Por Antônio Gaio Sobrinho
Era o dia 25 de março, segundo uma antiga convenção. Ao entardecer, lá vão eles abraçados, enamorados, apaixonados. Ele com, talvez, 25 anos; ela com 17, se tanto. Ambos, portanto, jovens, no esplendor da existência, no apogeu de sua beleza. Cheios de futuro, multiplicados de ideais, desenhados de sonhos. Sonhos misturados de medos e interrogações. Pois que a vida não é nada fácil para ninguém, muito menos para um casal de noivos, pobres e analfabetos. Mesmo com Deus do lado, como se crê, a vida é luta, que se enfrenta com lágrimas, suspensão, dúvidas e incertezas. Mas, apesar de tudo, a ousadia é característica da juventude. E, naquela tarde, algo lhes dizia: coragem, tenham confiança! Talvez, apenas uma suspeita, senão mesmo um anúncio, vinda num rumor de asas, como descidas do céu, mensageiras de uma Boa Nova. As mulheres costumam ser mais perceptivas e sensitivas do que os homens. Enquanto ele cismava, sem muito entender daqueles presságios, ela sentia, num arrepio, como se ouvisse no murmúrio do vento, a voz de um Anjo a sussurrar-lhe: Alegra-te, ó graciosa, porque Deus está contigo; benditas são em ti, todas as mulheres! E, inteira, íntegra e plena na sua virgindade, ela se entregou totalmente àquele devaneio, disponível para tudo o que desse e viesse, dizendo baixinho: Que assim seja!
Maria era como qualquer outra mocinha da Galileia, ou como qualquer adolescente brasileira, cheia de sonhos e fantasias. José, um moço, igual a tantos que, por aí, acalentam planos e desejos de uma família com muitos filhos e filhas. Entrementes, o dia se fora e já era noite; uma noite linda, cheia de estrelas e calma, quando eles entraram, de mãos dadas, na casinha que ele mesmo havia construído, em Nazaré, na espera desse dia. Lá dentro, na solidão daquele silêncio, na intimidade daquele quarto, que só lhes dizia respeito, José e Maria eram tudo de verdade, tudo de bom; tudo de belo, e de prazeroso. Para José, Deus era Maria; e, para Maria, Deus era José. No meio do curso daquela noite, cheia de encantos e de mistérios, quando um profundo silêncio envolvia todas as coisas, na paz daquele aposento, a onipotência do amor humano, que divino também era, se revelou no encontro de duas juventudes para reinventar a vida e renovar a esperança. Naquele idílio, o Verbo de Deus, a Palavra, com que Ele se define – Agapê/Cháritas|Amor – se fez carne no útero de Maria. Por isso, aqui, agora, em memória daquela hora, diante desse Magnum Mysterium, vale bem que façamos um minuto de silêncio e contemplemos, reverentes, aquela vida que ali principiava.
Hoje são 25 de dezembro, também convencionado. Nove meses se passaram. Uma jovem grávida passa ancorada no braço de um homem, em busca de um lugar adequado. A barriguinha de Maria tornou-se saliente, para fora e para diante. Mal acomodada, segundo dizem numa gruta entre animais, o enjoo, o mal-estar, os desejos inusitados, tudo agora cede lugar às dores e às contrações. Dores fortes que, se não intermitentes, seriam insuportáveis. Porém são dores que prenunciam alegrias, dores carregadas de esperanças, grávidas de futuros. Dos seus gemidos brotam sorrisos, e a noite, lá fora, toda se ilumina. Enfim o choro, o choro tão desejado, o choro mais bem-vindo, o choro que fez dela uma mãe. José acolhe o nenenzinho nas mãos e lhe diz: Filhinho, você se chamará Jesus! E, afetuoso, com um beijo, o depõe junto ao seio de Maria, que, feliz, o aconchega para a primeira mamada: Beatus venter qui te portavit et ubera quae suxisti!
