMEIRA GRADUAÇÃO DE CIÊNCIA DA RELIGIÃO NO BRASIL


Por Matheus Oliva da Costa *
Hoje é cada vez mais frequente no Brasil a ligação entre ensino religioso escolar e Ciência da Religião (em suas variadas nomenclaturas), seja em artigos acadêmicos, seja em textos mais popularizados. No entanto, pouco tem se registrado e refletido sobre como essa associação começou. Até poucas décadas, não existia essa relação, mesmo internacionalmente.
Após a Segunda Guerra (1939-1945), especialmente desde a década de 1970, em países com crescente pluralidade cultural religiosa onde há tradição de debates seculares e de Ciência da Religião institucionalizada, têm sido pensadas novas formas de educação religiosa (religious education) mais adequadas à nova situação social secular e plural. É o caso da Alemanha, Dinamarca, Espanha, Inglaterra ou Suíça, para citar alguns exemplos. Muitas vezes, essa nova educação sobre religiões tem base e referência na Ciência da Religião (cf. USARSKI, 2007; JENSEN, 2008, ALBERTS, 2010; SCHREINER, 2013; DÍEZ DE VELASCO, 2016).
Veremos nessa entrevista que, paralelo a esse desenvolvimento, entre a década de 1960 e 1970 um autor começou a pensar uma nova visão e prática sobre o Ensino Religioso. Trata-se de Wolfgang Gruen, nascido em 1927 na Alemanha e residente no Brasil desde 1940. Formado no Instituto Salesiano de Pedagogia e Filosofia (Seminário Maior, Lorena-SP) entre 1944-1949 e no Instituto Teológico Pio XI (Seminário Maior, Lorena-SP, 1950-1953), tem também Licenciatura Plena em Letras Anglo-Germânicas (1969-1972) e convalidação em Filosofia pela Faculdade Dom Bosco (1970-1971). Foi professor da primeira graduação em Ciência da Religião no Brasil, na ocasião, em modalidade bacharelado, durante a década de 1970 na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Recebeu em 2006 o título de Doutor honoris causa em Teologia e Ciências Bíblicas pela Università Pontificia Salesiana de Roma.
Sua nova visão foi elaborada com experiências e leituras ao mesmo tempo latino-americanas e europeias. Com essas bases interculturais e internacionais ele apresentou uma questão inédita no Brasil: a ruptura entre a catequese e o Ensino Religioso escolar. Com isso, lançou nova luz para o Ensino Religioso, que passou a desenvolver sentidos próprios na educação básica, sobretudo, pública.
Realizada por email, na presente entrevista ele responde a alguns aspectos até então pouco explorados sobre sua visão do Ensino Religioso e da Ciência da Religião, para além dos pontos teóricos já expostos há alguns anos (GRUEN, 1976; 1996, e muitos outros). O principal aspecto, que é o objetivo da entrevista, seria registrar sobre as primeiras reflexões e fatos históricos que aludem à profissionalização de cientistas das religiões no Brasil – pois, segundo o que este autor escreveu já em 1976, seriam estes os docentes adequados para este novo ensino religioso escolar, distinto da catequese. Consequentemente, vieram à tona questões sobre a relação entre Ciência da Religião e Ensino Religioso em escolas de Educação Básica. Importante lembrar: trata-se do primeiro autor no Brasil, e provavelmente do mundo, que começou a pensar essa relação.  
Pe. Wolfgang Gruen, professor por toda a vida

 

1. Pode relatar como conheceu a área específica de Ciência(s) da(s) Religião(ões) (CR)? Como foi o primeiro contato com a área? 
Desde meu tempo de pós-noviço salesiano (1944), tenho interesse especial pelo panorama multiforme da religião. Não fiz nenhum curso que tivesse isso por objeto, mas passei a estudar a área por minha conta. Em 1950, no curso de Teologia, tivemos uma disciplina propedêutica chamada Apologética: visava estabelecer uma ponte entre razão e fé – ciências humanas, e teologia. Foi bem interessante; fiz um caderno especial de apontamentos, enriquecido com pesquisas, roteiros e reflexões pessoais. Foi minha primeira imersão em ciências da religião. O curso de Teologia enriqueceu meus conhecimentos, principalmente do cristianismo com seus diversos ramos, do judaísmo e, naturalmente, da Bíblia, base dessas duas religiões. Nos anos 1960, já padre, em São João del-Rei, Minas Gerais, tive ocasião de alargar e aprofundar esses conhecimentos, graças a meus encontros com pessoas de outros credos, várias delas com intuito de conhecerem a religião católica. Consequência: o bispo da diocese me nomeou responsável pelo Departamento Diocesano de Defesa da Fé. Dediquei-me ao estudo das religiões em geral, com ênfase na Sociologia e Psicologia da Religião. Em todo esse tempo, não tive contato com nenhum curso específico de Ciências da Religião. 
 
