Por José Carlos Hernández Prieto
Rugiam os
vagalhões das ondas em 7 de março de 1911, batendo a costa norte da Espanha,
mais precisamente em El Ferrol, base naval protegida do oceano proceloso pelas
reentrâncias desse fiorde galego. Era inverno no hemisfério norte. Inverno
daqueles antigos, frigidíssimo. Estação das águas sem fim. É tentador imaginar o
vento e as rajadas de chuva açoitando as paredes da casa, onde, naquele dia, nascia,
no aconchego da lareira, uma menina a que deram o nome de Ramona.
Ramona
Ferraces Seijo. Esse foi seu nome no registro civil. Veio ao mundo numa família
numerosa. Ela e mais oito irmãos. Seu pai era oficial da Marinha e, por esse
motivo, servia na base naval. Viveu seus anos de infância e juventude naquele
ambiente militar, cristão, austero e dedicado ao bem comum. A tal ponto que dos
nove irmãos, três moças – Ramona entre elas – abraçaram a vida religiosa.
Ramona em sua juventude laica |
O jornal “La
Merced”, da Venerável Ordem Terceira e Confradias de Madrid, publicava, em
seu número de 15 de março de 1936, a notícia enviada pelo Convento de Zumárraga
(no País Basco espanhol), dando conta que, em 2 de janeiro de 1936, (em
tradução livre) as postulantes que tomaram o Santo Hábito Juana Lete,
Antonia Larrarte, Lucía Maiz e Ramona Ferraces receberam os nomes de
Sor. Maria Rosario, Sor. Juliana de Jesús, Sor. María Ascensión de Jesús e Sor.
Gemma de Jesús.
Convento de Zumárraga - País Basco Espanhol |
A partir daí,
Ramona passou a se chamar Gemma de Jesús. Eram tempos difíceis na Espanha.
Tinha sido proclamada a república. A agitação comunista, patrocinada por
Stalin, incendiava o país. Arderam igrejas, conventos... morreram padres e
freiras. A história nos dá conta de cerca de vinte mil igrejas e conventos
arrasados e queimados e quase sete mil sacerdotes e religiosas assassinados
(entre eles, treze bispos). Isso tudo, apenas entre 1931 e 1939, período que
durou aquela república de triste memória. Não foi à toa que o Vaticano, ao
longo dos três últimos pontificados, beatificou 1.253 mártires da fé. Todos
eles, assassinados na Espanha naquele período. João Paulo II beatificou 233 em
2001; Bento XVI fez o mesmo com 498 em 2007; e Francisco, com 522 em 2013,
conforme noticiava o jornal “Folha de São Paulo” em 13.10.2013.
Igreja vandalizada na década de 1930 |
Previsivelmente,
esse estado de coisas não podia durar. O exército sublevou-se em 18 de julho de
1936 para tirar a Espanha dessa hecatombe. Começava a guerra civil, que duraria
até 1939. No início da guerra, nossa Irmã Gemma estava no convento de
Zumárraga. Essa cidade permaneceu em poder dos comunistas até 20 de setembro de
1936. Esses dois meses foram muito tensos. Não obstante todo o ódio instilado
pela filosofia comunista e pelo stalinismo contra a religião, as irmãs do
convento não deixaram de fazer aquilo para o qual tinham dedicado sua vida: a caridade.
Caridade para com os combatentes comunistas feridos em batalha..., que acorriam
aos cuidados das freiras, nesses aflitivos momentos em que se viam entre a vida
e a morte...
Em Zumárraga,
os comunistas locais capitularam em 20 de setembro daquele ano. Mas boa parte
da Espanha ainda sofreria os horrores da guerra, até março de 1939. Nesse meio
tempo, a irmã Gemma manifestou seu desejo de ser missionária no Brasil. Seu
desejo foi atendido. Vieram algumas freiras. Mas, por causa da guerra, a viagem
foi cheia de tribulações. Os portos da Espanha estavam minados. Então, tiveram
que ir por terra, atravessar a fronteira, até Lisboa, para só então embarcar
rumo ao Brasil.
Chegaram em 20
de julho de 1938. Aqui, a irmã Gemma foi “rebatizada” como Gema, nome que
conservou e com o qual a conhecemos. Desenvolveu seu trabalho em vários pontos
deste país: Campos do Jordão, Recife, São João del-Rei, novamente Campos do
Jordão, Paraná e, por fim, para não mais sair, São João del-Rei.
Especificamente
a São João del-Rei, as irmãs mercedárias chegaram em 21.06.1948, tal como
consta em placa comemorativa afixada no saguão de entrada do Hospital de N.
Sra. das Mercês. Tinham vindo atendendo aos pedidos da direção do hospital, que
vinha sendo construído desde abril de 1942. No início, a irmã Gema (tal como as
demais irmãs mercedárias) dedicou-se a ajudar na implantação do Hospital. Era
incansável. Acordava cedo. Assistia à missa diariamente às cinco da manhã na
Matriz do Pilar e, com a força revigorada pela fé, um dia saía de ônibus
visitando todas as fazendas da redondeza e pedindo ajudas para a construção do
hospital. Noutro dia, suas andanças eram por toda a cidade. Voltava tarde, mas
com a satisfação de ter combatido o bom combate. Seus esforços não foram em vão
e o Hospital foi inaugurado, ainda inacabado, em 05 de novembro de 1949. As obras
se estenderam até o ano seguinte, quando o edifício foi totalmente concluído.
Hospital N. Sra. das Mercês em construção |
A partir daí,
a irmã Gema compatibilizou suas atividades no hospital com uma nova missão:
desenvolver sua obra social no bairro Tijuco, onde promovia aulas de corte e
costura para moças e servia sopa às crianças. Sempre gostou muito de futebol e,
por causa disso, promoveu times de futebol feminino, incentivando as moças
através do esporte. Fundou também uma fábrica de bolas de futebol nas
dependências de sua obra social.
Seria ocioso
repetir aqui o quanto a irmã Gema representou em termos de trabalho social e
abnegação cristã a serviço dos mais carentes nesta São João del-Rei. Era
incansável na procura de recursos entre os poderosos (políticos, doutores,
empresários, etc.). Seus contatos ultrapassavam fronteiras. Graças a Deus (e
graças a ela), pode-se dizer que sua vida foi de uma eficácia sem par a serviço
de sua obra.
Comemoração dos 100 anos de Irmã Gema - 2011 |
Conheci a Irmã
Gema quando eu ainda era criança, pouco tempo depois que cheguei a São João
del-Rei, com meus pais e irmãos, em novembro de 1960. Logo que chegamos, vindos
da Espanha, ficamos sabendo que existia um hospital administrado por freiras
espanholas. Não demorou muito, e fizemos uma primeira visita às freiras. Para
conhecê-las, e para que nos conhecessem. Começou então uma longa amizade da
família com as irmãs. As visitas ao hospital se sucederam e viraram rotina.
Sempre aos domingos à tarde! A amizade rendeu frutos. Dando um exemplo, entre
muitos, tive a satisfação de ver meus dois filhos nascerem pelas mãos amorosas
da saudosa Irmã Eleutéria, antes que o também saudoso Dr. Cid Valério pudesse
terminar os partos, ambos naturais.
Já viúva,
minha mãe, sabendo da paixão da Irmã Gema pelo futebol, passou a convidá-la para
almoçar, naqueles domingos em que a televisão transmitia, à tarde, jogos do
Real Madrid, time de coração da Irmã. Nessas ocasiões, minha mãe se esmerava no
almoço, preparando-o com todos os ingredientes indispensáveis a uma autêntica paella
a la marinera, recheada com todos os frutos do mar de praxe. Almoçando, a
Irmã dizia que podia sentir o cheiro do mar. Daquele mar bravio que conheceu,
ainda menina, nas costas galegas batidas pelas ondas e pelos ventos.
Após aqueles
almoços, lembro-me, com muito carinho e saudade, das duas sentadinhas no sofá
da sala. Minha mãe, fazendo-lhe companhia. E a Irmã Gema, torcendo, vibrando e
até reclamando do juiz (sem palavrões, claro), quando este “fazia por merecer”,
como ela dizia. Naqueles breves momentos, a Irmã Gema permitia-se dar lugar à “Doña
Ramona” que renascia dentro de si, apreciando as jogadas do Real Madrid,
daquele time “merengue”, todo vestido de branco. Da mesma cor imaculada do seu
hábito, o qual nunca abandonou.
Ela nos
deixou. Na missa de corpo presente, podia-se, ao lado de seu ataúde, sentir o odor
de santidade que dele exalava e inebriava o ambiente e os presentes à sua
volta. Que me perdoe a Congregação para as Causas dos Santos, mas, ouso dizer
que pressinto ter tido a honra de conhecer pessoalmente uma santa. Em seu
devido tempo, o Vaticano dirá se me assiste razão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. http://www.todocoleccion.net/militaria-fotografia/el-ferrol-1910-arsenal-dique-san-juan~x50630306
2. La Merced
– Órgano de su Venerable Orden Tercera y Cofradías – Número 3 – Editorial
Católica Toledana, 15.03.1936, p. 95.
9. Grêmio
Espanhol – 100 anos de História – 1911-2011 – José Carlos Hernández Prieto...
[et al.] – Belo Horizonte: Speed, 2011, p. 192.
10. Arquivo
particular.
OBS.: Todas as leituras dos links acima foram
feitas em 12.11.2015.
2 comentários:
Ótimo! Merecida homenagem e biografia a um grande nome que ajudou a engrandecer São João del-Rei, deixando atrás de si um grande trabalho social e religioso.
Grato pelo envio.
Abç. atencioso,
UP.
Querido irmão Francisco,
Gostei do texto da Ir. Gema. Bom saber da vida dela e tb que ela foi tão importante para a construção do hospital. Eu desconhecia isso.
Beijos,
Petete
Postar um comentário