quarta-feira, 15 de outubro de 2025

CURIOSIDADES BIOGRÁFICAS: EMÍLIO DE MENEZES

Por RAIMUNDO DE MENEZES *

Artigo originalmente publicado em O Estado de São Paulo, edição de 23/01/1946, p. 5.

 

Emílio de Menezes (✰ Curitiba, 4/07/1866 ✞ Rio de Janeiro, 6/06/1918)

Emílio de Menezes, poeta e boêmio, nascido em Curitiba, descendente de um casal pobre, cujo chefe, funcionário provincial, versejava nas horas vagas, surgiu como uma exceção, numa fila de seis irmãos, revelando-se um caçula dos mais desabusados e levados da breca. 
Ainda meninote, ajudado por um cunhado farmacêutico, passou a praticar no balcão modesto de sua botica, familiarizando-se com drogas e panaceias, e manuseando, numa curiosidade insatisfeita, as páginas coloridas do "Chernoviz". 
O convívio dos venenos havia de, fatalmente, envenenar-lhe a ironia", acentua Humberto de Campos. 
Com 18 anos, magro, magríssimo, exibindo roupas bizarras, cuja gravata, em borboleta, era um escândalo, que o chapéu de feltro, de abas largas, aplaudia e completava, tornara-se a nota espetacular da pequena capital provinciana. Incompatibilizado, em pouco tempo, com meio-mundo, em consequência das suas piadas perversas e malignas, com que acicatava os que lhe chegavam ao alcance, o jovem Emílio, fatigado da Província, que já há muito o entediava, resolveu emigrar para a Corte. Amigos generosos cotizaram-se e pagaram-lhe a passagem. De posse de cartas de apresentação, entre as quais figurava uma para o prof. Coruja, rumou para o Rio de Janeiro. Ali em breve se enamorou de uma das filhas do velho latinista. Em 1890, tornava a Paranaguá, agora casado e com um emprego federal. Pouco demorou. Tinha as vistas voltadas para a rua do Ouvidor. 
No seu regresso, a febre do Encilhamento entontecia todas as cabeças. Afundou-se no delírio das negociatas fáceis, foi feliz e teve vida nababesca. Começou a engordar por encanto. A prosperidade econômica fizera-se acompanhar da prosperidade das banhas. E quando a primeira fugiu, a segunda, mais leal, mais persistente, mais firme, não abandonou o boêmio. Ficou pobre, mas estava gordo". 
Com a figura popularíssima de gigante feliz, carão redondo e vermelho, papada vasta derramando-se sobre o colarinho, chapelão de mosqueteiro descuidado, grande bengala com que gesticulava, passou a distribuir perversidade a torto e a direito, contra tudo e contra todos, tendo a coroar-lhe as maldades beliscantes as gargalhadas ruidosas do seu próprio criador, que era quem mais ria e gozava as suas criações. 
Poeta parnasiano dos mais primorosos e poeta satírico dos mais ferinos, deixou uma obra que lhe ensejou a eleição para uma vaga na Academia Brasileira de Letras e uma derramada consagração popular que se perpetuou até nossos dias. No Silogeu não chegou a tomar posse porque, temperamento altivo e independente, se insurgiu contra a censura que quiseram impor ao seu discurso oficial. 
E assim transitou pela vida, sem qualquer preocupação pelo dia seguinte e, quando veio a despertar da longa caminhada, com a saúde corroída pelo álcool, estava só, não tendo ninguém a segui-lo, havendo deixado para trás a companheirada alegre, uns casados, outros integrados na vida séria, e muitos tombados pela morte  enquanto ele era o único, o último boêmio de toda uma geração que fizera época
 
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Emílio de Menezes logrou derramada popularidade entre os rapazes da Faculdade de Direito de São Paulo, no último quartel de sua vida. Assim é que, a 15 de maio de 1915, esteve nesta Capital, de passagem para Poços de Caldas, à procura de melhoras para a sua saúde. Os moços acadêmicos foram buscá-lo no hotel. Trouxeram-no em farândola ¹ até o velho casarão do Largo de São Francisco, e improvisaram, às 13 horas, uma sessão literária em sua homenagem. Presidiu à reunião, no salão nobre, o bacharelando Moacir Piza. Saudou-o, em nome da classe, o bacharelando Dolor de Brito. Emílio de Menezes improvisou um soneto em agradecimento, que declamou com o seu vozeirão sonoro: 
 
Vossa gloriosa mocidade inspira, 
Neste consolo aos meus cabelos brancos, 
A derradeira corda desta lira. 
Quero que estale em vossos braços francos. 
 