2. Quais motivos o levaram a compor o quadro inicial de uma graduação em CR? 
Foi uma situação fortuita. Recém ordenado padre (1953), fui destinado a trabalhar em São João del-Rei, onde os salesianos tinham acabado de fundar a Faculdade Dom Bosco (FDB) de Filosofia, Ciências e Letras, inicialmente pensada para a formação dos nossos professores salesianos; pouco depois acolheu outros candidatos (em 2002 tornou-se um setor da Universidade Federal de São João del-Rei). Junto com outras disciplinas do Departamento de Letras, couberam-me Cultura Religiosa na Faculdade, e Ensino Religioso em algumas turmas do Ginásio que lá funcionava; bem como, a partir de 1959, o curso de Catequética para os nossos estudantes de Filosofia. Eu tinha estudado Catequética na Filosofia e na Teologia; mas o enfoque, tanto num como no outro, não me satisfez: com ajuda da boa biblioteca da Faculdade, voltei a ser autodidata. Naquele tempo, Ensino Religioso era sinônimo de Catequese na escola. 
Agora posso responder à sua pergunta. Na Cultura Religiosa da nossa Faculdade, um ano era destinado à Introdução Bíblica: Antigo Testamento e Novo Testamento, um semestre cada. Havia um problema: no programa costumeiro, era uma disciplina árida, com informações sobre as línguas bíblicas, geografia e história da Palestina e das regiões vizinhas, gêneros literários da bíblia – enfim, muita informação, mas pouco contato com a Bíblia. Modifiquei o conteúdo da disciplina: estudamos os escritos bíblicos dentro da história e geografia cultural de Israel, continuamente às voltas com povos mais fortes. A novidade foi bem acolhida, fazendo com que eu recebesse convites para palestras e cursos intensivos em outros seminários e faculdades. 
Um dos convites, em 1969 ou 1970, foi da UFJF. Lá estava o padre Jaime Snoek, redentorista holandês radicado no Brasil havia muitos anos. Era homem de grande cultura, professor de teologia moral dos mais conceituados no Brasil, autor de livros e artigos de nível universitário. O Pe. Jaime era o “pai” da Faculdade de Serviço Social na UFJF; depois, começou a organizar um curso de Ciências da Religião. Para a área dos livros sagrados, com ênfase na Bíblia, tinha convidado um professor do Rio, Doutor em Sagrada Escritura, membro de um grupo que fazia escavações na Palestina. Era competente, mas faltava-lhe comunicação com os estudantes. Depois de poucas aulas, os alunos não o toleravam mais – pela programação pesada, pouco motivadora para iniciantes, e por sua empáfia. O impasse chegou aos ouvidos da Reitoria, e o Pe. Snoek teve que encontrar outro professor. Procurou-me, conversamos, apresentei-lhe detalhes do enfoque, conteúdo e método. Inicialmente, fui convocado como professor visitante; depois, como auxiliar de ensino, por falta de títulos (os estudos seminarísticos de Teologia ainda não eram convalidados na época). Os estudantes mostraram-se interessados e satisfeitos; nos anos 1970-1981 (quando me aposentei), criou-se um clima muito bom entre nós. Foi meu primeiro contato com o Departamento de Ciências da Religião na UFJF. 
 
3. Pode falar sobre qual era o perfil dos egressos e o que os instigou a entrar no curso? 
Meu contato com a área era muito reduzido. Transferido para Belo Horizonte em 1975, eu ainda dava algumas aulas até 1976 ou 77, não me lembro, na FDB de São João del-Rei; bem como, na Universidade Católica de Minas Gerais (que ainda não era Pontifícia). Em Juiz de Fora, eu só ficava dois dias da semana. Minhas aulas eram na cidade, como as do Serviço Social, e de noite; as demais aulas, todas diurnas, eram no campus, na periferia. Por isso, tinha pouco contato com os colegas, com as outras turmas e mesmo com a reitoria. Diante disso, não saberia dizer qual era o perfil dos egressos. Quando terminavam o curso comigo, eu não tinha mais contato com eles. Também não sei o que os instigou a entrar no curso de Introdução ao Mundo Bíblico. De fato, a minha disciplina era também uma das opcionais para alunos de outros cursos. As vagas eram 40, mas sempre havia mais gente do que isso, por interesse pela matéria, que participavam como ouvintes. Certa vez, a secretaria se cansou de ter tantos excedentes; exagerando, abriu 100 vagas para essa disciplina; tivemos 106 alunos. Todos os anos, os de Ciências da Religião eram minoria. Os do “opcional” geralmente tinham vontade de saber mais sobre a Bíblia, e de maneira sistemática: eram cristãos de várias Igrejas, mas havia também judeus, budistas, ateus. E todos se mostraram muito interessados e satisfeitos. Eu teria muitas histórias a contar sobre meu tempo em Juiz de Fora. 
 
4. Como era a relação com seus colegas docentes? Qual era sua formação acadêmica? Quais eram os pontos convergentes e divergentes entre vocês? 
Dos colegas docentes, só com dois eu me encontrava habitualmente: Pe. Jaime e um pastor presbiteriano, profundamente ecumênico, Pr. Domício, que lecionava teologia sistemática, importante para se compreender o cristianismo. Não saberia dizer qual foi sua formação acadêmica; sei que era pessoa competente. Nós dois ficávamos hospedados com os redentoristas. Não havia divergências entre nós.  
 
5. Como foi a reação da comunidade acadêmica sobre o curso de CR? Como era a relação com estudantes e professores de outros cursos? 
Como disse, infelizmente eu não me encontrava com professores e alunos de outros cursos. Só tenho um episódio que merece ser mencionado. Não me lembro em que ano, nas férias, um professor do Departamento de História publicou, num jornal de Juiz de Fora, um breve artigo, muito agressivo contra Ciências da Religião. Uma pessoa amiga me enviou um recorte do artigo, para meu conhecimento. Lembro-me de duas acusações: que todos os alunos passavam de ano, e que as aulas seriam um verdadeiro panamá, bagunçadas. Tomei as acusações para mim, e preparei um longo relatório sobre minhas aulas e seu ambiente. Logo no início do semestre seguinte, pedi uma audiência com o Chefe do Departamento e lhe entreguei meu relatório. Confirmei que na minha disciplina todos passavam, a não ser, em casos raríssimos, por falta de frequência; e expliquei: meu objetivo não é reprovar, mas que os alunos tirem proveito do curso; se alguém apresentar um trabalho fraco, ou fizer uma prova pouco satisfatória, eu converso com ele, explico o porquê daquela nota, e lhe dou outra chance. O Chefe do Departamento mostrou-se plenamente de acordo. Quanto ao panamá nas aulas, eu disse que, na minha aula, nunca tivemos isso; pelo contrário, há muito interesse e participação tranquila. Ele achou conveniente que eu conversasse com o Reitor da Universidade, que se mostrou igualmente satisfeito com as explicações e elogiou o trabalho que estava sendo feito. Eu não esperava o desfecho do caso: pouco tempo depois, o dito professor do artigo entrou na sala durante a minha aula, pediu permissão para uma rápida conversa, e gentilmente me ofereceu a separata de um artigo que ele tinha publicado numa revista da UFJF. Foi a sua maneira de retratar-se, e diante dos alunos. 
 
6. E sobre a receptividade da instituição de ensino, quais foram os desafios enfrentados para o estabelecimento (criação e/ou desenvolvimento) do curso? 
Também sobre isso, não estou suficientemente informado, pois já peguei o carro andando. Pelas conversas com o Pe. Snoek, não me consta que tenha havido problemas na UFJF, pelo contrário. Na verdade, o Pe. Jaime era muito estimado na universidade, por estudantes e docentes. A oposição veio de fora. Pela importância do caso, sugiro que você entre em contato com a Dra Anísia de Paulo Figueiredo, principal historiadora do nosso Ensino Religioso na Escola, à qual, devido à minha idade avançada, achei prudente encaminhar meu material importante sobre aquela época, para que não se perca. 
Em duas palavras, houve o seguinte. Desde 1960, a UFJF já tinha seu Departamento de Ciências da Religião. No começo dos anos 1970, o Departamento preparou a exposição de motivos e os documentos para, finalmente, encaminhar a aprovação de um curso de graduação em Ciências da Religião, talvez a licenciatura plena, não me lembro. Nessa preparação, ajudei um pouco o Pe. Snoek: deixamos clara a diferença entre Ciências da Religião – ramo das Ciências Humanas – e Teologia, baseada em revelação divina e adesão pela fé, etc., que não era o que estávamos pleiteando. O nosso pedido, encaminhado ao CFE em 1973, foi vetado de maneira indigna. O Relator, Prof. Bittencourt, presbiteriano, conhecido do Pr. Domício, fez com toda clareza a distinção entre CR e Teologia e, diante disso, deu sua aprovação; mas, terminada a leitura do Parecer, por pressões externas, teve que fazer, à mão, “correções” que dissessem o contrário do que ele tinha escrito e lido; se não fizesse essas “correções”, seria nomeado outro Relator e ponto final. Assim, o Parecer, agora negativo, foi aprovado e a licenciatura pedida negada. Eu tinha cópia xerox desse Parecer assim manipulado; mas, como disse, entreguei-a à Profa Anísia. A aprovação só veio anos mais tarde, quando eu já não lecionava mais na UFJF, e não mantinha contato com ela. 
 
7. Quanto a aspectos de registros textuais, do lado acadêmico, o que publicaram e em qual periódico ou livro? 
Na Faculdade Dom Bosco, de São João del-Rei, meu único encargo era o magistério; por isso, aceitei outras disciplinas, além da Catequética e Cultura Religiosa: Língua e Literatura Inglesa, e Grego Clássico. Meu horário era muito cheio. Não me foi possível acompanhar as publicações dos colegas na UFJF. Vou falar do que me diz respeito. Eu não fornecia apostila desse curso, que era inovador: apenas esquemas das aulas e uma bibliografia básica; o texto era a bíblia, como testemunho inestimável, confeccionado ao longo de um milênio, da cultura de um povo, com seus valores e vícios. Em 1976-1977, salvo engano, a revista Família Cristã, das então Edições Paulinas, encomendou-me uma Introdução ao Antigo Testamento, a ser publicada mensalmente, por 21 meses, como encarte na revista. Era um resumo do meu programa em Juiz de Fora, no semestre de Antigo Testamento. A pedido da editora, esse conjunto, com pequenas modificações, foi depois publicado em forma de livro, sob o título O Tempo que se chama Hoje (1ª edição 1977; 14ª em 2005); foi publicado também em Portugal e alguns países latino-americanos; recentemente suspendemos a publicação, até eu achar tempo para atualizar o livro. Sua linguagem não é acadêmica, mas o enfoque e a estrutura inovadora o são. 
 
8. Do lado profissional, de que forma divulgaram o curso e qual discurso usaram quanto a como e em que os egressos trabalhariam após formados? 
Claro que eu não perdia ocasião para divulgar o curso em Belo Horizonte e alhures. Mas, que eu me lembre, meu objetivo era sempre que o estudante tivesse uma visão da Bíblia suficientemente clara, profunda, situada no seu e no nosso tempo, tendo em vista a formação do professor de Ensino Religioso no Ensino Fundamental. Sublinho que esse enfoque era declaradamente não confessional, sem sombra de proselitismo, de acordo com minha visão e prática do Ensino Religioso na Escola. Isso não deixou de divulgar o curso. Mas repito, eu não tinha como acompanhar o que o Departamento fazia em termos de promoção do Curso; na verdade, nem me ocorreu fazer isso de maneira sistemática. 
 
9. Qual era sua visão sobre o que é a CR? A visão dos colegas e versão oficial apresentada em documentos da instituição era a mesma? Pode comentar a respeito? 
Como comentei na resposta à sua primeira pergunta, foi a disciplina Apologética, no meu 1º ano de Teologia, que me abriu os olhos para a importância de uma visão de conjunto da face antropológica do que chamamos religião. Comentei com alguns colegas, talvez também com o diretor do “teologado”, que essa disciplina deveria acompanhar nossos quatro anos intensivos de Teologia. De qualquer forma, começou assim meu interesse por abordagens antropológicas, laicas, não confessionais, do que chamamos religião. Não se supõe nem se exclui a fé dos docentes e estudantes: abstrai-se dela
Um passo importante nesse sentido foi minha experiência como professor, primeiro de Ensino Religioso Escolar, depois também de Cultura Religiosa na Faculdade. No final dos anos 1960, percebi – e certa vez foi-me dito, sem rodeios, na sala de aula, por uma estudante universitária –, que a linguagem da fé não pegava mais naquela turma. Tive o bom senso de mudar a trilha: daí em diante, adotei um enfoque antropológico na Cultura Religiosa. 
Eu ainda não tinha ideia detalhada de como seria o curso de Ciências da Religião; mas, graças à boa bibliografia de que dispunha, pude enfronhar-me na filosofia, pedagogia, sociologia e um pouco na psicologia da religião. Particularmente valiosas foram uma série de encontros nacionais e internacionais de catequese e/ou catequetas, de que pude participar, com destaque para a International Study Week of Mass Media and Catechetics, San Antonio, Texas, U.S.A., junho de 1969: foi um encontro, bem preparado, de 50 catequetas com 50 expoentes da comunicação; um grupinho de jovens encarregado da infraestrutura da Semana, ajudou, também, participando em certos debates. Tudo isso foi me preparando para o meu primeiro encontro pessoal com um Curso universitário de Ciências da Religião – o da UFJF. 
O respeito pela diversidade de convicções dos docentes e estudantes influenciou também minha opinião a respeito do nome que conviria melhor ao curso da UFJF: Ciência ou Ciências, da Religião ou das Religiões (4 possibilidades). Até hoje, prefiro Ciências da Religião: ou seja, variedade de enfoques (ciências de sua aceitação e recusa) do fenômeno religioso como tal. O termo alemão Religionswissenschaft diz mais que o nosso: tanto religião como ciência estão no singular, são tomadas em sentido abrangente. 
Essa questão surgiu também quando se tratou da aprovação do curso na UFJF. Posso estar enganado; mas tenho vaga lembrança de que, conversando com o Pe. Snoek, concordamos que a criação do curso de Ciências da Religião na UFJF, na mesma cidade em que funciona um curso de Teologia católica, podia vir a ser o início da presença oficial de Ciências da Religião, junto com a Teologia, para a formação de padres e pastores. A recíproca também vale: entre as Ciências da Religião, é importante tomar conhecimento também de itens essenciais do cristianismo – quase 90% da nossa população –, de outras crenças e práticas, e do ateísmo: sempre sem proselitismo ou agressão, e na medida de sua influência em nossas culturas. 
Não saberia dizer se os colegas, ou vários deles, também pensavam assim; nem me lembro ter comentado isso com os seminaristas que se matricularam em Ciências da Religião. Mas consta que havia autoridades eclesiásticas católicas, não sei se também protestantes, que viam Ciências da Religião com grande reserva: tinham medo de críticas negativas da religião, consideradas nocivas para a mente dos jovens estudantes. Foi essa suspeita que provocou a primeira derrota do Curso, quando a UFJF solicitou sua aprovação pelo MEC, em 1974. 
É importante contextualizar essa suspeita; algo de semelhante aconteceu na área da Catequética. O Iluminismo agressivo ainda estava na memória de setores conservadores da Igreja. A partir de fins do século 19 e começo do século 20, a pedagogia, psicologia, sociologia – as ciências humanas, ainda não com esse nome – começaram a ser ouvidas com respeito e admiração por professores de Ensino Religioso Escolar (ERE), catequistas e também por mestres de Teologia. Surtiram ciúmes e acusações entre fautores de uma linha antropológica e outra kerigmática na catequese. A França que o diga. E não só a França: tivemos uma amostra recentíssima disso no debate sobre o ERE na BNCC de 2017. Por essas amostras, percebe-se quanto a História da Catequese e da Catequética repercutem na História do ERE. Claro: de 1774 até 1950 (arredondando), ERE era sinônimo de catequese de crianças e adolescentes. Ora, a maioria dos estudantes que frequentam Ciências da Religião parece visar o magistério do ERE; por isso, no curso, essa problemática precisaria ser conhecida, e analisada com isenção e transparência. Digo precisaria porque, ainda no atual debate sobre o ERE na BNCC, faltou esse cuidado. Desde a Idade Média, antes da exposição de uma doutrina e seu debate, oferecia-se sempre a explicatio terminorum, também ela sujeita a debate. Faltando essa apresentação explicativa dos termos-chave, não se percebeu que, ao falar do ERE o adjetivo “religioso” continua a ser tomado só no sentido que tinha em 1774. Em outra áreas, como as da geografia, física, matemática, todas..., ninguém se atreveria a costurar remendo novo em pano puído; no ERE proposto, é isso que está acontecendo, e as vozes de quem reclama não são ouvidas. 
 
10. Em termos de mercado de trabalho, qual era sua visão sobre cientistas das religiões como profissionais, e qual é sua visão hoje sobre o tema? 
Quando fui convidado a lecionar na UFJF, o curso de CR já era fato: não estava em discussão. Uma questão como a do mercado de trabalho certamente terá sido ventilada desde o começo do projeto, mas eu não tive ocasião de participar de tais debates. Hoje, sim, com o grave problema social do desemprego, tenho pensado nisso; e vejo que o curso oferece um bom leque de possibilidades. Vou citar apenas algumas. É importante que a pessoa em busca de emprego bata à porta também desses espaços para vender o seu peixe. 
1) A que geralmente é top of mind é a do professor de ERE no Ensino Fundamental. Nunca vi citar, junto com ele, a atividade irmã, da catequese: não no nível de catequista, nem no de coordenadora de catequese, mas em nível de catequeta. (Só para ajudar quem não é do ramo: comparando com outras profissões, catequista é a trabalhadora na base, a operária; coordenadora corresponde à técnica; catequeta é a tecnóloga.) Pelo que acenei há pouco, há alguma possibilidade também em cursos de formação para padre ou pastor, em nível de filosofia ou teologia. Entretanto, há várias outras portas abertas. 
2) Na imprensa falada e escrita e na mídia em geral: notícias, comentários, colunas de jornal ressentem-se de ignorância do assunto religião – na terminologia empregada, nas informações e, principalmente, na ausência de detalhes que o leitor espera. Um jornal ou revista, associação ou empresa que se preza tem que contar com assessoria competente, específica para essa área tão complexa. Claro que profissional nessa área não é apenas o cientista bem informado. 
3) Há muitas ciências que incluem religião em suas pesquisas e atuação: filosofia; teologia; catequética, epistemologia; espiritualidade do ateísmo; cultos afro e indígenas; geografia cultural; história; sociologia; política e relações internacionais; psicologia; pedagogia; antropologia; literatura; direito; ciências da comunicação; linguística; biblioteconomia; jornalismo, e por aí vai. Todas elas precisam de especialistas na área da religião e congêneres. Para ter uma ideia do possível e necessário desenvolvimento de cada setor desses, basta visitar, na UERJ, o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Espaço e Cultura (NEPEC), e a riqueza de suas publicações (por exemplo, da profª Zeny Rosendahl). 
4) Na área das religiões, não basta consultar bibliotecas especializadas ou Google. Há um saber intelectual que, nesse caso, pede aprofundamento que só a experiência vital proporciona: não necessariamente no sentido de pertença a determinada religião, culto ou filosofia de vida; mas, ao menos, de certa imersão respeitosa nas opções de vida de tantas pessoas e grupos. Não podemos pretender que todos os que são chamados, institucionalmente, a pronunciar-se sobre questões básicas, tenham, ou adquiram em pouco tempo, visão clara das questões em pauta. A própria elaboração da BNCC ressentiu-se disso ao tratar do componente curricular ‘religião’. 
 
11. Enquanto formador, o que espera que um egresso do curso de graduação em CR seja capaz de realizar profissionalmente? O que cientistas da religião fazem que outros profissionais não fazem ou não poderiam fazer? 
Creio que a resposta que acabo de dar já abre pistas para desenvolver também essas perguntas tão importantes. Ainda mais que, entre nós, em geral, nota-se pouco aprofundamento dessa temática. Por outro lado, além de professores de ERE, o curso prepara também cientistas, pesquisadores: há momentos em que eles são imprescindíveis. Um exemplo atual: o autoproclamado Estado Islâmico não é um bando de bandidos fora de controle. Recusamos seus métodos; mas o conhecimento da história do islam, do declínio do Império Otomano, com ênfase nos acontecimentos depois da 1a Guerra Mundial (1914-1918), mostra quais são suas mágoas e esperanças, seu ideal. Quanto à convivência de povos com religiões diferentes nas mesmas áreas, sob regime otomano, por que não estudar uma forma moderna de millet (para abordagens amplas e profundas, sugiro buscar na internet em inglês: Ottoman Millet System). O cientista da religião poderia pelo menos equacionar a problemática num discurso caro a muçulmanos, cristãos e judeus. 
 
12. E quais seriam os limites de formados/as em CR? Em que função ou serviço social cientistas das religiões não deveriam exercer, respeitando outras profissões estabelecidas? 
A Religionswissenschaft é tão ampla e profunda em áreas como essas que mencionei, e de tanta responsabilidade, que o formado em CR não pode usurpar o direito de ser perito em todas elas: não pode pretender ser comunicador, psicólogo ou sociólogo, etc. Pelo contrário, devido aos contínuos desenvolvimentos dessas ciências auxiliares do ERE, o professor de ERE ou assessor de Ciências da Religião terá que manter-se atualizado na sua área, e, por isso mesmo, “ter desconfiômetro” para não se intrometer em território alheio. Já temos algumas associações e revistas que levam a sério essa necessidade; mas seria importante estimular e publicar ainda mais o debate de pontos críticos. 
 
13. Quais são suas perspectivas reais sobre a situação profissional de egressos de graduação em CR? Acredita ser o futuro mercadológico incerto ou já encaminha para um amanhã mais favorável? 
Estamos em tempo de mudanças contínuas e muitas vezes profundas: prever o futuro é arriscado, hoje mais que ontem. Atualmente, há incertezas sobre a natureza do ERE e seu futuro. Também há o risco de autoridades privilegiarem teses fracas, mas que têm mais visibilidade, ou que são da maioria. Sou por que o documento sobre as BNCC tenha um prazo maior, antes de oficializar normas sobre o ERE. Trata-se de construir, com calma e suficiente segurança, algo que tenha condições de tornar-se um novo paradigma, reconhecido como realmente “parte integrante da formação básica do cidadão” (Lei no 9475/1997, nova redação do Art. 33 da Lei 9394/1996). Esse novo paradigma não pode ser construído a toque de caixa. Até lá, os que já estão qualificados para lecionar procurem entrar nesse clima de busca, comparação dos modelos, sugestões devidamente refletidas. Na medida em que o ERE for reconhecido como básico no Ensino Fundamental, haverá muita procura por professores e cientistas competentes, habilitados. 
 
14. Quando você começou a defender a distinção entre catequese e ensino religioso escolar, sugeriu que cientistas das religiões fossem os docentes adequados para este último, já nos anos 1970. Poderia explicar o porquê e o como chegou a essa escolha? 
A necessidade de distinguir entre ERE e catequese ficou clara para mim a partir de 1968 – quando tive oportunidade de participar em alguns excelentes encontros nacionais e internacionais de estudo sobre a natureza da catequese católica. Cito 4 destaques:  
VI Semana Internacional de Catequese. Medellín, Colombia, 11-17/8/1968. É importante sublinhar que essa Semana Internacional de Medellín foi o que foi graças à atuação convincente da equipe brasileira, que se preparou intensa e minuciosamente para o evento no Encontro Nacional de Catequese da CNBB, Rio de Janeiro, 1 a 5 de julho de 1968. Quinzena Internacional de Evangelização e Catequese de Adultos, promovido por Paulo Freire, Santiago do Chile, 5-19/1/1969; International Study Week of Mass Media and Catechetics, San Antonio, USA, 22-27/6/1969, do qual já falei; sem falar de numerosos encontros nacionais de alta qualidade. 
Percebi que a nova face da catequese seria tarefa impossível na escola para todos, mas da maior importância para a Igreja. Opinei que cientistas da religião devem assumir o ERE, porque muita gente achava, e ainda acha, que os primeiros candidatos a isso são os que cursaram Teologia. É o contrário: a Teologia, por melhor que tenha sido o curso, pode atrapalhar, e muito. São duas perspectivas e linguagens diferentes. Por brevidade, vou ater-me à diferença profunda entre a linguagem do ERE e a da catequese (ou evangelização, ou seja qual for o nome dessa atividade). 
A escola educa à descoberta, criatividade, ao debate; aceita respostas “erradas” como parte da aprendizagem, sinal de esforço. Raramente usa argumento de autoridade (magister dixit). Quando trata de uma religião, usa a linguagem do observador de fora: os cristãos dizem..., creem..., fala de Maria, a mãe de Jesus. É uma linguagem horizontal, do out group
Também a catequese estimula a criatividade, descoberta, ao debate; mas com frequência apela para a vontade de Deus, a palavra do papa, a tradição da Igreja. É linguagem muitas vezes vertical. Procura ensinar o significado das palavras que aparecem na liturgia – amém, aleluia, liturgia, missa... O nome dos objetos que se encontram na sacristia: missal, turíbulo, incenso, galhetas, âmbula. Fala de Nosso Senhor, Nossa Senhora, a Virgem Maria, Maria Santíssima. É linguagem “de dentro”, do in group
Além disso, eu esperava que CR não se limitasse a religião e religiões e ao sagrado; que abordasse em profundidade a pessoa religiosa. É o caminho para um encontro sereno, respeitoso, fraterno, com pessoas que não professam uma religião porque as religiões que vê não a convencem. São pessoas religiosas sem religião, ou mesmo, contra qualquer religião – porque esperam “mais” dos praticantes, não porque queiram “menos”. Não aceitam falsa propaganda, rótulos bonitos em garrafas vazias. 
Com isso, estamos no terreno da religiosidade no sentido do teólogo luterano Paul Tillich em A Dimensão Perdida. Essa atitude devia fazer parte da espinha dorsal do curso de Ciências da Religião. Com isso, já estamos no terreno da Axiologia, dos valores – um dos ramos da Filosofia. Há estudantes de CR, ou adolescentes que estudam ER na escola, ou algum de seus familiares, frustrados com a superficialidade do que é oferecido como CR ou ER. Não podemos generalizar; mas, parece que os cursos de CR ainda são poucos e, desses poucos, espera-se algo mais incisivo, formativo. 
Na falta de suficientes cursos de CR, eu sugeria que se aceitassem também licenciados em Filosofia, mas com cursos intensivos de atualização no que diz respeito aos princípios básicos e à didática do ERE. E se não houver nem isso? Então, aproveitem-se os formados em Ciências da Educação (Pedagogia). Ou seja: o ERE tem que ficar na mão de gente formada em Ciências Humanas com suficiente visão das bases do ERE. 
Quando, em 2015, saiu a 1ª versão de BNCC, com a página de Apresentação do então Ministro da Educação, professor Renato Janine Ribeiro, respirei aliviado. Muito bom o truísmo inicial: “A Base é a Base”. Em BNCC – 1ª versão, os princípios iam nessa linha, visando a formação dos estudantes no que compete ao ERE. Infelizmente, a segunda parte do texto para debate, a parte da aplicação didática, discordava dos princípios: mais preocupada com conhecimentos a adquirir, dava a impressão de um mini curso de Ciências da Religião: apresentava mitos, ritos, símbolos, tradições de religiões diversas, mas que trazem as mesmas mensagens de paz, fraternidade, respeito mútuo. Essa temática torna-se até cansativa por sua repetição. Na realidade, é uma simplificação que não se sustenta: símbolos semelhantes em sistemas religiosos diferentes são portadores de mensagens diferentes. Não só: é fácil cultivar paz, fraternidade, respeito mútuo quando há (ou parece haver) tanta semelhança; o que se deseja promover é paz e respeito mútuo apesar de grandes e profundas diferenças. 
Mais grave é a base que continua nas versões seguintes da BNCC. O mundo, o país, o ambiente em que o estudante vive, estão passando por uma crise biocultural forte, profunda, geral, como nunca houve nos últimos 5 mil anos: a família não é mais a mesma, as religiões estão passando rapidamente por mudanças sem igual; até os estudos no Ensino Fundamental (e Médio) estão muito diferentes. Os jovens, sua vida, seus sonhos e pesadelos, gostos e divertimentos, tudo é tão diferente do que viveram seus pais e mesmo, irmãos mais velhos. Enquanto o barco faz água, nós discutimos de que cor vamos pintar o casco. É isso que esperamos do ERE hoje, aqui? 
Para uma religião como a católica, que mantém sua rede de catequese com crianças, jovens e adultos, ou outra que tenha organização semelhante, esse ERE que propomos serve como preparação do terreno para nele ser lançada a semente da fé: não só não atrapalha, mas é de grande utilidade. O mesmo vale para alunos de educação ateia em casa: a educação aos valores oferecida pela escola é tipicamente laica e respeitosa de toda e qualquer convicção sadia. 
Em Minas Gerais, tivemos uma experiência que faz pensar. Vou apresentá-la sem comentários. De 1978 a 1981 fui membro do Conselho de Educação do Estado de Minas Gerais, indicado pelo Secretário Estadual da Educação: ele ficou conhecendo através da esposa, a nossa proposta de ERE, e queria que ela fosse examinada e encaminhada pelo CEE [Conselho Estadual de Educação]; como de fato foi. Fui relator, na Comissão criada para isso, de um parecer e anteprojeto de resolução, umas 30 páginas, com o título “O Ensino Religioso nas Escolas Oficiais de 1º e 2º Graus do Sistema Estadual de Ensino - Estudo preliminar”; o opúsculo foi enviado a todas as autoridades estaduais na área da educação, e a todas as autoridades religiosas do Estado. A todos, também entidades e pessoas particulares que quisessem, foi pedido que se pronunciassem sobre a proposta, e colaborassem com observações e sugestões num prazo de 4 meses. 
Resultado: todas as autoridades educacionais aprovaram a proposta, colaborando com oportunas observações. Uma estudante que tinha terminado o ensino médio, espírita, mandou uma bonita carta, declarando: “este Ensino Religioso tem todo o meu apoio”. Quanto aos bispos: nomearam um arcebispo, encarregado de recolher a resposta, por escrito, de cada bispo de Minas Gerais; sintetizar essas respostas, e enviar a síntese ao CEE. O arcebispo escolhido preferiu não fazer a síntese: em seu lugar, entregou a cada conselheiro uma pasta contendo xerox de cada uma dessas respostas. Quase todos os bispos manifestaram-se contrários ao modelo não confessional de ERE proposto pela comissão. Não só: consta em ata, que um pequeno grupo por eles escolhido foi diretamente ao governador, explicando sua posição. O governador garantiu-lhes que não homologaria a resolução, quando ela chegasse às suas mãos. Diante disso, para evitar enfrentamento inútil com o Governador, o CEE retirou o anteprojeto da pauta. Honra seja feita: a convite da comissão responsável pelo anteprojeto, o arcebispo porta-voz do grupo, atuante na educação, foi ao CEE para explicar sua rejeição. Iniciou sua fala com a seguinte afirmação: “Sem dúvida, teremos que chegar a um ERE assim; mas, ainda não temos condições para aceitá-lo”.
 
15. Gostaria de dizer mais alguma coisa sobre a temática da minha tese? 
Gostaria, sim, Matheus: a respeito do foco da sua tese. Mesmo que não o diga expressamente, você investigou as motivações dos que lutaram para implementar o curso de Ciências da Religião na UFJF, dos que nele se inscreveram nos inícios, e dos que atualmente pensam em inscrever-se. Esse curso tem futuro? Do ponto de vista profissional, vale a pena? 
São perguntas diferentes que convergem para um mesmo foco, na verdade pouco explorado, se é que alguém já o explorou em tese de doutorado. É uma inquirição realista. Nas entrelinhas, pareceu-me sugerir que, na criação do curso, pode ter havido interesses ocultos. Será que os alunos de CR têm sido “laranjas” para beneficiar outras pessoas ou instituições? Esta sua preocupação, Matheus, é importante: afinal, tanto no curso de CR como no ERE, a referência nº 1 há de ser o estudante, o universitário, enquanto se preocupa com seu futuro trabalho, trabalho esse que, na maioria dos casos, será em benefício do estudante de ERE. 
Considero que, só pelas minhas respostas, não se chega a uma conclusão a respeito disso. Lendo as suas perguntas, também eu quis repensar o pouco que eu vi e vivenciei. Cheguei aos seguintes elementos: 
1. A autoridade eclesiástica de Juiz de Fora era contra o curso [de CR]: tanto assim, que conseguiu evitar que ele fosse aprovado pelo MEC. 
2. O governo militar da época tinha suspeitas: tanto assim que, em todos os semestres, nas aulas, havia olheiros militares, inscritos sem terem feito exame vestibular. 
3. Entre os professores, eu era um corpo um tanto estranho, pois não participava de reuniões, festas, formatura. Apenas participei com o Pe. Snoek na redação do pedido de aprovação. Mas, quando atacado na imprensa por um colega, defendi minha atuação e a turma como um todo. Pessoalmente, não tinha motivações ocultas: a ida semanal a Juiz de Fora era um tanto desgastante, por causa dos muitos afazeres que eu já tinha; mas eu gostava, por causa do ambiente com os estudantes, tão amigos e interessados, e com os dois professores que eu conhecia, pela riqueza de sua personalidade. 
4. O Pe. Snoek. era uma pessoa totalmente dedicada à causa da educação. Não teve outro interesse quando da criação do curso de Serviço Social: por ocasião da primeira formatura, ele foi escolhido para ser paraninfo da turma. Aceitou, mas foi proibido pelo exército de fazer o discurso de formatura. Não se intimidou: presidiu a celebração da missa, e na homilia disse tudo o que tinha preparado para o discurso. Não houve nenhuma sequela. Não era nem radical nem alheio aos problemas da época. Mas, por que pensou num curso de CR? Foi o sentido de sua pergunta nº 9, não é? 
Tenho a impressão de que a vantagem para seus seminaristas pode ter influenciado. Mas essa influência, se houve, seria apenas a ponta do iceberg. Como eu disse acima, a criação de um curso de CR beneficiaria não só a meia dúzia anual de seminaristas, estudantes de CR na UFJF: poderia ser o início de algo novo não só no Brasil, mas na formação do clero em todos os continentes. Nesse caso, o benefício de uma Igreja menos clericalista reverteria para a sociedade em geral. Repito, essa visão de futuro nunca esteve presente em nossas conversas. Será que um dia esse sonho se tornará realidade? Seria mais um benefício da sua tese, Matheus. 
W. Gruen – BH, 2/1/2018
 
* Graduado (UNIMONTES-MG), mestre e doutorando (PUC-SP) em Ciência da Religião. Bolsista da Capes/Fudasp. Contato: matheusskt@hotmail.com. Submetido em 06/05/2018; aceito em 23/04/2019. 

 
 
REFERÊNCIAS
 
 
ALBERTS, Wanda. The academic study of religions and integrative religious education in Europe. British Journal of Religious Education, v. 32, nº 3, 2010, pp. 275-290. 
 
DÍEZ DE VELASCO, Francisco. La enseñanza de las religiones en la escuela en España: avatares del modelo de aula segregada. Historia y Memoria de la Educación, nº 4, p. 277-306, 2016. 
 
GRUEN, Wolfgang. O “ensino religioso” na escola pública: subsídio à reflexão. Belo Horizonte: Universidade Católica de Minas Gerais, 1976. 
 
GRUEN, Wolfgang. O ensino religioso na escola. Petrópolis-RJ: Vozes, 1995. 
 
JENSEN, Tim. RS based RE in public schools: A must for a secular state. Numen, v. 55, nº 2, 2008, pp. 123-150. 
 
SCHREINER, Peter. Religious Education in the European Context. In: HERJ – Hungarian Educational Research Journal, vol. 3, nº 4, 2013, pp. 4-14. 
 
SILVA, Antonio Francisco da. Idas e vindas do ensino religioso em Minas Gerais: a legislação e as contribuições de Wolfgang Gruen. Mestrado em Ciências da Religião. São Paulo: PUC-SP, 2001. 
 
USARSKI, Frank. Ciência da Religião: uma disciplina referencial. Em: SENA, Luzia (org.). Ensino religioso e formação docente: Ciências da Religião e Ensino Religioso em diálogo. 2ª Ed. São Paulo: Paulinas, 2007, pp. 47-62.

Um comentário:

Francisco José dos Santos Braga disse...

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
Até agora, o Blog de São João del-Rei apresentou o que outros disseram sobre a vida do professor e helenista Pe. WOLFGANG GRUEN e, por mais impressionante que seja, não se compara com a autobiografia resumida por ele a seu aluno MATHEUS OLIVA DA COSTA, no início de 2018.
Ao ler este trabalho, o leitor se surpreenderá com a capacidade de adaptação e resiliência de meu professor entre os anos de 1968 a 1970 na FDB à evolução dos tempos, sempre pronto a fazer a viragem que dele a circunstância exigia.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/02/entrevista-com-wolfgang-gruen-sobre-sua.html

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei