terça-feira, 27 de setembro de 2022

PIANISTA ENY DA ROCHA: “NA LINHA DO TEMPO”


Por Francisco José dos Santos Braga
 
O gerente do Blog de São João del-Rei dedica o presente trabalho ao empreendedor ANTÔNIO JOSÉ DA LUZ, proprietário do SEBO LIBERDADE, localizado no centro histórico de São Paulo, à Praça Carlos Gomes, 124, onde encontrou o CD abaixo, apresentado nesta matéria. O SEBO LIBERDADE é referência em todas as áreas do conhecimento, inclusive com itens esgotados e raros, merecendo destaque especial seu acervo de obras literárias. 
 
“O pianista é um operário. Ele tem que ter horário muito rígido de trabalho e, ao mesmo tempo, ele tem que ter muita sensibilidade para passar suas emoções através das suas interpretações.”
(em entrevista dada a Maria Luíza Kfouri, quando se apresentou no Piano Maior gravado ao vivo no Auditório Cultura (Teatro Franco Zampari) no primeiro semestre de 1993)
 
 
Eny da Rocha, tendo ao fundo o Museu do Ipiranga: capa do encarte do CD "Na Linha do Tempo" de 2016 / Crédito: Cezar de Aguiar, produtor executivo do CD, e Hamilton Penna, fotógrafo.

 
 
Tributo da artista a seus pais Ari da Rocha e Maria Olga da Rocha (na contracapa do CD): "Minha vida musical começou quando meus pais compraram para mim uma piano novinho em folha! Aquele gesto mudou meu futuro! Este CD é um tributo a sua confiança, esforço, encorajamento e amor... Devido àquele presente precioso e seu significado, eu serei eternamente grata!"

 
 
I. INTRODUÇÃO
 
 
O título desta matéria  – Na linha do tempo – comporta e traduz dois significados bem distintos: em primeiro lugar, com idêntico título, na discografia da grande pianista há um belo CD, gravado em São Paulo e lançado em 2016. Além disso, o título da presente matéria também reflete sua vida artística palmilhada em vários países e pontuada por uma carreira pianística de virtuose. Ambas essas acepções serão objeto desse meu trabalho. 
 
Começo, pois, por um evento indelével que ficou gravado em sua memória infantil e que determinou o seu futuro. A respeito desse evento marcante na sua infância, o CD "Na Linha do Tempo" de 2016, em sua faixa nº 10, inclui um terno depoimento da artista pleno de gratidão a seus pais, nos seguintes termos: 
"Aos 8 anos de idade eu já queria ser pianista, mas não tinha piano. Os meus pais é que acreditaram em mim e juntaram todas as suas economias e fizeram o que os parentes chamaram de "loucura". Um dia eu voltava da escola e, passando pela sala, vi com alegria que meu piano estava lá: um piano lindo, preto, alemão, de marca Gebrüder Baker. Com o meu coração batendo forte, eu abracei minha mãe e agradeci pela maravilhosa surpresa. Aquele gesto desenhou o meu futuro. Ao sacrifício dos meus pais e seu voto de confiança e sinal de amor serei eternamente grata. A próxima peça Serenada Humorística de Francisco Mignone (faixa nº 11) foi gravada nesse piano histórico que eu tenho desde os meus 8 anos. Obrigada a meus saudosos e amados pais."
Observa-se bom gosto e finesse na escolha do repertório pela artista. As peças, que se estendem do barroco ao romantismo, acoplados ao impressionismo francês, primam pela elegância e glamour que exalam, e permitem que a técnica virtuosística sirva à autêntica interpretação, dentro das convenções estilísticas exigidas para tal e com o maior rigor técnico. 
 
Todas as faixas do CD "Na Linha do Tempo" são: 
1) Bach-Saint-Saëns: Ouverture de la 28ème Cantate d'Église [4'43’’]
2) Chopin: Fantaisie-Impromptu op. 66 [4'39’’]
3) Chopin: Berceuse op. 57 [4'23’’]
4) Brahms: Rapsódia op. 79 nº 1 [7'46’’]
5) Debussy: Clair de Lune (Suite Bergamasque) [4'02’’]
6) Debussy: 1ère Arabesque [4'27’’]
7) Debussy: L'isle joyeuse [6'12’’]
8) Ravel: Jeux d'eau [5'51’’]
9) Ravel: Miroirs nº 4, Alborada del Gracioso [6'53’’]
10) Depoimento da Artista (conforme acima transcrita) [1'02’’]
11) Mignone: Serenada Humorística [2'08’’]
 
Sobre a última peça, intitulada Serenada Humorística, cabe tecer alguns comentários. 
[MARTINS, 1990, 89] faz importantes considerações sobre o pianista e compositor Mignone:
"Francisco Mignone poderia ter sido apenas pianista. Destinação clara mostrava-se delineada e o piano, instrumento a que sempre estivera ligado, apresentava-se como decorrência de talento nato. Reflexão metafísica voltada à perpetuação, à imortalidade, fê-lo cedo ampliar os caminhos. É quando sente e compreende a atração pela composição. (...)
Pianismo e composição, paralelamente, percorrem a trajetória de Mignone. A diversidade dos gêneros abordados em organizações instrumentais variadas, assim como para a voz em suas principais destinações musicais, apenas dimensiona a prioridade em escrever para piano. É este o instrumento preferencial, o desaguadouro das múltiplas tensões, homogêneas no seu todo. (...) 
Francisco Mignone foi um dos compositores que melhor escreveram para piano. A "transcendência" pianística, que para muitos compositores se antepõe como obstáculo ou necessidade forçada da demonstração virtuosística à clareza, é para Mignone o discurso natural. Poder-se-ia acrescentar que raros são os compositores que escreveram para piano, na transcendência, de maneira tão adequada e "fácil". 
O transcendente da obra para piano de Mignone origina-se na conditio sine qua non da improvisação. Mignone, improvisador nato, questionado certa vez por este intérprete, não hesitou em considerar a sua criação "o improviso elaborado", pois o fio condutor do criar espontâneo o levava a considerar, quando do verter para o papel, a obra com todos os ingredientes estruturais. (...)"

De acordo com o Catálogo de Obras de Francisco Mignone, organizado em 2016 por Flávio Silva para a Academia Brasileira de Música, são três as situações em que aparece a peça com o título de Serenada Humorística

1) Nº 5.42 do Catálogo 
A partitura original para piano é datada de 1932, editada por Editorial Mangione, dedicada "ao querido e ilustre colega Francisco Braga" e consta de 5 páginas com duração prevista de 2'10. É a utilizada na gravação da faixa nº 11 do CD pela pianista Eny da Rocha. 
Curiosidade: Serenada Humorística pede o andamento "Allegretto saltellante". 
 
Primeiros compassos da Serenada Humorística / Crédito: CASA do CHORO

 
2) Nº 6.31 do Catálogo 
Existe ainda uma transcrição em 2 páginas, feita pelo próprio Mignone em data ignorada. 
 
3) Nº 7.13 do Catálogo 
Transcrição para 4 fagotes datada de 9/12/1983 e dedicada "a Noel Devos e seus discípulos".
 
 
II. ARTISTA DESTAQUE: ENY DA ROCHA ("ARTISTA STEINWAY") 
 
Por Cezar de Aguiar (no encarte do CD) *
 
Quando aquela menina, nascida no Ipiranga ganhou dos pais seu primeiro piano, ninguém poderia imaginar até onde ela chegaria... Aos 8 anos Eny era estudiosa, obediente e compenetrada. A professora contratada, Maria de Freitas, logo percebeu que a alunazinha "tinha jeito", aprendia com facilidade e foi progredindo nos estudos. Foi ela que encaminhou Eny para o Conservatório Dramático e Musical, em São Paulo, que, na época, congregava sábios mestres. 
Quatro anos mais tarde ela estreou como solista da Orquestra Sinfônica da Rádio Gazeta, regida por Armando Belardi. Feito notável! A Gazeta estimulava a boa música e valorizava os jovens artistas. Mas assumir a responsabilidade de solista de sinfônica não era para qualquer músico, especialmente não nesta tenra idade... 
 
Eny da Rocha, Ilza Antunes e Edda Fiore, aguardando uma masterclass de Magdalena Tagliaferro no Teatro Municipal de São Paulo / Crédito: Instituto Piano Brasileiro

 
Como explicar essa carreira vitoriosa, longa e repleta de acontecimentos improváveis? Durante o tempo em que trabalhamos neste projeto convivendo com a grande artista, a razão apareceu com todo o fulgor: foram seus vários mestres, que, ao longo de sua formação musical e artística, a orientaram para o sucesso e a excelência! E não eram mestres quaisquer! Eram expoentes mundialmente conhecidos, exigentes, trabalhando em Escolas e ambientes propícios. 
Somente um deles já teria sido algo extraordinário, João de Souza Lima. Generoso e – bom observador – aconselhou a ida da artista para "aperfeiçoamento" na Europa. Imagino Eny sorrindo, abismada pelo que tinha à sua volta quando lá chegou. Estudar em instrumentos de alta qualidade, vendo talentos e mais talentos no seu entorno, enfrentando competição de alto nível, o mérito garantido e reconhecido somente pelo desempenho e pelo resultado. Ela própria conscientizando-se pelos muitos prêmios e láureas que recebeu – algo impossível se estivesse no Brasil daquela época – e viu que podia fazer ainda mais... 
 
Maestro Souza Lima, "príncipe dos pianistas brasileiros" (1898-1982), dedicou a Eny da Rocha seu Prelúdio nº 5-Link: https://www.youtube.com/watch?v=6mCoQCqgd00

 
Dessas honrarias há uma que vai permanecer para a Posteridade: Eny se torna uma Steinway Artist. Em 150 anos de história um número realmente muito pequeno de pianistas recebeu tal comenda. 
Os grandes compositores e intérpretes dos séculos 19 e os gênios da música do século 20, compõem um elenco de uns 1.000 artistas imortais. Para os mortais, sobram cerca de 500 artistas laureados em toda a Humanidade desde a instituição do prêmio. Os brasileiros são menos de 20. 
Eny, além de intérprete impecável e em plena atividade na cena internacional, é também uma educadora de jovens. Promove Master Classes, estimula os mais promissores. Agora está encantada porque a netinha anunciou que quer tocar harpa... o neto já toca violão! E ambos passam horas "improvisando" no Steinway da vovó...
* Produtor Executivo do CD "Na Linha do Tempo"
 
 
 
III. ENY DA ROCHA: A INTÉRPRETE POR ELA PRÓPRIA (no encarte do CD)
 
 
(...) Ao completar meus estudos no Brasil, fui à Europa, com bolsa do Itamaraty, aperfeiçoar meus estudos, com as insignes mestras Marguerite Long e Lucette Descaves, recebendo diploma de curso efetuado na École Long. Nessa época, participei de inúmeros concursos internacionais como o Concurso Marguerite Long-Jacques Thibaud, recebendo menções honrosas e a oportunidade de dar concertos pela Europa. 
Após dois anos em Paris, retornei ao Brasil, mas logo voltei novamente para a Europa, desta feita, para Viena, onde permaneci dois anos, formando-me pela Academia de Viena - Akademie für Musik und Darstellende Kunst, na classe de Hans Graf e com aulas particulares com o grande mestre Bruno Seidlhofer, além de um curso em Salzburg sob sua orientação. Dei concertos em Viena, com excelentes críticas e fui convidada a permanecer lá para uma carreira internacional. 
Porém, voltei ao Brasil, meu país amado, onde sonhei construir minha vida artística. Toquei em vários países como França, Espanha, Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Portugal, Itália, República Tcheca, Argentina, Estados Unidos (Washington, Los Angeles, Salt Lake City e outras cidades). No Brasil, onde vivo, criei uma Escola de Música e realizo Master Classes tanto no Brasil, como nos EUA, Itália, etc. Tenho um conjunto de câmara para apresentações no Brasil e me orgulho de ter dado inúmeros concertos em benefício, pelas Escolas do Chile, em L'Aquila e Mantova, pelas vítimas do terremoto, em São Paulo, pela Fundação Dorina Nowill para Cegos, Recanto da Vovó, por várias vezes, em benefício de idosos, Creches como a Catarina Labouré e Operários de São José, Associação Padre Pedro Bach, para crianças pobres e tantos outros. Sou também voluntária da ONG Soroptimist Internacional de São Paulo, por 23 anos, trabalhando pela comunidade carente. 
Através da Música, conheci pessoas extraordinárias, como o grande compositor russo Dimitri Shostakovich, o Maestro Herbert von Karajan, nosso amado Villa-Lobos e inúmeros outros. Graças à Música, tenho amigos muito queridos em todos os países por onde passei e especialmente aqui no Brasil, em minha cidade, São Paulo. Graças a Deus, são eles que conduzem minha carreira e me levam adiante com fé e determinação. 
 
Foto de Eny da Rocha tirada nos jardins do Museu do Ipiranga / Crédito: Hamilton Penna

 
Agradeço a você, Cezar de Aguiar, a dedicação e esmero ao produzir este meu novo CD "Na linha do tempo", cuja capa traz uma foto minha, tirada pelo amigo Hamilton Penna, nos jardins do Museu do Ipiranga, bairro onde nasci e passei minha infância e juventude. A todos minha eterna gratidão! 
Em todos os tempos a Música teve um papel preponderante na Civilização. Sua presença se faz sentir desde o nascimento e em todas as ocasiões de nossa vida. A Música é uma forma de oração, elevando o pensamento a Deus! 


IV. AGRADECIMENTO
 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste ensaio.
 

V. BIBLIOGRAFIA

 
 
 
MARTINS, José Eduardo: A Pianística Multifacetada de Francisco Mignone, Revista Música, São Paulo (2):89-113, nov. 1990.

ROCHA, Eny da: Contemporary Digital Arts - CDA-20150505-CD "Na Linha do Tempo" de 2016

LINKS CONSULTADOS
 
 
 
 
 
 
 
 

7 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Encantamento é a expressão do que senti durante o processo de refletir e escrever esta página a respeito da artista internacional ENY DA ROCHA, pianista brasileira, paulistana, do bairro do Ipiranga.
Ao tomar conhecimento dos desafios que ela enfrentou aqui e no exterior para ser admitida no pequeno círculo dos notáveis pianistas com a comenda "Artist Steinway", eu pedi a Deus inspiração capaz de traduzir em texto a sua Arte. Não deixei que me distraísse da tarefa que me impus de tentar imitar a bela Arte que provém da magia de seus dedos.
O saudoso MAESTRO SOUZA LIMA (1898-1982) deve se regozijar de tê-la recomendado a Marguerite Long para participar de seu curso de aperfeiçoamento de técnica pianística avançada e de alta interpretação em Paris, após ter-se certificado de suas qualidades de virtuose que tinha perfeito domínio dos estilos e gêneros musicais.
O "príncipe dos pianistas brasileiros" foi clarividente, ao reconhecer as potencialidades de sua discípula, quando, acertadamente, lhe dedicou seu 5º Prelúdio composto em 1954, na esperança de que, no futuro, iria se tornar sua maior intérprete.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2022/09/pianista-eny-da-rocha-na-linha-do-tempo.html

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Oscar Edelstein (pianista, regente, compositor contemporâneo argentino de música acústica e eletroacústica e professor titular da Universidade Nacional de Quilmes) disse...

Hola Francisco, un placer recibir noticias tuyas! tanto tiempo en el medio, y que tiempos (ugh!) nos han tocado atravesar.
Veré tu página con detenimiento y luego te haré llegar mis comentarios. Vuelvo a Buenos Aires el lunes, estoy viajando por conciertos.
Un abrazo fuerte!

Adirson Vasconcelos (jornalista, "o" historiador de Brasília, defensor da mudança da capital para Brasília, escritor, membro da Academia de Letras de Brasília, da Academia Brasiliense de Letras, do IHG-DF, da Academia Taguatinguense de Letras e da ANE) disse...

Parabéns, estimado Francisco Braga!

Mario Pellegrini Cupello, Arquiteto, diplomado em Direito,Presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto. disse...

Caro amigo Braga
Que bela e merecida homenagem você prestou à Pianista ENY DA ROCHA!
Parabéns pelo êxito de mais este trabalho!
Abraços, meus e de Beth.

Frei Joel Postma o.f.m. (compositor sacro, autor de 5 hinários, cantatas, missas e peças avulsas) disse...

Todos os e todas as artistas ao piano são dons do alto para a humanidade. Maravilhoso instrumento musical!! Grande abraço e votos de 'Paz e Bem' do irmão f. Joel.

Celio Bottura Junior (engenheiro civil, diretor da "Pianofatura Paulista", dona da grife FRITZ DOBBERT) disse...

Caro Francisco José dos Santos Braga,

Ficamos tocados com o belo texto cuidadosamente redigido, para que pudesse expressar com exatidão o que representa para a música brasileira, a grandiosidade da magnífica pianista Eny da Rocha.

Agradecemos por compartilhar conosco, a emoção de conhecer em detalhes aspectos da vida de Eny da Rocha, que inúmeras vezes nos deu a honra de se apresentar tocando em um piano Fritz Dobbert.

Saudações,
Celio Bottura Junior

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga;

Todo esse seu encantamento é certamente transmitido pela sua publicação sobre a vida, trajetória artística e a obra da musicista Eny da Rocha ! Uma emoção especial para mim que simplesmente não a conhecia.
Congratulações!
Cupertino