          Deixai que o cisne o canto aqui desfira 
          Nalguns versos insípidos e mancos. 
          É o gemido que sobe em tênue espira, 
          De uma musa nos últimos arrancos. 
 
Vós sois a vida em toda a plenitude. 
Sois a ilusão, o anseio, o sonho, a ideia. 
Eu sou quem já não sonha, nem se ilude. 
 
          Por isso, aqui na amada Pauliceia, 
          Ouvis de um poeta, na decrepitude, 
          Um mau soneto em vez de uma epopeia. 
 
Ao final, foi um escachoar de aplausos que se derramou pelos corredores afora. Outros sonetos foram recitados, inclusive o Envelhecendo", um dos mais primorosos do poeta. 
Depois de visitar a Faculdade, Emílio de Menezes, saudado pelos "vivas" entusiásticos dos acadêmicos, retirou-se seguido de uma comissão de rapazes, que o acompanhou até o "Hotel Rebecchino" ², onde estava hospedado. Antes, porém, se deixou fotografar, em meio da mocidade, sob as tradicionais Arcadas. 
 
*
A 9 de setembro de 1915, Emílio de Menezes, estando novamente em São Paulo, recebeu uma homenagem dos intelectuais paulistanos, que realizaram um "pic-nic" no Bosque da Saúde, em que tomaram parte: Amadeu Amaral, Monteiro Lobato, Roberto Moreira, Júlio de Mesquita Filho, Plínio Barreto, Madeira de Freitas, Sinésio Rocha, Dolor de Brito, Oswald de Andrade, Antônio Define, Raul de Freitas, Simões Pinto, Jacomino Define e Artur Mendes. 
Durante o convescote, foi o grupo "fotografado", e depois disputaram partidas de "bocce" ³, sendo digna de nota a que jogaram Amadeu Amaral e Emílio de Menezes. 
O escritor Monteiro Lobato, em carta de 21/9/1915, dirigida a Godofredo Rangel, dá a sua impressão dessa festa: 
"A minha estada aqui, graças à popularidade que O Estado" deu ao meu nome, foi fértil em conhecimentos novos, entre os quais Emílio de Menezes, o viperino. Estive numa comilança a céu aberto a ele oferecida pelos 30 de Gedeão  das letras paulistanas, lá no Bosque da Saúde  sub tegmine fagi , como disse o Juó Bananère . Emílio tem fama do homem de mais espírito deste país. E é o motu-contínuo da graça. Ri-me tanto, que voltei para casa com os músculos faciais doloridos e talvez inchados. Emílio é ator de incomparável máscara e senhor de todos os truques psicológicos que desmandibulam os homens mais sisudos". 
Poucos dias antes de morrer, recebeu Emílio de Menezes a visita do poeta Alberto de Oliveira que, em carta, descreveu depois a seu irmão Bernardo esse encontro: 
"Coitado do Emílio, é um caso perdido. Acertei bem com a casa. Bati. Abriram-me. Fizeram-me entrar para o quarto. Emílio reconheceu-me logo: Alberto! Estava deitado. Dei-lhe um beijo na testa: 
Então, querido amigo, disseram-me que estavas pior do que me parece; estás até com uma boa fisionomia... 
Achas? Pois olha, Alberto, quando chegaste eu estava a rir-me sozinho, pensando no logro que vou pregar nos bandidos dos vermes. 
Qual é o logro, Emílio? 
É que eles estão a esperar-me, contando que vou dar-lhes uma banquete de banhas, daquelas minhas banhas tradicionais. Mas terão de contentar-se é com um banquete de ossos, Alberto. 
E Emílio que estava deitado, coberto de alto a baixo com uma colcha azul, puxou esta para baixo até a cintura e disse: 
Estás vendo, Alberto? É só osso. As banhas foram-se. 
E era isso mesmo". 
 
 *
 A morte de Emílio de Menezes dá-nos a impressão estranha que deve ser semelhante à de um grego antigo ao ouvir a nova da morte de um deus..." 
Foi com esta frase que "O Estado de S. Paulo", através da pena brilhante de Amadeu Amaral, anunciou aos seus leitores o desaparecimento do poeta e boêmio paranaense. 
 
