sábado, 28 de agosto de 2021

UMA PARIS NOS TRÓPICOS


Por Anna JAMROZEK-SOWA *

Droga do Rio. Historie polskich emigrantów, em polonês
(Caminho para o Rio. Histórias dos emigrantes poloneses, em português)

 

Caminho para o Rio¹ (em polonês: Droga do Rio ²) é o quinto livro de autoria de Aleksandra Pluta. A jovem autora, formada em jornalismo pela Università La Sapienza, em Roma, doutoranda no Instituto de Teoria Literária da Universidade de Brasília, reside em Brasília e visita regularmente a Polônia. Escreve livros em língua polonesa. 

Caminho para o Rio” consta de catorze entrevistas realizadas pela autora no Rio de Janeiro. Seus interlocutores são personalidades significativas no ambiente da emigração polonesa. O livro contém igualmente as fotos dos heróis e cópias de documentos migratórios. Na introdução, a autora apresenta o contexto cultural e histórico. Faz uma breve revista da história da colonização polonesa no Brasil. Aludindo ao caráter predominantemente camponês dessa emigração, aponta para a excepcionalidade dos seus catorzeinterlocutores: pessoas bem educadas, artistas, empresários. Pela primeira vez introduz no livro os seus próprios comentários. Nas publicações anteriores, cita opiniões de outras pessoas. 

Como no caso dos livros precedentes , a autora se deixa conduzir pelos narradores dos relatos autobiográficos. Não espera deles um relato detalhado. Dá-lhes o direito de apresentar a verdade particular. A analogia de situações, a repetição das reações, a unidade do lugar de fixação (Rio de Janeiro) conferem aos destinos dos narradores individuais as marcas da tipicidade. Eles viajavam à América do Sul tendo apenas escassas informações a respeito do país que se tornaria o lugar de destino da sua jornada. 

Aleksandra Pluta escolhe para heróis de todos os seus livros os emigrantes do pós-guerra que realizam pela sua vida os valores intelectuais neles incutidos pelas famílias, pelas escolas de antes da guerra e pelo escotismo 
“Durante esses vinte anos educou-se uma geração realmente maravilhosa. Naturalmente, sempre em alguma parte há alguns defeitos, mas de maneira geral essa foi uma geração maravilhosa” − dirá um dos interlocutores, Cristóvão Gluchowski (p. 91). 
Esses valores modelavam a forma de funcionar no mundo. Resultavam em honestidade interior, postura pró-social, prontidão a sacrifícios pessoais, ativismo em prol da comunidade. Os emigrantes transportaram esses valores interiorizados para uma outra dimensão geográfica e cultural. O legado deles é especialmente importante no contexto da degradação dos intelectuais na Polônia depois da guerra. 
 
Os heróis dos livros de Pluta são indivíduos que se salvaram e que o vento da história encaminhou ao continente sul-americano. A salvação da vida na borrasca da guerra era uma questão de acaso e de milagre ao mesmo tempo. Liliana Syrkis, cujo pai foi assassinado em 1940 em Kharkov, relata: 
“Quando eu ia de casa para a escola, a NKVD ³ já havia ido para pegar minha mãe [...]. Em Pinsk todos os judeus foram mortos, talvez uns três se tenham salvado. De maneira que foi um milagre termos podido viajar à Sibéria, onde, apesar da fome e do frio, conseguimos sobreviver” (p. 45). 
Os interlocutores de Pluta fugiam da Europa envolvida pela guerra ou, suspensos no vazio do pós-guerra, conscientemente escolhiam a vida no Novo Mundo. As suas narrativas se interligam pela aceitação do fato da própria emigração. O país em que se estabeleceram − Chile, Argentina e sobretudo Brasil − é avaliado por eles positivamente, como o lugar onde lhes foi permitido viver, onde, expulsos do dia a dia de antes da guerra, encontraram um porto seguro. Os recém-chegados encontravam ali a aceitação. Danuta Haczynska da Nóbrega, que após a vinda ao Rio de Janeiro ganhou uma bolsa que lhe possibilitou estudar na respeitada escola particular Colégio Sagrado Coração de Maria, recorda: 
“Tanto as colegas como as irmãs [...] eram muito carinhosas, porque sabiam que eu tinha vindo de um país em guerra” (p. 78-79). 
Ladislau Dzieciolowski dirá: 
“E quanto à minha vida de emigrado, estou satisfeito, não me posso queixar. Eu seria muito ingrato se me queixasse. [...] Os brasileiros me receberam muito bem, desde o início o nosso relacionamento foi muito amigável. Todos me tratavam com gentileza, não havia preconceitos” (p. 40-41). 
Ana Dzieciolowska recorda que no Rio os poloneses não se fechavam num gueto étnico: 
“Os brasileiros nos aceitaram e por isso rapidamente ingressamos nessa sociedade. [...] Sempre nos convidavam para suas casas, para passarmos juntos as festas do Natal [...], sempre eram amistosos e hospitaleiros” (p. 232). 
Os emigrados da Polônia eram tratados como componentes daquela multidão de imigrantes que a partir do século XVII começaram a estabelecer-se na América do Sul. Tinham a oportunidade do desenvolvimento pessoal e a possibilidade da realização profissional. Visto que haviam sobrevivido às agruras da guerra, a muitas situações que ameaçavam a vida, após a vinda ao Novo Mundo, envolvidos pela benevolência geral do ambiente e granjeando a sua aceitação, foram capazes de mais uma vez encontrar um espaço para a vida. Não se sentiam estigmatizados pela etiqueta da “estranheza”. Não foram reduzidos ao papel de “estrangeiros”. Os que tinham a maior consciência da perda, não somente das fontes psicológicas e culturais da identidade, mas também de quase todos os parentes, eram os judeus poloneses salvos do Holocausto. O Brasil lhes deu a oportunidade para uma recuperação pós-traumática. 
Os que chegavam sentiam-se fascinados pela beleza da capital: 
“[O Rio] era limpo e tão belo como Paris... [...] Havia muita elegância. Uma Paris nos trópicos(Danuta Haczynska da Nóbrega, p. 78);
“A viagem foi horrível. Nós a fizemos de navio, na terceira classe, no porão, onde os passageiros sentiam fortemente o balanço, as crianças choravam, as pessoas vomitavam. Em toda a parte o mau cheiro e a sujeira. Isso era horrível. Mas chegamos ao Rio. Quando começamos a nos aproximar, quando vi essa bela cidade, essas montanhas, esse mar!... Faltam-me palavras” (Liliana Syrkis, p. 51); 
“Apaixonei-me por esta cidade à primeira vista. Até hoje estou muito satisfeito por aqui morar” (Alexandre Laks, p. 64). 
Como resulta dos pronunciamentos das personagens, os brasileiros contaminavam os emigrados com a sua alegria. Naturalmente, a respeito do que lembra a pintora Alícia Sikorska-Glass, ao chegarem eles se defrontavam com costumes que lhes eram estranhos. Por exemplo, era comumente aceito que as moças fossem a festas, ao cinema ou ao teatro exclusivamente em companhia masculina. 

Os relatos dos protagonistas de Pluta são histórias de sobrevivência, de salvações milagrosas, de instinto de vida que fornece forças para superar sucessivos obstáculos. Coerentemente a autora constrói a narrativa sobre imigrantes poloneses espalhados pelo mundo como pessoas de sucesso. O Brasil, o Chile ou a Argentina que a envolvem são lugares mentalmente distantes da Polônia. Situam-se à margem da nossa percepção, acostumada a captar informações provenientes do círculo da cultura anglo-saxônica. Os imigrantes residentes nos Estados Unidos estão mais presentes na nossa reflexão do que aqueles que se fixaram sob o Cruzeiro do Sul. Basicamente, influenciaram essa exclusão os rigores introduzidos pelos regimes militares sul-americanos e a interrupção dos laços com o país de origem, também governado autoritariamente. Os livros de Pluta devolvem a lembrança dos Ausentes. 

Os interlocutores de Pluta refazem e interpretam a própria experiência. Dirigindo o pensamento à sua existência que se desenvolveu no tempo, elaboram a própria identidade. A construção do próprio destino no relato é uma expressão do desejo de penetrar aquilo que 
“é inexplicável e imprevisível, que, subtraindo-se ao conhecimento e à clara compreensão, ao mesmo tempo não deixa de inquietar a mente” (Buczyńska-Garewicz 2010, 7). 
Fazem uso dos modelos de autonarrativas que funcionam na cultura. Os seus pronunciamentos são realizados por esquemas de narrativas migratórias: o relato sobre a “base” (país de nascimento, cidade, família, peripécias dos primeiros anos de vida), o realce da importância do impulso exterior que determina a migração, o momento da vinda ao país de fixação e a descrição do processo do estabelecimento na nova realidade (busca de trabalho, fundação de uma família) e − finalmente − a visão da vida no contexto do significado das escolhas feitas. A autoanálise conduz à autodeclaração. Os heróis dos livros de Pluta não fazem isso ad hoc. A autodeclaração resulta da reflexão, com a qual envolvem várias dezenas de anos de uma vida em geral significativamente longa. A perspectiva intercultural os induz a um pensamento relativo, enriquece-os cognitivamente. Graças à realização desse trabalho mental, as narrativas por eles relatadas transformam-se em tratados sobre a memória e o esquecimento. Não podendo fazer um relato do transcurso de toda a vida, eles escolhem “pontos de orientação”, acontecimentos cruciais. Apontam para momentos dolorosos, mas os comentam com uma ou algumas frases apenas. De acordo com a intenção da autora, destacam os papéis por eles cumpridos de emigrantes e imigrantes. Levam em conta as diversas formas possíveis de interpretar a sua situação existencial: 
“Não sou emigrante − estou entre os emigrados” (p. 86) 
− dirá Cristóvão Gluchowski, antigo soldado polonês que até 1970 residiu em Londres, e a partir de 1988 no Rio de Janeiro, autor de dois volumes de memórias: Polacy w Londynie: 1947-1970 (“Os poloneses em Londres: 1947-1970”) e Śladami pradziadów (“Na trilha dos antepassados”). Os sobrinhos de Mieczysław Lepecki, um conhecido repórter de antes da guerra, ajudante de campo de Józef Piłsudski, afirmam que  
“ser ao mesmo tempo brasileiro e polonês não encerra em si nenhuma contradição.” 
Jorge Lepecki diz: 
“Na minha situação [...], sou uma coisa e outra. [...] Aqui sou tratado como um local. No Brasil há tantas pessoas de origem estrangeira que ninguém nem sabe se alguém é um imigrante recente ou antigo [...]. Eu não trato a minha emigração como uma perda. Para as pessoas mais velhas a emigração certamente pode ser uma perda, mas pra mim não foi” (p. 140-141).
Seu irmão, Vitoldo Lepecki, confirma: 
“Sou meio polonês, meio brasileiro. Há pouco obtive a cidadania polonesa. Sou meio a meio, um pouco dividido, mas basicamente me sinto um cidadão brasileiro de origem polonesa” (p. 141).
Alexandre Laks constata: 
“Eu me senti bem no Brasil e assim me sinto até hoje. [...] Não sentia que era judeu ou polonês, ninguém me perguntava isso. O Brasil é para mim uma nova pátria, embora não me tenha esquecido de que nasci na Polônia. Sou também membro da Sociedade ‘Polonia’ no Rio de Janeiro. Sou judeu e sou hoje muito respeitado no Brasil. Fui nomeado cidadão honorário da cidade do Rio de Janeiro. Não me sinto estrangeiro, visto que os brasileiros aceitam a todos, não têm quaisquer preconceitos” (p. 65).
Contrariamente aos emigrantes do pós-guerra, tem uma grande dificuldade para definir a sua identidade Igor Cwajgenberg, de vinte anos de idade, neto de uma moradora do Rio salva do Holocausto: 
“Sou brasileiro, mas não pareço brasileiro. Sou um judeu. Meu pai casou-se com uma judia de origem polonesa, de maneira que tanto meu pai como minha mãe são judeus poloneses. No Brasil não me tratam como brasileiro, na Polônia não sou polonês. [...] Não tenho um país” (p. 221).
Um elemento constante abordado nas entrevistas é o projeto no final não realizado de uma eventual volta dos emigrantes à Polônia. As tentativas empreendidas resultaram em insucessos, porquanto 
“o que é difícil na figura da volta é a continuidade. A falta de continuidade na experiência de permanecer não permite [...] reencontrar plenamente o que se abandonou, reassumir as coisas onde foram deixadas, reencontrar a si mesmo ainda não mudado” (Augé 2009, 73).
A história da partida da família à Polônia nos anos 70, dos dramáticos efeitos dessa decisão e − no final − da reemigração ao Brasil é relatada por Aldona Kozlowski: 
“Tínhamos muita dificuldade, porque não falávamos em polonês. As crianças nos chamavam de imperialistas, porque havíamos vindo da América. Elas tinham incutido na cabeça que a América é terra de imperialistas” (p. 183).

Aleksandra Pluta olha para os seus protagonistas de uma perspectiva especial. Há catorze anos reside fora da Polônia, sucessivamente: na Itália, no Chile e no Brasil. Ao formular perguntas a compatriotas que há setenta anos aportaram no litoral da América do Sul, a respeito do que lhes ofereceu o país de fixação e a respeito da sua autoidentificação − adquire conhecimentos e perspectivas que lhe possibilitam olhar para as escolhas próprias e as da sua geração. Em Caminho para o Rio inscreve-se a tensão que existe entre a emigração imaginada e o seu formato real. Encontra-se também o elogio do multiculturalismo e da tolerância, o respeito às pessoas de mente aberta e energia inesgotável. As biografias dos protagonistas de Pluta testemunham que, residindo a milhares de quilômetros da pátria, alguém pode continuar a sentir-se polonês, que o ser brasileiro não apaga o primitivo “eu” e que a consciente aceitação dos condicionamentos do país de fixação resulta num sentimento de realização. Como declaram os interlocutores, o duplo enraizamento não é um obstáculo, mas um estímulo ao seu desenvolvimento. A autora destaca a posição deles, de emigrantes e imigrantes, bem como as consequências que resultam do cumprimento desses dois papéis. Os livros precedentes de Pluta são o registro de histórias faladas ou assumem a forma de relatos autobiográficos e biográficos. Em seu último livro, ela reúne entrevistas realizadas com decanos da imigração polonesa no Rio de Janeiro. 

Resenha do livro "Caminho para o Rio", intitulada
"Uma Paris nos trópicos". (Também se encontra 
  na língua polonesa com o título "Taki Paryż w tropikach")

  

* Universidade de Rzeszów, Polônia

 

II. NOTAS EXPLICATIVAS 

 

¹  O livro resenhado por Anna Jamrozek-Sowa foi publicado no Brasil pela Verve Editora em 2018 com o título Caminho para o Rio

²  O texto da resenha aqui reproduzido foi extraído de:   
Polonicus-Revista de reflexão Brasil-Polônia 
Edição semestral Ano IX-2/2018 pp. 182-191 
Curitiba - PR (Publicação da Missão Católica Polonesa no Brasil) 
 
O texto original desta resenha, em polonês, foi publicado em Postscriptum polonistyczne, 2018, n. 1 (21), pp. 275-281. 

³  Na União Soviética, o serviço secreto NKVD (sigla para Comissariado Popular para Assuntos Internos, em português) teve duração de 1930 até 1954, antecedendo a KGB (1954 até 1991), órgão ligado ao Partido Comunista.


 

III. BIBLIOGRAFIA

 

AUGÉ, M. Formy zapomnienia, trad. A. Turczyn, introd. J. Mikułowski-Pomorski. Kraków, 2009 

BUCZYŃSKA-GAREWICZ, H. Człowiek wobec losu. Kraków, 2010.

6 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Heitor Garcia de Carvalho (pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008) disse...

Obrigado!
Muito bom, histórico, instrutivo!!!!
Repassei...
Heitor

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Tenho o prazer de compartilhar com os leitores do Blog de São João del-Rei a RESENHA (intitulada Uma Paris nos trópicos) feita por ANNA JAMROZEK-SOWA para o livro "Droga do Rio", em polonês (em português, Caminho para o Rio).
Caminho para o Rio (2018) é o 5º livro da colaboradora do Blog de São João del-Rei, ALEKSANDRA PLUTA.
O livro é o resultado de uma série de entrevistas realizadas durante dois anos com 14 imigrantes poloneses e alguns descendentes que emigraram para o Rio de Janeiro durante o período da Segunda Guerra Mundial.
O que une as histórias dos protagonistas é que todos começaram uma nova vida no Brasil, país distante de sua terra natal, cuja língua, clima e costumes estavam fora do alcance daqueles poloneses nativos. As memórias narradas no livro são hoje uma valiosa fonte histórica.
Os 4 livros anteriores dela são:
Na onda da história,
Raul Nałęcz-Małachowski: Recordações de dois continentes,
Andrés-Uma vida em mais de 3 mil filmes e
Ziembinski: Aquele Bárbaro Sotaque Polonês.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2021/08/uma-paris-nos-tropicos.html

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

João Paulo Guimarães (influenciador digital são-joanense, proprietário da TV DelRei) disse...

Parabéns!

Elza Zarur (jornalista formada pela UnB e, atualmente, aposentada do Itamaraty, tendo servido nas Embaixadas de Washington e Buenos Aires, onde exerceu a função de vice-cônsul) disse...

Muito obrigada.
Interessante poder conhecer um pouco da aventura destes polonêses.
Abc

Roberto Rymer (descendente de imigrantes poloneses) disse...

Parabéns pela iniciativa, muito interessante. Tenho particular interesse por ser filho de imigrantes poloneses.
Abcs

Roberto Rymer