Diante desse mistério, no portento desse milagre, que sempre se repete em tantas outras marias, só nos cabe, respeitosamente, pausar, calar e pasmar. Porque ali, naquele gesto de amor: benignitas et humanitas apparuit Salvatoris nostri Dei. Que espanto, que admiração desce sobre nós nessa cena, que embevece o universo! Quanta ternura nesse quadro que fascina poetas, que inspira compositores, que ilumina pintores, que deslumbra escultores! Regozijemo-nos, pois, desse acontecimento que dividiu o tempo da história, que mudou a história do mundo. Parece que descem anjos do céu a terra, brincando nas asas do vento, e cantando: Gloria in excelsis Deo! Acabaram-se as dores; sequem-se, pois, as lágrimas da tristeza; retirem-se as tarjas do luto; substitua-se o roxo dos altares pelas cores da festa; afugente-se o desencanto dos corações, porque abriu-se, nos ares, um arco-íris de esperanças. O inverno passou, já desponta a primavera: Jam enim hiems transiit, imber abiit et recessit, iam flores apparuerunt. Porque, afinal, uma criança nasceu, e uma mãe a amamenta. Minha Senhora Dona: um menino nasceu, o mundo tornou a começar.
E a gente, aqui, pasmados nesta meditação, enternecidos neste encantamento, o que mais curtimos é que Maria não é, ou não é só, uma mulher de altares, mas, também, uma mulher da comunidade, da rua, da vida, da vida severina como tantas das nossas mães. Mulher engajada, participativa, comprometida, parceira, parteira de sonhos que conscientizem e humanizem o viver nosso de cada dia. Nem José não é nenhum velho impotente, protetor eunuco de virgindades perpétuas. É, sim, um jovem viril, um operário, que divide com a esposa os trabalhos e as canseiras, os intervalos e os prazeres, construindo, na carpintaria dos dias, uma família humana e, se humana, também divina: uma Sagrada Família.
Ah, o Natal! Quanta deturpação e quanta desumanização, diante de uma coisa tão bonita e tão simples! Uma mãe que concebe, num ato de amor, que dá à luz, e que amamenta; mais que a virgindade, vale a maternidade; uma mãe que amamenta é mais sagrada que qualquer outra coisa; é uma coisa que traz lembranças, uma coisa que emociona, que enternece, que desperta ressurreições. Sacramento é que é, um memorial da saudade, uma profecia do amanhã: O admirabile sacramentum!
Por que será que os teólogos complicam tanto? Por que não são todos como esse teólogo brasileiro, que há pouco nos deixou, Rubem Alves, de quem empresto, para nossa meditação, esta página de renovada teologia:
“O sonho começa com a imagem espantosa de uma virgem grávida, dando à luz uma criancinha. Pena que os intérpretes de sonhos tenham sido substituídos por repórteres de fatos, e aquilo que era um poema onírico a ser decifrado – nascimento virginal – passou a ser noticiado como impossibilidade ginecológica a ser acreditada, sob pena de inquisições. E assim quebraram o encanto: tiraram o Natal do mundo dos sonhos (que é onde moram os desejos) e o puseram no meio dos fatos acontecidos. A diferença? Um desejo esperado pode ser sonhado pela humanidade inteira, não conhece nem tempo nem espaço. Mas um fato está condenado a se perder na distância e no tempo. Claro que é impossível que uma virgem fique grávida. Isso é sonho, que anuncia que é preciso esperar mesmo quando não há esperança. Ou, talvez, um pouco mais: que é preciso viver como se os sonhos impossíveis fossem acontecer...”
E, para terminar de forma mais ‘ortodoxa’, àquela menina adolescente, menina senhora, que deu à luz a Jesus, e que, também, Senhora da Luz se chama, com o padre António Vieira:
“Peçamos luz para nossas trevas, peçamos luz para nossas escuridades, peçamos luz para nossas cegueiras, luz com que conheçamos a Deus, luz com que conheçamos o mundo, e luz com que nos conheçamos a nós. Abramos as portas à luz, para que alumie nossas casas; abramos os olhos à luz, para que alumie nossos corações; abramos os corações à luz, para que more perpetuamente neles. Venhamos, venhamos a buscar luz a esta Fonte de Luz, e levemos daqui cheias de luz nossas almas. Com esta luz saberemos por onde havemos de ir; com esta luz conheceremos donde nos havemos de guardar; com esta luz, enfim, chegaremos àquela luz, onde mora Deus, a que o Apóstolo chamou Luz Inacessível: qui lucem inhabitat inaccessibilem (1 Tim. 6, 16), que só por meio da Luz que hoje nasce, se pode chegar à vista do Sol que dela nasceu: De qua natus est Iesus.”
7 comentários:
Singelo e pungente texto, adequado aos tempos tempestuosos e reificantes que vivemos. Fonte de inspiração à humildade para a vida e à grandeza de se reconhecer na criança, que anuncia o Senhor, o nosso Deus e Pastor. Parabéns a vc por publicar, ao Gaio por produzir um texto escorreito e digno, embasado em fontes de imensa grandeza intelectual.
Como gerente do Blog de São João del-Rei, tenho o prazer de acolher um novo texto de ANTÔNIO GAIO SOBRINHO, no qual convida o leitor a juntos fazerem uma MEDITAÇÃO PARA A VIGÍLIA DO NATAL. Todo texto do Prof. Gaio traz luz nova sobre o assunto em questão, mas também suscita surpresa no leitor diante do inesperado, fruto do pensamento não-linear do autor. Aqui não vai ser diferente.
Com seus dotes de historiador, o autor aborda o assunto com grande maestria, mesclando conhecimento do assunto na língua latina e na tradição cristã, finalizando com duas citações: a primeira, da crônica intitulada "Todo o poder à criança", extraída do livro "Se eu pudesse viver minha vida novamente" de Rubem Alves; na segunda citação, serviu-se do último parágrafo do "Sermão do Nascimento da Virgem Maria debaixo da invocação de N. Senhora da Luz, título da Igreja e Colégio da Companhia de Jesus na cidade de S. Luís do Maranhão. Ano de 1657", de Padre António Vieira.
Texto de Antônio Gaio Sobrinho
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2018/12/meditacao-para-vigilia-do-natal.html
Breve currículo do autor
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2015/12/colaborador-antonio-gaio-sobrinho.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Muito obrigado amigo Francisco Braga.
Boas festas.
Abraço.
Diamantino Bártolo
Caro professor Braga.
Obrigado por esse precioso texto que contribui para a reflexão e aperfeiçoamento espiritual dos seus leitores.
O cristianismo deu um concreto caráter humano ao drama divino e sua mensagem continuará eternamente atual e universal. Vemos, por exemplo, que a Sagrada Família foi também refugiada da perseguição e da opressão política de cunho fundamentalista, da própria intolerância, tão marcantes deste começo de século.
Para além das Saturnálias, da qual nossa Festa Maior parece ser herdeira, a mensagem que a Estrela nos traz é a de que o Natal deveria ser todo dia.
Muitíssimo grato.
Cupertino
Caro amigo Braga
Agradecemos pela gentileza do envio de MEDITAÇÃO PARA A VIGÍLIA DO NATAL, belo texto de autoria de Antônio Gaio Sobrinho.
Com os renovados votos de um Feliz Natal e um Ano Novo repleto de Saúde e Paz,
Os amigos Mario e Beth.
FELIZ NATAL, MEU NOBRE AMIGO E DIGNA ESPOSA.
GRANDE E FRATERNO ABRAÇO.
Prezados Dr. Francisco Braga e Prof. Antônio Gaio Sobrinho,
Parabenizo por uma publicação de fino gosto, nesta época natalina, que deve servir ao fito de despertar o que de melhor há nas pessoas.
O texto do Prof. Antônio Gaio reconstitui em refinada e lírica prosa, o acontecimento Mor e grande divisor de águas da nossa civilização e cultura cristã, a saber, o nascimento de Jesus. Sua narrativa é pautada em fino talento e grande sensibilidade poética.
Meus melhores cumprimentos.
Prof.a Patrícia Ferreira dos Santos Silveira
Casa de Cultura - Academia Marianense de Letras
Mariana - MG
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