*  Raimundo de Menezes (✰ Fortaleza, 1903 ✞ São Paulo, 1984) foi, além de escritor, jornalista de "O Estado de S. Paulo", advogado, dicionarista e enciclopedista. Em 1969, sucedeu Guilherme de Almeida em sua cadeira 22 da Academia Paulista de Letras (APL). Além de ter publicado pela Editora Saraiva o monumental Dicionário Literário Brasileiro, foi um líder dos escritores brasileiros, escrevendo-lhes biografias, muitas delas premiadas, e homenageando vários mestres de nossas Letras, ainda em vida. Recebeu prêmios da Academia Brasileira de Letras, do Ministério da Educação e Cultura, da Câmara Brasileira do Livro e do Pen-Clube de São Paulo por suas obras. Foi diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo (hoje Secretaria Municipal de Cultura). Publicou, dentre outras obras: Escritores na intimidade, Aconteceu na velha São Paulo, Coisas que o tempo levou e Emílio de Menezes: O último boêmio.
 
II. NOTAS EXPLICATIVAS pelo gerente do Blog
 
 
¹ Dança em cadeia animada, popular na Provença (França) e Catalunha (Espanha), executada em fila, que se caracteriza por ser comunitária, em que os dançarinos formam uma corrente, geralmente dando-se as mãos; estes, seguindo os passos apresentados pelo líder da linha, serpenteiam pelas ruas ao acompanhamento de gaitas de fole e tambores. Outro significado para o termo é "grupo de pessoas que dançam juntas em uma festa ou celebração". 
 
²  Edifício construído em 1903 e projetado pelo arquiteto Ramos de Azevedo, é um dos mais luxuosos da região do Largo São Bento, situado na esquina da rua Cásper Líbero com a rua Mauá. Nos últimos tempos, teve seu nome alterado para Hotel Queluz. 
 
³  Também conhecido por jogo de bocha (bola), é um esporte jogado entre duas equipes, cada qual tendo direito a seis bochas (bolas) na modalidade trio, quatro bochas na modalidade de duplas — duas para cada atleta —, e quatro também na modalidade individual. O jogo de bocha é de origem italiana e seu surgimento se deu no tempo do Império Romano. 
 
Quanto aos referidos "30 de Gedeão", suponho tratar-se de uma associação literária, embora não tenha encontrado qualquer referência a ela no Google.
É mais conhecida a citação de "Gedeão e os 300" na Bíblia. "Gedeão e os 300" é uma história narrada no livro de Juízes, no Antigo Testamento. Gedeão foi um juiz de Israel que Deus escolheu para libertar seu povo da opressão dos midianitas. A história é conhecida por sua demonstração de fé e obediência, pois Gedeão, inicialmente com um exército de 32.000 homens, foi instruído por Deus a reduzir seu número para apenas 300. O significado desta história reside na ideia de que, com Deus, a vitória não depende de números ou força humana, mas da fé e da obediência a Ele. 
 
Trad. À sombra da faia (expressão que exprime a doçura da vida campestre), extraído de Virgílio: Bucólicas, 1, 1. 
Também é título de famoso poema escrito por Castro Alves que traz como tema central a relação entre o campo e a poesia. Aí o poeta compara o campo a um ninho que abriga a inspiração e favorece a conexão com Deus. Além disso, também explora a ideia de que a alma encontra sua melhor expressão na natureza, em contraste com o ambiente urbano (donde "sobe esta blasfêmia de fumaça das cidades p'ra o céu") e com a tendência humana de buscar trevas e obscuridade. 
 
Pseudônimo usado pelo escritor, poeta e engenheiro brasileiro Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (1892-1933) para criar obras literárias num patoá falado pela expressiva colônia italiana de São Paulo na primeira metade do século XX.
 
 

III. AGRADECIMENTO

 

O gerente do blog manifesta seu agradecimento ao Acervo do Estadão, graças ao qual foi possível a transcrição da presente relíquia literária.

 

IV. BIBLIOGRAFIA


MENEZES, Raimundo de: Emílio de Menezes: O último boêmio, São Paulo: Edição Saraiva, 2ª edição refundida, 1949, Coleção Saraiva nº 13, 244 p.

 

Um comentário:

Francisco José dos Santos Braga disse...



Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
O Blog de São João del-Rei tem o prazer de transcrever o artigo de RAIMUNDO DE MENEZES, em que contrapõe a verve satírica do seu biografado com versos irônicos e jocosos da juventude e maturidade, com a reflexão austera do final da vida sobre o envelhecimento, a morte e a vida pós-morte.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/10/curiosidades-biograficas-emilio-de.html

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei